Velhas paginas 15

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Velhas Pรกginas



Alvaro Glerean

Velhas Pรกginas

Sรฃo Paulo 2017


Copyright © 2017 by Editora Baraúna SE Ltda

Capa

Emília Adamo

Diagramação

Editora Baraúna

Revisão

Adriane Gozzo

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ ________________________________________________________________ G58v Glerean, Álvaro Velhas páginas / Alvaro Glerean. -- 1. ed. -- São Paulo : Baraúna, 2017. il. ISBN: 978-85-437-0744-0 1. Conto brasileiro. I. Título. 17-39436

CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3

________________________________________________________________ 31/01/2017 02/02/2017 Impresso no Brasil Printed in Brazil

DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À EDITORA BARAÚNA www.EditoraBarauna.com.br

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Aquele que tem o hábito de escrever desde a adolescência, no final de sua existência terá obviamente muitas páginas com suas histórias, seus registros ou simplesmente seus pensamentos. Com o tempo, de acordo com as leis naturais, essas páginas vão adquirindo a conhecida cor amarelada. Quando, geralmente por curiosidade, o autor resolver, nessa idade, revê-las algumas vezes, e quando acredita que algumas dessas páginas podem ser relidas e, eventualmente divulgadas, as reúne, passa para o computador e, se de fato se convencer de que pode torná-las conhecidas por outrem, manda imprimi-las. Foi o que aconteceu com estas velhas páginas.

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RÉQUIEM Esta história se inicia numa localidade de Portugal, a aldeia de Piódão, construída caracteristicamente de xisto; é histórica e famosa em seu país. É interessante e não bem explicado o fato de grande parte das portas e janelas de suas casas serem pintadas de azul. Suas ruas, muito estreitas, não permitem a passagem de veículos. Isso não impede que as pessoas saiam de suas casas e, como acontece há séculos, visitem-se, passem a trocar ideias e a comentar sobre as novidades, que em geral são escassas. Um dos motivos dessas conversas é o fato de que os jovens estejam deixando o lugarejo em busca de oportunidades em cidades do próprio país ou do exterior. Seus habitantes, a não ser a agricultura e a pequena pecuária, não tinham outras possibilidades de ganho. Um casal morador na aldeia, descendente de famílias que viveram aí desde séculos e que por amor à terra e por adorar cuidar de suas amplas vinhas, não abandonou a região. O senhor Abílio e sua esposa, 7


dona Rita. Ambos, desde que se casaram, tiveram por hábito cuidar da parte cultural e, para tanto, como sua situação financeira permitia, não só iam a Lisboa e a Coimbra como também a Paris, que adoravam. Neste aspecto, destoavam dos demais conterrâneos. Viviam bem e confiantes no futuro. Dessa união feliz nasceu Julio, que, como todas as crianças do local, foi batizado na bela igreja medieval situada na região central da cidade. Foi um dia memorável, sua casa ficou repleta de convidados; não faltaram os deliciosos quitutes da cozinha portuguesa e naturalmente o vinho de suas próprias vinhas. Apesar de viverem muito bem na aldeia, de serem benquistos por todos, de estarem perfeitamente cientes do porquê de sua permanência no local, depois da festa, antes de se recolherem, conversaram longamente sobre o futuro do filho e concordaram que ele deveria estudar desde o início na capital ou em outro centro importante do país e depois, se assim quisesse, deveria realizar seu futuro em outro país. A partir de então, dariam a Julio todas as oportunidades e esclarecimentos. A infância de Julio transcorreu normalmente, e, como toda criança saudável e ativa, com seus vários companheiros, brincaram praticamente por toda a pequena aldeia. Aos poucos, por acompanhar sempre seus pais em suas viagens, foi sendo introduzido nas belezas da arte e da música, e seus ouvidos se acostumaram indelevelmente aos belos sons e à língua francesa. Sempre no período das férias retornava à aldeia querida para rever seus pais e amigos. Quando do tér8


mino dos cursos preliminares, optou por fazer o curso superior na famosa Universidade de Coimbra. Cursou Engenharia. Seus primeiros dias na universidade foram de deslumbre ao constatar que essa notável instituição de ensino havia sido fundada em 1290 e que, portanto, haviam passado por ela milhares de cabeças notáveis pelo correr dos séculos não só de Portugal como de outros países, inclusive do Brasil, país que estava começando a mexer com sua cabeça. Coimbra, cidade que oferecia inúmeras atrações culturais, permitiu ao jovem Julio, acostumado a cultivar a cultura, que desse vaza à sua fome pelo conhecimento. Nos poucos momentos de folga, teve o privilégio de conhecer, admirar e aprender com visitas ao centro de Ciência Viva na margem esquerda do Parque Verde do Mandejo, à Casa da escrita, espaço de arquivo aberto, ao Museu de Arte Sacra da Universidade, ao Museu Antropológico, ao Museu da Física. Encantou-se com o monumento Arco e Porta de Almedina, parte da antiga muralha da cidade e com inúmeras visitas às igrejas de Santa Cruz, de Santo Antonio dos Olivais. Essa pulsante cidade, que o fez voltar ao passado e admirar mais ainda a rica história de seu país, quase o fez desistir da ideia de no futuro deixá-lo. Durante as férias, não só voltava à sua terra natal, como, por algumas vezes, viajava, geralmente a Paris, não só para gozar da vida da Cidade luz como também para aperfeiçoar seu francês. Terminado seus estudos, agora engenheiro, retornou a Piódão e junto a seus pais procurou pensar seria9


