ISSN 2178 0870
รกgua da palavra revista de literatura e teorias \ 4
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รกgua da palavra \ 4 agosto 2011 editor Marcos Ramos projeto grรกfico Editora Cousa
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EDITORIAL
Enviamos, em junho de 2010, um tímido convite a Gustavo Bernardo, Cláudio Daniel, Luis Maffei, Alberto Pucheu e Fabíola Padilha. No convite, tentamos rascunhar um projeto e convencê-los a integrar o primeiro time de colaboradores de uma revista que, até então, só existia de uma maneira abstrata. Tivemos sorte e eles aceitaram a proposta. A partir do aceite, demos início à execução de algo que pouco a pouco se desenha. Um ano depois, o quadro de colaboradores foi ampliado. Publicamos textos de Marco Lucchesi, Ondjaki, Márcia Tiburi, Vicente Franz Cecim, Luiz Ruffato, Flávio Carneiro, Ruth Silviano Brandão, entre outros não menos importantes. As profícuas parcerias somadas às várias colaborações garantiram um corpo sofisticado, apesar de jovem; e espesso, apesar de minimalista. Nossa quarta edição - edição de aniversário - é constituída, mais uma vez, por pesquisadores e poetas capazes da singularidade de aderir ao nosso tempo e manter certo distanciamento; permanecer em um exercício de deslocamento contínuo que talvez traduza o fluxo de pensar aqui e agora, estando, muito vezes, além. “Tudo mais pode se contemporâneo deste século, menos a poesia”, afirmou Leopardi, no século XIX. Apesar do anacronismo, é inevitável evocar a máxima. Apresentamos, com muita satisfação, textos inéditos dos poetas Casé Lontra Marques, Micheliny Verunschk e Orlando Lopes. Publicamos, além disso, ensaios da doutoranda Rafaela Scardino, da professora e escritora Maria Esther Maciel e da professora Cinda Gonda. Os temas, como de praxe, são diversos e variados: dos sonhos e labirintos em Dante, Borges e Joyce, passando pelo serialismo de Webern e a poesia de Augusto de Campos, até a vitória de Eros e a poesia de Albano Martins. A unidade, todavia, uma procura que se instala na lacuna constitutiva e se chama desejo. Em nosso caso, um desejo que se traduz texto a texto no exercício de sugerir caminhos e criar sentidos outros em literatura. Agradecemos aos ensaístas e poetas colaboradores desta edição, sem os quais a revista não existiria. Agradecemos, também, a Editora Cousa, e a Roberta Portela, que gentilmente cedeu a imagem/capa desta edição. Desejamos uma boa leitura. Marcos Editor
Ramos
Um contraponto do som e do silêncio: Poetamenos e o serialismo de Webem Rafaela Scardino Enciclopédias da noite: Dante, Borges e Joyce Maria Esther Maciel Invencível Eros Cinda Gonda
Poemas Micheliny Verunschk Sexto Reinício Casé Lontra Marques Seis poemas para o milênio Orlando Lopes
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Rafaela Scardino é doutoranda na Universidade Federal do Espírito Santo.
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Um contraponto do som e do silêncio: Poetamenos e o serialismo de Webern Raf aela Scardino
1. Música para a poesia concreta o olhouvido ouvê. Décio Pignatari
Surgido na década de 1950, o movimento de poesia concreta partia da crise do verso, já evidenciada por Mallarmé, para uma poética que privilegiava os aspectos sonoro e visual das palavras, além do verbal. Para tanto, propunha um esfacelamento da sintaxe, através do método ideogramático, e uma objetificação das palavras, tornadas material (plástico) do poema. Esse tratamento do material poético, que rompe com a linearidade e incorpora o espaço gráfico à sua estrutura, gerou manifestações críticas que o acusavam de opor-se à vocalização dos poemas. O modo de ver um poema concreto aproxima-se daquele reservado às artes plásticas, um olhar de simultaneidades, que se dá em diversas direções num ritmo “espácio-temporal”, em lugar de linear. A leitura em voz alta desses poemas parece, então, impossível, visto que a fala se organiza linearmente, uma palavra seguindo à outra, sem a multidimensionalidade proporcionada pelo olho. Em consonância com a pretensa dificuldade de vocalização de tais textos, poderíamos citar o crítico Adolfo Casais Monteiro, que, a respeito da produção poética de Mallarmé, cummings e dos fundadores do grupo Noigandres, escreveu que essa poesia, feita para ser olhada, não poderia ser ouvida (citado em CAMPOS, CAMPOS, PIGNATARI, 1975, p. 80). Adotando ponto de vista oposto, Haroldo de Campos, a propósito do poema “Terra”, de Décio Pignatari, aponta para a tendência à vocalização dos poemas concretos, que “pedem voz humana que os enfatize, que reflita, através de uma vocalização criativa, seu movimento próprio” (CAMPOS, CAMPOS, PIGNATARI, 1975, p. 7980). A importância da letra, que advém da “pulverização fonética” (CAMPOS, CAMPOS, PIGNATARI, 1975, p. 47) efetuada por e. e. cummings, é, muitas vezes, observada apenas em seu aspecto fisiognômico — o que parece aproximar a poesia concreta das artes visuais, mais que quaisquer outras —, desconsiderando que a aproximação por semelhanças, característica da estrutura ideogramática, se dá também no âmbito da sonoridade. Ainda atendo-nos à dimensão acústica da poesia concreta, cabe destacar a importância da música não apenas para a constituição do paideuma , mas também para a nova estrutura proposta pelos poetas concretos, como podemos observar em diversos manifestos. A compreensão da música como “um contraponto do som e do silêncio” (CAMPOS, CAMPOS, PIGNATARI, 1975, p. 30) está intimamente ligada à importância conferida aos espaços em branco, como uma pausa que coloca em destaque a palavra que a segue. Em diversos manifestos de poesia concreta podemos encontrar referências à música moderna — especialmente à série dodecafônica de Webern e Shoenberg e a compositores posteriores, como Cage e Boulez. Também em entrevistas os poetas concretos discorrem sobre a importância da música para sua produção poética, como podemos ver nesta declaração de Augusto de Campos em entrevista à revista Cult: A música é para mim uma ‘nutrição de impulso’ indispensável. Como a poesia, no dizer de Pound, está mais próxima da música e das artes plásticas do que da própria literatura, acho natural que assim seja. Sem Webern, Mondrian e Maliévitch, eu não teria formulado o ‘Poetamenos’ (também devedor, é óbvio, de Mallarmé, Pound, Joyce e Cummings) (citado em LACERDA, 2006, p. 4). Pretendemos, a partir do amálgama entre visão e audição proposto por Décio Pignatari (na frase que serve de epígrafe a este trabalho) e da grande importância, “nutritiva”, atribuída à música por Augusto de Campos, discutir a influência da música dita moderna, em especial o serialismo, em sua produção poética, propondo que se “ouvejam” os poemas de Augusto a serem analisados, como forma de compreendê-los.
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2. O serialismo de Webern Uma das principais influenciadoras da poesia concreta — no que diz respeito à música —, a série foi “descoberta” por Schoenberg (segundo expressão do compositor) em 1921 (cf. GRIFFITHS, 1998, p. 80) e configurava uma maneira de retorno à ordem, que o compositor austríaco imaginava perdida dada a falta de suportes harmônicos da música atonal. De acordo com Paul Griffiths (1998), o serialismo consistia na ordenação, fixa, das doze notas da escala cromática. Essa série passa, então, a funcionar como fonte obrigatória para a geração das melodias, sem necessariamente aparecer na obra: ela pode ser manipulada das mais diversas maneiras em uma composição: deslocando-se as notas individuais em uma ou mais oitavas, transpondo-se uniformemente toda a série em qualquer intervalo ou mesmo invertendo-a. Desse modo, o compositor tem à sua disposição uma variedade de formas da série, todas ligadas pela mesma seqüência de intervalos, e pode usá-las como lhe aprouver (GRIFFITHS, 1998, p. 81).
Apesar de criado por Schoenberg, o principal nome do serialismo foi seu discípulo Webern, que radicalizou sua prática, elevando-a à estruturação mesma de suas obras. Rogério Câmara destaca a proximidade entre o serialismo em música e o método ideogramátido, via Pound, por aquele decompor a estrutura hierárquica que o precedia, estabelecendo “a igualdade absoluta de todas as notas” (CAMARA, 2000, p. 87). Tal ruptura da hierarquia avizinha-se à obstinação, por parte dos concretos, em valorizar os aspectos acústico e visual das palavras, tradicionalmente prezadas por sua capacidade de transmitir idéias. A obra de Anton Webern é especialmente importante para a produção de Augusto de Campos. Sua utilização da klangfarbenmelodie, de Schoenberg, foi utilizada como fonte de inspiração estrutural para a série préconcreta Poetamenos, como deixa claro o poeta no texto que serve de introdução aos poemas:
(CAMPOS, 1986, p. 65) Cabe, aqui, determo-nos um momento sobre o conceito de “melodia de timbres”, criado por Schoenberg antes mesmo do serialismo. O timbre, também chamado de cor, é uma das qualidades que caracterizam e diferenciam os sons. Para a Enciclopédia Abril, Klangfarbenmelodie designaria “a fragmentação e distribuição da frase musical por instrumentos de diferentes timbres” (CAMPOS, 1998, p. 253). Em seu texto introdutório, Augusto 08
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de Campos a define como “uma melodia contínua deslocada de um instrumento para outro, mudando constantemente sua cor” (CAMPOS, 1986, p. 65) e propõe que “frase/palavra/sílaba/letra(s)” sejam utilizadas como o foram os instrumentos nas composições de Webern, obedecendo a um tema que se defina de maneira ideogrâmica, com o uso de cores para representar os diversos timbres. Interessante notar que o compositor germânico muitas vezes restringiu suas séries a apenas seis notas, como também são seis as cores presentes na de Campos — além de corresponderem à totalidade do espectro visível, compreendido entre o infravermelho e ultra-violeta. O poeta preocupa-se, também, com a vocalização de seus poemas, tema cuja polêmica abordamos anteriormente. Por tratar-se de texto — em que palavras, frases etc., atuariam como instrumentos —, a leitura em voz alta impõe-se como forma de reverberação: diversas vozes atuando como os diversos timbres, conforme indicado pelas cores, possibilitando, ainda, uma simultaneidade e interpenetração que, segundo o autor, são dificultadas pela impressão em cores. 3. A série Poetamenos A série Poetamenos, que teve origem em correspondência de Augusto à sua então namorada, Lygia Azeredo, pode ser encarada como um epitalâmio, um hino composto como forma de celebração nupcial. Os seis poemas, de temática erótica, encenam a separação dos amantes e a busca do poeta por uma forma de expressá-la. A introdução aos poemas — único texto em preto e branco, como se enfatizando sua características de manifesto — explicita, como já observamos, a influência da obra de Webern para a composição dos poemas, especialmente no que toca ao uso das cores. Mas cabe determo-nos, novamente, sobre a série schoenbergiana a fim de analisarmos a obra do poeta paulista. Como vimos, a série é um motivo que guia toda a obra, ainda que sua presença, na ordem em que foi concebida, não seja fundamental. Citamos, novamente, Paul Griffths, para quem não é necessário que os temas consistam de doze notas, nem que a série seja transformada em melodia: ela pode ser aproveitada para construir um tema e seu acompanhamento, por exemplo, e há espaço ainda para combinar diferentes formas da série em seqüência de acordes num trecho polifônico. As possibilidades são enormes, mas o princípio serial funciona como garantia de que a composição terá um certo grau de coerência harmônica, já que o padrão intervalar básico não varia. Esta coerência não é necessariamente invalidada pelo fato de que, na maioria dos casos, o funcionamento do princípio serial numa peça musical não é audível, nem deve sê-lo (GRIFFITHS, 1998, p. 81-82).
