Você já ouviu a coruja piar?

VOCÊ JÁ OUVIU A CORUJA PIAR?

Have you Heard the Owl Hooting?

VOCÊ JÁ OUVIU A CORUJA PIAR?

Have you Heard the Owl Hooting?

Miguel Nenevé Rose Siepamann

São Paulo 2010

Copyright © 2010 by Editora Baraúna SE Ltda Cover Art and Graphic Design: Alline Benitez Arte de Capa e Projeto Gráfico: Alline Benitez Capa: fotografia de Andrei Luiz Nenevê Cover: photograph by Andrei Luiz Nenevê Revision of the Portuguese Version: Priscila Loiola Revisão do Português: Priscila Loiola Revision of the English Version: Terrence Fraser-Bradshaw and George Simon Revisão do Inglês: Terrence Fraser-Bradshaw and Penn Kemp Ilustração/Drawings: Kim Siepamann: “A Menina Milagreira” e “O Guardador dos Rios.” Anil Roberts: “Por um par de óculos”, “Sua Excelência, Senhor Felizbino”, “Chama Agonizante”, “Pedro Luz” , “Você já ouviu a coruja piar?”

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ ________________________________________

N523r

Nenevé, Miguel Você já ouviu a coruja piar? / Miguel Nenevé, Rose Siepamann.

- São Paulo : Baraúna, 2010.

ISBN 978-85-7923-121-6 1. Conto brasileiro. I. Título.

09-6143.

CDD: 869.93 CDU: 869.134.3(81)-3

016574 ________________________________________ Impresso no Brasil Printed in Brazil DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À EDITORA BARAÚNA www.EditoraBarauna.com.br Rua João Cachoeira, 632, cj.11 CEP 04535-002 Itaim Bibi São Paulo SP Tel.: 11 3167.4261 www.editorabarauna.com.br

Agradecimentos A todos que nos incentivaram a contar histórias, às nossas famílias, nossas origens, lá no interior do interior de Santa Catarina.

Acknowledgements To all those who have always encouraged us to tell stories, to our families, our first readers and supporters, to our origins in the backlands of Santa Catarina.

Forword These are stories in the best tradition of Brazilian and South American writing, and one is reminded of the Guatemalan writer Augusto Monterroso in the stories’ hauntingly memorable characterization and imagery as the metaphors scintillate with the stories’ organic naturalness, their authenticity, and in the interiority of the narration manifested in the best poetic tradition. Indeed the stories are more than surreal journeys, as they interlace time and space in their quintessential setting as seen in almost every sentence. Have you heard the Owl hooting? is textured work about the stark reality of people’s lives, their tenderness and their unique vulnerabilities.

Cyril Dabydeen, Canadian writer author of Drums of My Flesh, Guyana Prize Winner for Fiction and Acclaimed Poet in many countries.

Prefácio Estas histórias seguem a melhor tradição da escrita brasileira e sul-americana e faz a gente se lembrar do guatemalteco Augusto Monterroso, na categorização assombradoramente memorável, e o conjunto de símbolos como as metáforas que cintilam com a naturalidade orgânica das histórias, a sua autenticidade e a interioridade da narração manifestada na melhor tradição poética. Realmente as histórias são mais jornadas surreais, ao entrelaçarem o tempo e o espaço no seu cenário essencial que se pode ver em cada sentença. “Voce já ouviu a coruja piar” é um trabalho de tecitura que versa sobre a severa realidade da vida das pessoas, sua doçura e suas fraquezas sem iguais.

(Cyril Dabydeen, Escritor canadense nascido na Guyana. Vencedor do “Premio Guianense para Ficção”, poeta aclamado no Canadá e em muitos países)

Presentation Have you heard the Owl Hooting? (Você já Ouviu a Coruja Piar?) is a collection of short stories by two Brazilian writers who deserve to be read by readers in general. The stories reveal a passion for a life in interior together with nature, simple people but full of psychological depth. The three stories written by Miguel Nenevé, three by Rose Siepamann and one written by both together seem to compose a harmony creation. They were written with humor, passion and love for life, for people´s feelings and imagination. In the first reading one can get the savor of a good writing and good stories. If one reads further one can also catch a good reflection about life, about human being facing problems that seem unsolvable, but always with a deep inner hope which keep them live and light. It is worth to take a trip to the interior of Brazil through these stories.

(Penn Kemp – Canadian Poet – Writer in Residence at the Western Ontario University.)

Apresentaçao Você já ouviu a Coruja Piar é uma coleção de contos de dois contistas brasileiros que merecem ser conhecidos pelo público leitor. Os contos revelam uma paixão pela vida do interior, junto com a natureza, vida simples de pessoas simples, mas com grande carga psicológica a ser explorada. As três histórias de Miguel Nenevé, as três histórias de Rose Siepamann e uma história escrita pelos dois parecem compor uma criação harmônica. São contos escritos com humor, com paixão e amor pela vida, pelos sentimentos e imaginações das pessoas. Eu acredito que estas histórias podem ser lidas tanto por crianças como por adultos. Na primeira leitura pode-se pegar o sabor de uma boa escrita e boas histórias. Se lermos mais profundamente podemos também ter a oportunidade de fazer uma boa reflexão sobre a vida, sobre os seres humanos enfrentando problemas que parecem insolúveis, mas sempre com uma profunda esperança interior que mantém as pessoas vivas e alegres. Vale a pena dar uma volta pelo interior de Santa Catarina por meio destas histórias.

