Tudo que passa é para sempre -

Tudo que passa

ĂŠ para sempre Uma blografia de Kika Moog

Kika Moog

Tudo que passa

ĂŠ para sempre Uma blografia de Kika Moog

SĂŁo Paulo 2012

Copyright © 2012 by Editora Baraúna SE Ltda Capa e Projeto Gráfico Aline Benitez Diagramação Thaís Santos Revisão Priscila Loiola

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ _____________________________________________________________ M81t Moog, Kika Tudo que passa é para sempre : uma blografia de Kika Moog / Kika Moog. - São Paulo: Baraúna, 2012.

ISBN 978-85-7923-605-1 1. Crônica brasileira 2. Blogs - Brasil. I. Título.

12-5418.

CDD: 869.98 CDU: 821.134.3(81)-94

31.07.12 08.08.12 037770 _____________________________________________________________

Impresso no Brasil Printed in Brazil DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À EDITORA BARAÚNA www.EditoraBarauna.com.br Rua da Glória, 246 — 3º andar CEP 01510-000 Liberdade — São Paulo — SP Tel.: 11 3167.4261 www.editorabarauna.com.br

Apresentação De repente, eu acordava me lembrando direitinho de uma época, uma passagem, uma pessoa, uma sensação da minha história. As cenas me assaltavam no ônibus, indo para o trabalho, ou enquanto assistia a um filme no cinema. Um fenômeno estranho de resgate da memória, involuntário e caprichoso. Daí, resolvi registrar as lembranças (pensei que seria bom se um dia meu filho pudesse ler e lembrar de mim) e comecei um blog.

No início, eram reminiscências; depois, se acrescentaram instantâneos dos momentos presentes e até desabafos. Anos mais tarde, encerrei o blog e resolvi transformá-lo em livro, esta blografia. Aqui, os escritos vêm apresentados sem datas e totalmente fora de ordem, como numa colcha de retalhos, para que, assim, as histórias ganhem unidade e redondeza.

Sem nenhuma pretensão.

Tudo que passa é para sempre •

5

Recuerdo Minha avó contava que quando era criança, no início do século, no inverno gelado do Sul, as pessoas esquentavam tijolos no fogão para depois colocá-los embaixo das cobertas: assim, quando iam dormir, a cama estava aquecida. Já para acordarem a tempo de irem pra escola, as crianças tinham as costas esfregadas com álcool, o que, a princípio, dava um frio medonho, e logo em seguida um calorzinho bom.

(Sempre na época de Natal me lembro dos meus avós.)

6

• Kika Moog

Ontem e hoje O problema da juventude é que a gente sofre por qualquer bobagem.

O problema da maturidade é que a gente fica feliz com qualquer bobagem.

Na juventude, a gente acha que já sabe tudo e, dia sim, dia não, acha a vida um tédio.

Na maturidade, a gente acha que inda não sabe nada e, dia sim, dia não, acha a vida um completo mistério.

Tudo que passa é para sempre •

7

The boss O primeiro era tarado por cifrões. Ou melhor, pelo cifrão, pelo essezinho partido ao meio, não pelo vil metal. Tanto que me incumbiu de pesquisar a origem do símbolo. Tinha problema de falta de plateia. Nos chamava, um por um, para monologar acerca de qualquer coisa. Quando se cansava, substituía o ouvinte enquanto tomava um café e mais fôlego: pode ir; e chama fulano aqui, por favor.

Outro mantinha fichas com nossos nomes e anotava, cuidadosamente, cada erro cometido, cada falta, cada atraso e até os minutos gastos ao telefone. Nada de elogios, claro. Era um inventário de falhas. Quando precisei arrancar o siso, e ele duvidou, levei o dente, num vidrinho, de presente.

Um era engraçado, tinha talentos dramáticos, nos divertia com piadas, imitações, embustes e brincadeiras. Era justo.

Não pegava no pé à toa, apontava discreta e objetivamente aos interessados os erros que lhe pareciam importantes e sabia brigar e até demitir, se necessário. Mas, principalmente, sabia discernir quem merecia o quê. Chegava animado: “hoje eu estou elétrico!”, rodopiava pela sala, jogava no bicho. Me puxava pelo dedo mindinho — “hoje você está frappée” — pra me trazer da distração e me chamava pelo diminutivo do nome, que soava estranhíssimo: Cristianinha.

A única mulher foi um trauma, as feministas que me perdoem. Neurótica, dodói da cabeça, raivosa, conseguiu angariar desafetos até se tornar uma unani8

• Kika Moog

midade. Foi a era do “faz assim porque eu quero!”

Teve o que até hoje anda calmo pela rua, mãos nos bolsos, olhando pra cima. Gosta de observar o quão altos os edifícios são. Quase um filósofo, paciência de Jó, aguentou meus surtos de rebeldia com bom-humor e minha burrice congênita para números.

Explicava mil vezes, se fosse preciso. Poderia ter sido professor.

Meu chefe de agora é meio folgado. Provo a tolerância dele assim como ele prova a minha. Protesto, reclamo, falo, palpito, mas, no geral, vamos bem. Outro dia, cansado do fardo da chefia, comentou: “você é que tá certa, Kika, nunca quis ser chefe, nunca teve essa ambição...”

— É, eu gosto de dormir bem à noite, e, depois, não levo jeito pra mandar, tô mais pra bem-mandada. Mal-mandada também não dá, né?

Ele retrucou imediatamente: — Bem-mandada nada! Tu é é anarquista-graças-a-deus!