Em Poetamenos, podemos propor que o nome Lygia, ademais do tema amoroso, seja o motivo, a série, que serve de fonte e de referência básica — não apenas em “lygia fingers”, poema em que aparece explicitado, mas, invertido, transposto e deslocado, como a notas que compõem a série, funcionaria como tema, nem sempre audível, que conferiria coerência à obra. A esse respeito, citamos trecho do estudo de Antonio Bessa: Throughout the series Lygia is the principle that animates, enlivens and organizes the world around the poet. Before her arrival the poet is inert, rock-like. Her presence is both a force of nature (“lynx,” “felyna”), and the possibility of writing (“digital,” “dedat illa(grypho)”) (BESSA, 2007, s/p) .
Além da clara influência de Webern, a série de poemas pré-concretos contém referências à literatura provençal, Luís de Camões e ao poeta parnasiano Luis Guimarães Junior, dentre outros. (cf. BESSA, 2007; AGUILAR, 2005). Uma outra fonte de inspiração foi, conforme afirma o autor em Balanço da bossa, a produção musical do cantor popular Lupicínio Rodrigues, a cuja obra Augusto de Campos dedicou diversos ensaios. Sobre as influências do terceiro poema da série, “lygia fingers”, o autor, aproximando a produção erudita de Werben à popular de Rodrigues, escreveu que 09
ÁGUA DA PALAVRA – REVISTA DE LITERATURA E TEORIAS / NÚMERO 4 AGOSTO 2011 ISBN 2178 0870 “lygia fingers” (da minha série de poemas coloridos poetamenos) segue quase literalmente a klangfarbenmelodie (somcormelodia ou melodiadetimbres) da parte inicial do quarteto composto em 1930 1ª audição em 13-4-31 que eu, nascido nesse ano, ouvi entre 52-53 na gravação de leibowitz na mesma época em que ouvia o “roteiro de um boêmio” (álbum com 4 discos em 78 rotações fase pré-LP) de lupicínio rodrigues (CAMPOS, 1978, p. 315)
A compreensão retrospectiva de Poetamenos por parte dos concretos valorizava, para Gonzalo Aguilar, o tratamento do material poético ao mesmo tempo em que descartava a expressividade subjetiva desse conjunto, situada, para o estudioso, “na busca da união amorosa dos corpos, das palavras e das imagens” (AGUILAR, 2005, p. 292). As influências musicais da série, curiosamente, parecem refletir esta singular fusão entre o racionalismo concreto e a expressão de um eu: a aparentemente excessiva racionalização de Webern e o sentimentalismo de Lupicínio, que “ataca de mãos nuas, com todos os clichês da nossa língua, e chega ao insólito pelo repelido, à informação nova pela redundância” (CAMPOS, 1978, p. 222). 3.1. “poetamenos” “Poetamenos”, primeiro poema da série, é composto em apenas duas cores: amarelo, cor primária, e violeta, sua complementar. Alinhado à margem esquerda e disposto no centro da folha, o poema serve de prelúdio à série, introduzindo seus temas principais. O texto inicia com a expressão “por suposto”, incomum em língua portuguesa, na qual tal estrutura sintática funciona apenas se compreendermos “suposto” como hipotético ou fictício. Em língua espanhola, por outro lado, a expressão “por supuesto” indica assentimento, afirmação. As duas primeiras linhas do poema — especialmente pelos dois pontos que seguem “por suposto”, que, em geral, precedem a enunciação — propõem, então, grande ambigüidade: há a afirmação de uma voz poética ou uma declaração acerca do caráter ficcional do que segue? Metalingüístico, o poema conta com duas palavras-valise de grande importância : “rochaedo”, composta pelos radicais roch- (de rocha) e aedo (poeta, bardo), cuja pronúncia, que se assemelha a rochedo, propõe um poeta inerte, como as rochas, e “rupestro”, formada por rupestre (relativo a rocha) e estro (inspiração), como que indicando a força criadora aprisionada nas estruturas petrificadas a que está submetido o poeta, que, por sua vez, busca romper com as formas poéticas tradicionais através da utilização inortodoxa do material. Para Gonzalo Aguilar, o tratamento do material poético se dá, 10
ÁGUA DA PALAVRA – REVISTA DE LITERATURA E TEORIAS / NÚMERO 4 AGOSTO 2011 ISBN 2178 0870 por um lado, [pelo] esforço de colocar a poesia em diálogo com a música e as artes plásticas e de recuperar seu tratamento evolutivo dos materiais. Por outro lado, a angústia e gozo como os dois estados anímicos pelos quais transitam as composições [...] são outra explicação possível para a desintegração vocabular à que se assiste: como se fosse este impulso, também, que exige a busca de uma nova linguagem (AGUILAR, 2005, 290-291).
Em “poetamenos” está presente, também, o tema da união amorosa. O pronome de primeira pessoa do plural, expresso em inglês (“us”), indica o desejo do poeta de unir-se à amada, “somos um”, formando um todo com ela, “unissono”, ao mesmo tempo em que aponta para a angústia da separação: a união dos amantes é ainda um sonho, está condenada ao “sono” do “poetamenos”, subtraído, talvez, por essa impossibilidade. 3.2. “paraíso pudendo” A temática erótica encontrada nos seis textos torna-se, em “paraíso pudendo”, encenação do ato sexual — bem como em “dias dias dias” — tendo como cenário a natureza (“figueiral”, “jardim”), numa referência à passagem bíblica de Adão e Eva . Lygia, fragmentariamente representada pela nomeação de partes do corpo (“pubis”, “braços”, “fêmoras”), é, também, a donzela resgatada do figueiral que se casa com seu herói e aquela que retira o poeta de seu torpor: o poeta, “petr’eu”, volta-se para o exterior, “exampl’eu”, após o encontro com a amada. 3.3. “lygia fingers” Em texto publicado no livro Balanço da bossa, Augusto de Campos escreve sobre a estrutura weberniana de “lygia fingers”, terceiro poema da série publicada em 1953 (ver citação acima). Partindo da decomposição e rearranjo das sílabas, letras e fonemas que compõem o nome da mulher, o poema, impresso em cinco cores, encena sua presença na escritura, composta em torno dos fragmentos originados da pulverização daquela que seria a série: a palavra lygia (nome próprio de mulher) era reiterada fragmentariamente ou sob a forma de anagrama no corpo de outras palavras (fe-ly-na) (figlia) (only) (lonely), para dar um efeito de ubiqüidade à presença feminina, culminando na última letra do poema, “l”, que remetia, como um da capo musical, circularmente ao começo (CAMPOS, citado em CAMARA, 2000, p. 86). Como em “poetamenos”, está presente, no início do poema, a questão da ficcionalidade (“lygia finge”), mas, desta vez, em direção ao próprio ato da escrita: o fingimento da mulher — que se metamorfoseia em mãe, irmã, lince — transforma-se na presença de suas mãos (“finge rs”) a datilografar o texto (podemos encarar a linha “dedat illa(grypho)” como uma versão, por aproximação sonora, do verbo datilografar). Transfigurada em “lynx” a amada torna-se animal (lince), mas também ligação, o elo que conecta o poeta à escrita — a pronúncia da palavra “lynx” assemelha-se à da palavra inglesa links, elo, ou ligar — ao mesmo tempo em que deixa só o poeta , sem retornar por longo tempo (“so lange”, em alemão, equivale à expressão “quanto tempo!” em português), decompondo-se até ficar reduzida à letra “I”, num movimento cíclico, como que anunciando seu retorno nos outros poemas da série. 3.4. “nossos dias com cimento” Presente em todos os textos da série, o tema da separação dos amantes, em “nossos dias com cimento”, é encenado através da incomunicabilidade na cidade, hostil, que não protege da angústia (AGUILAR, 2005, p. 294). Aqui, a fragmentação que antes acometia o nome próprio estende-se para o ambiente urbano: a cidade aparece 11
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através de símbolos tradicionalmente usados para representá-la, “bancos da praça”, “cubos”, “cimento”, como clichês, esvaziados de significação. Para Gonzalo Aguilar, tal forma de representar a cidade, incompleta e fragmentária, “corresponde à insistência na designação das diferentes partes do corpo” de “paraíso pudendo”, cujo desejo de união dos corpos dos amantes é contraponteado pelo fracionamento que submete a metrópole (AGUILAR, 2005, 294). O nome Lygia, que propomos atuar como a série weberniana a guiar a composição, se insinua no texto — foneticamente, na palavra “conchiglia” — como refúgio, que protegeria o poeta, e, também, como material (calcário) que constitui a cidade, como parte do cimento. 3.5. “eis os amantes” Impresso em apenas duas cores (azul e laranja, complementares), “eis os amantes” encena a união dos corpos do poeta e de sua amada, separados em todos os outros poemas da série. Organizado simetricamente a partir de um eixo central, as palavras se interpenetram, fecundando-se e gerando novas palavras derivadas de “fragmentos-sementes” (JACKSON, 2004, p. 29). Em lados opostos à coluna central do texto, em laranja, temos pares de palavras que poderíamos chamar de semanticamente complementares. Em primeiro lugar, numa leitura guiada verticalmente a partir do topo, temos, em azul, “amantes”/“parentes”, abaixo, mais próximos do centro da página, estão os port-manteau “irmãum”/ “gemeoutrem” e “cimaeu”/”baixela”, compostos em duas cores, numa fusão representativa do ato sexual, como explica Kenneth Jackson: As palavras port-manteau representam o encanto e a aproximação eróticos, produzidos pelo poder mágico da música e das cores, como numa noite de verão shakesperiana. Os corpos se unem (ecoraçambos) através de longas orações lineares, levando à fecundação (semen(t)emventre) e ao novo ser (inhumenoutro) (JACKSON, 2004, p. 29). Como em “lygia fingers”, a mulher é transformada em irmã. A presença de palavras relacionadas à família significa, para Rogério Câmara, o embaraço que sucederia ao coito (CAMARA, 2000, p. 83). Tal constrangimento traria, então, a necessidade de decompor e rearranjar essa mulher a quem não se deve nomear: a amada, antes chamada de irmã, torna-se “ela”, quando do encontro erótico. 3.6. “dias dias dias” O último poema da série, “dias dias dias”, é o único a conter todas as seis cores. Nele, Lygia, distante e enigmática, torna-se esfinge (“sphynx”) e, mais uma vez, é nomeada por laços familiares (“filhazeredo”), o que podemos compreender como um elemento de discórdia (seria a família a responsável pela separação dos amantes?). Com claras referências a Camões e a Luis Guimarães Junior, o poema trata da memória — daí a importância do diálogo com a tradição — e, através dela, da falta da amada. Os amantes separados (“separamante”) e sem comunicação (“sem uma linha”) devem recorrer à memória, que articula os “fragmentos da fusão e da ausência” com os quais o poeta deve lidar ao transpor a experiência vivida para a linguagem poética (AGUILAR, 2005, p.295-296). Como dito anteriormente, a valorização de Poetamenos durante a fase mais ortodoxa da poesia concreta buscava deixar de lado a dimensão subjetiva da obra e detinha-se unicamente sobre o uso do material poético. Gonzalo Aguilar, discordando dessa apreciação teleológica, afirma que, na série, o sujeito trata de buscar seu lugar a partir da fragmentação e da desagregação do mundo moderno.