mente em seu futuro. Durante sua estada em Coimbra e também em Paris, teve a oportunidade de conhecer e namoricar algumas jovens. Porém, havia resolvido que gostaria de unir-se em casamento com uma jovem conterrânea, com a qual tinha namorado e feito planos para o futuro. Fez questão de que Maria também participasse dessas conversações. Não tinha ainda que se preocupar, pelo menos por algum tempo, com seu sustento, pois seus pais tinham o suficiente. Foi levada em consideração a sua possível ida para a França, com o que seus pais concordaram e Maria também. No entanto, foi lembrado pelo próprio Julio que muito possivelmente a oportunidade de emprego e de futuro profissional seria muito difícil. Havia constatado em suas idas àquele país que a competição entre os jovens era acirrada e os estrangeiros não tinham oportunidades a não ser em empregos de menor categoria, e o futuro, naturalmente, era incerto. Ninguém sabia exatamente o que poderia ser aguardado para o próximo século XX. Levadas ao extremo essas considerações, seus pais propuseram a possibilidade da possível ida para o distante Brasil. Naquele país, aliás, como lembrou sua mãe, descoberto por Portugal, pelos séculos afora, sempre os portugueses para lá se dirigiram e mesmo neste século XIX atual muitos portugueses para lá partiram e tiveram, com muito trabalho, resultados magníficos. Eles tinham conhecimento com vários patrícios, alguns dos quais mantinham correspondência, e seria muito fácil consultá-los sobre a possibilidade de receber o futuro casal e encaminhá-los com toda 10


segurança, além de providenciar tudo, a fim de que tivessem todo apoio necessário sob todos os aspectos. Ficou estabelecido que, se o casal concordasse, a longa viagem aconteceria apenas na possibilidade de segurança absoluta. Seu pai acrescentou que haveria a possibilidade, e isso deveria ser levado em conta, de Julio, ao estabelecer-se, ser um importador do azeite produzido por seu pai, além das azeitonas; outras produtoras da aldeia estariam, com certeza, interessadas em participar dessa exportação. Com toda sua experiência, o senhor Abílio lembrou que essa seria uma possibilidade a mais, que se juntaria a outras, o que permitiria certo leque de possibilidades. Sendo assim, resolveram casar-se. Duas excelentes perspectivas juntaram-se à felicidade de ambos. Uma delas era a de que os pais de Julio iriam patrocinar a lua de mel, que seria gozada em uma viagem pela Europa, com nova visita a Paris. A outra era a de que um amigo de Julio, que ele havia conhecido em Paris numa das vezes em que lá esteve, ofereceu-lhe sua casa em Hamburgo, na Alemanha, para que ele ficasse por algum tempo a fim de conhecer a cidade e algumas regiões próximas. O importante é que esse amigo, por carta, havia concordado com que ele levasse sua esposa. O casamento realizou-se, como não poderia deixar de ser, na belíssima igreja medieval. Após o casamento, houve uma festa que, para maior deleite, foi realizada em frente à casa de seus pais, onde havia uma praça. Fartura e alegria imensas. Presentes, poucos, mesmo porque não havia, na 11


aldeia, estabelecimentos à altura para que fossem adquiridos. Mas isso não afetou de modo algum os noivos, porque tal coisa era habitual em todas as cerimônias do local e não poderia ser diferente. Três dias após o casamento, foi iniciada a tão esperada e um pouco temida viagem. Conforme outra gentileza do amigo alemão, ele se encarregou da compra de passagens para o Brasil num vapor que partiria de Hamburgo. Em Paris, os recém-casados tiveram a oportunidade única de visitar um recente monumento de Paris, inaugurado em maio de 1889 e conhecido como Torre Eiffel. Viram Paris em toda a sua magnificência do alto dele e consideraram esse evento como sendo um ótimo augúrio para sua vida; como todo jovem casal, vira em todas as oportunidades esse desejo de eterno amor e de felicidade plena. Após uma semana em Paris, em que Julio teve a oportunidade de mostrá-la a Maria, depois continuaram sua viagem rumo à Alemanha. Ao chegarem a Hamburgo, tiveram ainda a oportunidade de ver alguns resquícios das ruínas causadas pelo vasto incêndio que vitimou a cidade em 1842, mas era evidente também os resultados dos ingentes esforços dos habitantes da cidade em sua reconstrução. Conforme disse o amigo de Julio, grande parte dos investimentos foi possível graças aos rendimentos proporcionados pelo porto de enorme atividade. Em Hamburgo, permaneceram por quatro dias e então embarcaram no vapor Desterro, que partiu à tarde, o que permitiu que o amigo alemão compartilhasse com o casal um aperitivo seguido de fartos 12


