Anais do 1º Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação e do Dep. de Artes Cênicas. UFOP

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Projeto Gráfico, Diagramação e Capa Gustavo Binda Produção Editorial Saulo Ribeiro

Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)

Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação

e do Departamento de Artes Cênicas do Instituto de

Filosofia, Artes e Cultura da Universidade Federal de

Ouro Preto (1. : 2014 : Ouro Preto, MG)

S471a

Anais do I Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-

Graduação e do Departamento de Artes Cênicas do Insti-

tuto de Filosofia, Artes e Cultura da Universidade Federal

de Ouro Preto / Berilo Luigi Deiró Nosella, Éden da Silva

Peretta [Orgs.]. – Vitória : Cousa, 2014.

156 p. ; 21 cm

Inclui bibliografia.

ISBN: 978-85-63746-54-2

1. Teatro – Congressos. 2. Artes cênicas – Congressos.

3. Performance (Arte) – Congressos. I. Nosella, Berilo Luigi

Deiró, 1976-. II. Peretta, Éden da Silva, 1978-. III. Título.

CDU: 792

IMPRESSO NO BRASIL | PRINTED IN BRAZIL |2014| Todos os direitos dessa edição reservados à Editora Cousa Má Companhia | Casa dos grupos Repertório e Z | Rua Professor Baltazar, 152, Centro Vitória | ES | CEP 29.015-180 www.cousa.com.br | facebook.com/editoracousa



Universidade Federal de Ouro Preto Reitor: Prof. Dr. Marcone Jamilson Freitas Souza Vice-Reitora: Profa. Dra. Célia Maria Fernandes Nunes Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Prof. Dr. Valdei Lopes de Araújo Pró-Reitor Adjunto de Pesquisa e Pós-Graduação: Prof. Dr. André Talvani Pedrosa da Silva Diretor do Instituo de Filosofia, Artes e Cultura: Prof. Dr. Guilherme Paolielo Departamento de Artes Cênicas Chefe do DEART: Profa. Dra. Elvina Maria Caetano Pereira (Nina Caetano) Coordenador do Curso de Artes Cênicas: Prof. Acevesmoreno Flores Piegaz Professores do DEART

Acevesmoreno Flores Piegaz Aline Mendes de Oliveira Wilson Pereira de Oliveira Berilo Luigi Deiró Nosella Bruna Christófaro Matosinhos Davi de Oliveira Pinto Éden Peretta Elen Medeiros Elisa Toledo Ernesto Gomes Valença Frederick Magalhães Hunzicker Luciana da Costa Dias Marco Flávio de Alvarenga Neide das Graças de Souza Bortolini Nina Caetano Ricardo Gomes Rogério Santos de Oliveira Rufo Herrera

Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas Coordenador do PPGAC Prof. Dr. Berilo Luigi Deiró Nosella

Comissão de Coordenação do PPGAC Profa. Dra. Luciana da Costa Dias Profa. Dra. Aline Mendes de Oliveira


Professores do PPGAC

Aline Mendes de Oliveira Berilo Luigi Deiró Nosella Davi de Oliveira Pinto Éden Peretta Luciana da Costa Dias Neide das Graças de Souza Bortolini Nina Caetano Ricardo Gomes Rogério Santos de Oliveira

Seminário de Pesquisa do PPGAC e DEART Organização Geral

Prof. Dr. Berilo Luigi Deiró Nosella Prof. Dr. Éden Peretta

Direção de Produção: Bárbara Carbogim, Gabriela Gonçalves Produção Executiva: Adriana Maciel, Daniel Ducato, Du Sarto Comunicação: Gustavo Moreira Alves e Paulo Maffei Arte Gráfica: Paulo Maffei Comissão Científica

Aline Mendes de Oliveira Berilo Luigi Deiró Nosella Davi de Oliveira Pinto Éden Peretta Luciana da Costa Dias Neide das Graças de Souza Bortolini Nina Caetano Ricardo Gomes Rogério Santos de Oliveira

APOIO: Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) – Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG)

AGRADECIMENTOS: Pró-Reitoria de extensão (PROEX) – Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação (PROPP) – MULTICULTURAL produções artísticas (empresa júnior de Artes Cênicas e Música – IFAC/UFOP)



APRESENTAÇÃO A realização do I Seminário de Pesquisa do Programa de PósGraduação em Artes Cênicas e do Departamento de Artes Cênicas do Instituto de Filosofia, Artes e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto vem atestar o amadurecimento das pesquisas desenvolvidas nessa área dentro da UFOP, coroado com a implantação do Mestrado em Artes Cênicas, aprovado pela CAPES em outubro de 2013 e com suas atividades acadêmicas já iniciadas em março de 2014. A realização de um seminário de pesquisa no atual momento se faz fundamental pois é a oportunidade de troca de conhecimentos e informações tanto entre os alunos e professores da UFOP que atuam neste campo do conhecimento, como com a comunidade e convidados de outras instituições nacionais. Sendo assim, o presente evento tem por objetivo divulgar, aprimorar e promover trocas entre pesquisas no campo das Artes Cênicas. Um Seminário com as características do que aqui se realiza é fundamental para o amadurecimento do pensamento e da prática cênica, tanto em relação aos alunos em formação, em nível de graduação, como dos futuros pesquisadores docentes de ensino superior que atualmente são vinculados ao nosso curso de mestrado. Também é importante na formação de um quadro de alunos de graduação que, uma vez egressos dos cursos de Artes e Artes Cênicas, da UFOP e de outras Instituições, poderão se encontrar mais maduros para o futuro ingresso em cursos de Pós-Graduação. É com muita satisfação, portanto, que gostaríamos aqui de abrir as cortinas deste nosso primeiro evento – de muitos outros, esperamos - e desejar a todos muita MERDA!!! A Comissão Organizadora


Sumário Dramaturgia e questões da cena contemporânea Corpo desembestado: o devir-animal, o Teatro da Crueldade e suas afecções (Matheus Silva)................................................13 A performatividade como um elemento desterritorializador na encenação contemporânea (Paulo Maffei)...........................23 Dramaturgia rapsódica: no âmbito do monstro (Phelippe Celestino) .................................................................33 Teatro e Sociedade Brasileira O popular como estratégia política na experiência do CPC da UNE (Letícia Issene)..........................................................................47 Show Opinião: o popular como estratégia política pós 64 (Flaviane Flores).......................................................................55 Fundamentos da crise do drama no Brasil (Gustavo Moreira Alves) ...........................................................63 Arena canta e conta: Zumbi e Tiradentes: Uma investigação dos métodos de encenação desenvolvidos pelo Teatro de Arena pós-golpe de 1964 (Nieve Matos Silva) ..........................71 Pensamento e práticas da cena Os princípios técnicos de Martha Graham como subsídio para o trabalho do ator (Gabriela Gonçalves)......................................83


O trabalho energético na preparação corporal do ator (Geraldo Magela) .....................................................................91 Interferências advindas por meio da aplicabilidade de materiais expressivos, realizadas pelo cenógrafo em estruturas arquitetônicas urbanas, para a composição cenográfica teatral (Daniel Ducato) .........................................99 A Direção teatral e a conformação do “Sistema Cultural” na Criação Cênica (Luiz Carlos Costa Sarto) ..........................107 A atmosfera cênica: Estruturação e ampliação deste conceito (Robison Breno) .....................................................................113 Tempo, ritmo e teatralidade O Tempo-ritmo de Stanislávski e Grotowski: formas de trabalho na pesquisa do ator (Adriana da Silva Maciel) .........123 Por uma poética política: a presença e o ankoku butoh (Bárbara Carbogim) ...............................................................131 O que é Teatralidade? Da mitologia ao ritual e do ritual às origens do teatro grego (Bruna Massaro) ...........................139 Da palavra mítica à palavra dialogada: Confluências entre as origens do Teatro e da filosofia na Grécia antiga (Dalila David Xavier) ..............................................................147



Dramaturgia e quest천es da cena contempor창nea



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CORPO DESEMBESTADO: O DEVIR-ANIMAL, O TEATRO DA CRUELDADE E SUAS AFECÇÕES Matheus Silva Orientadora: Luciana da Costa Dias Mestrado Acadêmico, UFOP, Bolsista da UFOP

Elementos inventivos, mutativos numa variação e metamorfose contínua. Transversalidades, atuações não limitadas por quadriculamentos re-inventam o socius, provocam novas ordens, intempestivas, extemporâneas. Movimentos desviantes a fim de provocar erosões dos contornos, dissolver os sujeitos e convidá -los para um deserto povoado por intensidades. Desembestar, soltar-se, perder o freio do pensamento, correr impetuosamente rumo ao desconhecido; corpo-arrebatado, descomedido. Mas como produzir um corpo desembestado? A arte da performance, como trata Denise Pedron, “provoca um questionamento da arte em sua relação com a cultura, com a vida; e talvez artistas recorram a ela como maneira de romper categorias e indicar novas direções” (PEDRON, Denise. 2013, p.158), ou seja, trata-se de uma atividade que deslocar o lugar da arte na vida cotidiana, a fim de aproximar estas relações. Renato Cohen colabora, afirmando que: Apesar de sua característica anárquica e de, na sua própria razão de ser, procurar escapar de rótulos e definições, a performance é antes de tudo uma expressão cênica: um quadro sendo exibido para uma plateia não caracteriza uma performance; alguém pintando esse quadro, ao vivo, já poderia caracterizá-la. (...)A performance está ontologicamente ligada a um movimento maior, uma maneira de se encarar a arte; a Live art. A Live art é a arte ao vivo e também a arte viva. É uma forma de se ver arte em que se procura uma aproximação direta da vida, em que se estimula o espontâneo, o natural, em detrimento do elaborado, do ensaiado. A | 13


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live art é um movimento de ruptura que visa dessacralizar a arte, tirando-a de sua função meramente estética, elitista”. (COHEN, Renato, 1989, p.28, 38)

A arte da performance se contrapõe à noção da construção de uma narrativa lógica e linear, propondo uma experiência que se faz imediata na afetação entre performer, público e espaço, interrogando a fronteira entre arte e vida, colapso e criação. É nesta relação insólita que se dá o próprio evento performático. Sendo assim, a partir de Cohen e Pedron, é possível pensar a performance como uma prática processual inventiva que não se prende a limites fronteiriços entre pensamento e corpo ou mesmo arte e vida. Tania Alice intensifica um olhar sobre a aproximação da performance com a Live art: Nesse sentido, podemos observar (...) uma diluição entre a vida cotidiana e a arte, um apagamento das fronteiras entre essas duas instâncias que acabam se fundindo nessas propostas apresentadas por um artista, que se mostra como um canal para uma presença compartilhada. Interdisciplinar, transformadora, transgressiva, a performance, além de se cunhar como linguagem artística, apresentase, mais do que como uma disciplina artística, como uma indisciplina que amplia fronteiras, abre horizontes, rompendo com códigos representacionais preestabelecidos, afirmando-se como linguagem artística independente (...). (ALICE, Tania. 2013, p.38,39)

O performer é aquele que, na emergência do novo, salta para fora do enclausuramento das leis do mundo, compartilha experiências-limite e aventura-se em zonas incertas. A performance pode ser apreendida, para além das deduções e emoldurações, enquanto instrumento de transposição dos domínios tidos como próprios, lançando o corpo para a urgência do agora. Conforme Clarissa Alcantara, (...) o que se sabe é que na e pela performance algo maquina, molecularmente, e o que resta são microanálises produzidas e produzindo o que, nela e dela, se maquina. (ALCANTARA, 14 |


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Clarissa. 2011, p.12). A performance trata, sobretudo, de um exercício errante cuja estratégia subversiva de deslocamento do pensamento lógico desaloja o corpo dos lugares já conhecidos e o conecta a diferentes campos de forças, questionando suas potencialidades para acessar uma “novidade”, um acontecimento. Para isto, é preciso desmanchar o “eu” cristalizado para que outras forças ganhem corpo, para que então os devires1 possam se atualizar. Eis o pensamento da carne, o mesmo esplendor e vida do ato, o acontecimento que se encontra também no teatro ritual de Antonin Artaud. As investigações de Antonin Artaud, artista francês que viveu no início do século XX, sobre uma prática teatral eram uma tentativa de desqualificar o uso discursivo da linguagem pelo ator, uma tentativa de expressar a plenitude da experiência e das emoções humanas, promovendo um diálogo sensível com a plateia. Em sua obra “O teatro e seu duplo”, Artaud afirmava que a vida é crueldade, mas também, que não existe crueldade sem consciência. A crueldade da vida pertence então ao ser consciente, ao homem. Um animal, mesmo carnívoro e violento, não é em nada cruel. E o instinto do tigre não é crueldade. A crueldade, no sentido de Artaud, encontra a sua origem na violência das situações. Existir, para o autor, é encontrar-se cruel, cru, fora2 de si, fora de seu ser e da evidência primeira da vida. A expressão “um Teatro da Crueldade” refere-se a um teatro que atinge uma multidão de espectadores com o mesmo horror Para Deleuze e Guattari, “devir” já implica uma mutação. “Devenir” é, na língua francesa, “tornar-se”; mas tornar-se o que? Tornar-se outro, outro que não o homem. Quando Deleuze e Guattari tratam de “homem”, não estão se referindo ao gênero, nem à espécie: “homem”; para os autores, trata-se de uma forma. Forma homem: uma forma de pensar, um modo de experimentar o mundo e as coisas, de viver, de pensar. O devir é sempre minoria, trata-se de tornar-se outra coisa que não a forma homem. Ou tornar-se outra coisa que não a maioria. 2 Conforme Peter Pál Pelbart, sobre o fora: “Relação com o estranho, o estrangeiro, a alteridade, com aquilo que irremediavelmente estará fora, do meu tempo, da minha consciência, do meu eu, da minha palavra, do meu controle. Estará fora do meu mundo, de forma desconhecida, impessoal, na mais próxima distância, na mais ausente das presenças, como aquilo que excede o meu pensar, convulsiona o meu sentir, desarma meu agir.” 1