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ÁGUA DA PALAVRA – REVISTA DE LITERATURA E TEORIAS / NÚMERO 4 AGOSTO 2011 ISBN 2178 0870 A crença de que já não é possível uma voz poética tradicional capaz de dar conta dessa dialética da fusão e da ausência [...] é a base da demolição que o livro faz dos instrumentos tradicionais do poema [...] (AGUILAR, 2005, p. 296).
Tal demolição, fundamental para o movimento de poesia concreta, tem sua expressão, em toda a obra de Augusto de Campos, através da negação, e negatividade, que marcam sua poética, chamada por Aguilar de “poesia mínima”. REFERÊNCIAS AGUILAR, Gonzalo. Poesia concreta brasileira: as vanguardas na encruzilhada modernista. Trad. Regina Ainda Crespo e Rodolfo Mata. São Paulo: Edusp, 2005. BESSA, Antonio Sergio. The “image of voice” in Augusto de Campos’ Poetamenos. Ciberletras: revista de crítica literária e de cultura, n. 17, 2007. Disponível em << http://www.lehman.edu/faculty/guinazu/ciberletras/v17/ bessa.htm>>. Acesso em 09 de set. 2007. CAMARA, Rogério. Grafo-sintaxe concreta: o projeto Noigandres. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2000. CAMPOS, Augusto. VIVA VAIA: Poesia 1949-1979. São Paulo: Brasiliense, 1986. ______. Balanço da bossa e outras bossas. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 1978. ______. Música de invenção. São Paulo: Perspectiva, 1998. ______, CAMPOS, Haroldo & PIGNATARI, Décio. Teoria da Poesia Concreta. 2 ed. São Paulo: Duas Cidades, 1975. GRIFFITHS, Paul. A música moderna: uma história concisa e ilustrada de Debussy a Boulez. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. JACKSON, Kenneth David. “Augusto de Campos e o trompe-l’oeil da poesia concreta”. In: SÜSSEKIND, Flora e GUIMARÃES, Júlio Castañon (org.). Sobre Augusto de Campos. Rio de Janeiro: 7Letras: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2004, p. 11-35. LACERDA, Daniel. Multum non multa: essências e medulas. Suplemento Literário de Minas Gerais, mar. 2006. Disponível em << http://www.cultura.mg.gov.br/arquivos/SuplementoLiterario/File/suplemento-marco-revisado.pdf>>. Acesso em 09 set. 2007.
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Maria Esther Maciel é escritora e professora de Teoria da Literatura e Literatura Comparada da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Suas publicações incluem os seguintes livros: As vertigens da lucidez - poesia e crítica em Octavio Paz; Vôo Transverso - poesia, modernidade e fim do século XX; A memória das coisas ensaios de literatura, cinema e artes plásticas; O cinema enciclopédico de Peter Greenaway (org.), O livro de Zenóbia (ficção), O livro dos nomes (ficção), O animal escrito (ensaio) e As ironias da ordem (ensaios). Foi Professora Residente do IEAT - Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares da UFMG (2009/2010). Desenvolveu, como pesquisadora do CNPq, os projetos “Poéticas do Inventário” (2004/2007) e “Bestiários Contemporâneos - animais na literatura” (2007-2010).
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Esther
Maciel
1. Taxonomia do Inferno Se é fácil constatar a presença de Dante na literatura, nas artes, no cinema e na cultura pop do século XX e início do século XXI, mapear as inúmeras e variadas manifestações dessa presença é tarefa complexa, para não dizer impossível. Sobretudo no que tange à Comédia, e, mais especificamente, ao Inferno, as referências dantescas não cessaram de alimentar o imaginário cultural do mundo moderno e contemporâneo, chegando mesmo a servir de metáforas para o que constitui o cenário de guerras, ruínas, violência, desmandos, corrupção, intolerância, miséria e desolação deste nosso tempo já desprovido da ilusão do paraíso. Tal fascínio exercido pela Comédia de Dante não advém, entretanto, apenas da grandeza de seu enredo e dos múltiplos temas que dele proliferam, mas também da força imagética que atravessa todo o poema. Como aponta T. S. Eliot em um ensaio de 1929, a imaginação dantesca é visual, por ter o poeta criado imagens claras, de grande intensidade expressiva, levando o seu leitor a “ver o que ele via”.1 Isso se justificaria, segundo Eliot, pelo fato de Dante ter vivido “numa época em que os homens ainda tinham visões”. Visão, neste caso, concebida como uma atividade sonhadora potente e disciplinada, um hábito mental que, “quando levado ao ponto da genialidade, tanto pode fabricar um grande poeta quanto um grande místico ou santo”.2 O qualificativo “visionário”, contudo, não é suficiente para definir o poeta italiano, já que a visão em sua obra, longe de se circunscrever aos domínios da revelação mística, abre-se também a experiências estéticas que não prescindem da consciência do fazer poético e muito menos da busca de novas formas de compreensão do mundo. Nela encontram-se a precisão dos detalhes, o rigor geométrico das formas e a nitidez das imagens, nem sempre possíveis nas visões místicas. Tudo adquire uma dimensão sólida e palpável que contradiz a imaterialidade do sobrenatural. Além disso, como lembra Jorge Luis Borges, em Sete noites, uma visão mística apresenta-se sempre efêmera, e “seria impossível mantê-la durante toda a longa duração da Comédia”.3 Daí que a visão de Dante só tenha podido ser voluntária, cabendo aos seus leitores abandonar-se a ela e lê-la com fé poética. Italo Calvino também se deteve nessa questão da visualidade, ao lembrar que as visões de Dante não são propriamente as do autor Dante, mas as do personagem Dante, que também é narrador e descreve ficcionalmente suas próprias experiências. Ou seja: o que o poeta Dante fez foi imaginar visualmente “tanto o que seu personagem vê, quanto aquilo que acredita ver, ou que está sonhando, ou que recorda, ou que vê representado, ou que lhe é contado”.4 Ao buscar converter em imagens alegóricas o conteúdo do que é narrado, facilitando assim a evocação visiva, Dante teria criado projeções de uma espécie de “cinema mental”, no qual as passagens e paisagens descritas adquirem vida e movimento dentro do texto, como se fossem imagens de um filme. O que se reforça através das modulações da terza rima, uma técnica que, ao antecipar em um verso da estrofe o som predominante de dois versos da estrofe subsequente, possibilita que se crie um encadeamento sonoro capaz de dinamizar a própria sucessão das imagens do poema, sugerindo o recurso cinematográfico do travelling. A isso se soma ainda a variedade de planos e de ângulos das tomadas, além do jogo de luminosidade e sombras que atravessa todos os cantos. Vale lembrar que a Comédia, escrita no início do século XIV, compõe-se de cem cantos, distribuídos rigorosamente em três livros (Inferno, Purgatório e Paraíso): são 33 cantos em cada um, sendo o primeiro livro acrescido de um canto introdutório. A simetria se dá a ver também na repetição da última palavra de cada livro e na divisão dos lugares que servem de referência para os três. Inferno, Purgatório e Paraíso são divididos em nove círculos cada, formando um total de 27 (três vezes três vezes três) regiões limitadas por circunferências. Além disso, cada estrofe do poema se estrutura em tercetos decassílabos, o que faz do número três a base matemática de toda a construção do conjunto. Alegorias, metáforas, jogos verbais, referências históricas, mitológicas, políticas, teológicas, filosóficas e astronômicas atravessam toda a obra, exigindo do próprio leitor uma disposição para buscar auxílio de notas e verbetes explicativos capazes de guiá-lo em sua viagem por esse longo texto que é, ao mesmo tempo, um poema narrativo e uma enciclopédia ficcional feita de saberes de todos os tempos. Como diz Borges, no prólogo de seus 15
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Nove ensaios dantescos, “o que foi, o que é e o que será, a história do passado e a do futuro [...] tudo isso nos espera em algum lugar desse labirinto”.5 No que se refere mais precisamente ao Inferno, a ordem enciclopédica se confunde com a própria configuração taxonômica do espaço infernal que, topograficamente, aparece como uma espécie de cone invertido, cuja ponta vai até o centro da terra – esta compreendida como uma esfera imóvel, de acordo com os princípios da astronomia de Ptolomeu. Os nove círculos que o constituem dispõem-se como degraus de um anfiteatro, dos quais os cinco primeiros constituem o Alto Inferno, e os quatro restantes formam uma cidade cercada de muralhas de ferro chamada Dite, cheia de sepulturas, abismos, poços e pântanos. No ápice está a morada de Lúcifer, “o verme que escava o mundo”.6 A partir dessa divisão, Dante classifica os tipos de pecados e de punições, distribuindo os pecadores de acordo com um sistema taxonômico que tem no ideário cristão os seus princípios constitutivos. Só para lembrar, as grandes categorias são quatro: a dos pecados de intemperança, a dos pecados de violência, a dos pecados de fraude e a dos de traição. O primeiro círculo, o Limbo, escapa a tais categorias, configurando-se como o reduto das crianças não batizadas e dos sábios pagãos. Já no Vestíbulo, que precede o Limbo, amontoam-se os apáticos (ou os “homens ocos”, como os definiu T. S. Eliot no poema “The Waste Land”), que não merecem castigo nem salvação. O interessante dessa classificação é o seu perfil conjetural e subjetivo. Ao mesmo tempo em que ela exibe um impressionante rigor matemático quanto às definições das galerias, das faltas e dos castigos, a hierarquia que as ordena não obedece, necessariamente, a um paradigma pré-estabelecido, mas advém do próprio juízo particular do poeta em relação à gravidade dos pecados e ao merecimento dos mortos que, supostamente, os teriam praticado em vida. Se Ulisses, por ter se valido do estratagema do cavalo de Tróia, mereceu a punição das chamas no círculo dos falsários, ou se Brutus é igualado a Judas ao ser colocado no nono círculo, sob os dentes de Lúcifer, isso não atendeu, necessariamente, a critérios objetivos e normativos de qualificação de tais figuras. Se a taxonomia de Dante representa um marco literário na história da ordem das coisas, ela paradoxalmente revela, no rigor de sua ordenação, o próprio caráter arbitrário e subjetivo dessa mesma ordem, evidenciando – ainda que sem tal propósito – que em toda classificação/hierarquização das coisas do mundo se inscreve uma dose de conjetura e de subjetividade. Um outro aspecto dessa taxonomia dantesca do inferno e dos mortos é a heterogeneidade dos elementos classificados. Sabemos que, desde Aristóteles, as categorizações passaram a obedecer, sobretudo, aos imperativos da similaridade, os quais requerem a menor diferença possível entre as coisas. Mas em Dante, não obstante os habitantes de cada círculo tenham – sob o olhar do poeta – praticado pecados afins, eles compõem um catálogo heteróclito de nomes, rostos, vozes e biografias. No Limbo, principalmente, essa variedade se dá a ver de forma radical, à medida que são reunidas em um mesmo topos figuras representantes de praticamente todas as correntes poéticas, filosóficas, históricas e científicas da Antigüidade clássica, personagens literários e mesmo alguns pensadores do mundo árabe. Nesse encontro imprevisto do diverso, Dante compõe sua fantástica enciclopédia do inferno.