Tudo que passa é para sempre •

9

Fotograma Era inverno, a gente saía da facul, na Urca, de carona no Fiat vermelho de Gio. Falávamos todos ao mesmo tempo, usando as risadas pra nos esquentar. O vento na rua fazia cabelos levitarem, folhas planarem, os olhos das pessoas se estreitarem, defendendo-se dos ciscos. Num sinal fechado, meninas secundaristas procuravam segurar o inflar das saias curtas e se riam do insucesso das tentativas. Gio abriu a janela e começou a soprar forte na direção delas. As gargalhadas borbulharam, compartidas, e o mundo e o tempo rodopiaram, em câmera lenta, como cães correndo atrás dos próprios rabos, presos no círculo de alegria: a graça, a beleza, o instante eterno, a juventude.

Tocava Boca Livre no rádio do carro em 79: “... foi coisa tão bonita... da vida nunca vou me arrepender.”

(Tanta saudade eu já senti!)1

1 BOCA LIVRE, Toada — na direção do dia 10

• Kika Moog

Artística Quando Gina disse que as obras de arte eram lindas, esquadrinhei a praia com os olhos para tentar entender do que se tratava. Havia mar, céu e jangadas estacionadas n’areia, lado a lado: — Gina, isso são jangadas. Você nunca viu uma jangada?

— Ah, eu achei que eram obras de arte, esculturas modernas...

O olhar sobre as coisas, sim, muda as coisas. O propalado olhar de criança é o que vê o nunca visto. E é impressionante o que pode não se ter visto em mais de meio século!

A mesma Gina, numa loja, dizia: que engraçado, todos os colares são iguais e todos têm uma cruz.

— São terços, Gina, que se usam pra rezar.

— Aaaah!!

Me divirto muito com seu olhar inusitado e desavisado posto no mundo, descortinando-o para mim, inovado. Amigos são olhos novos, a todo momento.

Tudo que passa é para sempre •

11

Cinquentinha Não sei se o círculo se estreita em torno de mim, tanto a ponto de fazer-me sentir encapsulada, ou se ele se alarga tanto que me deixa solta, como astronauta que tivesse se desconectado da nave mãe.

Uns morrem, uns vão, uns simplesmente deixam de. Não vou dizer que não tenho amigos, seria injusto. Se eu tiver uma doença grave, se me morrerem parentes, se entrar em depressão profunda ou se me vier a bancarrota, terei quem me procure e me preste solidariedade. Ou, até mesmo, auxílio.

Complicado é ter quem encontrar na praia no fim de semana, almoçar de improviso jogando conversa fora, planejar coisas divertidas, combinar férias, conversar sobre tudo e sobre nada olhando vitrines. Para essas coisas sem importância é mais difícil encontrar disponibilidade. A vida afasta bem mais que reúne, eis tudo.

Tenho caviar, não tenho feijão com arroz.

Meio século e não fiz amigos suficientes para encher uma festa (meu funeral será, com certeza, mais concorrido). Não tenho mais dezenas de coleguinhas de sala pra chamar, como aos cinco anos. Os adultos estão preocupados com nascer, morrer, e, nos intervalos, trabalhar. Eu continuo no quintal, com cinco anos, querendo festa de aniversário, mas, descubro, não estou mais (co)memorável. Então, sem memórias nem festejos, planejo ficar livre: ser livre é prescindir. Mó difícil.

12

• Kika Moog

Racional Não quero mais ter razão. Minha ração acabou, minha paciência, esticada, cansou, feito elástico velho, sem tensão.

Frouxa, deixo a razão pra quem a queira. Eu, que sou terra, raiz, chão; rígida, dura e inaconselhável, tenho mais que fazer do que em mim inda é são.

Tudo que passa é para sempre •

13

Sobre a escritura Estávamos na varanda, em Ajuda, o primo emprestado de Gina me perguntou sobre o significado das minhas tatuagens.

— E a de lua e estrela? é o símbolo de Canoa Quebrada, não é?

Ele falou como se o desenho trouxesse um simbolismo esotérico para iniciados, pois a Canoa a que nos referíamos ficou perdida no tempo pra sempre... assim como a própria Ajuda, tão escura em noites antigas de silêncio e lamparina, hoje feérica e argentina.

— Por que o símbolo de Canoa?

— Para lembrar da estrada... ...

— Às vezes, a gente se perde da gente... eu sei como é.

(Ele de olhos vagos, procurando-se numa espiral de dias antigos...)

— Inda mais quando se trabalha num tribunal.

Eis porque escrevo. Para tentar (plagiando Henry Miller), manter corpo e alma no mesmo lugar...

14

• Kika Moog

Da estrada (em conta-gotas) Quando eu estava na estrada, a vida era longa eu punha olhos longos sobre horizontes e pensava que um dia ia achar a porta pra sair de mim e entrar no mundo.

Encontrei labirintos e nenhuma porta me salva.

Quando eu estava na estrada comer poeira bastava.

II Eu digo que quero casar, mas no fundo acho que desisti dessa coisa de amor.

Não cura. Não sara.

Mentira. Supura.

Maior é o céu, melhor é o mar, cheiro de fruta na boca do povo canta que só na estrada cheguei perto da veraventura.

III Eu gostava mais quando ela era loura e desenhava comigo as cenas que não queríamos esquecer à falta de fotografias.

Enquanto as tardes suavam e exalavam mangueirais, ela loura, eu sonolenta, fazíamos listas de sonhos num caderninho

Tudo que passa é para sempre •

15