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da peste bubônica na Idade Média. Este teatro produziria um acontecimento entre ator e espectador, cujas emoções e afetações poderiam fluir livres de uma moral racionalista: Basta de jogos de palavras, de artifícios de sintaxe, de malabarismos formais; precisamos encontrar –agora – a grande Lei do coração, a Lei que não seja uma Lei, uma prisão, senão um guia para o espírito perdido em seu próprio labirinto. Além daquilo que a ciência jamais poderá alcançar, ali onde os raios da razão se quebram contra as nuvens (...) Não chamem demasiado nossa atenção para as cadeias que nos unem à imbecilidade petrificante do espírito. Nós apanhamos uma nova besta. (ARTAUD, Antonin. 1979, p.10,18 e 19)

Antonin Artaud propunha, através de um Teatro da Crueldade, um espaço de acontecimentos onde todos deviam atores e faziam parte do processo — por isso o Teatro da Crueldade é um ritual que valoriza o gesto e o objeto, confundindo o lugar de palco e a plateia. Esta desconstrução passaria pelo estímulo ao desequilíbrio e ao descontrole corporal e emocional do ator, desqualificando a supremacia de sua racionalidade a favor de sensações que o potencializaria, aumentando sua capacidade de produção/ criação. Artaud almejava transbordar os limites dos suportes tradicionais físicos e simbólicos para evidenciar um teatro cujos corpos presentes no acontecimento encontravam-se sempre a favor de sensações que rompiam com instituições padronizadas, fixas ou que buscavam se fixar. Ao radicalizar o lugar do teatro, Artaud é a favor de um contágio: É por isso que no Teatro da Crueldade o espectador fica no meio enquanto o espetáculo o envolve. (Op. cit, p. 92). Instantes movediços promovidos por um teatro funcionando como a peste, por intoxicação, por infecção. Artaud apostava em uma intraduzível materialidade cênica, para além de um enredo, uma cena do arrebatamento, do furor: Um teatro que, abandonando a psicologia, narre o extraordinário, ponha em cena conflitos naturais, forças naturais e sutis, e que se apresente antes de mais nada como 16 |


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uma excepcional força de derivação. (Op. cit, p.93). Para Artaud, o corpo do ator ou daquele que pratica o Teatro da Crueldade desorganiza suas formas primárias, enquanto releva traços de animalidade que o faz contrair e dilatar. Corpos que ultrapassam os contornos a partir de um movimento migratório entre homem e animal; um corpo que, intensificando sua intuição e instintos, caminha pelas coisas não-ditas, vai além dos signos já inventados, ao encontro das coisas em seu estado provisório. Um devir-animal? Para Deleuze e Guattari: Os devires-animais são, antes, de uma outra potência, pois eles não têm sua realidade no animal que se imitaria ou ao qual se corresponderia, mas em si mesmos, naquilo que nos toma de repente e nos faz devir, uma vizinhança, uma indiscernibilidade; que extrai do animal algo de comum, muito mais do que qualquer domestificação, qualquer utilização, qualquer imitação: “a Besta”. (DELEUZE, G.; GUATTARI, F. 1995, p.72.)

O Devir-animal não se trata de uma atividade onde se imitaria uma fúria animal, a fim de atingir uma forma animal no homem. O que acontece é um campo de indefinição entre ambos. Para Deleuze e Guattari, quando a vida encontra-se nesta atividade, está atravessada por singularidades anônimas, nômades, selvagens, impessoais3. É nesta atividade intensiva que o corpo se potencializa e convoca os bandos e suas regiões estrangeiras. De acordo com Renato Machado: Devir não é atingir uma forma; é escapar de uma forma dominante. Devir também não é metafórico, não se dá na imaginação, nem diz respeito a um sonho, a uma fantasia. O devir é real. Não no sentido de que, ao devir alguma coisa, alguém se torne realmente outra coisa, como Conforme o pesquisador Elton Luis: (...)agir a partir do impessoal nada tem haver com um não tomar posição perante o que acontece; ao contrário, agir a partir do impessoal é efetuar uma seleção, é afirmar, naquilo que acontece, a nossa potência de resistir ao acontecimento-morte nas suas mais variadas faces, sobretudo aquelas faces que se apresentam nas máquinas de tirania e tristeza.”

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um animal. É o próprio devir que é real, e não o termo ao qual passaria aquele que se torna outra coisa. O devir é animal sem que haja um termo que seria o animal que alguém se teria tornado. O devir animal do homem é real sem que seja real o animal que ele se torna”. (MACHADO, Roberto. 2009, p.213.)

Um corpo que não aguenta mais as medidas que o coagem por fora e por dentro, sejam os controles advindos da razão, das disciplinas ou da sua própria subjetividade, traça uma linha de fuga4, esgarçando lugares, dissolvendo fronteiras e binarismos: o devir-animal é apenas uma etapa para um devir-imperceptível mais profundo. (DELEUZE, Gilles. 2007, p.35.) Quando este corpo atua no mundo, arrastando nele e com ele um movimento ininterrupto de sensações, perceptos e afectos intensivos, reativa-se a vida em sua potência produtora: Os perceptos não mais são percepções, são independentes do estado daqueles que o experimentam; os afectos não são mais sentimentos ou afecções, transbordam a força daqueles que são atravessados por eles. As sensações, perceptos e afectos, são seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido. (DELEUZE, G.; GUATTARI, F. 2005, p. 213).

Afectos e perceptos, em Deleuze e Guattari, passam por uma via de mão dupla. Tratam-se de ressonâncias, da experiência enquanto ela se faz, de uma propriedade sem significação. Nós a atingimos no momento em que as significações ficam suspensas. Nesse sentido, não é que uma coisa ou pessoa se transforma em outra. Os perceptos e afectos não correspondem às percepções e afecções de um sujeito; são extraídas do plano de imanência/vibratório/ intensivo onde todas as formas se desfiguram e se deformam de n maneiras. Funciona capturando forças e as tornando expresso Traçar uma linha de fuga é, para Deleuze e Guattari, um “fazer fugir” a fim de um funcionamento.

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corporalmente, e não buscando um sistema representativo de histórias de uma vida privada (um sujeito). Tal ressonância implica um corpo a corpo puramente “energético”. Trata-se de algo que se passa “entre”. Esse algo é a sensação. É preciso que uma força se exerça sobre um corpo para que haja a sensação. A sensação é o resultado de uma violência, é uma sensação violenta. (...) Usando os termos “afetos”, “sensações” e instintos, Deleuze pensa os afetos como um misto de sensações e instintos, chamando de sensação aquilo que determina os instintos em determinados momentos e de instinto a passagem de uma sensação a outra. Ideia que, no fundo, é retomada da distinção já feita por Deleuze nos livros sobre Espinosa com os termos afecção e afeto, as afecções sendo os estados dos corpos provenientes da ação de outros corpos sobre eles, os afetos, as variações contínuas desses estados em termos de aumento e diminuição. O movimento não explica a sensação, os níveis de sensação; ele se explica ela elasticidade da sensação, sua vis elástica, sua força elástica. Neste sentido, sensação é vibração. (MACHADO, Roberto. p. 237, 238.)

O funcionamento presente nesta dimensão dos devires e dos blocos de sensações no corpo implica na instauração de um agenciamento, em uma circulação de afetos impessoais, em uma corrente alternativa que anula diferentes tentativas de fixação e padronização, tumultua os projetos significantes e os sentimentos subjetivos. A sensação como um instante, uma força transbordante de sentidos, que delira o pensamento, o mundo. Tanto um performer, quanto um ator, em suas produções partem de um campo de sensações, blocos de sensações, a partir do qual se formam novos objetos estéticos em um devir co-extensivo dos objetos e da subjetividade. Inserem as formas, os códigos, as expressões, os territórios e os estratos numa produção intensiva que não cessa de descodificar-se, desterritorializar-se, dessubjetivar-se e de se desestratificar. Trata-se de uma produção que não representa o real, experencia o sensível enquanto única via de | 19


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acesso a uma invisível nudez do real, elucidando uma diferença que não se deixa enquadrar. Deleuze e Guattari defendem que no espaço de produção, o que interessa é produzir um mundo, escrever as forças, a imanência, as “ondas”. Através do Teatro da Crueldade proposto por Antonin Artaud, e pela arte da performance, um corpo desembestado vivencia um estado intensivo, o pensamento e a percepção forçados a pensar o impensável, a perceber o imperceptível a partir de um campo de sensações bastante caótico. Uma atividade que provoca um caos nas estruturas padronizadas, a fim de germinar, a partir dele, infinitas novas atualizações. Um “desembestamento” como potência de deslocamento atravessado por novos perceptos e afectos, um corpo desembestado habitado por uma força de transformação, por uma metamorfose contínua. Forças criadoras/produtoras que movem o pensamento, cruzam linhas segmentárias que tocam dimensões singulares, dilatam e retraem corpos, mobilizam e desmobilizam sentidos, produz mutações na superfície do corpo. Um corpo enfim capaz de propiciar que efetuações se atualizem por variação contínua, heterogêneses, transversalidades e funcionamentos maquínicos como acontecimentos, devires e invenções de novos regimes de signos, novas estratificações, novas territorializações rizomáticas existenciais, em suma, novos estilos de vida produtivo-revolucinário-desejantes, novas utopias ativas capazes de alterar normas estabelecidas. Uma produção performática desembestada que se agencia povoada por distintas intensidades e sensações, onde a vida é força produtora, e toda produção é afirmação da vida. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALCANTARA, Clarissa de Carvalho. Corpoalíngua: Performance e esquizoanálise. Curitiba: Editora CRV, 2011. ALICE, Tania. Diluição das fronteiras entre linguagens artísticas: a performance como (r)evolução dos afetos. In Palco Giratório: Circuito nacional/ Sesc, Departamento Nacional. Rio de Janeiro: Sesc, Departamento Nacional, 2013. ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes,

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1993. ______,________, Cartas aos poderes. Porto Alegre: EVM, 1979. COHEN, Renato. Performance como Linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1989. DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: Lógica da sensação. Tradução Roberto Machado (coordenação). Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2007. ______,________, Lógica do Sentido. Tradução Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? Tradução de Bento Prado Jr. E Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: editora 34, 2005. ______,________, Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. 2. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora 34, 2008. ______,________, Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia v.4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 2008. LUIZ, Elton. Letra G, de Gilles. In: CRUZ, Jorge. (Org). Gilles Deleuze: sentidos e expressões. Rio de Janeiro: Editora Ciência Moderna Ltda. 2006. MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. PEDRON, Denise. Performance e escrita performática. In: Cadernos de subjetividade/ Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos Pós-Graduados em psicologia Clínica São Paulo: O Núcleo, 2013. PELBART, Peter Pál. Da clausura do fora ao fora da clausura: loucura e desrazão. São Paulo: Iluminuras, 2009.

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A PERFORMATIVIDADE COMO UM ELEMENTO DESTERRITORIALIZADOR NA ENCENAÇÃO CONTEMPORÂNEA

Paulo Maffei (Paulo Ricardo Maffei de Araujo) Orientadora: Elvina Maria Caetano Pereira Mestrado, UFOP, bolsista CAPES

Percebemos ao longo de todo o século XX a consolidação do conceito de encenação, assim como uma grande discussão – tanto no âmbito artístico como acadêmico – acerca da encenação com relação ao teatro. Discussões estas que enfatizam a noção de comunicação e construção cênicas como forma de manifestação da arte teatral. A encenação, pelo menos aquela consciente de si mesma, surgiu quando parecia ser necessário mostrar no palco de que maneira o encenador poderia indicar a forma de ler uma obra dramática, que se tornou muito complexa para ser decifrada de maneira única, por um público homogêneo. A encenação dizia respeito, nessa circunstância, a uma obra literária, e não importa a qual espetáculo visual. Ela surgiu num momento de crise da linguagem e da representação, uma crise como tantas outras que o teatro conheceu. (PAVIS, 2010, p.45)

A noção de encenação, para o teatro, possibilitou a passagem da compreensão deste como algo que se configurava a partir do texto teatral, como o principal meio de comunicação, para a percepção de todos os elementos cênicos como constituintes da construção do discurso cênico. Neste sentido, a ideia de encenação apresenta uma nova forma de conceber o teatro, criando assim uma abertura para a composição cênica lançando novas perspectivas ao público5. Roubine ao se referir ao público explicita a mudança de perspectiva deste com relação ao teatro: | 23


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Antigamente, eles iam ver (ouvir) uma peça (um texto) e os seus interpretes. Hoje, eles vão ver antes de mais nada uma mise-en-scène, ou seja, um complexo do qual o texto e os interpretes são apenas elementos integrantes. (ROUBINE, 1998, p.42)

Inaugurada esta nova forma de conceber a arte teatral, vimos inúmeros encenadores e teatrólogos se dedicaram a desenvolver e experimentar formas e proposições de composição cênica, fundando inúmeras possibilidades de relação com espaço, tempo, texto, público, novas perspectivas para o trabalho do ator, entre outras, fazendo-nos conceber o teatro como uma linguagem artística com contornos muito mais complexos do que outrora se considerava. Diante destas novas perspectivas, advindas do surgimento da encenação, e passado todos os direcionamentos e contribuições do teatro moderno6, nos encontramos diante da chamada pós-modernidade e da cena contemporânea. É a partir desta que nos aparece um primeiro questionamento: O que está em jogo na encenação contemporânea? Ou ainda: Como a encenação contemporânea tem articulado os seus enunciados7 cênicos? São vários posicionamentos e apontamentos acerca das possíveis respostas, uma vez que não seja possível uma definição Bernard Dort apresenta uma consideração bastante relevante acerca do público como um dos dispositivos para o surgimento da encenação: “É porque, diante de um público variado e em constante modificação, a obra não mais possui uma significação eterna, mas exclusivamente um sentido relativo, vinculado ao lugar e ao momento, que a intervenção de um em encenador se tornou necessária”. DORT, B. “Condição Sociológica da Encenação Teatral”, in: O teatro e sua realidade, São Paulo: Editora Perspectiva, 1977, p. 97. 6 Estamos levando em consideração, os inúmeros acontecimentos que fizeram florescer o teatro moderno, como: o surgimento da iluminação elétrica, novas possibilidades de utilização de cenários e figurinos entre outros, assim como as proposições conceituais, dos simbolistas e dos naturalistas, e a posteriori, os apontamentos de encenadores como Stanislavki, Meyerhold, Artaud, Brecht, Grotowski entre outros, que ainda hoje são referências no fazer e no pensar teatral ocidental. 7 A noção de “enunciados” cênico aqui explicitada parte da afirmativa já apresentada, de que o conceito de encenação, consolidado pela tradição teatral, possibilitou compreendermos que a comunicação no espetáculo teatral transborda o texto dramatúrgico, e nesse sentido utilizaremos o termo “enunciados” nos referindo aos agenciamentos dos elementos que compõem a encenação. 5