Dante, Borges e o pesadelo No que concerne à “pulsão enciclopédica” da obra dantesca, pode-se dizer que, diferentemente dos enciclopedistas anteriores, como Plínio, o Velho, São Isidoro de Sevilha e o próprio Aristóteles (os quais buscaram inventariar, classificar e descrever todas as coisas existentes no mundo, bem como a espessa camada de signos depositada sobre elas), Dante fez de sua enciclopédia uma grande construção ficcional. No caso, sustentada por saberes históricos, geográficos, filosóficos, poéticos e teológicos, mas a serviço de mundos imaginários. E ainda que se considere o forte traço alegórico do conjunto – e aqui a concepção alegórica tem, como diria Benjamin, “sua origem no contraste entre uma physis culpada, instituída pelo Cristianismo, e uma natura deorum mais pura, que se encarnava no Pantheon”7 – a Comédia é muito mais que um poema alegórico e não se reduz às leis da fixidez e do didatismo inerentes às alegorias medievais. Pela força do movimento sonoro e visual, a obra se desprende dos conceitos e sentidos prefigurados, instaurando um novo modo de ver. Pode-se, ademais, verificar na obra – mais especificamente no primeiro livro – a atmosfera onírica da viagem narrada e da própria topografia que a esta serve de cenário, onde impera a ordem do assombroso e do estra16
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nho, inerente ao mundo dos sonhos. O próprio Dante, aliás, já diz na quarta estrofe do Canto I que tudo começou em um “momento de muito sono”.8 O que levou Borges a observar, em seu ensaio dantesco “O nobre castelo do canto IV”, que a Comédia pode ser, no seu conjunto, muitas coisas, “talvez todas as coisas”, mas que, no início, “é notadamente um sonho de Dante”, visto que a entrada na “selva escura” não deixa de sugerir o “indefinido começo do ato de sonhar”.9 O que não significa, entretanto, que Dante faça uso da sintaxe desordenada dos sonhos, pois, como já foi dito, a disciplina da linguagem e o apuro da construção são traços incisivos da escrita dantesca. Longe de se pretender um sonho em estado bruto, a Comédia assume-se como a narração de um longo sonho possível ou impossível, sendo o Inferno a descrição pormenorizada de um suposto pesadelo. Ou seja, ela não se inscreve propriamente na esfera do onírico, mas da fabulação. Sob essa perspectiva, a atribuição profética dos sonhos, tão comum no mundo antigo e medieval, torna-se insuficiente para caracterizar a obra de Dante. O que nela há de visionário reveste-se de lucidez criativa e trabalho com a memória. Daí sua inquietante modernidade. À visão prospectiva, Dante conjuga o exercício da recordação de experiências vividas, sonhadas ou inventadas, valendo-se, para isso, de artifícios poético-narrativos, como o uso da enunciação em primeira pessoa, a conversão de autores e figuras históricas em personagens, além do embaralhamento das noções de autor, narrador e personagem. Prospecção e retrospecção confundem-se na narrativa na mesma proporção em que se misturam os registros de realidade, sonho, memória e imaginação. No que diz respeito à atmosfera onírica do Inferno, Borges fez outras considerações interessantes no referido ensaio dantesco. Após arrolar algumas palavras como uncanny, unheimlich e siniestro para designar os “lugares ou coisas que vagamente inspiram horror”, ele se detém no “horror tranqüilo e silencioso” com que define a morada dos sábios pagãos no Limbo, representada por um castelo sete vezes rodeado por sete muros e por um fosso, e em cujo pátio há um gramado de verdor misterioso.10 O encontro de Dante e Virgílio com Homero, Horácio, Ovídio e Lucano, chamados por Borges de “ilustres fantasmas”, seria apenas o início de uma experiência de pesadelo: a visita ao castelo, espécie de prisão eterna, cujo ar é estremecido por “suspiros de um pesar sem tormento” daqueles que o habitam. “Algo de penoso museu de figuras de cera há nesse quieto recinto”, completa Borges, ao mencionar o catálogo de nomes dos espectros com que Dante arremata o canto e lembrar que numa passagem do Purgatório o poeta italiano conta que, por estarem proibidos de escrever no Inferno, os poetas prisioneiros do castelo “procuram distrair sua eternidade com discussões literárias”.11 Já na conferência “O pesadelo”, na qual Borges começa por dizer que o sonho é o gênero e o pesadelo a espécie, alguns outros detalhes sobre a passagem do nobile castello reafirmam a atmosfera onírica do Canto IV do Inferno.12 Tal atmosfera seria uma contribuição, segundo Borges, para a literatura que, até então, não tinha associado o inferno a um pesadelo. A palavra pesadelo, aliás, merece do escritor argentino uma apurada investigação etimológica e idiomática nessa conferência. Ele parte do vocábulo grego efialtes para marcar o traço demoníaco que atravessa essa espécie de sonho. O pesadelo seria provocado por um demônio que oprime o peito de quem dorme. Esse demônio, representado por diferentes criaturas em várias línguas e culturas, estaria figurado, inclusive, como “égua da noite” na palavra inglesa nightmare que, a partir de uma afinidade entre mare e märchen ( que, em alemão, quer dizer “fábula, conto de fadas, ficção”13), apontaria também para a ideia de “ficção da noite”. Daí ele lança uma assertiva: os sonhos são uma obra estética, talvez a expressão estética mais antiga. Se Dante explora com maestria essa expressão estética no Inferno, Borges também a leva para o seu próprio trabalho ficcional, conjugando, como o seu precursor, os limites entre vigília, sonho, realidade e ficção. Não bastasse ter forjado, em “Tlön, Uqbar e Orbis Tertius” (de Ficções), um mundo fantástico, cheio de sistemas científicos delirantes e que se dá a conhecer enquanto um conjunto de tomos de uma enciclopédia não menos assombrosa, ele criou livros impossíveis e misturou tempos e espaços em contos como “O livro de areia”, o “O outro” e “Utopia de um homem que está cansado”, todos do volume O livro de areia, de 1975.14 O conto “O livro de areia” apresenta um livro monstruoso de páginas infinitas, capaz de aprisionar o leitor em suas páginas labirínticas, e leva às últimas consequências a potencialidade que Borges sempre teve de dar uma delimitação física ao ilimitável e fazer emergir na exatidão do dizer a vertigem do que é dito, como acontece com Dante na Comédia. Cada frase do texto tem sua medida e sua abertura ao inumerável, e mesmo o clima de pesadelo que envolve o relato mantém uma intrínseca relação com elementos de realidade (os dados toponímicos, as referências temporais e os detalhes da conversa entre os personagens) que garantem o caráter plausível dos fatos narrados. Ao final, enredado no jogo paradoxal entre o verossímil e o absurdo, o leitor perplexo sai do texto sem saber ao certo se a história foi uma experiência vivida ou apenas um sonho do narrador. 17
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Esse embaralhamento de certezas é também a tônica de “O outro”, que traz à tona a instigante história de um encontro entre Borges e ele mesmo, às margens de um rio que é, a um só tempo, o rio Charles, da Nova Inglaterra, e o Ródano, de Genebra, em duas datas também justapostas: 1969 e 1918. Ao longo de uma narrativa cheia de artifícios, Borges, o velho, e Borges, o moço, travam – cada um com a carga de sabedoria que suas diferentes idades lhes conferem – um diálogo paradoxal que mescla as zonas da vigília, do sonho e da memória, a partir de uma lógica que se furta às leis da razão. Autor, narrador e personagens se confundem, e os dois Borges protagonistas são, nas palavras do próprio autor no epílogo do livro, “bastante diferentes para serem dois e bastante parecidos para serem um”15, como acontece nos sonhos. Um parece, inclusive, sonhar o outro, como se lê neste fragmento do conto: “Se esta manhã e este encontro são sonhos, cada um dos dois tem de pensar que o sonhador é ele. Talvez deixemos de sonhar, talvez não”.16 Tal alusão onírica, entretanto, não encontra respaldo seguro ao longo da narrativa, visto que o escritor argentino insere elementos supostamente reais na trama, usa a primeira pessoa e dá aos personagens o seu próprio nome – recursos que desestabilizam qualquer conclusão a respeito da natureza do encontro entre os dois Borges. Os paradoxos temporais e espaciais de “O outro” ressurgem no conto “Utopia de um homem que está cansado”, espécie de viagem de volta ao futuro, cujo protagonista – então com 70 anos – encontra por acaso um estranho senhor, talvez um espectro, que vive em um tempo indefinível (não se sabe se no futuro ou na eternidade) e habita um mundo sem lugar. Dele, o narrador ouve a descrição de tudo o que já não mais existe e, em contrapartida, conta-lhe sobre seu “curioso ontem”. Ao retornar ao presente, traz consigo um quadro do futuro, um quadro que ainda não foi pintado e que funciona como uma prova de que a viagem de fato existiu.17 Vale acrescentar que não é apenas na estética dos sonhos e na profusão enciclopédica que Borges compartilha afinidades explícitas com Dante Alighieri. A já mencionada visualidade dantesca é uma das linhas de força da escrita borgiana. Isso se evidencia, por exemplo, no conto “O Aleph”,18 no qual o escritor argentino condensa a viagem dantesca pelos três mundos em uma experiência que se resume a poucas páginas e culmina numa visão