(Penn Kemp – Poeta Canadense – Escritora Residente da Universidade de Western Ontario – London – Canada)

Sumário SUMMARY I - Por um par de óculos - Miguel Nenevé. . . . . . . 13

Better Days . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 II - Sua Excelência, Senhor Felizbino Gomes Rose Siepamann. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

His Excellency Mr. Felizbino Gomes . . . . . . . . . . . . . 27 III - Chama Agonizante - Miguel Nenevé. . . . . . . . 33

The Dying Embers . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37 IV - O Cuidador dos Rios - Rose Siepamann . . . . . 41

The River Keeper. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45 VI - Pedro Luz, o homem que ouvia Sussurros Miguel Nenevé. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49

The Shaman who listened to the whispers of the wind. . 55 VI - A Menina Milagreira - Rose Siepamann . . . . . . 61 The Girl Who Worked Miracles . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65 VII - Você já ouviu a coruja piar? - Miguel Nenevé & Rose Siepamann. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69 Have You Heard The Owl Hooting? . . . . . . . . . . . . . . . . . 75

I Por um par de 贸culos.

Miguel Nenevé

- Ainda vou a São Bento, compro um par de óculos e ninguém me reconhecerá nesta Vila.

Ivo sabia que para poder ser recebido naquela Vila, para ser reconhecido como gente, para ser notado pela menina que amava, teria que deixar de ser Costa, deixar de ser ele mesmo, voltar com outra identidade. Sabia que naquela Vila dos Confins ninguém o aceitaria do jeito que era. Era o filho de um bêbado e de uma mãe semianalfabeta. Na escola, teve que desistir depois de repetir a quarta série por duas vezes. A professora nem o incentivara a continuar. Seria bom que ele saísse mesmo.

Dona Augusta até estimulou-o a buscar uma alternativa, a única adequada para ele, um trabalho pesado, para isso talvez ele fosse bom. Um menino feio, filho de brasileiros como dizia a professora alemã, era sem atração, não tinha graça naquela escola.

Ivo sabia que era um gauche. Parecia que todos na vila estavam dizendo em coro: “Vai, Ivo, vai embora, aqui nesta vila você não é ninguém.” Isso soava como um eco prolongado e agudo em sua alma. Até os colegas da escola já tinham aprendido a reproduzir um discurso contra seu nome, contra sua família. Repetiam o que ouviam da professora: “Dá para se ver que é Costa!”

Alguém, para consolá-lo, lembrou-lhe uma vez: “Mas há Costa importante. O Presidente da República não é Costa e Silva?” Ali naquela Vila dos Confins, no entanto, ter um nome português parecia ser uma condenação.

- Ainda volto de óculos e ninguém vai me reconhecer – repetiu Ivo para o grupo sentado à sua frente. Aquela hora, depois do futebol, era o tempo em que os adolescen-

14

Você já ouviu a coruja piar?

tes da vila, cansados de horas ininterruptas de disputas, colocavam seus assuntos em dia. Ali, era o único ambiente em que Ivo podia sentir-se bem. Não era mau jogador e os companheiros ao menos o reconheciam como gente. Além disso, alguns deles eram pobres como ele.

- Por que um par de óculos? Por que você não quer ser reconhecido aqui? Por que tem que ser óculos? ­­- perguntamos quase todos ao mesmo tempo para dar-lhe um pouco de atenção, mas sem muito interesse em sua resposta.

Sabíamos que o que Ivo queria mesmo era ser reconhecido como gente, como um igual. Queria ser alguém que tem direito a ir a um baile, a uma festa, a uma missa na igreja e ser tratado como os outros, ir onde quisesse sem sentir-se inferior. Isso ele só conseguiria se esquecessem de que ele era simplesmente “um Costa”.

Anos depois encontrei-o em São Bento. Trabalhava num almoxarifado e cursava o ensino médio durante a noite. Gostava de estudar. Ninguém o tratava como inferior e tinha sido até o melhor dos alunos em algumas disciplinas. O colégio era público, mas ele estudava e ainda queria cursar faculdade. Estava de olhos nus e eu começava a entender que aquele sonho de voltar à Vila “com óculos” passara a ser uma metáfora.

- E Bateias? Tem ido para lá? - perguntei.

Disse-me que ia quase escondido, somente para ver a mãe. O pai bêbedo já tinha morrido. Afogara-se no Rio Negro. Mas seu sonho era voltar, ficar perto da mãe. Voltar melhor, rico, mais importante, livre para ser ele mesmo. Poderia então comprar uma terra, uma casa e fazer sua vida na agricultura. Ainda gostava da

15