Vida e morte do "eu" O funcionamento da mente e seus transtornos
Tadao Shimizu
Vida e morte do "eu" O funcionamento da mente e seus transtornos
SĂŁo Paulo 2016
Copyright © 2016 by Editora Baraúna SE Ltda
Ilustração
Nome do Capista
Projeto Gráfico Editora Baraúna Revisão
Letícia Pataquine
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ ________________________________________________________________ ________________________________________________________________
Impresso no Brasil Printed in Brazil
DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À EDITORA BARAÚNA www.EditoraBarauna.com.br
Rua da Quitanda, 139 – 3º andar CEP 01012-010 – Centro – São Paulo - SP Tel.: 11 3167.4261 www.EditoraBarauna.com.br
Sumário I – INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 II - OS SINTOMAS DE PRIMEIRA ORDEM DA ESQUIZOFRENIA . . . . 9 III - O “EU” E O “NÃO-EU”. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18 IV - A FORMA PLÁSTICA E O CONTEÚDO DO PENSAMENTO HUMANO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26 V - A INTERAÇÃO MÚTUA ENTRE AS ATIVIDADES BÁSICA E PLASTIFICADORA PARA COMPOR O PENSAMENTO . . . . . . . . . . . . . . . . 35 VI - OS FANTASMAS E A SUA FINALIDADE. . . . . . . . . . . . . . . . . . 42 VII - O PENSAMENTO COMO PROCESSO BIOLÓGICO. . . . . . . . . . 46 VIII - A RELAÇÃO INTRÍNSECA ENTRE A FORMA PLÁSTICA E O CONTEÚDO DO PENSAMENTO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52 IX - PROJEÇÃO E INTROJEÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59 X - O SENTIMENTO DE FELICIDADE E O DE INFELICIDADE DO SER HUMANO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66 XI - A SAÚDE E A DOENÇA MENTAL. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70 XII - OS TRANSTORNOS MENTAIS ORGÂNICOS E OS FUNCIONAIS.78
XIII - O TRANSTORNO DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO . . . . . . . 85 XIV - O TRANSTORNO DE PÂNICO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93 XV - A AGORAFOBIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96 XVI - A FOBIA SOCIAL. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99 XVII - AS FOBIAS ESPECÍFICAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101 XVIII - O TRANSTORNO OBSESSIVO-COMPULSIVO. . . . . . . . . . . 103 XIX - O TRANSTORNO CONVERSIVO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109 XX - A HIPOCONDRIA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112 XXI - A ANOREXIA NERVOSA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 114 XXII - O TRANSTORNO MISTO DE ANSIEDADE E DEPRESSÃO. . . 118 XXIII - O TRANSTORNO DE ANSIEDADE GENERALIZADA. . . . . . . 121 XXIV - A DEPRESSÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124 XXV - O TRANSTORNO AFETIVO BIPOLAR (TAB). . . . . . . . . . . . . 132 XXVI - O TRANSTORNO DA PERSONALIDADE. . . . . . . . . . . . . . . 144 XXVII - TRATAMENTO E RECUPERAÇÃO DOS TRANSTORNOS MENTAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155 BIBLIOGRAFIA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 162
I – INTRODUÇÃO
O funcionamento da mente humana, aparentemente, é um mistério. Não há na Psiquiatria nem na Psicologia alguma teoria que explique como os circuitos neurais do cérebro formulam o pensamento e produzem o sentimento frente a cada evento do mundo externo a fim de adaptar o indivíduo a ele por meio do comportamento. Logicamente, uma teoria assim abrangente teria o poder de explicar todas as doenças mentais que acometem o ser humano, já que essas se caracterizam essencialmente pela inadequação do pensamento, do sentimento e do comportamento para a adaptação da pessoa face à realidade externa, a fim de sobreviver. Devido, precisamente, a apresentarem tal inadequação em sua manifestação, os transtornos mentais são um caminho natural para se desvendar o processo biológico pelo qual os circuitos neurais cerebrais realizam esses fenômenos psíquicos de pensar, sentir e se comportar. Em outras palavras, a abordagem dos 7
sintomas das doenças mentais pode conduzir à referida teoria geral da mente humana, que explicaria o funcionamento desta em sua normalidade sadia bem como os desarranjos da mesma, os quais se expressam na forma dos diversos transtornos psiquiátricos. Este livro, portanto, é uma resposta ao desafio de abordar um grupo de sintomas da esquizofrenia e, por meio deles, chegar a uma teoria fundamental. Essa última é, então, usada para explicar os sintomas das demais doenças mentais. É claro, porém, que, assim como ocorre com todas as teorias propostas à Ciência, ela necessita ser amplamente refutada a fim de verificar se contém alguma validade. Naturalmente, se for comprovada sua falsidade, a referida teoria deve ser desconsiderada e esquecida. Por outro lado, caso se confirme a validade de algumas de suas proposições, certamente ela receberá aperfeiçoamentos de outros autores e poderá tornar-se útil à Ciência e à humanidade.