epifânica, reveladora de uma totalidade multíplice, efêmera e ilusória de todos os conhecimentos do mundo. A função paródica do conto em relação à Comédia fica evidente nos nomes dos personagens Daneri e Beatriz Viterbo, bem como no jogo estratégico entre as figuras do autor e do narrador – este também personagem da trama. A entrada no porão escuro e em forma de poço da casa de Daneri, em analogia ao ingresso no mundo infernal, e a revelação ofuscante e intolerável do Aleph em uma esfera furta-cor de dois ou três centímetros de diâmetro são ingredientes que reforçam tais alusões. Outra afinidade identificável entre Borges e Dante é a potencialidade que ambos têm de levar o rigor da construção a um estado quase delirante de vertigem. Se Dante compôs, a partir de uma rigorosa simetria, toda uma “topografia da morte”, ordenando o Inferno em círculos segundo uma taxonomia não menos rigorosa dos pecados, Borges construiu – com esmero – espaços imaginários e labirínticos, como atesta o conto “A biblioteca de Babel”,19 no qual o autor faz emergir, nos limites simétricos das galerias que compõem sua biblioteca monstruosa, uma desordem infernal, similar à de um pesadelo. Não obstante tais afinidades literárias, sabemos que as referências cosmológicas de Dante estavam circunscritas à ideia de um universo centrado e finito, e de um tempo que encontra seu limite na eternidade cristã. E nisso está sua radical diferença em relação a Borges, que toma a totalidade como uma combinatória aberta, descentrada e incompleta, conferindo à eternidade uma configuração infinita. Ao construir sua enciclopédia ficcional, o escritor argentino o fez com vistas a evidenciar a impossibilidade de que as coisas e os saberes existentes (ou inexistentes) sejam classificados de maneira satisfatória e definitiva. Mesmo que Dante também deixe entrever através de suas minuciosas ordenações essa impossibilidade, ele o faz sem prescindir de suas pretensões de Verdade nem dos propósitos moralistas de sua taxonomia.
O labirinto onírico de James Joyce Se o apelo ao universo onírico é, na obra borgiana, muitas vezes potencializada pela imagem do labirinto (vide “A biblioteca de Babel”) e a topografia das galerias infernais de Dante apresentam uma configuração notadamente labiríntica, pode-se dizer que o amálgama sonho/labirinto também se faz presente, de maneira incisiva, na obra de um outro escritor enciclopédico: James Joyce, mais especificamente em Finnegans Wake. Basta dizer que o autor irlandês criou, a partir desse amálgama, uma intrigante palavra-valise, nightmaze20 (literalmente, “labirinto 18
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da noite”), capaz de concentrar toda a complexidade na arquitetura onírica e labiríntica desse livro de 1939, cujo enredo se passa todo numa intrincada noite de sonho.21 Cunhada em uma passagem do capítulo 13, a palavra, além de sugerir o jogo mare/maze e trazer implícita a ideia de pesadelo (ou “ficção da noite”, como propôs Borges na sua conferência), aponta para o inevitável estado de desorientação que define quem ousa se introduzir na obra, visto que maze, enquanto verbo, também indica o ato transitivo de confundir, desorientar, lançar em um estado de perplexidade. Sabe-se que no “nightmaze” de Joyce pode-se entrar por qualquer página. E uma vez dentro, não há como escapar do erro, do descaminho. Em meio aos desvios da linguagem, à profusão vertiginosa de referências oriundas de vários campos do saber, à ciranda dos personagens, aos fluxos e refluxos temporais da narrativa, resta ao perplexo leitor também sonhar (ou fingir que sonha) o sonho de Joyce. Ou deixar-se sonhar, borgianamente, pelo próprio livro. Mas com o detalhe de que, nesse caso, o pacto onírico só faz sentido se a leitura for, paradoxalmente, experimentada em vigília, em condição de insônia, visto ser Finnegans Wake um sonho para os que não dormem. Já não disse Joyce que o leitor ideal para seus livros é o que tem a insônia ideal? Para isso contribui, certamente, a arquitetura rigorosa da obra, assentada, como na Comédia de Dante, numa estrutura numérica (o quatro) e em uma configuração geométrica (o círculo), mas abrindo-se ao incontrolável, como em “A biblioteca de Babel” de Borges. Equivocam-se, portanto, aqueles que veem no livro uma composição apenas circular, traçada segundo os princípios do corso/ricorso, propostos por Vico em La scienza nuova, no século XVIII. Embora em Finnegans Wake as partes possam ser associadas aos quatro ciclos históricos viconianos e o texto apresente como última frase do último capítulo um fragmento que só se completa na primeira linha do capítulo inicial (evidenciando com isso o círculo do “eterno retorno”), não se podem ignorar as linhas de fuga que atravessam todo o livro, nem as aberturas provocadas pelas forças que se abrigam em sua própria circularidade. Não há demarcação territorial definitiva para sua geografia. Sua circularidade prescinde dos limites da circunferência e, ao invés de conter um centro, apresenta vários pontos que se conectam a qualquer outro. Todas as quatro partes do livro existem várias vezes, e as séries temporais que as norteiam sob o influxo das eras de Vico acabam por se cruzar no que Borges chamaria de “uma rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos”.22 Daí que Umberto Eco, em sua leitura da obra joyciana, afirme que o escritor irlandês “não encontrou em Vico um filósofo em quem crer”, mas um autor que lhe “estimulava a imaginação e abria novos horizontes”.23 Segundo Eco, a visão joyciana dos ciclos históricos se insere menos no modelo do historicismo moderno do que no marco de uma sensibilidade renascentista, vide o vivo interesse de Joyce pelas teorias de Giordano Bruno e Nicolás de Cusa. O que tampouco significa um confinamento do autor dentro desses referenciais, já que o modelo de universo que rege a estrutura de Finnegans Wake constitui-se, na verdade, de uma combinatória que inclui tanto os ciclos viconianos e as imagens cosmológicas traçadas por Bruno e Cusa, quanto as analogias românticas, as correspondências baudelairianas, as equivalências rimbaudianas, as fusões sonoras de Wagner e os princípios desestabilizadores da física e das teorias cosmológicas da contemporaneidade. Assim, o rigor matemático da linguagem, a “interpenetração orgânica” dos capítulos e todos os modelos de organização que lhes servem de frame são na verdade molduras provisórias para um cosmo em estado intrínseco de caos. Isso porque Joyce coloca a linguagem, os personagens, o enredo, as referências míticas, literárias, históricas e filosóficas a serviço de um discurso e de um tipo de “realidade” que, como vimos a propósito de Borges, não oferecem garantias ou pontos de estabilidade: o sonho. É ele a matéria de que se faz o texto joyciano e é nele que toda a ordenação do conjunto se abre à lógica da vertigem. Diferentemente de Dante, que narra a memória de um sonho, Joyce busca fazer da narração o próprio sonho. Como observa Anthony Burgess, “Joyce nos apresenta um sonho, não uma peça de interpretação freudiana ou jungiana dos sonhos”.24 Sob esse prisma, o narrado é inseparável da linguagem do texto. As identidades se deslocam e se confundem, e as palavras representam isso na própria superfície da escrita. Tal lógica se explicita, portanto, não apenas na teia ficcional inextricável e no uso de uma linguagem coerente com a sintaxe (ou a parataxe) dos sonhos, como também no processo de construção e desenvolvimento dos personagens (ou não-personagens) dentro da obra. Sem delineamentos físicos que lhes deem uma compleição ou um rosto preciso, eles são sempre outros de si mesmos e passam por sucessivas (e muitas vezes simultâneas) metamorfoses ao longo do livro. O devir de cada um parece estar nos sons e nas modulações dos múltiplos nomes 19
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que recebem. H.C.E. (Here Comes Everybody), por exemplo, é um amálgama de todos os grandes heróis do passado. É dele o sonho/pesadelo que constitui todo o romance, embora não se saiba ao certo quantos sonhos de quantos outros personagens se misturam nessa experiência onírica do protagonista. Ele é ao mesmo tempo Adão, Finn Mac Cool, Tim Finnegans, Thor, Buda, Cristo e o próprio Joyce, dentre vários outros, e os seus cognomes, totalizando 116, ocupam uma extensa lista nas páginas 71-72 do terceiro capítulo. Todos os demais personagens dessa rede onírica experimentam desdobramentos semelhantes, como Anna Livia Plurabelle, que é a combinação de todas as mulheres do mundo e em cuja voz o livro se encerra e recomeça. Se, nas palavras de Burgess, “a narrativa nunca sai do sonho”, por mais que tentemos exercitar a lucidez da insônia não temos a mínima ideia de quem realmente sonha. A dimensão enciclopédica do livro, no caso mais próxima da de Borges do que da de Dante, é inegável. A diferença de Joyce em relação ao escritor argentino reside na linguagem que reproduz, em sua superfície, o labirinto onírico, ou nightmaze, que constitui a trama. Ou seja, ela se afirma na intrínseca correspondência entre o dizer e o dito. De qualquer maneira, os três autores compartilham entre si o mesmo apreço pela conjunção entre rigor e delírio, compondo, cada um, uma obra enciclopédica que não recusa o universo dos sonhos e, mais especificamente, o do pesadelo.