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plena para tal indagação. Porém, uma consideração acerca deste questionamento nos parece consistente: o teatro tem estabelecido uma forte relação com a arte da performance e com a performatividade. Segundo Féral: Entretanto, se há uma arte que se beneficiou das aquisições da performance, é certamente o teatro, dado que ele adotou alguns dos elementos fundadores que abalaram o gênero (transformação do ator em performer, descrição dos acontecimentos da ação cênica em detrimento da representação ou de um jogo de ilusão, espetáculo centrado na imagem e na ação e não mais sobre o texto, apelo à uma receptividade do espectador de natureza essencialmente especular ou aos modos das percepções próprias da tecnologia...). (FÉRAL, 2008, p.198)

Levando em consideração a afirmação de Féral sobre a utilização da performance por parte do teatro, e as questões intrínsecas a esta disciplina, qual seja, a de romper territórios e fronteiras, a priori, considerados distintos, nos parece seguro pensar que novas estruturas se apresentam à ideia de encenação. Antônio Araújo8 evidencia este pensamento: O Caráter multidisciplinar, de cruzamentos de diferentes linguagens artísticas, tão axial na performance, é também prática recorrente na encenação atual, que se alia, cada vez mais, às artes plásticas, à dança, à música, e ao cinema. (SILVA, 2008, p. 183)

É justamente neste ponto, em que a encenação tem se contaminado com algumas das características da performance que surge o tema central da abordagem desta comunicação, com o qual propomos desenvolver alguns apontamentos acerca do estudo da encenação e seus desdobramentos na cena contemporânea. Utilizaremos o nome artístico Antônio Araújo, quando fomo citar “Antônio Carlos de Araújo Silva, por ser esta a forma que o mesmo é conhecido artística e academicamente.

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O recorte e a problematização desta – e que vem sendo desenvolvido em nossa pesquisa de mestrado – encontra-se na busca de compreender o investimento na performatividade, por parte da encenação contemporânea, como um dos elementos constituintes na formulação dos enunciados cênicos e logo na sua forma de comunicação. Diante da problematização exposta à cima, utilizamo-nos do operador conceitual intitulado “teatro performativo” apresentado por Josette Féral, no qual a pesquisadora irá fazer importantes considerações acerca da performance, e a forma como esta tem atravessado a linguagem teatral. De fato, se é evidente que a performance redefiniu os parâmetros permitindo-nos pensar a arte hoje, é evidente também que a prática da performance teve uma incidência radical sobre a prática teatral como um todo. Dessa forma, seria preciso destacar também, mais profundamente, essa filiação que opera uma ruptura epistemológica nos termos e adotar a expressão “teatro performativo”. (FÉRAL, 2008, p.200)

O conceito “teatro performativo9”, apresentado por Féral, busca compreender características acerca do teatro contemporâneo. Segundo a pesquisadora muitas questões intrínsecas ao teatro hoje tem uma forte relação com a ideia de performance, pois a forma do teatro dramático – que, em sua estrutura linear dos acontecimentos cênicos visando à apresentação de uma narrativa fabular, contada por meio de personagens bem definidos em seu caráter psicológico – como forma única vem, há algum tempo, se enfraquecendo na produção teatral contemporânea. Contudo, Féral prefere não apontar o fim do drama, mas sim, abrir questioImportante ressaltar que Féral, no ensaio onde apresenta esta noção de “teatro performativo”, parte da performatividade pensada a partir de “duas visões de performance – uma herdada da vanguarda e da arte da performance [...] a outra herdada de uma visão antropológica e intercultural com a qual Schechner contribui fortemente para sua difusão – os dois grandes eixos a partir dos quais podemos pensar o teatro – e, mais amplamente, as artes – hoje”(grifo do autor). (FÉRAL, 2008, p.200)

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namentos sobre a estrutura dramática10. O que irá sustentar o estudo de Féral é a ideia de que um espetáculo se configura num jogo de relação e/ou tensão entre teatralidade e performatividade, pois para a pesquisadora a teatralidade é o que permite ao espectador reconhecer, por meio de convenções e referências socioculturais, que está diante de uma ficção, já a performatividade, intrincada com os elementos da performance, tem a intenção de desarticular esses “acordos” prévios, colocando o espectador, mesmo que por instantes, dentro da ação. Féral ao descrever um trecho de um espetáculo, parece ilustrar essa relação/tensão entre performatividade e teatralidade: O ato performativo se inscreveria assim contra a teatralidade que cria sistemas, do sentido e que remete à memória. Lá onde a teatralidade está mais ligada ao drama, à estrutura narrativa, à ficção e à ilusão cênica que a distancia do real, a performatividade (e o teatro performativo) insiste mais no aspecto lúdico do discurso sob suas múltiplas formas – (visuais ou verbais: as do performer, do texto, das imagens ou das coisas). (FÉRAL, 2008, p. 207)

Apresentada a noção de teatro performativo, gostaríamos de articulá-la ao conceito de encenação, buscando pensar numa “encenação performativa”. Neste sentido a proposta é a de pensarmos a encenação como um território já consolidado no que compete à pesquisa e a prática teatral contemporâneas, porém entendendo o território tomando de empréstimos a definição de Gilles Deleuze e Félix Guattari: Nos parece importante salientar que a nomenclatura “teatro performativo” defendida por Féral além de apresentar uma forma de lermos o teatro contemporâneo, busca discutir o termo “Teatro pós-dramático cunhado por Hans Thies-Lehmann, o qual, Féral acredita carregar a ideia de que o drama teria sido superado. Para a pesquisadora tal ideia “constitui um horizonte de espera mais que uma realidade, na medida em que é impossível para uma forma teatral, qualquer que ela seja, de escapar à narratividade e, de fato, à representação”. Neste sentido Féral acredita que seja mais justo utilizarmos o termo teatro performativo em oposição ao de Teatro pós-dramático.

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O território não é primeiro em relação à marca qualitativa, é a marca que faz o território. As funções num território não são primeiras, elas supõem antes uma expressividade que faz território. É bem nesse sentido que o território e as funções que nele se exercem são produtos da territorialização. (DELEUZE; GUATARI, 1997, V.4, p. 122)

O território tal qual a concepção supracitada circunscreve o campo “do familiar e vinculante”, pois marca as distâncias em relação a outrem. Nos parece interessante pensar a encenação como um território, pois esta se apresenta como um espaço de enunciação, na qual as mais diversas funções são produtos de territorialização. Porém esta noção de território, não é pensada como um espaço fixo, ou seja, há uma complexa movimentação neste espaço. Esta movimentação existente no território é apresentada pelos autores como agenciamento. O agenciamento “pressupõe, de modo geral, dois eixos: o primeiro, ligado ao conteúdo e à expressão, e o segundo, ao território e a desterritorialização” (SILVA, 2008, p. 198). Sobre o primeiro eixo, Araújo nos apresenta uma relação com a encenação bastante interessante: Assim o eixo conteúdo/expressão parece traduzir uma possibilidade de composição do território da encenação, como agenciamento, por um lado de atuadores – que se inter-relacionam, se conectam ou se “maquinam” por meio de ações e de afetos – e, por outros, de enunciados cênicos coletivos. A territorialidade da encenação se funda, ela também, nesta simultaneidade de conteúdo e expressão. (SILVA, 2008, p. 198)

Neste sentido, pensar a encenação neste eixo conteúdo/expressão nos permite compreender quais são as suas marcas territorializadoras, ou seja, de que maneira são articulados os elementos cênicos, assim como as ações cênicas, e por outro lado os enunciados construídos pelo território. Já o segundo eixo do agenciamento está ligado ao território 28 |


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e sua desterritorialização, suas “linhas de fuga” que fazem com que os enunciados transbordem ao território, escapando a este, e promovendo assim uma desarticulação do mesmo, o que não significa necessariamente abandonar o território. Mas uma outra questão parece interromper esta primeira, ou cruzá-la, pois em muitos casos uma função agenciada, territorializada, adquire independência suficiente para formar ela própria um novo agenciamento, mais ou menos desterritorializado, em vias de desterritorialização. Não há necessidade de deixar efetivamente o território para entrar nesta via; mas aquilo que há pouco era uma função constituída no agenciamento territorial, torna-se agora o elemento constituinte de um outro agenciamento, o elemento de passagem a um outro agenciamento. (DELEUZE; GUATARI, 1997, V.4, p.133)

Assim nos parece pertinente pensar a performatividade como um elemento desterritorializador na encenação contemporânea, pois ao considerarmos a encenação como um território, no qual são agenciados diversos elementos cênicos que constituem um enunciado, a proposta aqui é a de pensar como a performatividade desterritorializa a encenação interferindo na composição deste enunciado, ou ainda, reterritorializando este a partir deste novo elemento. Podemos enxergar esta desterritorialização numa passagem do ensaio de Féral, no qual a pesquisadora fala sobre a descrição dos fatos e sobre a ação do performer no espetáculo performativo, e sugere que estas sejam agentes de desconstrução dos códigos da encenação e que portanto: Essa desconstrução passa por um jogo com os signos que se tornam instáveis, fluidos forçando o olhar do espectador a se adaptar incessantemente, a migrar de uma referência à outra, de um sistema de representação a outro, inscrevendo sempre a cena no lúdico e tentando por aí escapar da representação mimética. O performer instala | 29


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a ambigüidade de significações, o deslocamento dos códigos, os deslizes de sentido. Trata-se, portanto, de desconstruir a realidade, os signos, os sentidos e a linguagem. (FÉRAL, 2008, p.203)

Nos parece evidente considerar aqui a performatividade como um elemento desterritorializador da encenação, pois ao invés de unificar os seus sentidos, como ocorria em outrora, agora a encenação se estilhaça sugerindo inúmeras possibilidades de leitura para o espectador. Diante desta constatação acerca da relação entre teatro e performance a opção de trazermos para essa discussão as noções de teatro contemporâneo, apresentados por Josette Féral, as quais ela intitula de “teatro performativo”, nos parece bastante consistente, pois dentro deste a pesquisadora aponta para as noções de teatralidade, tão cara a encenação, como o da performatividade que vêm sendo pensadas como forma de compreensão do teatro contemporâneo Acrescento que nas, colocações em situação“ [mises en situation] que os espetáculos performativos instalam, é a inter-relação, conectando o performer, os objetos e os corpos, que é primordial. O objetivo do performer não é absolutamente o de construir ali signos cujo sentido é definido de uma vez por todas, mas de instalar a ambiguidade das significações, o deslocamento dos códigos, o deslizamento de sentido. (FÉRAL, 2008, p. 205)

Este “deslocamento dos códigos” e o “deslizamento de sentido” podem ser pensados como esta desterritorialização da linguagem cênica, apontada aqui, lançando-a para outras possibilidades estéticas, criando assim uma “linha de fuga” daquilo que até então se pautava pelo conhecido e organizado de maneira semiótica. Por fim, ao levarmos em consideração que o pós-estruturalismo instaura uma teoria da desconstrução e uma abordagem mais aberta no que diz respeito à diversidade de métodos e que ainda enxerga o significante e o significado como inseparáveis em con30 |


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traste com o estruturalismo, que afirma a independência e superioridade do significante em relação ao significado, a utilização dos conceitos de Deleuze e Guattari nos permite traçar uma cartografia acerca da encenação contemporânea gerando apontamentos para a leitura e compreensão da mesma de forma não totalizadora, mas sim respeitando toda heterogeneidade de suas produções, assim como as singularidades de seus enunciados cênicos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. V.4, Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. DORT, B. “Condição Sociológica da Encenação Teatral”, in: O teatro e sua realidade, São Paulo: Editora Perspectiva, 1977. FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. In: Revista Sala Preta, São Paulo, nº 8, 2008. p. 197-210. Tradução: Lígia Borges. PAVIS, Patrice. Dicionário do Teatro. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001. ______. A encenação Contemporânea: origens, tendências, perspectivas. São Paulo: Perspectiva, 2010. ROUBINE, Jean-Jaques. A linguagem da Encenação Teatral. Rio de janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1998. SILVA, Antonio C. de Araújo. A encenação no Coletivo: desterritorializações da função do diretor no processo colaborativo. 2008.222 f Tese (Doutorado) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo 2008. ZOURABICHVILI, François. O Vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 200

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DRAMATURGIA RAPSÓDICA: NO ÂMBITO DO MONSTRO Phelippe Celestino Orientadora: Elvina Maria Caetano Pereira Iniciação Científica, UFOP, PROBIC-FAPEMIG

Mais do que espaço de reflexão e autoanálise, o 1º Seminário do PPGAC-IFAC-UFOP e DEART-UFOP fez-se como ambiente de estímulo e desequilíbrio em torno daquilo que tenho pesquisado nos últimos anos da graduação, que iniciou mais definitivamente no primeiro projeto de Iniciação Científica (TEXTURAS: Laboratório de Textualidades Cênicas Contemporâneas), encerrado em fevereiro desse ano, antecessor do atual projeto de pesquisa, também de IC, ESCRITÚDIO: Ateliê de escrita teatral. Diante disso, a fim de preservar a memória da própria fala enunciada no evento, decidiu-se manter o mesmo texto, criado para a comunicação, para a publicação nos Anais, acrescentando apenas alguns pontos levantados no presente da discussão, e que acredito serem pertinente para um maior entendimento da pesquisa. ***** Primeiramente gostaria de agradecer a todos que trabalharam e colaboraram para nos proporcionar esse momento, que me parece profícuo e muito pertinente, quando vivo os últimos instantes da graduação, e que numa troca científica com colegas mestrandos e demais pesquisadores, posso começar a vislumbrar lugares possíveis e desejos vindouros. Pensando no que poderia vir a ser minha fala – ou melhor, minha comunicação – me deparei com questões acerca do que ultimamente tenho vivenciando dentro da sala de ensaio e nas conversas com minha orientadora, a professora Nina Caetano. O tema refere-se diretamente ao universo que corresponde o conceito de rapsódia (SARRAZAC, 2002), cunhado pelo dramaturgo, professor e ensaísta francês Jean-Pierre Sarrazac e tratado com | 33