agradecimentos por tudo que ela havia feito. Julio fez questão de anotar o endereço dele para que pudessem trocar correspondência e, antegozando seu sucesso no novo país, fazia questão de que o rapaz um dia fosse visitá-los no Brasil, na cidade que tinha por nome São Paulo, como haviam informado os amigos de seu pai. A viagem de vários dias correu bastante satisfatória, a não ser um enjoo persistente que afetou Julio. Maria, durante todo o tempo, praticamente nada sentiu e até brincava com o marido se ele já estava sentindo os enjoos de uma gravidez. Na amurada, nos dias de total calmaria, trocaram muitas ideias sobre seu futuro, e ela lembrou muito bem que ele não só deveria cuidar da parte comercial como deveria tratar de revalidar seu diploma para exercer a profissão de engenheiro conseguida com muito sacrifício. A chegada foi no porto do Rio de Janeiro em 7 de janeiro de 1900. Conforme combinado, três senhores amigos de seu pai os esperavam e os conduziram, para que se refizessem da viagem num ótimo hotel. Nos três dias de permanência, aproveitaram para mostrar um pouco da cidade e comentaram sobre a recente proclamação da República, e, já acostumados com os costumes locais, pois estavam aqui o mais velho deles havia quase quarenta anos, afirmaram que esse novo regime poderia trazer ao país sucessos que talvez o regime anterior não tivesse condições. O mais novo dos três disse que preferiria esperar para ver. Enfim, o comportamento dos três, sem exceção, transmitiu ao casal segurança e certeza de que as promessas por carta se cumpririam. 13


Os primeiros quatro anos, como eram de se esperar, foram não muito fáceis, mas sempre havia por parte de ambos decisão de que venceriam. De início, Julio associou-se a um dos portugueses e tratou de importações, muitas delas de sua velha aldeia. Como o produto era de qualidade superior, permitiu que ele fizesse já um pé de meia interessante. Logo, conversou com os amigos e iniciou a revalidação de seu diploma, a fim de que pudesse trabalhar dentro das leis. Percebeu como foi importante ter um diploma de Coimbra. Coincidiu que certa região da cidade de São Paulo em desenvolvimento intenso estava sendo visada pelos que tinham dinheiro na compra de terrenos. Essa região seria o local onde seria instalada a Avenida Paulista, inaugurada em dezembro de 1891. Como ele era amigo de muitos desse endinheirados, foi solicitado a fazer as plantas para a futura construção; em geral, ou melhor, quase sempre, mansões enormes e construídas, devido à falta na cidade, com material importado. Como ele pôde manter contato com fornecedores franceses, isso lhe serviu de nova fonte de renda. Com o tempo, também ele comprou um enorme terreno e construiu sua mansão, com total apoio de Maria, que começava a ver seus sonhos realizados. Uma vez terminada a construção, ambos se dedicaram de corpo e alma à aquisição dos móveis e de toda a decoração da casa; segundo os frequentadores, tornou-se uma das mais belas da Avenida Paulista. Desejosos de reavivar seus antigos desejos culturais, trataram de adquirir um piano. Indicado 14


por um novo amigo dedicado à música, comprou um dos melhores pianos da época em todo o mundo, um Pleyel francês. Um belíssimo móvel preto brilhante e na face anterior de cada lado uma arandela de metal amarelo, usada tempos atrás para suportar velas. Maria resolveu aprender a tocá-lo e o fez razoavelmente bem. Deliciava-se com não só Chopin como também com um autor recente, francês, chamado Debussy, maravilhoso compositor. Nasceram duas filhas, que desde pequenas foram introduzidas ao mundo da música. As primeiras lições foram dadas pela mãe, mas depois houve a necessidade de um professor e, para tanto, foi contratado para duas lições por semana o professor Carlino, italiano, indicado por amigos. Com o tempo, depois de terem passado pelo maçante, mas imprescindível, solfejo, pelo livro do Bona, pela teoria e pelos exercícios com o livro do Czerny, ambas tocavam melhor que a mãe, mas nunca pretenderam tornar-se concertistas; o faziam para cultura e diletantismo. Seus pais costumavam patrocinar recitais, usando para tanto uma sala de tamanho incomum, visando exatamente a esse tipo de coisa. Algumas vezes não só Maria como também suas filhas participavam, mas com o tempo houve sofisticação a ponto de começar a se apresentar professores componentes da orquestra municipal. Um violinista e um celista, que na companhia de um pianista para o Pleyel, executavam quartetos de autores clássicos como Haydn, Beethoven, graças a partituras importadas da França por Julio pelos seus contatos. 15


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