Notas: 1
ELIOT. Dante. São Paulo: Arte Editora, 1989, p. 70.
2
Idem, p. 70.
3
BORGES. Obras completas, v. 3, Rio de Janeiro: Globo, 2000,p. 231.
4
CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio, Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 98-99.
5
BORGES. ibid, p. 381.
6
Idem, p. 383.
7
BENJAMIN. Origem do drama barroco alemão, Trad. Sérgio Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 249.
As citações em português do poema de Dante foram extraídas da tradução de Cristiano Martins, conforme consta nas Referências deste livro. 8
9
BORGES, ibid, p. 388.
10
Idem, 387-389.
11
Idem, p. 390.
12
Idem, 242-255.
13
Idem, p. 247.
14
Idem, p. 9-85.
15
Idem, p. 84.
16
Idem, p. 10-11.
Através desse desfecho, Borges menciona uma frase, ou “uma sentença perdida”, de Coleridge, reproduzida no ensaio “A flor de Coleridge”, de Outras inquisições, e que diz o seguinte: “Se um homem atravessasse o Paraíso num sonho, e lhe dessem uma flor como prova de que lá estivera, se ao despertar encontrasse essa flor em sua mão... o que dizer então?” (Idem, p. 686-698.) 17
18
Idem, p. 686-698.
19
Idem, p. 516-523.
20
Proponho, como tradução da palavra, “pesadédalo”.
Uso, como referência, a edição bilíngue da obra, traduzida por Donaldo Schüler. (JOYCE. Finnegans Wake / Finnicius revém, 5 v.. Trad. Donaldo Schüler. São Paulo: Ateliê, 2000-2003. A palavra nightmaze encontra-se no vol. V, p. 28 (411.8). 21
22
Idem, p. 532. O conto citado é “O jardim das veredas que se bifurcam”.
23
ECO. Las poéticas de Joyce. Helena Lozano. Barcelona: Lumen, 1998, p. 110.
24
BURGESS. A Shorter Finnegans Wake. London: Faber & Faber, 1988, p. 20.
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Cinda Gonda é professora na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro
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INVENCÍVEL EROS Cinda
Gonda Para Ronaldo, pela paixão.
1. Em vez de estrelas acendem-se à noite palavras Umberto Saba1
A margem do azul, Vertical o desejo, Uma colina para os lábios são obras publicadas respectivamente em 1982, 1988 e 1993. Surgem em 2004 reunidas, acrescidas de uma outra, sob o título: Três poemas de amor seguidos de Livro quarto, de Albano Martins.2 O último dos títulos, Livro quarto, deixa no ar a ambiguidade nele contida: a sugestão do numeral, o quarto dos livros publicados e do substantivo, o quarto, local de intimidade. Na viagem pelos sentidos, delineia-se o roteiro dos livros mencionados. As epígrafes, com as quais o autor abre cada obra, nos fornecem importante chave de entendimento sobre cada uma delas. Em A margem do azul, convoca-se a voz de Fernando Pessoa, O Livro do Desassossego: “O nosso amor nascera do nosso encontro, como a beleza se criou do encontro da lua com as águas”. Em seguida, apresenta-se a de Juan Ramón Jiménez, do livro Estío: yo y tú somos ya tú y yo, como el mar y como el cielo cielo y mar, sin querer, son.
Tais apontamentos mantêm estreito diálogo com o título – A margem do azul – confirmando o espírito apolíneo, traduzido na dimensão que o próprio azul conserva na poética de Albano Martins. A água – elemento de renovação e purificação – nos devolve a leveza de um mundo feito de fluidez e transparência, que o poeta confessa “perseguir implacavelmente”. Na abertura, um poeta deixa-se guiar por um leopardo azul, (a poesia, talvez?), assumindo uma postura passiva, contemplativa, frente ao mundo:
Um leopardo azul me conduz pelo dorso da noite. (MARTINS, Albano, 2004, p.21)
Primeiro dos livros publicados, nele parece se fundar a poética amorosa, que reaparecia nos subsequentes. A palavra “pedra” guarda tal sentido. Como se esta fosse a primeira pedra, o lugar habitado da primeira semente. (ibidem, p.22)
O tom oracular – indelével traço de sua poética – a vertigem demiúrgica dominam os versos: Eu te batizo: hidrângea é teu nome, cesto de água, idioma e intriga do perfume. (ibidem, p.27)
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Micros poemas, à maneira de haicais, desdobram-se em sucessivas imagens: A tua boca: uma andorinha. (ibidem, p.30)
Ou ainda: Em teus dedos pus um anel de crisântemos (ibidem, p.32)
Se é verdade que a poesia reinventa o real, nos devolvendo o que previamente existia, mas que ainda não atentáramos, descobriremos no formato do lábio a sugestão da asa de um pássaro. Talvez que, por isso mesmo, da boca, aninhadas, voem as palavras. Nos versos, há elementos que só se tornam compreensíveis ao resgatarmos o sentido etimológico das palavras, a sua origem, como no caso de crisântemos. O volume da flor não nos permite que com ela trancemos um anel, como se daria com as pequeninas e delicadas: violetas ou miosótis. O enigma nos desafia. Torna-se necessário resgatarmos o seu significado: crisântemo, do grego, “flor de ouro” - aliança. Fernando Guimarães, com rara sensibilidade, definiu a poesia de Albano Martins como a da essensualidade. Porque, de fato, o que marca a obra do autor é a vertente apolínea e dionisíaca nela engendrada, como, por exemplo, na presença constante das cores azul e o vermelho. Confirma-se a tensão permanente das forças dominantes de sua poética: o rigor e a paixão. Esta é a margem do azul. Nenhum outro limite reconheço ao sangue. (ibidem, p.41).
2. Pede o desejo, dama, que vos veja. Camões Vertical o Desejo, segundo da trilogia, sugere uma mudança de registro já enunciada em suas quatro epígrafes. A primeira extraída do livro Razón de Amor, de Pedro Salinas: Porque un cuerpo – lo sabes y lo sé – sólo está en su pareja.
A segunda, de Ricardo Molina, do livro Regalo de Amante: Así yo te amo com amor de hombre. No se puede esquivar este cuerpo de tierra tan bello, los ojos y los labios, el cuello, las mejillas y los brazos y el pecho y los pies y las piernas, la cintura y los hombros...
De Jorge de Sena, a terceira, do livro Exorcismos: Só não é belo o que se não deseja ou que ao nosso desejo mal responde.
E, finalmente, A Arte de Amar, de Ovídio: Nos Venerem tutam concessaque furta canemus Inque meo nullum carmine crimen erit.
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Ainda uma vez, iremos constatar o diálogo que se estabelece do encontro das epígrafes com o título, onde o aspecto dionisíaco sugerido acompanhará o poema. A verticalidade proposta, unida à noção de desejo, corresponde ao movimento de ascensão em direção ao cosmos, ao infinito. Daí a importância de conjugarmos as palavras com as quais o poeta intitula a obra – vertical e desejo. Diante delas, um duplo desafio se apresenta. Por um lado, o de entendê-las, ainda uma vez, etimologicamente; por outro, compreender como elas se articulam ao longo do poema. Comecemos pelo significado do termo desejo. Três grandes autores o definiram. Segundo Mario Claudio, “o desejo é a distância entre dois corpos”. Para Maurice Blanchot, “a distância é o espaço do desejo”. Octavio Paz o sintetizaria de forma admirável: Nada sabemos do desejo. Apenas que ele se cristaliza em imagens. E essas imagens não cessam de nos instigar até que as toquemos. Mal as tocamos, elas se desvanecem. O desejo é a imaginação em movimento. (PAZ, Octavio, 1966, p.15.).
A noção de distância se impõe. Ao recuarmos às origens mais remotas da palavra encontraremos: A palavra desejo tem bela origem. Deriva-se do verbo desidero que, por sua vez, deriva-se do substantivo sidus (mais usado no plural, sidera), significando a figura formada por um conjunto de estrelas, isto é, constelações. Porque se diz dos astros, sidera é empregado como palavra de louvor – o alto – e, na teologia astral ou astrologia, é usado para indicar a influência dos astros sobre o destino humano, donde sideratus, siderado: atingido ou fulminado por um astro. De sidera, vem considerare – examinar com cuidado, com respeito e veneração – e desiderare – cessar de olhar (os astros), deixar de ver (os astros). [...] Cessando de olhar para os astros, desiderium é a decisão de tomar o destino em nossas próprias mãos, e o desejo chama-se então vontade consciente nascida da deliberação, aquilo que os gregos chamavam bóulesis. Deixando de ver os astros, porém, desiderium significa uma perda, privação do saber sobre o destino, queda na roda da fortuna incerta.3
Então o desejo como carência, vazio, está intimamente associado ao sentido de distância – a um espaço que pede para ser preenchido. “O desejo é a imaginação em movimento”, assim o definiu Paz. Talvez por isso ele associe à noção de desejo as tais “imagens que não cessam de nos instigar. Pelo desejo, imagem e memória se harmonizam, formam uma nova aliança. Sob o signo da interdição, o desejo abre caminho para o simbólico e para o imaginário. Como em todos os poemas, Albano Martins nos propõe uma viagem na qual os signos e as palavras ganham um novo sentido. Entras em mim descalça, vulnerável como um alvo próximo, ferida nos joelhos e nas coxas. Pelo tacto nos conhecemos, é essa luz oblíqua que nos cega. E te pertenço e me pertences como a lâmina à bainha, a chama ao pavio. (MARTINS Albano, 2004, p.47)
Sobre os versos acima, David Mourão-Ferreira, ao comentá-los, registrara: “invertem-se as tradicionais relações de predomínio macho / fêmea. [...] A partilha chega a ser tão completa que não há, no par amoroso, nem dominador, nem dominada para tudo se tornar, em suma, domínio comum” (MOURÃO-FERREIRA, David, 1988, p. 150). O verso seguinte, “é essa luz oblíqua que nos cega”, nos devolve a vontade consciente de “cessando de olhar os astros, tomar nosso destino em nossas mãos”. Algo que irá se corroborar nos versos seguintes: “onde é mais surda / a floresta / aí te penso / e escuto”. Um novo aprendizado se impõe – ouvir o silêncio. O mesmo silêncio associado à criação genesíaca: “e quando ele abriu o sétimo selo, fez-se no céu um silêncio de quase meia hora”. A noção de ritual acompanha todo o poema. Ela já se anunciava na escolha da palavra “descalça”, do primeiro verso. Ganhará plenitude no segmento – “Ungida / como as corolas e as serpentes”, ou neste ainda: “Estávamos / nus e só a pele / nos cobria e em nós se consagrava”. E, finalmente, “um deus e a crista / duma 25
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onda / crucificados / no teu sexo”. Os símbolos da tradição judaico-cristã, além dos mencionados acima, são incorporados ao poema: “um peixe / sobrevive / ao mar / e seu naufrágio”; “as sandálias digitais do desejo”. É muito possível que o ritual, que preside quase todo o poema, corresponda a um processo de renovação objetivado pelo poeta. Do sentido de exclusão, de dispêndio que o erotismo guarda, passa-se a um significado positivo. Não por acaso, o fogo torna-se o tradutor da noção de desejo: “E te pertenço / e me pertences como / a lâmina / à bainha, a chama / ao pavio“; dentro do mesmo campo semântico encontram-se as palavras: “calcinar”, “lume”. Surge a palavra sublime, transcendente – amor: “O nosso tempo, amor. /Tempo / líquido sulcado/ de submarinas galeras e corvetas”. Por outro lado, a formação clássica de Albano, o gosto pelos clássicos, faz com que, de imediato, associemos os três primeiros versos, já citados anteriormente, à figura do arqueiro ferido: Entras em mim descalça, vulnerável Como um alvo próximo, ferida Nos joelhos e nas coxas.