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profundidade em “O Futuro do Drama”, que conta com uma edição portuguesa de 2012 da Editora Campo das Letras. Dentro do universo rapsódico tem um campo específico no qual ultimamente tenho me debruçado, a saber, a esfera que possui relações diretas com a materialidade cênica, aspecto inerente ao que o próprio conceito propõe. Assim sendo, exponho a vocês o que tenho entendido como escrita cênica. Quando digo escrita, busco entender um sentido de gesto, de movimento de escrita, o que pressupõe um escritor, e nesse caso um artista, que através das palavras, sua ferramenta por excelência – que se assemelha a luz, no caso do iluminador – inscreve um discurso sobre um papel, que para nós é a cena. Nesse sentido, ator, encenador, dramaturgo, cenógrafo, figurinista e outros que tais, são escritores cênicos, visto que é através de diversas escritas, ou seja, de vários discursos, que a cena se constrói. O que por fim forma um texto a se lido pelo leitor. No teatro chamamos esse texto de cena ou espetáculo, como queiram, e consequentemente o leitor de espectador. Diante disso, a cena é um emaranhado de textos, com diversas camadas e textualidades, múltiplas e heterogêneas. O teatro mostra-se assim um projeto híbrido e plural. Isso esclarecido, – ou seja, que na minha suposição todos os artistas se reconhecem como escritores teatrais – proponho uma breve e sucinta reflexão histórica diante daquilo que durante muito tempo entendeu-se como a única e principal noção de texto e escrita no teatro: o conceito de drama. Uma questão levantada na discussão do Seminário referia-se justamente ao que tal conceito – o de drama – tinha a ver com a minha prática, ou mais especificamente, com o meu objeto de pesquisa. Dessa forma, refletindo acerca da questão, entendeu-se que tal conceito, o de drama, na verdade abarca um complexo que compreende não apenas o gênero literário dramático, mas sim, toda a estrutura cênica e prática teatral, que ao utilizarem de diálogos, personagens, conflitos, intersubjetividades no presente, recaem sobre a tradição dramática e seus respectivos parâmetros de realização. Veremos adiante que trato disso sucintamente, quando menciono Lehmann e o fato de o mesmo acreditar que Drama compreende toda uma 34 |


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estrutura cênica característica, e não somente o texto. Devido ao tempo de minha fala, a meditação será um percurso curto, portanto poupemos julgar as abreviações e sínteses, que nesse caso se fazem minimamente necessárias. Após essa ligeira viagem no tempo, pretendo expor aquilo que tem me instigado ultimamente e que intitula essa comunicação, portanto, a dramaturgia rapsódica, e principalmente aquilo que tenho entendido por âmbito do monstro. A fim de não recorrer em negligências ou reducionismos, farei também uma breve passagem pelos pensamentos que concernem às teorias “crise do drama” e “teatro pós-dramático”. Seria descuido retratar nessa nossa discussão somente o conceito de rapsódia, sem citar as discussões que o contrapõem – ou melhor, divergem. Vale ressaltar que não há uma oposição rígida entre Peter Szondi (crise do drama) e Sarrazac (rapsódia), porém, devemos reconhecer que Sarrazac tem outro ponto de vista acerca da época que Szondi define como sendo a “crise do drama”, perspectiva essa que o autor francês explicita melhor na Introdução do “Léxico do Drama Moderno e Contemporâneo”, intitulada justamente de “Crise do Drama”. É fato dado que toda a história do teatro ocidental até os dias de hoje possui uma íntima relação do texto teatral com a forma dramática convencional, fundada na Antiguidade, recuperada no Renascimento e potencializada no Romantismo. Durante muitos séculos os termos teatro e drama foram sinônimos indissociáveis, o que não desqualifica, necessariamente, nenhum nem outro, e muito menos os caracterizam como imutáveis ou insolúveis. E como nos é sabido, a partir do final do século XIX e início do século XX tais paradigmas, estritamente dramáticos, são postos em xeque. Nessa esteira, o drama do século XVIII, denominado como Drama Burguês, calcou em nós, artistas do século XX e XXI, certo receio e preconceito com a própria estrutura dramática, e essa aparente hostilidade se potencializou substancialmente com as críticas a estrutura dramática contidas nos estudos Teoria do Drama Moderno, do célebre autor húngaro Peter Szondi, e Teatro PósDramático, do renomado diretor alemão Hans-Thies Lehmann. Tais escritos pressupõem – cada um à sua maneira e particula| 35


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ridade - definitivamente uma “morte” da forma dramática, e ruminam seu cadáver a fim de destituir sua pertinência, e a partir disso formular um novo gênero. Segundo Sarrazac, “para Szondi, a crise se explica por uma espécie de luta histórica em que o Novo, a saber, o épico, deve no fim triunfar sobre o Antigo, isto é, o dramático” (SARRAZAC, 2012, p. 24). Esse mesmo Szondi mencionado por Sarrazac é quem em Teoria do Drama Moderno diz: Na arte, a objetividade cientifica se torna, portanto, objetividade épica e penetra todos os estratos da obra teatral – sua estrutura e linguagem, bem como sua encenação: a ação que se processa no palco não preenche mais inteiramente a apresentação teatral, como ocorria no procedimento dramático, no qual o momento da apresentação teve, por isso, de sucumbir. Agora, ação é o objeto que o palco narra, e este com ela se relaciona como o narrador épico com seu objeto: da contraposição de ambos é que primeiro resulta a totalidade da obra (SZONDI, 2011: 117).

Porém, como o devir histórico pôde nos mostrar, até mesmo a realização plena desse teatro épico, preconizado por Szondi, e feita pelo renomado diretor e dramaturgo alemão Bertolt Brecht, não foi capaz de desvencilhar-se dos traços e/ou elementos dramáticos, sejam eles no âmbito do texto ou da cena. Isso se confirma ainda mais quando retomamos a própria denominação que Brecht incidiu sobre parte de suas dramaturgias, chamando-as de “drama épico”. Além disso, Lehmann esclarece o que quero dizer, quando argumenta que sua teoria de superação do drama se baseia numa estrutura composta pela total negação do dramático, em todas suas instâncias, até mesmo quanto à estrutura dialógica, o que ele considera ainda, diferentemente de Szondi, como vestígio da própria estrutura dramática. Desse modo, mais do que uma relação forma-conteúdo, Lehmann elucida uma renovação paradigmática nos alicerces mais profundos da prática teatral e de sua realização cênica. Segundo Sérgio de Carvalho, na apresentação da obra Teatro Pós-Dramático: 36 |


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Lehmann argumenta que a superação épica empreendida por um autor modelar como Brecht não implicaria uma plena mudança qualitativa em relação à tradição hegemônica do teatro, baseada no texto composto por diálogos entre figuras. Para dar sustentação a essa tese polêmica, o autor [Lehmann] faz uso de um conceito expandido de “drama”. Não se trata mais do drama burguês, baseado no diálogo intersubjetivo e na forma de um presente absoluto e contínuo, apresentado sem mediações externas por meio de figuras que agem de acordo com uma vontade autodeterminada. Dramático, para Lehmann, é todo teatro baseado num texto com fábula, em que a cena teatral serve de suporte a um mundo ficcional: “Totalidade, ilusão e representação do mundo estão na base do modelo “drama””. (CARVALHO, 2007, p. 9)

Tendo isso em vista, me parece que tais teorias, tanto o teatro épico como o teatro pós-dramático mostram-se um tanto quanto radicais e extremas; a segunda muito mais que a primeira, claro, mas ambas fundamentadas numa postura na qual somente uma perspectiva prevalece, agem assim em comunhão com a política que elas mesmas criticam e se opõem, ou seja, a política que rege a forma dramática tradicional, dotada de totalitarismo e absolutismo. Além disso, como nós, brasileiros, poderíamos levantar uma hipótese de teatro “pós-dramático” uma vez que no Teatro Brasileiro, que é o nosso contexto e seio teatral, jamais existiu uma tradição dramática como existiu na Europa, mais específicamente na Alemanha, no caso de Lehmann. No nosso país vimos nascer o teatro em formas por excelência de caráter híbrido e diverso, através de melodramas, comédias, dramas históricos e teatros de revista, manifestações que não se formulavam em gêneros literários restritos e se mantinham baseadas nos fatos sociais e numa potente revisão e crítica política em torna da sociedade da época. Numa cultura miscigenada como a nossa, o teatro nasce de uma antropofagia de gêneros e práticas teatrais, e não se restringe de forma alguma a forma dramática tradicional. Grandes | 37


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dramaturgos brasileiros como Martins Pena, José de Alencar, Plínio Marcos, Nelson Rodrigues, e tantos outros, não se ocupavam numa adequação à forma dramática absoluta, tal como concebida por Aristóteles e reformulada no Renascimento, com seu apogeu no século XVIII, com a ascensão da burguesia. Numa sociedade contemporânea como a nossa, que advoga – ou melhor, anseia - a diversidade, pluralidade e hibridez, é coerente que exista uma teoria que afirme a vigência de uma única estrutura teatral, seja ela épica ou pós-dramática? Tal suposição, repito, me parece incorrer naquilo que tais estruturas recriminam, ou seja, a pureza e realização de um único sistema e modo de se fazer teatro. Para que exista o aparentemente “novo” é preciso anular as aparentes diferenças? Em suma, o que coloco em questão é: a crise do drama tem que necessariamente ser superada pelo viés da morte do drama e tudo mais que lhe compõe? Entendendo esse “tudo o mais” assim como Lehmann, ou seja, a estrutura dialógica, a fábula, a ação, o personagem e coisas como tais. Ou melhor, a própria crise não é um status no qual o drama vem perdurando desde o final do século XIX até os dias de hoje? Não precisamos nesse instante responder essa questão, porém Sarrazac nos atenta para possíveis horizontes, quando explicita que: As decepções e ilusões da pós-modernidade – (...) espaço que pretende fechar esse lugar demasiado aberto, demasiado instável, demasiado “em crise” e “crítico” da modernidade – nos incitam, ao contrário, a manter esse conceito de crise em operação no seio da poética do drama. Substituindo, porém, a ideia de um processo dialético com início e, sobretudo, “fim”, pela ideia de uma crise sem fim, nos dois sentidos do vocábulo. De uma crise permanente, de uma crise sem solução, sem horizonte preestabelecido. De uma crise inteiramente em imprevisíveis linhas de fuga. (SARRAZAC, 2012, p. 32)

Além disso, o dramaturgo e pesquisador Felipe de Moraes, na sua apresentação do livro Léxico do Drama Moderno e Contem38 |


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porâneo, nos esclarece outra questão acerca dessa síndrome recorrente que gira em torno de uma suposta morte e consequente superação do drama. Recorrer a tal dialética histórica dos gêneros poéticos fundamentais numa dinâmica de crise e superação, como faz Szondi, insistindo na possibilidade de historicizar funcionalmente os gêneros da tradição ao despi-los de todos os seus conteúdos normativos e ao submetê-los a uma luta entre si em que as contradições surgidas dentro de um gênero antigo devem dar lugar a um gênero novo, seria entregar-se a uma análise teleológica da dramaturgia, a uma concepção que submeteria a história da arte ao mito do progresso, a uma dimensão sucessiva e evolutiva das formas que o grupo francês – composto pelos autores do Léxico – vê sedimentar-se na noção de teatro pós-dramático tal como formulada (e ao qual o Léxico se opõe) por Hans-Thies Lehmann. (MORAES, 2012, p. 13)

Trata-se, antes de tudo, de nos colocarmos a perceber a noção de drama como forma livre e independente, múltipla e heterogênea, capaz de agregar ao seu corpo as diversas linguagens que ao longo da história foram determinadas estritamente como gênero. Assim, o drama se faz como lugar de encontro dos diversos gestos de escrita e não mais se restringe unicamente ao gesto dramático tradicional. Diante disso, temos um terreno composto por diversas materialidades textuais distintas, mas que se confluem e dialogam no cerne do drama, ou seja, da forma dramática, ou sendo ainda mais claro, da escrita teatral. Desse ponto de vista, resultaremos no que poderíamos denominar, segundo Sarrazac, uma forma – ou melhor, uma superfície textual - híbrida: “estabeleçamos hoje as bases de uma estética contra naturam. E penetremos, sem medo, no antro do monstro” (SARRAZAC, 2002, p. 28). Quando Sarrazac utiliza o termo drama no título de sua obra O Futuro do Drama, é, segundo ele mesmo, para “emancipar-se definitivamente da noção de gênero” (SARRAZAC, 2002, p.27). Portanto, na esteira desse pensamento, me parece muito perti| 39


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nente ainda utilizar-se na sala de ensaio, gestos, procedimentos e mecanismos de origem dramática, colocando-os ora em justaposição com outros gestos e expressividades, outrora os entendendo como potencialidades provenientes das suas singularidades. Dessa maneira, na minha prática atual da sala de ensaio não temos almejado/ pesquisado incessantemente algo puramente “novo” ou “não-dramático”, pois entendemos, pelo menos a princípio, que podemos manipular as estruturas e componentes que concernem o conceito de Drama, e ao mesmo tempo, articular e experimentar também as outras conformações estéticas e expressivas oriundas do lírico e do épico. Dessa maneira, agora que estamos emancipados, podemos começar a entender a proposta de uma dramaturgia rapsódica, que no corpo agrega tanto a escrita dramática, quando a épica ou a lírica, e assim caminha não para uma resolução, ou superação dos elementos dramáticos, como o diálogo, a personagem ou a ação, mas sim para uma reciclagem e revisão de tais elementos. Desse modo, ao deslocarmos a concepção de drama da noção de belo animal, a aproximamos do monstro, adentramos em território de infinitas possibilidades, não mais buscamos a Mimesis, não nos subordinamos à natureza, não estamos mais a mercê da representação, nos desvencilhamos dos dogmas, dos paradigmas e das referências. Assim, a cristalização que a estética clássica engessou sobre a escrita teatral é substituída pela livre associação dos diversos elementos que compõem os gestos de escrita, ou ainda os modos poéticos. O desejo, como diz Sarrazac, é por “hibridações mais vastas: cruzamentos, já não entre gêneros literários historicamente delimitados (...), mas ente os grandes modos poéticos, que remetem para formas originais e estão dotados de um fundamento antropológico: o épico, o dramático e mesmo o lírico” (SARRAZAC, 2002, p. 54).