8
II - OS SINTOMAS DE PRIMEIRA ORDEM DA ESQUIZOFRENIA Kurt Schneider, eminente psiquiatra alemão do século passado, elaborou, com grande perspicácia, uma lista de sintomas que ele classificou como os mais relevantes para o reconhecimento dessa doença, chamando-os, por isso, de sintomas de primeira ordem para o diagnóstico da esquizofrenia. Conforme verbalizados pelos próprios pacientes, eles são os seguintes: 1. Ouvir os próprios pensamentos sendo repetidos em voz alta; 2. Ouvir várias vozes falando sobre eles (os pacientes); 3. Ouvir vozes descrevendo ou comentando suas ações; 4. Sentir uma influência externa exercendo-se sobre o seu corpo; 5. Sentir os seus pensamentos sendo retirados de sua mente; 9
6. Sentir os próprios pensamentos como não sendo seus, mas sim como alheios, sendo colocados em sua mente; 7. Sentir os próprios pensamentos como sendo difundidos e publicados; 8. Sentir os próprios sentimentos como sendo feitos externamente e impostos a eles; 9. Sentir os próprios impulsos como sendo feitos externamente e impostos a eles; 10. Sentir os próprios atos como sendo feitos externamente e impostos a eles 11. Perceber um significado particular, delirante, num estímulo externo neutro. Esses sintomas schneiderianos expressam em seu estranho aspecto uma grave alteração do pensamento, do sentimento e, consequentemente, do comportamento da pessoa, retratando nisso um fundamental desarranjo no mecanismo biológico pelo qual o cérebro produz essas manifestações mentais. Percebeu-se mais tarde que outros transtornos mentais podem eventualmente apresentar um ou outro desses sintomas, não sendo eles, portanto, exclusivos da esquizofrenia. No entanto, o aspecto de tais sintomas aparecerem com mais regularidade nessa doença mental sugere que, em sua bizarra forma, eles são a própria descrição da disfunção biológica cerebral que a causa. Em outras palavras, a alteração patológica do funcionamento mental que se manifesta como esquizofrenia descreve a si mesma na forma dos 10
sintomas schneiderianos. Analisando-se atentamente esses últimos, portanto, pode-se descobrir o mecanismo biológico pelo qual os circuitos neurais cerebrais do ser humano constituem o pensamento a fim de lhe produzirem o sentimento que determina o seu comportamento diante de cada situação externa. Naturalmente, tal descoberta, estabelecendo, assim, a Teoria da Mente Humana, poderá ser usada não apenas para descrever o funcionamento mental sadio normal, como também para explicar os demais sintomas da esquizofrenia assim como os de todas as outras doenças mentais que acometem o ser humano. Em vista disso, os sintomas de primeira ordem da esquizofrenia, selecionados por Kurt Schneider, merecem um exame detalhado. Percebe-se imediatamente que, por meio de suas diferentes afirmações, ou seja, das variadas formulações plásticas verbais listadas acima, todos eles, com aparente exceção do último, veiculam em comum uma mesma afirmação, ou seja, portam um conteúdo invariável: o de que o próprio ser do indivíduo, isto é, o seu “eu” está sendo invadido por algo estranho a ele, ou seja, por um “não-eu” e, nessa medida, está sendo substituído por esse algo na existência, o que quer dizer, suprimido desta. Tal supressão se revela mais explícita em certas formulações elaboradas dos sintomas schneiderianos. Por exemplo, nas ideias delirantes de ser a reencarnação de algum personagem do passado ou de ter sido transformada num clone de si mesma por seus perseguidores, a pessoa esquizofrênica afirma a supressão 11
de sua existência nessa substituição de seu ser pelo do referido personagem ou clone. Assim, os seus pensamentos, sentimentos e ações passam a ser destes últimos e não mais dela, extinta que foi da existência. Um primeiro dado fundamental que os sintomas schneiderianos fornecem é a revelação de que dois diferentes conjuntos de circuitos neurais do cérebro interagem mutuamente para constituir o pensamento humano. De acordo com esses sintomas, o pensamento é sempre composto de uma forma plástica, veiculadora à consciência, que procura adaptar o indivíduo ao mundo externo e de um conteúdo veiculado “não-eu” que afirma a existência do “eu” dessa pessoa na condição normal ou a ausência do mesmo na esquizofrenia. A atividade fisiológica dos circuitos neurais que se expressa como a forma plástica do pensamento à consciência pode ser chamada de plastificadora enquanto que a atividade dos circuitos neurais que é veiculada constituída em “não-eu” recebe o nome de básica. O motivo desse adjetivo, bem como o da diferenciação entre os dois sistemas de circuitos neurais é abordado mais adiante. Os sintomas da esquizofrenia apenas ilustram o fato de que a consciência de ser, apropriadamente chamada por Kurt Schneider de o sentimento do “eu”, não existe naturalmente por si mesmo; conforme será desenvolvido neste livro, ele é produzido e continuamente mantido em cada ser humano pela interação entre as referidas atividades fisiológicas dos dois conjuntos de circuitos neurais de seu cérebro. 12