As palavras “alvo próximo”, “ferida nos joelhos e nas coxas” sustentam a hipótese. Onde encontraríamos os fios que uniriam o poema ao mito? Sabemos que Filoctetes era o melhor arqueiro de seu tempo. Ao ferir-se acidentalmente, por uma de suas flechas envenenadas, se vê abandonado pelos aliados, isolado na ilha de Lemos, porque sua ferida causa um terrível odor. Não pode manejar seu arco encantado, lançar suas flechas. Os gregos, no entanto, precisam de seu grande arco fundamental na guerra de Tróia. É o jovem Neoptolemo que partirá na tentativa de resgatá-lo. Ao ver Filoctetes, é tomado por intensa compaixão, passando a cuidar de seu ferimento. Podemos arriscar a hipótese de que Albano Martins ocupa, como poeta, o lugar do filho de Aquiles. O erotismo, ferida que sangra na sociedade burguesa e a coloca em risco, tal qual Filoctetes, deve ser expurgado, marginalizado. O poema subverte tal noção, ganha dimensões afirmativas: “Em nós o inalterável esplendor da carne”. Afinal, as epígrafes escolhidas pelo autor apontavam nessa direção, miravam esse alvo. Diferentemente do jovem Neoptolemo, não se deixará levar pelo sentimento de compaixão, o que o move é o sentido da paixão, sempre associada à interdição. Sentimento que não considera nenhum dos apelos da razão, da sensatez. A sugestão ao mito permanece na imagem da floresta, lugar de isolamento e silêncio. Examinemos os versos: Onde é mais surda a floresta aí te penso e escuto. (ibidem, p.48).
A desordenada angústia da descontinuidade se associa à interdição e ao erotismo logo estabelecido como ruptura da norma. Indefesos, contra nós investem os deuses todos do desejo com seus touros de incontinência e morte. Estávamos nus e só a pele nos cobria e em nós se consagrava. (ibidem, p.60)
Sabemos que não só a poesia, mas a literatura de um modo geral, integra o princípio do prazer e talvez auxilie no processo de sublimação que o homem se vê forçado a empreender pelo princípio da realidade, através da “fantasia”. É, a um só tempo, fonte de prazer e um meio através do qual suporta a realidade. A literatura é, assim, uma fonte importante de energia. Ela recebe essa energia da própria vida e lhe devolve a energia já transformada em processo de reflexão e de sensibilidade. Deste modo, a literatura provém da literatura e modifica a literatura, provém da vida e modifica a vida, provém do princípio do prazer e modifica o princípio do prazer, provém da realidade e modifica a realidade, num encadeamento que compreende variáveis e que dá ao fenômeno literário uma riqueza e uma dimensão extraordinárias. Desse modo, Albano Martins em seu poema acentua o aspecto de 26
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ruptura, contido no erotismo. Ao invés da noção de dispêndio, como é visto pela sociedade, pelo senso comum, reinaugura um mundo onde o prazer se torna essencial, ilimitado, como nos versos: Nenhum excesso nos contém. Nenhuma onda nos devolve. (ibidem, p. 64)
Pela via do erotismo e da paixão, cura-se um corpo, ferido, corrompido, incompleto. Em nós o inalterável esplendor da carne. (ibidem, p. 66).
Tocamos a margem de um outro silêncio. Um silêncio absoluto, retorno às origens. Desnuda-se a realidade, toca-se a substância essencial que nela se oculta. Horizontal o mar. a mor te. Vertical o desejo. (ibidem, p. 68).
A separação intencional da palavra morte nos remete ao “centro da vida e do amor”, la petite mort, de que nos fala Bataille. Cada vez mais a poética passa pela imagem. Cada vez mais a imagem traduz a poética. Os versos constroem o arco, tencionado pelo desejo. O desejo e o arco, as setas com seu veneno partem em direção às estrelas, ao infinito. Ao abandonar o abrigo onde vivera isolado Filoctetes sabia que outras guerras viriam. Caminhar pela poética de Albano Martins é como caminhar sobre um terreno minado, correr um risco. Talvez valha a pena não nos esquecermos dos vários sentidos contidos de forma latente na palavra desejo: estrela / siderus ou desastre. Mas, como nos lembra o poeta, “há tentações a que não se pode humanamente resistir: a do amor, a do desejo E outra perdição não há. Como não há também outra salvação possível”. 3. Eis-me desconhecido e nu Para receber por rosto um sopro António Ramos Rosa Em Uma Colina para os lábios, o jogo de epígrafes se mantém. O eu lírico se afirma de modo pleno, total. Recuperemo-las: de Paul Éluard, “D’aimer, j’ai tout crée: réel, imaginaire”. De Jorge Guillén, os versos: Tu, más aún: tu como Tu, sin palabras toda Singular, desnudez Única, tu, tu sola.
Encerrando, Pablo Neruda: “yo no escogí sino uma sola ola: / la ola indivisible de tu cuerpo”. Demiúrgico por excelência, Uma colina para os lábios, mais do que a simples presença do outro, anuncia o desejo de criação. O poema tem início com o predomínio de um tom oracular. O uso do imperativo confirma a hipótese: Eu disse: faça-se um rosto à minha imagem e semelhança, um corpo à semelhança e imagem do desejo. E dei vertentes ao mar, afluentes
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ÁGUA DA PALAVRA – REVISTA DE LITERATURA E TEORIAS / NÚMERO 4 AGOSTO 2011 ISBN 2178 0870 aos rios, crateras ao sangue. E uni as minhas têmporas às têmporas do lume. (MARTINS, Albano, 2004, p. 71).
Como um deus, o poeta, agora, se põe a agir em plenitude, como Prometeu irá experimentar o desejo de criação de um novo ser: os clássicos, mais uma vez, exercem grande influência em sua poética. Albano Martins já anunciara no título – ao escolher a palavra “colina” – a referência ao Cáucaso, a presença do mito. Convém também não esquecer que o poeta traduzira Giacomo Leopardi, Cantos.4 E que ali ressoa um dos versos do poeta italiano, segundo o próprio Albano por muitos considerado o maior poeta italiano depois de Dante e de Petrarca. “Cara me foi sempre esta erma colina”. Voltemos ao mito. Prometeu, da raça dos Titãs, formou um homem ao misturar terra com água e o animou com o fogo que roubara do céu. Júpiter se enfurece e ordena que o acorrentem no monte Cáucaso. Uma águia lhe devoraria o fígado que cresceria em seguida. Este seria o seu silício. Os deuses se compadecem e resolvem interferir enviando Pandora como consolo a Prometeu. Júpiter, de modo ardiloso, diz a Pandora que leve uma caixa ao irmão de Prometeu. Quando aberta, dela saltam e se espalham por todo o lado. No fundo da caixa, porém, ficara a esperança, um sinal, um consolo para humanidade. Os primeiros versos confirmam a estreita ligação entre o poeta e Prometeu: os dois experimentam a mesma vertigem, a do poeta, situada no plano simbólico. A palavra cria e recria um novo ser. É do humano, imperfeitamente humano, que se irá originar “um rosto à minha / imagem e semelhança”. Há um aspecto totalizante entre o ser e natureza – nascem ao mesmo tempo: Modelo agora as pálpebras, corrijo o itinerário das árvores que sobram da cabeça para os ombros. Afeiçôo a anel dos lábios, fixo as palpitações do fogo. (ibidem, p. 74).
Um diálogo se estabelece entre o eu poético e o outro, entre o corpo e o espaço. O amor surge com seus múltiplos enigmas: como vertigem, interdição e embriaguez. E me disseste: vem. E havia alguns despojos sobre a areia, algumas ressentidas grinaldas no limiar das têmporas. Havia alguns gestos suspensos, um cofre de esmeraldas vermelhas, um torpor nos membros retardados. E havia um colar para as mãos, uma colina para os lábios e uma flor intacta perfumando o silêncio, à beira de indizíveis planícies. (ibidem, p, 75).
Como se dar um tempo e um espaço à emoção, senão através do silêncio? 4. O silêncio deste quarto Fernando Pessoa O Livro quarto ganha uma especificidade em relação aos anteriormente analisados, A margem do azul, Vertical o desejo e Uma colina para os lábios. O título aparece reduzido ao essencial, quer no emprego da palavra livro, quer da palavra quarto. Como já mencionamos, há uma ambiguidade latente nesta última, vários significados ali se apresentam. A sequência do numeral, a porção de um todo, e o local feito de nudez e silêncio absoluto, onde os amantes se encontram para realizar algo que parece ser a vocação dos seres – o encontro amoroso, algo que os resgata e justifica. 28
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A palavra livro parece sustentar a unidade de uma poética amorosa que os anteriores anunciavam. O ato do amor emerge em toda plenitude, ainda uma vez, ritualisticamente, onde livro pode significar o livro sagrado, a reunião daqueles que o precederam, com as nuances ali contidas. De modo homólogo ao que se passa com o par amoroso, o poeta começa por despir o livro das epígrafes, nenhuma ali se acha. A abertura é significativa: Ao contrário das árvores, dizes, é o amor. Mais altas do que os ramos são as raízes. (MARTINS, Albano, 2004, p.105).