Diante disso, a escrita rapsódica almeja a hibridização, o entre, por meio de um movimento constante de costurar e ao mesmo tempo remendar, sem, no entanto, diluir/apagar as diferenças, e assim “a escrita rapsódica não apenas conduz a uma crise salutar do drama, como cria esse espaço privilegiado de confronto 40 |


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e tensionamento onde lutam e superpõem as formas” (HERSANT; NAUGRETTE, 2012, p. 154). A fim de não mais me prolongar, farei meus últimos apontamentos, que se localizam justamente no ímpeto dessa minha discussão sobre dramaturgia, e ainda mais, sobre a forma/estrutura dramática, utilizada brilhantemente por Sarrazac para se repensar o texto teatral contemporaneamente. Finalizando, acredito que a noção de rapsódia, aplica-se muito bem a prática teatral contemporânea, não somente na instância dramatúrgica, mas em todos os seus âmbitos, uma vez que encenador, iluminador, cenógrafo, figurinista vêm atuando como grandes promissores do gesto de escrita rapsódica, ou seja, de costurar, remedar, justapor e confrontar, cada qual com sua especificidade, os diversos discursos que compõem a cena, compondo assim um projeto cênico heterogêneo e polifônico. Numa perspectiva que se segue nessa trilha, no encalço de grandes teóricos como o tão aqui citado Jean-Pierre Sarrazac, que formula uma dramaturgia rapsódica, e convocando também a célebre diretora, atriz e pesquisadora brasileira Nara Waldemar Keiserman, que propõe um ator rapsodo, tenho me questionado sobre uma hipótese de encenação rapsódica. Enfim, isso foi uma pulga que há pouco tempo ocupou minha orelha, mas que começou a ser praticada na sala de ensaio com dois atores que participam de uma pesquisa que pretende vir a ser meu Trabalho de Conclusão de Curso em Direção Teatral. Dentro dessa pesquisa relativa à prática da sala de ensaio, ressalta-se a relevância que tem surgido diante dos procedimentos e mecanismos de caráter dramático, uma vez que eles, em justaposição e fricção com tantos outros de caráter diversamente épico e lírico, trazem à tona não a morte ou superação do drama, mas sim a importância concernente à atualização dos seus componentes, buscando emancipa-lo dos fantasmas burgueses que o rondam, que tentam torná-lo mais uma de suas propriedades. Por fim, para encerrar minha fala, gostaria de citar um fragmento textual escrito por Bernard Dort, sobre a obra de Sarrazac, e que muito tem me estimulado.

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O Futuro do Drama postula a possibilidade de um teatro onde texto e prática teatral se apoiam mutuamente, onde a representação se inscreve na raiz das nossas práticas sociais e onde, apesar de tudo, nunca nada é dito ou representado de uma vez por todas. (DORT, 2002, p. 21) Referências Bibliográficas CARVALHO, Sérgio de. Apresentação IN: Teatro Pós-Dramático. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2007. CELESTINO, Phelippe. Por uma Dramaturgia Colaborativa. Revista DAPesquisa, Santa Catarina, n. 11, p.77-91, abr. 2014. Disponível em: <http://www.ceart.udesc.br/dapesquisa/11/artigos/CENICAS_por_ uma_dramaturgia.pdf>. Acesso em: 04 out. 2014. HERSANT, Céline; NAUGRETTE, Catherine. Rapsódia IN: Léxico do Drama Moderno e Contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2012. LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-Dramático. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2007. MORAES, Felipe de. Apresentação IN: Léxico do Drama Moderno e Contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2012. SARRAZAC, Jean-Pierre. A Reprise. Rio de Janeiro: Revista Questão de Crítica (ISSN: 1983-0300), 2010. SARRAZAC, Jean-Pierre (Org.). Léxico do Drama Moderno e Contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2012. SARRAZAC, Jean-Pierre. O Futuro do Drama. Porto: Campo das Letras, 2002. ____________________. O Outro Diálogo. Porto: Editora Licorne, 2011. SZONDI, Peter. Teoria do Drama Moderno (1880-1950). São Paulo: Cosac Naify, 2011.

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Teatro e Sociedade Brasileira



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O AUTO DOS 99%: O POPULAR COMO ESTRATÉGIA POLÍTICA NA EXPERIÊNCIA DO CPC DA UNE Autor: Letícia Gouvêa Issene Orientador: Berilo Luigi Deiró Nosella Iniciação Científica, UFOP, Bolsita PIBIC-CNPq

O Auto dos 99% foi criado como parte da campanha pela Reforma Universitária, devendo servir de suporte às atividades mobilizadoras da massa estudantil em diversas regiões do Brasil. No Auto, cuja intenção era informar, denunciar e mobilizar, a forma épica não poderia ser desprezada. Os autores, de fato, optam por uma dramaturgia predominantemente épica, em que se misturam, novamente, propostas de Piscator e Brecht. A peça com o tema da reconstituição da história da universidade no país acaba por resgatar a história do Brasil como um todo. Os indígenas vivem em solidariedade. As desigualdades existentes no seio das sociedades ditas tradicionais dão lugar a uma idealização de suas relações sociais. Podemos identificar elementos típicos do teatro épico, como a própria inclusão do prólogo, de um narrador e canções, introduzindo assim quadros e procedimentos característicos de Brecht. Valendo-se de sua astúcia, o padre ganha a confiança dos índios, que o aclamam como Tupã, e logo os seduz com suas “bugigangas”. O Auto utiliza de gírias cotidianas e culturais para fazer essa transição entre texto e público, para criar uma aproximação com as camadas sociais com que pretendiam alcançar. O jesuíta anuncia que os índios devem trabalhar. Se os indígenas consistem em uma figuração da classe trabalhadora contemporânea, o padre passa a representar a elite brasileira. O fato de a economia mercantil ser introduzida por um doutrinador, como o jesuíta, mostra que a intenção é aproximar intelectuais e capitalistas como figuras-chaves do mesmo processo de dominação econômica e cultural. Com a entrada do novo personagem, o capitão donatário, a quem o padre anuncia que “os índios estão domesticados, come| 47


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ça o pagamento em farinha. Quando os índios descobrem que o pagamento foi reduzido à metade, já que “o preço do transporte aumentou”, pedem para rachar o pagamento, como de costume, mas dessa vez o Índio 1 recusa. Podemos visualizar a relação com as teorias marxistas, quando o valor de uso da força de trabalho é o trabalho, e uma vez que o trabalhador tenha sido empregado, o capitalista coloca-o para trabalhar. Mas o trabalho é a fonte de valor, e além disso, o trabalhador criará durante um dia de trabalho mais valor do que o capitalista paga por seus dias de trabalho. O modelo exploratório entra em crise e o donatário aponta a rede intrincada da economia mercantil em que o Brasil foi envolvido. Decide empregar mão de obra africana e o ciclo se repete, dessa vez tendo o Índio 1 como doutrinador e feitor. É a visão de mundo dos que são oprimidos, quando têm a oportunidade de mudar seus “status social, passam a refletir uma visão opressora. Completa-se a imagem de dominação econômica com auxílio ideológico da religião. Contrapõem-se, na cena, às gestualidades marcantes de cada fase, funcionando como instrumento adicional de crítica, e remete ao assunto primordial da peça, a Reforma Universitária. A sequência posterior marca uma série de saltos históricos, que levam a peça das origens do Brasil até a metade do século 20 e introduzem a temática da universidade. A sequência de episódios constrói um panorama de exemplos: cada um dos pequenos quadros expõe um momento de transição histórica, em que a mudança, como a Independência e a República, sempre pega a elite dirigente de surpresa, deixando-a confusa, furiosa ou simplesmente apática, acontecendo assim um vestibular fraudulento, que privilegia apenas as camadas superiores da sociedade. O Coro, que delimita o ponto de vista da classe trabalhadora, continuamente mostra-se esperançoso e depois frustrado em suas expectativas. O primeiro vestibular é decidido por uma prova de títulos, na qual é calorosamente aprovado o candidato que se declara cidadão português. A seguir o vestibular, decidido por uma prova de títulos, O Coro, então, expõe sua expectativa de que, com a República, “vai chegar a vez do pobre”. A conclusão, novamente, é desanimadora: agora, “todos podem fazer vestibular” – “todos que tiverem diploma de curso secundário”. A exigência de curso secundário claramente 48 |


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restringe o acesso aos mais favorecidos. Ou seja, sucedem-se os segmentos dominantes no poder, mas continua sendo a elite a única camada da população que pode ingressar na faculdade. O conjunto se encerra com um comentário do Coro: “Então se abriu a faculdade/ para toda a humanidade/ para o Brasil e sua infelicidade!” intensificando cada vez mais a crítica da peça. Às denúncias feitas anteriormente, soma-se um juízo crítico da história, o que remete, uma vez mais, às formulações de Brecht. O Coro muda de posição e inicia um canto agitador, que sintetiza e reforça as denúncias feitas até então, informando que 57% dos brasileiros são analfabetos, 67% não fizeram ginasial e 71% não fizeram científico, o que representa um total de 99% de brasileiros impedidos de ingressar na faculdade. “Logo, entra na faculdade/ Um por cento do povo brasileiro! Segue-se um conjunto de quadros que expõe a realidade da universidade no país naquele momento. É um texto elaborado com o intento de promover compreensões críticas do processo histórico brasileiro sobre a reforma universitária. Desde o início a ação dramática está estruturada no conflito capital x trabalho, e no desenvolvimento da consciência política. O único sentido que se pode entender é que a filosofia ensinada pelo Professor não tem relação alguma com a realidade. O conhecimento apreendido pelos alunos, fútil, arcaico e mentiroso, contrapõe-se ao conhecimento libertador. O Auto é uma sátira desenfreada, ridiculariza com grossa ironia e deboche a universidade. Os professores símbolos do privilégio da universidade, são acusados diretamente de falsários, elitistas e ignorantes. As denúncias são complementadas pelas pautas da Reforma Universitária. O Coro une os juízos a respeito da universidade à obrigação de construir a aliança entre estudantes, operários e camponeses, lembra que a possibilidade material de estudo de que os universitários gozam tem origem na produção da classe trabalhadora. Aprofundando as possibilidades de crítica, o humor também funciona, como forma de quebrar a carga dramática elevada do diálogo entre o Estudante que invade a reunião e o Velho 1, que decide ouvi-lo. A tomada de consciência de estudante resulta em um momento de explosão ele precisa canalizar a indignação no confronto direto com os Velhinhos da Congregação. A indignação | 49


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fizera com que o estudante tentasse mudar alguma coisa. Mas o Estudante acredita na aliança com operários e camponeses, a classe trabalhadora, acredita ele, apoiará sua luta por reformas. A fala procura situar, a luta estudantil, mas se trata de uma aposta. O Conceito de Cultura Popular possui vários significados simultâneos, sendo por isso multifacetado. Significa, por exemplo, a capacidade de um intelectual ou de um artista para apresentar ideias, situações, sentimentos, paixões e anseios universais que, por serem universais, o povo reconhece, identifica e compreende espontaneamente. De acordo com Marilena Chauí (1983) é também a capacidade para captar no saber e na consciência populares instantes de “revelação” que alteram a visão de mundo do artista ou do intelectual que, não se colocando numa atitude paternalista ou tutelar face ao povo, transforma em obra o conhecimento assim adquirido. Possui ainda a capacidade para transformar situações produzidas pela formação social em temas de crítica social identificável pelo povo. Por fim, a sensibilidade capaz de “ligar-se aos sentimentos populares”, exprimi-los artisticamente, não interessando no caso qual valor artístico da obra. Para Ferreira Gullar (2002) a expressão surge como uma denúncia dos conceitos culturais em voga que buscam esconder o seu caráter de classe. O autor afirma quando se fala em cultura popular acentua necessidade de por a cultura a serviço do povo, isto é, dos interesses do país. Nesse contexto o Auto dos 99% cumpre com o essa função em sua estrutura narrativa, mas não necessariamente em sua encenação. O Auto possuía uma crítica forte, esse foi um dos textos mais perseguidos pela repressão. A análise textual permite visualizar características de cultura popular com o intuito de revelar seus pontos de crítica, mas segundo as ideias de Ferreira Gullar quando se discute a função social, a questão que se coloca é saber se essa função se cumpre, não somente pela realização da obra que reside nos seus elementos concretos, isto é, nas formas e nas relações harmônicas que as integram numa totalidade. Com essa análise não é possível visualizar essa totalidade da obra no Auto dos 99%. Ao analisarmos a peça é possível visualizar uma complexidade em sua narrativa, mesmo contendo expressões populares, e relações com o contexto 50 |


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histórico da época. Em entrevista a Jalusa Barcellos, Carlos Estevam Martins discute essa questão: Lembro-me de uma festa no Largo do Machado. Do outro lado da praça, tinha um pessoal com um berimbau que conseguiu muito mais público que a gente. E olha que nós estávamos lá com aquela carreta cheia de luz, som, o diabo... Quando voltamos de lá, tivemos uma sessão de autocrítica que foi pesada. Eu acabei com a vida dos caras. Falei: “Não é possível uma coisa dessa, fazer um troço popular que está numa linguagem que não atrai o povo. Tem algum troço errado aqui”. Estava sofisticado demais, tinham que baixar o nível de sofisticação. Essa foi a grande luta que eu sempre travei lá. Porque eu, como não era artista, via aquilo por outro ângulo. O pessoal de vocação artística queria fazer coisas de valor estético... (BARCELLOS, 1994:89-90)