Essa condição de expressão de atividades biológicas, variáveis em sua eficácia e intensidade, seja no exercício normal de sua função, seja por causas patológicas, implica as correspondentes variações na extensão do sentimento de ser, desde a plenitude até sua eventual extinção, passando por situações de uma supressão parcial. Esta pode expressar o exercício funcional normal da atividade básica; mas, pode ser o efeito de uma disfunção dessa atividade na referida interação. Tal supressão patológica, quando muito intensa como na esquizofrenia, por efeito de uma grave deficiência da atividade básica, é incompatível com a vida, já que o viver do ser humano é a contínua manifestação do sentimento de seu ser, idealmente sempre em sua plenitude. Diante disso, a atividade plastificadora, sadia, que busca incessantemente essa plenitude, procura a todo custo anular qualquer supressão do “eu”. De fato, ela empenha-se ao máximo, a fim de neutralizar o efeito da referida deficiência básica, executando um funcionamento mental ideal, pois a plenitude do sentimento de ser que o mesmo busca assim realizar é o remédio natural para combater a sua supressão. Em consequência desse esforço neutralizador, a referida supressão do “eu”, ou seja, o efeito biológico da atividade básica deficiente vem a ser expresso numa forma modificada em sua veiculação pela forma plástica em que a atividade plastificadora se estrutura à consciência do indivíduo. Tal forma modificada para o consumo do mundo externo, resultante dessa interação entre as duas atividades exercendo efeitos mutuamente 13
antípodas, são os sintomas da esquizofrenia, incluindo os listados acima por Kurt Schneider. Esses sintomas são sempre um conjugado constituído, por uma parte, do efeito da deficiência biológica neural causador dessa doença suprimindo o “eu” e, por outra parte, do empenho da mente procurando realizar um funcionamento ideal para constituir esse sentimento de ser em sua plenitude a fim de neutralizar o referido efeito. Uma análise cuidadosa desses sintomas, desfazendo o mencionado conjugado, traz à luz os dois componentes do mesmo. Com efeito, ela expõe de um lado a disfunção causal da esquizofrenia e, do outro lado, o funcionamento ideal da mente humana. A descrição desse funcionamento constitui-se numa teoria geral da mente que pode ser chamada de TEORIA DA INTERAÇÃO MÚTUA ENTRE DOIS GRANDES CIRCUITOS NEURAIS DO CÉREBRO PARA CONSTITUIR O PENSAMENTO, A FIM DE PRODUZIR O SENTIMENTO QUE DETERMINA O COMPORTAMENTO DO SER HUMANO. Essa teoria, chamada mais simplesmente de TEORIA DA INTERAÇÃO DA MENTE HUMANA, pode ser usada, conforme será usada neste livro, para explicar os demais transtornos mentais que acometem o ser humano. A abordagem dos sintomas schneiderianos, mormente do seu conteúdo, é o caminho aberto para encontrá-la. Com efeito, o referido conteúdo invariável veiculado é o de que um “não-eu” invade o “eu” do indivíduo tomando-lhe o lugar na ação de ser, portanto, 14
fazendo este deixar de existir. Depreende-se disso que na realidade esse “não-eu” é originalmente a própria patológica inexistência do “eu” dessa pessoa, mas que está sendo expressa nessa modificada forma de “não-eu” invasor do “eu”, a fim de negar tal inexistência deste último. De acordo com isso, ocorre na esquizofrenia uma condição prévia de inexistência do “eu”, ou seja, do sentimento do próprio ser do indivíduo devido a uma deficiência da atividade fisiológica (a básica) de um conjunto específico de neurônios do cérebro. Diante dessa inexistência original, a parte sadia da mente converte-a em “não-eu” para que este afirme a existência do “eu” invadindo-o, pois o sentimento dessa invasão do “eu” é que confere este último ao indivíduo. Ocorre que a referida deficiência de atividade neuronal exerce seu efeito revertendo esse “não-eu” de volta à sua condição original de inexistência do “eu”. É essa reversão que a pessoa esquizofrênica sente na forma de o “não-eu” invadindo o “eu”, suprimindo, assim, este último. Tal invasão, portanto, realiza a existência do “eu” ao mesmo tempo em que a suprime. De fato, ao invadir o “eu” e suprimi-lo, o “não-eu” afirma a pretensa existência a priori do “eu”, conforme assevera a forma plástica de cada pensamento schneideriano. No entanto, na mesma invasão supressora, tal existência é negada e, portanto, a referida inexistência original é reafirmada, conforme o conteúdo veiculado por essa forma plástica. Depreende-se, dessa mútua contraposição entre a forma plástica e o conteúdo, que a primeira procura neutralizar o segundo, porém, 15