Um compromisso radical, descer às raízes, marca a pulsão erótica dos versos: Deitou-se a meu lado. Disse que vinha de longe e tinha sede. Bebemos pela mesma taça. (ibidem, p. 107).
A interação entre os amantes se dá de forma total: Eu penso porque tu existe. (ibidem, p, 108).
Ou: Assimilar-te: ser perfume na tua pele. (ibidem, p. 111)
Como num quadro de Botticelli, por entre águas e espumas, se dá o nascimento da deusa do amor: As tuas armas. As tuas artes. As tuas águas. (ibidem, p. 115)
É pelo princípio do prazer, no terreno dominado por Eros, que a aspiração pela permanência se realiza - no pacto com o instante que, de tão intenso, guarda a eternidade. Porque, único e novo, é capaz de nos transformar a cada dia onde nos descobrimos o mesmo e o outro, num eterno retorno. Como se nasce pela segunda vez? – perguntei. E tu disseste: no meu ventre tu nasces todos os dias. E é de ti próprio que nasces. (ibidem, p. 135)
A redução ao silêncio, ao essencial, traduz o pacto amoroso contido em Livro quarto. Como nos anteriores, Albano Martins parece confirmar o princípio segundo o qual para “apedrejarmos a morte”, inventamos a palavra, a criação. “Eros, invencível Eros”, fonte de todas as noturnas e diurnas constelações. Na vertigem do amor, do desejo, da paixão, o mundo alcança uma unidade total. Em entrevista concedida a Baptista Bastos, Albano Martins afirmou: “À literatura prefiro a vida. Digo-o num livro publicado em 89, Rodomel, Rododendro. E à cabeceira terás, como único livro de todas as horas, o livro da vida”. Para mais adiante acrescentar: “que não são necessárias muitas palavras para dizer o amor, o deslumbramento, a paixão. Basta, às vezes, um oh! Um ah! Outras, nem isso: um gesto, um olhar. O silêncio, quero eu dizer”. O poeta escreve, como nos lembra Paz, com os olhos fixados no silêncio. (PAZ, Octavio, 1966, p.14). É do amor, invencível amor, de uma emoção forte que aqui se fala. Bela, afirmativa. A única, talvez, com 29
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que possamos celebrar a vida, desafiar a morte, lugar de todas as ausências no infinito azul.
Notas Tradução de Albano Martins. MARTINS, Albano. Três poemas de amor seguidos de Livro quarto. Prefácio de Adriano Carlos. Vila Nova de Famalicão: Edições Quasi, 2004. 3 Cf. Marilena Chauí. “Laços do Desejo” In: O Desejo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.22. 4 Cf. Cantos, de Giacomo Leopardi, com apresentação, seleção tradução e notas de Albano Martins. Prefácio de João Bigotte Chorão. Pintura de Armando Alves. Lisboa: Editora Vega, 1986, pp 9 e 41. 1 2
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: FERREIRA, David-Mourão. Os Ócios do Ofício. Lisboa: Guimarães Editores, 1988. “JL.Jornal de Letras Artes e Idéias”. Diretor José Carlos de Vasconcelos. Lisboa. Ano X, nº 418, 10 a 16 de julho de 1990. LEOPARDI, Giacomo. Cantos. Apresentação, seleção tradução e notas de Albano Martins. Prefácio de João Bigotte Chorão. Pintura de Armando Alves. Lisboa: Editora Vega, 1986.. “JL.Jornal de Letras Artes e Idéias”. Diretor José Carlos de Vasconcelos. Lisboa. Ano X, nº 418, 10 a 16 de julho de 1990. MARTINS, Albano. Três Poemas de Amor, seguidos de Livro Quarto. Vila Nova de Famalicão, , Quasi, 2004 NOVAES, Adauto. Organizador. O Desejo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990 PAZ, Octavio. Poesía em movimento. México: Siglo Veintiuno Editores, 1966
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Micheliny Verunschk é autora de Geografia Íntima do Deserto e Cartografia da Noite.
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Micheliny
Verunschk
Folhetim F.C. cortou o rosto com uma lâmina durante o banho. A noite, profunda. Primeiro, um abismo atravessando o nariz até perto da orelha esquerda. Depois, veredas em variadas extensões. Não se pode dizer feio o arabesco das cicatrizes e as marcas desenham um mapa ou o acento trágico das personagens clássicas. F.C. não é uma máscara e nem é esse o seu nome.
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Sutra a Helton Moura Eu vi o Iluminado aos pedaços sorrindo manchas e unhas sem brevidade. Eu vi o Iluminado aos pedaços remendado por lacres de latas de refrigerante animal não domesticado barba teia entre telhas e caibros. Eu vi o Iluminado passivo perante os carros que jorram na avenida drogado de vida picado de vida absurdamente silenciosa como o caule que o recolhe todas as noites como o êxtase que quebra nas esquinas a fumaça que embaça a vista o crack que acende a luz. Eu vi o Iluminado aos pedaços digerido pelo olho fotográfico [câmera embutida dentro de si mesma] ruminando e vomitando cores e sons. Drogado de vida da mais poderosa química. Picado de vida mais vida que o ar-condicionado dos condomínios ambulantes das grades e batentes dos grandes dentes da cidade. Eu vi o Iluminado aos pedaços outdoor inconcluso E Ele sorria.
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Caderno de Viagem (Itabira)
Ao redor da tua casa a cidade desaparece. Desaparece o morro – que era tão alto – e os meninos brotando pés descalços no meio da rua. Tudo se esvai ao redor da tua casa (e um lago cor de ferro engole reminiscências). A tua casa – no entanto – permanece. É certo que os móveis apodreceram como é certo que alguns olhos se fecharam. Mas a tua casa (base de madeira parede de tijolos teto de palavra) a tua casa permanece. Intacta.
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A Propósito de O Búzio de Cós O búzio sobre o móvel celebra o único mar possível: o mar cristalino e lúcido a se quebrar nas páginas desse livro.
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Casé Lontra Marques é autor de Saber o sol do esquecimento (2010); A densidade do céu sobre a demolição (2009); Campo de ampliação (2009); Mares inacabados (2008).
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Casé
Lontra
Marques
SEXTO REINÍCIO
Pelo tempo de possuir aquilo que renasceu, aquilo que vemos na areia do vidro a vibrar rente às retinas, colhidos pelo espanto, antes de alcançarmos o desperdício, aquilo que repartimos porque ainda questionamos o que percebemos, porque ainda abrigamos, como parte do braço, do fêmur, como parte do baço, do silício, do aço em nosso fígado, porque ainda repelimos, porque ainda violentamos o que acolhemos; pelo tempo de possuir aquilo que renasceu atravessamos — com as espáduas mais próximas das chagas — a ausência do frio que nos infecciona, 39
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do calor que nos corrói: atravessamos, sobre a água, seus rangidos, torcendo estacas enterradas até o torpor, ante um silêncio excessivo, silabicamente arremessados a uma fala que nos massacra, a um balbucio que nos confina (exceto quando o despedaçamos) num ritmo inativo (cujos núcleos reativamos sempre que nos mantemos vivos): ao deslocar a coluna pela úlcera, duvidamos da materialidade da manhã, da densidade da noite que, distantes de toda bruma, alavancamos do marasmo, já a prever o rumor de um ato árduo, que de repente atinge uma intensidade imprevista, apesar de permanecer circunscrito ao próprio limiar, o rumor que se abstém de produzir qualquer estupor, que se abstém, 40
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portanto, de expandir a força que o afronta, enquanto ocultamos nossos diálogos — do modo que faríamos com as fuselagens de um desastre — para antecipar a partilha dos vestígios, sobretudo quando detemos a deterioração da desordem: entre olhos destituídos de delírio: pois buscamos mais do que o aspecto sadio cuja face concedesse acesso ao sossego em que nem o desconforto nem o desespero fossem somados ao espelho de onde descolamos os joelhos
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Orlando Lopes é poeta, pesquisador e professor na Universidade Federal do Espírito Santo. Publicou Occidentia (2007), Hardcore blues – apocalyptic songs (1993) e participou de diversas antologias e coletâneas literárias.
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Orlando
Lopes
LIGHTNESS a luz quando (se) perde (de) seu peso ganha leviana leveza : perde o peso do mundo mas não o perde (de vista) de todo luz sem fóton luminosidade rara e feita : aquilo que o olho leva pra dentro da gente (e a gente nem percebe) quase desexiste (luz sem nada – mas ainda visgo de tudo o que persiste)
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QUICKNESS aquilo que simplesmente deixa de estar à nossa frente (e de repente às vezes se multiplica às vezes se contrai comoventemente) : teu olhar mercurial que salta tão rápido a página indo de um confim a outro da galáxia : busca beatrizes andrômedas porquinhos-da-índia epígonos e avatares rapidez: os arcos infinitos (as saudades) da nossa vontade
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EXACTITUDE efeito é coisa real não é sombra ou sobra de vontade alheia e distante (tudo o que significa significa na medida exata – os mais e os menos são de nossa inteira responsabilidade) exatidão é fato presente (o tempo que foi ou vem apenas se aproxima – limite na vastidão) em nós: ímpares imperfeitos desalojados do mundo (nós e os nossos erros de interpretação)
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VISIBILITY dar visibilidade às coisas que não se podem ver a olho nu (é o olho nu o mais vestido olho fantasiado (bruto ou enternecido) que nos entrega ao ser que amamos ou ao mais ilustre dos desconhecidos desumanos) dar visibilidade às coisas e tornar-se visível a elas (usá-las e delas (se se deixar) ser objeto) : mas também desaparecer das vistas quando o dia termina visibilidade é o atrito de invisibilidades (olhos grudados na máquina : desligar a máquina quando o dia finda ou chega ao fim a faina)
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MULTIPLICITY tudo quando continua tudo torna-se ab surdo e nos torna mudos: mesmo se falamos não dizemos o segredo que habita o ponto infinito (aquele onde o raio parte a alma) apenas dois espelhos e o mundo perde seu primeiro recheio : a luz penetra tudo (e tudo esvazia) okistá passasser
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CONSISTENCY tudo tem alguma consistência (mesmo o nada e o infinito) e por isso se toca no breve espaço-tempo de um grifo nem todas as coisas têm convivência por isso nem sabem que existem (tantos infernos e tantos paraísos) mas todas – e tudo – consistem e concordam no existir de algumas sabemos (elas consistem conosco e nelas nos reconhecemos) outras nem sonhamos (não nos dão elas a ver ou entrever o fio da vida : apenas fazem nosso alvoroço)
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