Em entrevista Ferreira Gullar (2010) aborda a mesma questão em que quando o CPC fazia suas apresentações o “povo” ficava até o momento da música, e quando acontecia de fato o espetáculo todos iam embora e ficavam somente as crianças e o pessoal de esquerda, como o autor coloca “alguma coisa está errada, nós estamos fazendo pregação política de esquerda, para o pessoal de esquerda”. Marilena Chauí é perspicaz ao identificar nos estudantes, artistas e intelectuais o público alvo do CPC. […] eu pessoalmente acho que dificilmente a arte leva consciência política a massa. Você influi no Chico Buarque que é um jovem estudante que está aberto para as coisas, você influi na mocinha que está começando sua vida e está aberta para isso. Agora, o cara que não é universitário, não estudou, mal sabe como ganhar sua vida, com uma família pobre, numa casa que não tem livros, não tem recursos, é muito difícil achar que vai mudar a cabeça dele. Não vai. Então, o certo é você fazer bom teatro, boa poesia, boa música, e com isso você vai influir em quem você pode | 51


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influir. È uma simplificação achar que se eu não influir diretamente no proletário, que a sociedade não vai mudar. Não! Eu influo no fulano, que influi no beltrano. Tem que entender que o processo social de transformação é uma coisa muito complexa e muito demorada.11

Na prática, a intenção de trocar o público do teatro de classe média por um de classe popular não teve muito sucesso e o CPC teve os mesmos problemas que o programa radical do Teatro de Arena enfrentou. Peças foram encenadas para sindicatos, mas sem público, pois os trabalhadores não frequentam auditórios de sindicatos. O grupo enfrentou uma feroz reação policial e conheceu na prática a discrepância entre o tratamento policial rural e suburbano e o dos bairros de classe média, que também refletia as políticas anti-radicais do governador de Carlos Lacerda. Com ou sem razão, no que diz respeito ao alcance da produção cepecista, a intelectualidade era consciente da atuação limitada da entidade, voltada para e com os universitários. Assim, uma redefinição da sua participação fazia-se necessária. Afinal, como chegar às massas atuando tão somente para e com estudantes, artistas e intelectuais? O relatório do CPC registrou a preocupação com a reduzida atuação entre universitários e buscou aprofundar e estender a atuação entre outros grupos sociais, sobretudo, entre as classes populares, rural e urbana. Dentro dessa análise podemos concluir que o auto dos 99% não atingiu seu principal objetivo, isto é, chegar às massas, isso devido a sua grande complexidade textual. Nesse mesmo relatório é possível situar a entidade no que concerne à educação estética e política da própria classe média, representada na figura dos universitários: tal hipótese pressupõe que os universitários foram mobilizados e escreveram, representaram, debateram, fizeram exposições, formaram-se e, conheceram as limitações objetivas para os movimentos de culturalização, adaptaram seus meios aos seus fins. Isso conclui no âmbito de seu desenvolvimento, que o Auto dos 99% apresentado para esse público específico, atingiu seu objetivo mesmo que inconscientemente. A estratégia política 11

Ferreira Gullar em entrevista ao site teatropolitico60 data: 04/02/2010.

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do CPC se cumpre. Como se pode perceber, a trajetória de Oduvaldo Vianna Filho caracteriza-se pela revisão constante dos próprios escritos e também dos escritos de outros teóricos. No decorrer dos anos, o teatrólogo revisou suas ideias sobre a Cultura Popular e sobre as condições de difusão da produção artística. Pressupõe-se que começava a se afirmar a opinião de que o diálogo com o público brasileiro se fortalecia na medida em que era posto em cena a linguagem popular, os costumes, os problemas, e sua forte crítica. Guarnieri expunha de forma acabada os principais objetivos dessa nova dramaturgia que iria marcar, definir mesmo, a ação e os debates artísticos até 1964. Referências bibliográficas BARCELLOS, Jalusa. CPC da UNE: Uma história de paixão e consciência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. BERLINK, Manoel T. O Centro Popular de Cultura da UNE. Campinas, Papirus Livraria Editora, 1984. CHAUÍ, Marilena de Souza. O nacional e o popular na cultura brasileira. Seminários. São Paulo: Brasiliense, 1983. ______. Conformismo e Resistência: Aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1996. DAMASCENO, Leslie Hawkins. Espaço Cultural e Convenções Teatrais na Obra de Oduvaldo Vianna Filho. Tradução: Iná Camargo Costa. Campinas, SP: UNICAMP, 1994. FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. Trad. Kátia de Mello e Silva. 3ª ed. São Paulo: Editora Moraes, 1980. GARCIA, Silvana. Teatro da Militância: a intenção do popular no engajamento político. São Paulo: Perspectiva, 2004 GUARNIERI, Gianfrancesco. “O Teatro como Expressão da realidade nacional”, Revista Brasiliense, nº25. 1959 GULLAR, Ferreira. Cultura Posta em Questão: Vanguarda e subdesenvolvimento: ensaio sobre a arte. Rio de janeiro: José Olympio, 2002. LIMA, Eduardo Luís Campos. O Auto dos 99% - O Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC da UNE) e a mobilização | 53


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estudantil. Revista Crioula. nº10, 2011 MARX, Karl. O Capital: Crítica da economia política. Trad. Reginaldo Sant’Anna ed. 12ª. Rio de janeiro: editora Bertrand Brasil S.A. 1988 PARANHOS, Kátia Rodrigues. (org). história, Teatro e Política. São Paulo: Boitempo, 2012. PATRIOTA, Rosangela. A Crítica de um Teatro Crítico. São Paulo: Perspectiva, 2007. PEIXOTO, Fernando. (Org.) O Melhor Teatro do CPC da UNE. São Paulo: 1989 SOUZA, Miliandre Garcia de. Do Teatro Militante à Música Engajada. “A Experiência do CPC da UNE (1958-1964)”. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007. ______. A questão da cultura popular: as políticas culturais do CPC (Centro Popular de Cultura) da União Nacional dos Estudantes (UNE). Revista brasileira de História. São Paulo. V. 24, nº47, 2004. p. 127-62. SZONDI, Peter. Teoria do Drama Moderno (1880-1950) Trad.Luiz Sérgio Rêpa. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2001 WILLIAMS, Raymond. Drama em cena. São Paulo: Cosac & Naify, 2010. Website Disponível em: http://teatropolitico60.wordpress.com/2010/02/04/ entrevista-com-ferreira-gullar-140110/ acesso em 15 de julho de 2014

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SHOW OPINIÃO: O POPULAR COMO ESTRATÉGIA POLÍTICA PÓS 64 Flaviane Flores Vieira de Magalhães Orientador: Prof. Dr. Berilo Luigi Deiró Nosella Iniciação Científica, Programa de Iniciação à Pesquisa – PIP-UFOP

Apresentado pela primeira vez em 11 de dezembro de 1964, alguns meses após o golpe, no Teatro Super Shopping Center, o Show Opinião inaugura simbolicamente a resistência política que se fazia através da arte popular, pós golpe de 64. Dirigido por Augusto Boal, expoente máximo do pensamento político no teatro brasileiro, e com a presença marcante de nomes da autêntica Música Popular Brasileira, Zé Kéti, João do Vale e Nara Leão (depois substituída por Maria Bethania), o Show Opinião dava início ao Grupo Opinião que contava ainda em seu núcleo permanente com Oduvaldo Vianna Filho (o Vianninha), Paulo Pontes, Armando Costa, João das Neves, Ferreira Gullar, Thereza Aragão, Denoy de Oliveira e Pichin Plá. Era o início da luta artística e intelectual contra a ditadura. A intenção geral do espetáculo era a de construir a resistência democrática ao regime autoritário; dois outros objetivos, mais específicos, eram destacados no manifesto de apresentação do show: o primeiro estava relacionado à valorização da música popular como expressão de anseios sociais; o segundo era uma tentativa de propor saídas para o problema de repertório do teatro (e porque não também da música?) brasileiro. (GOMES, 2004, p.29)

O Show se configurava em formato de arena, com a simplicidade de apenas um tablado como cenário e seus três atores/músicos representando a voz do povo nas canções, depoimentos e diálogos. Os três cantavam e tocavam, acompanhados por um coro de apoio e alguns instrumentos musicais como violões, tambores e berimbaus (MENDES, 2011, p. 30). A simplicidade da forma | 55


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é predominante, visto que não havia artifícios de ilusão cênica, como vemos pelas fotografias, os três estavam simplesmente vestidos, como gente do povo, e apoiados apenas pela força de suas palavras. O que nos remete aos princípios defendidos por Carlos Estevam acerca da arte popular revolucionária em um dos manifestos do CPC da UNE. “Quando se pergunta ‘para que criar?’ a consciência artística tem sempre diante de si a possibilidade de se inclinar por uma dessas duas respostas: para dizer ou para dizer a outro.” (MARTINS, 1963, p. 98) sendo a potência do discurso um facilitador da transmissão de uma ideia muito clara: necessidade de transformação social. As canções perpassavam a música oriunda de contextos regionais ainda não explorados pelo grande mercado, como o baião e o samba, que “exprimiam uma fala alternativa e ilustrativa no musical” (PARANHOS, 2012, p. 74). Assim como a origem dos três intérpretes, refere-se à necessidade de se construir a resistência à ditadura a partir da união de classes. São três realidades completamente distintas, porém unidas em um único propósito de denúncia das mazelas em que vive o povo brasileiro, o nordestino, representado por João do Vale, o pobre da periferia, na figura de Zé Kéti, e a burguesia engajada, na presença de Nara Leão. A escolha dos três personagens - uma moça de classe média da Zona Sul, um operário favelado carioca e um camponês nordestino -, foi tática, pois simbolizava os setores da sociedade tidos como “forças progressivas” pela linha política do PCB: a burguesia nacional, o operariado e o campesinato. E acrescenta Ferreira Gullar: “A junção desses personagens, numa aproximação de classes, correspondia à preocupação do Vianna de formar uma frente ampla da intelectualidade como única forma de combater o novo regime” (GOMES, 2004, p. 30)

O roteiro do espetáculo é inédito e revela uma proposta inovadora para o teatro nacional ao quebrar com a linearidade temporal e com a unidade de ação. Não se trata de um texto dramático, são recortes justapostos, criando uma dramaturgia fragmentada e 56 |


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interrompida por depoimentos e canções que “vão se desdobrando em atos performáticos, em discursos de caráter multitemático, caleidoscópicos por assim dizer.” (PARANHOS, 2012, p. 78). Seguindo um fluxo que ora apela à comédia ora ao drama, percebemos que a narrativa prende e cativa para logo em seguida mostrar uma realidade árida, de modo a criar quebras dramáticas, em um zigue-zague no qual percebemos que “O caráter didático das produções culturais desenvolvidas pelo CPC/UNE continua presente no Opinião.” (GOMES, 2004, p.45). O Show estabelece uma tendência observada em todo o teatro moderno de buscar outros formatos que não os tradicionais dramáticos para se constituir em cena. O que coloca o Opinião como vanguarda estética e ao mesmo tempo, popular e revolucionária que nos faz refletir a respeito dos caminhos éticos que constroem identidades estéticas. É um espetáculo fragmentado, não apresenta uma sequência linear lógica dos acontecimentos, utiliza-se de diferentes linguagens artísticas, como músicas (samba, baião, bossa nova) e cinema (faz uso constante de cortes cinematográficos do cinema brasileiro). E “recheando” tudo isso com dados estatísticos da fome, da migração e do analfabetismo; sem falar na polêmica discussão sobre a produção da arte e cultura num país subdesenvolvido e massificado como o Brasil. (OLIVEIRA, 2008, p. 7)

Ouvindo a gravação realizada em 1965, notamos a intensa participação da plateia que durante todo o espetáculo ri, grita, canta, aplaude e diz frases inteiras parecendo confirmar o que é dito no palco. Esse aspecto nos faz crer na essência ritualística do Show como um momento em que se motivavam os desejos revolucionários do público. “O clima, na plateia compacta, ensopada de suor e envolvida pelas paredes de concreto do teatro, era de catarse e sublimação. Vivia-se a sensação de uma vitória que tinha sido impossível lá fora.” (KÜHNER, ROCHA apud. PARANHOS, 2012, p. 81). Essa vitória era essencial em um momento que muitos entenderam como o fim das lutas por uma revolução, | 57


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anunciado pela ditadura. O depoimento de Heloísa Buarque de Hollanda é bastante expressivo desse caráter: Me lembro de ter assistido várias vezes ao show, de pé, arrepiada de emoção cívica. Era um rito coletivo, um programa festivo, uma ação entre amigos. A platéia fechava com o palco. Um encontro ritual, todos em ‘casa’, sintonizados secretamente no fracasso de 64, vivido como um incidente passageiro, um erro informulado e corrígivel, uma falência ocasional cuja consciência o rito superava. (GOMES, 2004, p. 39)

Fortalecendo o grito coletivo, os símbolos da cultura popular permanecem em todo o espetáculo, seja nas músicas, nos depoimentos ou mesmo nos diálogos repletos de gírias e regionalismos. Temos as marcas de três realidades bastante distintas que se somam para dizer o que precisava ser dito, ao mesmo tempo em que eleva o povo a protagonista de um espaço privilegiado – a arte – para a formação do pensamento nacional, ou ainda, para a formação dessa que seria a grande bandeira carregada pelos militantes de esquerda, que durante alguns anos ainda lutariam contra o regime autoritário. As vozes dos que mais sofrem com os descabimentos de uma nação injusta e mal dividida estão no princípio-meio-fim do espetáculo. O repertório popular, por sua vez, pode ser visto como o catalisador das questões sociais que são prioridade na temática do espetáculo. Ele revela uma face politicamente engajada da cultura periférica, por vezes desprezada; valoriza as representações populares como parte de um arcabouço cultural; imprime as opiniões das classes baixas sobre a realidade do país e fazem do povo o protagonista da peça. (MENDES, 2011, p. 29)

Muitas críticas foram feitas ao Show, no entanto, já não era mais uma questão de fazer bossa nova ou samba, tampouco de levar conteúdo político contra a alienação da população para 58 |


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construir uma revolução popular no país. Os militares estavam no poder e isso representava um passo para trás que precisava ser revertido. Empenhados em unir mais pessoas em torno dessa missão, o Opinião trouxe através das causas populares e da música popular razões para a luta. Assim, suas letras tornaram-se palavra de ordem daqueles que se opuseram ao Estado ditatorial. Nessas circunstâncias, surgiram práticas artísticas e culturais que foram reconhecidas como pertencentes ao campo da resistência. Em termos concretos, começava a surgir o embrião do que posteriormente ficou conhecido como uma grande frente de luta em favor das liberdades democráticas (PATRIOTA, 2006, p. 124)

O Show apenas inicia a luta que duraria até os fins dos anos 1980, quando finalmente ocorre a reabertura do regime e a democracia se anuncia vitoriosa. Mas em 1964, ela estava apenas começando e aqui certa carga motivacional é essencial para que se realize um movimento de resistência efetiva. O teatro engajado e a música de protesto servem então para “ensinar o coração humano de que ele ainda existe. Ou quem sabe, melhor ainda, para ensinar o coração humano que ele pode existir de novo, que pode ser ressuscitado.” (BENTLEY apud MENDES, 2011, p. 4). E vemos pelo calor da plateia testemunhado pelo LP, lançado em 1965, que essa função se cumpria. Sua influência nos meios intelectuais de esquerda se faz notar e a repercussão do Show se prolonga no tempo. Os debates iniciados com o Opinião vão em diversas camadas da sociedade e interferem no pensamento de importantes espaços de luta, como o movimento estudantil, os meios artísticos formadores de opinião – principalmente quando pensamos na música que começa a se posicionar politicamente. A censura que recai de modo violento sobre toda a produção artística nacional, principalmente depois de 1968, com o AI-5, é um sintoma de como a intelectualidade e os artistas brasileiros incomodaram o regime militar. Hoje, não ousaríamos discordar da importância de sua participação para derrubar o regime autoritário. | 59


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Paradoxalmente, com o intuito de “popularização da arte engajada” (GOMES, 2004, p. 35), o mercado cultural era um aliado na propaganda anti-ditadura e estava pouco a pouco se abrindo para novos compositores brasileiros por meio de “novos materiais sonoros e poéticos e padrões de interpretação” (GOMES, 2004, p. 36). E o Show Opinião, caracterizando-se, tanto pelo espetáculo quanto pelo LP como mais um produto da esquerda revolucionária, lançou compositores de origem popular como Zé Kéti e João do Vale, não apenas como divulgadores da cultura popular, mas como músicos de qualidade reconhecida e com valor de mercado. E, além deles, muitos outros, de origens distintas, mas todos brasileiros e fazendo música brasileira, contra as imposições estrangeiras. O palco do Opinião tornou-se um espaço de denúncia e de debate que mesmo sendo assistido apenas por parte privilegiada da população, como dizem seus críticos, “passa a se caracterizar não somente como meio de encenação/interpretação, mas também como divulgador de lugares e sentidos político culturais” (PARANHOS, 2012, p. 80). Assim, questões cotidianas ao retirante nordestino ou ao morador do morro carioca são expostas para quem não sofre delas, mas que pode se posicionar a favor de suas causas, somando forças e movimentando debates e reações em quem também ansiava por uma nova realidade “o que demonstra a possibilidade de fazer do teatro um espaço de reflexão pública que inspira um anseio de transformação.” (MENDES, 2011, p. 3). A trajetória do nacional-popular enquanto estratégia de luta política tem um percurso vitorioso até então, culminado nesse rito de motivação revolucionária. Desde suas origens no começo do século, a busca por uma arte brasileira genuína vinha se estabelecendo como prioridade e chega a seu ápice nos anos 1960. Colocamos então, como última consideração desse estudo a afirmação que nos faz Ridenti sobre a absorção do nacional-popular pela indústria – o que parecia positivo até então –, tornando-se aliada das políticas estabelecidas como ferramenta para a despolitização. Renato Ortiz, em A moderna tradição brasileira (1988), ressalta a reabsorção despolitizante pelos meios de comu-

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nicação de massa de uma cultura nacional e popular que se pretendia revolucionária em sua origem. Segundo ele – lançando mão da distinção entre ideologia e utopia nos termos de Karl Mannheim (1950) –, a utopia nacional-popular das décadas de 1940, 1950 e 1960 transformou-se na ideologia da indústria cultural brasileira dos anos de 1970 e 1980, isto é, uma visão de mundo crítica foi transformada numa justificativa da ordem. (RIDENTI, 2005, p. 99)

É o advento da televisão, dos festivais de música, a criação da Rede Globo de Televisão, entre outras coisas que se interpõem e se utilizam também do mesmo signo nacional-popular com outros fins, mas essa é outra história, outra opinião... Referências bibliográficas GOMES, Mara C. Miranda. O nacional e o popular no espetáculo Opinião – 1964. 2004. Monografia (conclusão de curso). Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2004. MARTINS, Carlos Estevam. A questão da cultura popular. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1963. MENDES, Fernanda Paranhos. “ ‘Show Opinião’: Teatro e música de um Brasil subjulgado”. Revista Horizonte Científico, UFU, Vol. 5, nº 2, Uberlândia, Dez. 2011. [on-line] Disponível em: <http://www.seer.ufu. br/index.php/horizontecienti fico/article/view/8021>. Acesso em 11/02/2014. OLIVEIRA, Sírley Cristina. “Grupo opinião: experiência estética e política dos musicais na década de 1960”. Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. [on-line] Disponível em: <http://www. anpuhsp.org.br/sp/downloads/CD%20XIX/PDF/Autores%20e%20Artigos/Sirley%20Cristina%20Oliveira.pdf >. Acesso em 11/02/2014. PARANHOS. Kátia Rodrigues. “Engajamento e intervenção sonora no Brasil pós-1964: a ditadura militar e os sentidos plurais do Show Opinião”. Pitágoras 500 – Revista de Estudos Teatrais – UNICAMP. Vol. 2, Campinas, Abr. 2012. [on-line] Disponível em: <http://www.publionline.iar.unicamp.br/index.php/pit50 0/article/view/26>. Acesso em | 61


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11/02/2014. PATRIOTA, Rosangela. “Arte e resistência em tempos de exceção”. Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte, 2006. [on-line] Disponível em: <http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/rapm/ brtacervo.php?cid=940>. Acesso em 08/09/2012. RIDENTI, Marcelo. “Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960”. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, v. 17, n. 1. São Paulo, 2005. SHOW OPINIÃO. LP Gravado diretamente do espetáculo do Grupo Opinião. Rio de Janeiro: Philips, 1965.

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FUNDAMENTOS DA CRISE DO DRAMA NO BRASIL Gustavo Moreira Alves Orientadora: Luciana da Costa Dias Mestrando, UFOP

O objetivo deste artigo é tornar tangível a noção de que a configuração cultural do Brasil, ainda que influenciada pela europeia, é heterogênea e diversa. Especificidades locais vão permitir, por exemplo, um Naturalismo com o pé no melodrama, o que sinaliza para o traço efetivamente nacional do teatro brasileiro, presente desde sua origem: o adoçamento. O Brasil não viveu a transição para a sociedade burguesa da mesma forma que o Velho Mundo. Por aqui, ainda depois da Revolução Francesa, muito mais do que pai de família, o patriarca era o senhor de escravos, capatazes e aparentados. Como atesta o historiador Sérgio Buarque de Holanda, “o escravo das plantações e das casas, e não somente escravos, como agregados, dilatam o círculo familiar e, com ele, a autoridade imensa do pater-famílias” (HOLANDA, 1975, p. 49). O poder deste na própria terra refletia-se na política: muitos senhores se envolviam diretamente nos negócios públicos. Isso fazia com que a população branca, livre e sem propriedade vivesse o que o mencionado historiador chamava de ideologia do favor, sendo beneficiada pelo pater-famílias de maneira que sentia-se ela também a classe dominante. O trabalho, espécie de desonra e índice de vergonha, era feito pelos escravos. Outra especificidade brasileira, para além da desvalorização do trabalho, consistia no fato de os laços familiares dessa organização serem mais fortes do que a ordem burocrática, a ponto de afetarem o convívio social. Tudo isso vai de encontro a uma tentativa de europeização, ou, em outras palavras, de aburguesamento do brasileiro. Obviamente essa tentativa irá se frustrar, uma vez que as ideias vindas do Velho Mundo vão ser usadas “fora do lugar”, para usar a expressão do crítico Roberto Schwarz. O conflito de interesses entre família e Estado não é nenhuma novidade. Ao atentar para isso, Sérgio Buarque de Holanda cha| 63


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ma inclusive atenção para o mito da personagem Antígona, conhecido principalmente por meio da dramaturgia de Sófocles, um dos três tragediólogos considerados os mais “altos” da Antiguidade Clássica. Na trama, o entronado Creonte impede que sejam feitos os rituais fúnebres de seu sobrinho, Polinice, dentro da cidade, pois esse sobrinho teria traído a ordem da polis. Assim, colocamse os interesses do Estado em primeiro plano, o que contradiz a necessidade familiar de conceder ao jovem guerreiro os rituais fúnebres: largar seu cadáver para além dos muros da cidade seria condená-lo a vagar durante um século às margens do mundo dos mortos, impedindo-o de fazer a travessia. Antígona, irmã de Polinice, indigna-se com essa possibilidade. A peça vai mostrar exatamente esse conflito: Creonte, representante dos interesses do Estado, versus Antígona, defensora dos ideais familiares. Observe-se que círculo familiar e Estado têm não uma gradação, mas descontinuidade e até oposição. Assim, numa organização onde se vivia basicamente numa zona rural, sob a tutela patriarcal e a ideologia do favor, com o trato diário se dando substancialmente num seio familiar mais do que dilatado, cria-se nas pessoas uma defesa contra o convívio burocrático: uma espécie de polidez superficial que é na verdade o contrário de polidez; contrário, inclusive, de civilidade, uma vez que fundada nas sensibilidades e emoções. Dessa forma, as relações profissionais, que deviam se basear na seriedade, vão gerar abusos como os conhecidos pelas expressões “jeitinho”, “QI” (quem indica) e “carteirada”. Daí o brasileiro ser chamado por Sérgio Buarque de Holanda de “homem cordial” (HOLANDA, 1975, p. 101). Enquanto no Velho Mundo a educação sentimental dos núcleos familiares, reduzidos a pai-mãe-filhos, já não tinha forças para se mostrar em escolas como o Realismo e o Naturalismo, no Brasil havia a persistência de um “prejuízo romântico”, para usar o termo utilizado por Sérgio Buarque de Holanda (HOLANDA, 1975, p. 101), o que se dava justamente pelo contexto específico, em que o poder das famílias, inchado, tornava inevitável a evidenciação das emoções, as quais obviamente se projetavam nas artes. A literatura européia moderna, como se sabe, baniu o sentimento: Kafka descreve pesadelos mas não perde jamais

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o tom seco, nítido, cortante. Uma lágrima autêntica, não filtrada pela estética, isenta de ironia ou sarcasmo, causaria pasmo no teatro francês atual: dir-se-ia termos voltado ao melodrama e ao burguês século dezenove. [...] Em tal meio A Moratória seria um escândalo: uma peça de emoção pura, escrita com emoção da primeira à última cena, não se pejando de recorrer aos instintos mais simples e primitivos do homem: o amor e o ódio, os sentimentos de segurança e o de frustração. [...] Um passo ou outro talvez seja menos firme, ameaçando resvalar pela pieguice ou pelo melodrama, mas quase invariavelmente a peça é admirável de emoção autêntica, comovendo-nos na mesma medida em que visivelmente comoveu o seu autor. Quem não souber vê-la – ou senti-la – por esse lado, julgando-a, ao contrário, por padrões estéticos que não os seus [brasileiros], não poderá sequer compreendê-la (PRADO, 2001, p. 97-98).

No contexto brasileiro, retomando “as ideias fora do lugar” de Schwarz, “[...] um latifúndio pouco modificado viu passarem as maneiras barroca, neoclássica, romântica, naturalista, modernista e outras, que na Europa acompanharam e refletiram transformações imensas na ordem social” (SCHWARZ, 2000, p. 25). Nesse mesmo contexto, José de Alencar escreveu uma peça romântica chamada O demônio familiar, em que tenta instaurar aquelas mesmas normas burguesas para o drama, como se a organização nuclear da família, reduzida a pai-mãe-filhos, fizesse todo o sentido para o Brasil daquele tempo. Nas palavras do crítico Décio de Almeida Prado, O demônio familiar é “[...] uma longa reflexão sobre a sociedade brasileira, com o fim de eliminar-lhe as contradições, de unificá-la socialmente e moralmente” (PRADO, 1993, p. 343). O tom moralizante de Alencar, exigente de uma prioridade ao efeito moral em detrimento da finalidade cômica, remete a Diderot em seu Discurso sobre a poesia dramática. Perceba-se isso na seguinte parte do texto “A comédia brasileira”, publicado pelo escritor romântico brasileiro em jornal da época:

Estava no Ginásio e representava-se uma pequena farsa, que não primava pela moralidade e pela decência da lin| 65


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guagem; entretanto o público aplaudia e as senhoras riamse, porque o riso é contagioso; porque há certas ocasiões em que ele vem aos lábios, embora o espírito e o pudor se revoltem contra a causa que o provoca. Este reparo causou-me um desgosto, como lhe deve ter causado muitas vezes, vendo uma senhora enrubescer nos nossos teatros, por ouvir uma graça livre, e um dito grosseiro; disse comigo: “Não será possível fazer rir, sem fazer corar?”. (...) Não achando pois na nossa literatura um modelo, fui buscá-lo no país mais adiantado em civilização, e cujo espírito tanto se harmoniza com a sociedade brasileira: na França (ALENCAR, 2004, p. 100-101; 105).

Iná Camargo Costa dá força a essa imagem de um José de Alencar moralizante e classista. Havia, segundo a pesquisadora, um tipo de comédia considerada de “bom gosto” pela elite da qual dramaturgo julgava fazer parte. Trata-se da chamada “alta comédia” ou, para usar o conceito mais preciso de Luckács, da comédia dramática – o verdadeiro ideal de nossa intelectualidade oitocentista, que desejava introduzir no Brasil um importante melhoramento da vida moderna francesa: o teatro burguês em suas duas vertentes, o drama – ideal máximo com o qual todos, sem exceção, sonharam – e sua versão bem humorada (final feliz), por assim dizer mais leve, que é a “alta comédia” [...] (COSTA, 1998, p. 127)

Todas as teses de O demônio familiar se reduzem à defesa da família. “A defesa da família contra o casamento por interesse”, enumera Décio de Almeida Prado no texto “Os demônios familiares de Alencar”; “contra a ‘paixão cega’ do romantismo; contra a sofisticação estrangeira, desvirtuadora do caráter nacional; contra o perigo da corrupção interna representada pela escravatura; e contra a ameaça velada, aludida apenas nas entrelinhas, dos amores fáceis e venais” (PRADO, 1993, p. 342). Há em Alencar, 66 |


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inclusive, defesa da família contra o homoerotismo, mas esta questão passa despercebida – ou ignorada – por Décio de Almeida Prado. Admita-se, assim, uma virtude baseada muito menos na liberdade do ser humano do que em aparências e títulos: conta ser pai de família, reputa-se ser mãe, importa ser filho natural. Além disso, o crítico chama a atenção para a continuidade que Alencar dá àquele traço “mais estranhadamente nacional”: Essa ternura, essa sensibilidade a flor da pele, esse dengo mais próximo do romantismo do que do realismo, de A moreninha que de La question d’argent, é o traço mais estranhadamente nacional de O demônio familiar – ensaio de um exorcismo dramático não apenas de um mas de todos os demônios que, aos olhos de José de Alencar, adejavam ameaçadoramente sobre a plácida família patriarcal brasileira (PRADO, 1993, p. 344).

Assim, tal “sensibilidade a flor da pele”, que é característica do Romantismo e muito mais potente no contexto do “homem cordial”, vai influenciar na construção da identidade pátria, sendo traço marcante, por exemplo, do drama brasileiro, como atesta a percepção do pesquisador Berilo Luigi Deiró Nosella acerca do que o crítico Décio de Almeida Prado identifica como exclusivo do teatro nacional: o adoçamento. Décio de Almeida Prado desenvolveu seu trabalho com foco no teatro moderno brasileiro, buscando em peças nacionais e estrangeiras aquilo que define a nossa cor local. “Há um aspecto central que parece saltar aos olhos ao lermos o conjunto de críticas de Décio [de Almeida Prado] [...], que consiste no apontar do crítico a um elemento ‘humano’[...]”, conta Berilo Luigi Deiró Nosella. O pesquisador continua: Esse elemento “humano” configura-se como a presença de certa “qualidade de emoção” que em certos momentos apresenta-se como essência da brasilidade e em outros como uma qualidade do dramático que põe em cena personagens verdadeiramente humanas em oposição ao racionalismo | 67


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épico, ou até mesmo, como um arrebatamento de entrega do público à fantasia e não a um debate conceitual de ideias (NOSELLA, 2012, p. 76).

Seguindo a linha de raciocínio do pesquisador, Décio de Almeida Prado discursava em favor do adoçamento ainda pela resistência aos ideais de esquerda. Como o crítico não tinha a consciência que hoje se tem com as ideias de Peter Szondi, sem pensar duas vezes preteria peças como as do dramaturgo alemão Brecht, nas quais há a inundação de elementos épicos. “[...] a forte oposição ao melodrama que o projeto épico propõe não ‘cai como uma luva’ à visão de teatro moderno do crítico para o Brasil” (NOSELLA, 2012, p. 78). Assim, ainda que Décio de Almeida Prado renegasse o melodrama, perceba-se que o adoçamento era não só continuidade de uma tradição melodramática, cultivada desde o nascimento do teatro brasileiro com o dramaturgo Gonçalves de Magalhães e o ator e encenador João Caetano, mas ainda fruto de uma organização social centrada no pater-familias. Nesse sentido, é interessante perceber, por exemplo, que o dramaturgo Jorge Andrade perde o prestígio de Décio de Almeida Prado na medida em que, nas peças posteriores à primeira, A moratória, se afasta do adoçamento. “[...] a razão fundamental da grandiosidade desta obra para nós, brasileiros”, defende Berilo Luigi Deiró Nosella, “é exatamente sua ‘qualidade de emoção’ captada pelo crítico [Décio de Almeida Prado] em O demônio familiar e presente também em Pirandello e na dramaturgia ibérica – mais próxima do romantismo que do naturalismo”. Quando Jorge Andrade escreve sua segunda peça, Pedreira das almas, a visão de Décio de Almeida Prado dá conta de que se trata de “[...] uma tentativa literária mais ousada [em relação a A moratória]: muitas de suas situações desejam viver principalmente do prestígio épico ou lírico das palavras” (PRADO, 2002, p. 108). O crítico completa dizendo que essas situações são as mais fracas. O mesmo termômetro se repetirá em A escada e nas demais peças de Jorge Andrade: A moratória era melhor, e supõe-se que por levar adiante a tradição sentimental vista como marca essencial do teatro brasileiro. É como se tudo se tratasse de não haver desvio 68 |


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dessa tradição que já estava identificada e traçada. Enfim, conforme Jorge Andrade desenvolvia um discurso político em direção à superação da crise, naquela época ainda velada, utilizando-se de estruturas épicas, de tradição alemã, brechtiana, Décio de Almeida Prado via a obra do dramaturgo com cada vez mais reservas. Comparando Jorge Andrade a Euclides da Cunha, Décio de Almeida Prado com sua influência francesa chega a apontar em ambos uma simpatia para com os vencidos e não com os vencedores. “Com os rebeldes e não com a ordem legal. Com os primitivos – chamemo-los assim – e não com os métodos que a civilização encontra para responder aos seus anseios de felicidade e justiça social” (PRADO, 2002, p. 289). De fato, simpatizar com os vencidos revela certa “baixeza” de um dramaturgo... Assim, a crise do drama no caso brasileiro tem, de um lado, o crítico Décio de Almeida Prado, que defendia o adoçamento, visto aqui menos como prejuízo da forçação aburguesada de José de Alencar do que da cordialidade nacional; de outro, dramaturgos como Jorge Andrade, que criticavam os opressores e explicitavam sua preferência pelos oprimidos. Os oprimidos, tanto lá no Velho como cá no Novo Mundo, começaram a entrar em foco nos palcos. Como conteúdo da cena, esses oprimidos então protagonistas exigiam um ajuste sincrônico da forma dramática. A arte não suportou, enfim, silenciar-se diante das desigualdades. Referências bibliográficas ALENCAR, José de. José de Alencar: comédias. São Paulo: Martins Fontes, 2004. COSTA, Iná Camargo. Sinta o drama. Petrópolis: Vozes, 1998. DIDEROT, Denis. Discurso sobre a poesia dramática. Trad. L. F. Franklin de Matos. São Paulo: Brasiliense, 1986. HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olimpio Editora, 1975. NOSELLA, Berilo Luigi Deiró. “A presença de Luigi Pirandello e Jorge Andrade no moderno teatro brasileiro, ou como Décio de Almeida Prado enxerga-os através da lente da formação”. Pitágoras, v. 3, n. 500, p. 69| 69


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84, out. 2012. PRADO, Décio de Almeida. Apresentação do teatro brasileiro moderno: crítica teatral de 1947-1955. São Paulo: Perspectiva, 2001. ________. Teatro em progresso: crítica teatral de 1955-1964. São Paulo, Perspectiva, 2002. ________. Teatro de Anchieta a Alencar. São Paulo: Perspectiva, 1993. SCHWARZ, Roberto. “Ideias fora do lugar”. Em: ________. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Livraria Duas Cidades / Editora 34, 2000. p. 9-31. SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno (1880-1950). Trad. Luiz Sérgio Repa. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.

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ARENA CANTA E CONTA: ZUMBI E TIRADENTES Nieve Matos da Silva Orientador: Berilo Luigi Deiró Nosella Mestranda, UFOP, bolsista FAPEMIG

O intuito deste texto é apresentar um breve recorte da pesquisa que venho desenvolvendo no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas do Instituto de Filosofia, Arte e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto sob o título ARENA CANTA E CONTA ZUMBI E TIRADENTES – A gênese de um sistema de encenação. O principal objetivo da pesquisa citada é a análise estrutural da linguagem teatral dos musicais Arena Conta Zumbi e Arena Conta Tiradentes, do grupo Teatro de Arena, de São Paulo, investigando suas características estéticas a partir de um exame detalhado das técnicas nascidas nesses espetáculos, que compõem o Sistema Coringa de dramaturgia e encenação, considerando o Golpe Militar de 64 como agente provocador de tal sistema. Os dados aqui apresentados foram pautados basicamente no estudo das dramaturgias dos espetáculos citados, criadas por Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, e no estudo dos seguintes artigos escritos por Boal: “Elogio fúnebre do teatro brasileiro visto da perspectiva do Arena” e “A necessidade do Coringa”. A cena teatral nos anos que antecedem o surgimento do Arena, em 1953, foi marcada por uma valorização dos autores clássicos europeus. O Teatro de Arena, assim, destacou-se por desenvolver uma dramaturgia nacional que contava e questionava a história do Brasil, valorizando a identidade e o povo brasileiro, indo, portanto, na via contrária do modelo europeu vigente. O momento político nos anos 1950 mostrava a contradição de um país que tentava se modernizar, mas que, por outro lado, era assolado por práticas populistas arcaicas. Setores nacionalistas inspirados no getulismo ocupavam o poder. Nesse momento, é impulsionado o mercado da cultura de massa, apoiado no rádio e na TV. O nascimento da bossa nova, a construção de Brasília, o crescimento em quantidade e qualidade da produção do teatro e cinema nacio| 71


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nais – a exemplo do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e Vera Cruz, respectivamente – elevaram o status da época à condição de “anos dourados”. Na segunda metade da década, a doutrina do nacionaldesenvolvimentismo e a relativa estabilidade política e institucional do governo de Juscelino Kubitschek levaram significativa parcela da sociedade brasileira a pensar em superação do subdesenvolvimento. O movimento teatral não passaria incólume por esse processo – uma nova geração de artistas surgia, buscando uma dramaturgia nacional que discutisse temas relacionados ao seu cotidiano e, assim, cresceu em diversos grupos a preocupação social e, com ela, a conscientização do teatro como ferramenta política, como recurso que contribuiria para mudanças na realidade do Brasil. É nesse contexto que, após concluir o curso na Escola de Arte Dramática (EAD), José Renato decide criar a Companhia de Teatro de Arena. No início do grupo, seu fundador não aspirava a mais que facilitar a formação de novas companhias, possibilitando um formato espacial diferente para os moldes brasileiros: a arena, cuja área cênica era estabelecida ao centro com os espectadores ao seu redor. O espaço cênico reduzido do Teatro da Arena, além de diminuir o custo das produções, trouxe novas experiências estéticas. Sem cortinas ou coxias, com a proximidade do espectador, foi necessário modificar a encenação a partir do formato arquitetônico. Em 1956, a companhia estava em busca de uma estética de encenação própria, quando alguns fatos importantes mudaram definitivamente o caminho do TA: o primeiro é a junção do Arena com o Teatro Paulista do Estudante – o TPE – e, com isso, a entrada de Gianfrancesco Guarnieri para o grupo. Além de ter sido um ator de talento inquestionável, Guarnieri nasceu dentro de uma família de tradição de esquerda, possuindo uma consciência política que o levava a um inconformismo com o sistema político vigente. O segundo fato é a contratação de um novo encenador, Augusto Boal, que acabava de chegar dos Estados Unidos, trazendo para o Brasil e para o TA o método de interpretação de Stanislavski. E no mesmo ano, trabalhando como ator, o também esquerdista de berço Oduvaldo Vianna Filho une-se a esse time. A partir desse encontro, uma nova mentalidade do fazer teatral se instaurou no TA. Novos rumos foram tomados, rumos mais 72 |


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politizados, preocupados com o social e com o conteúdo dramatúrgico que se transmitia. Como afirma Sábato Magaldi: O Teatro de Arena de São Paulo evoca, de imediato, o abrasileiramento do nosso palco, pela imposição do autor nacional. Os Comediantes e o Teatro Brasileiro de Comédia, responsáveis pela renovação estética dos procedimentos cênicos, na década de quarenta, pautaram-se basicamente por modelos europeus. Depois de adotar, durante as primeiras temporadas, política semelhante à do TBC, o Arena definiu a sua especificidade, em 1958, a partir do lançamento de Eles Não Usam Black-Tie, de Gianfrancesco Guarnieri. A sede do Arena tornou-se, então, a casa do autor brasileiro. O êxito da tomada de posição transformou o Arena em reduto inovador, que aos poucos tirou do TBC, e das empresas que lhe herdaram os princípios, a hegemonia da atividade dramática. De uma espécie de TBC pobre, ou econômico, o grupo evoluiu, para converter-se em porta-voz das aspirações vanguardistas de fins dos anos cinquenta. (MAGALDI, 1967, p. 7-8)

Durante quatro anos, de 1958 a 1962, o TA fechou as portas para os textos estrangeiros. Boal, em O elogio fúnebre do teatro brasileiro visto da perspectiva do Arena (1967), afirma que: Esta etapa [o fechamento para as obras estrangeiras] coincidiu com o nacionalismo político, com o florescimento do parque industrial de São Paulo, com a criação de Brasília, com a euforia da valorização de tudo nacional. As peças tratavam do que fosse brasileiro: suborno no futebol interiorano, greve contra os capitalistas, adultério em Bagé, vida sub-humana dos empregados em ferrovias, cangaço no Nordeste e a consequente aparição de Virgens e Diabos, etc. [...] Eram as singularidades da vida o principal tema deste ciclo dramatúrgico. E esta foi a sua principal limitação: a plateia via o que já conhecia. (Boal In BOAL e GUARNIERI, 1967, p. 16-17)

Após esta fase, o TA entra no momento conhecido como “Na| 73


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cionalização dos clássicos”, quando adaptava para a realidade brasileira obras de autores consagrados, como Mandrágora, de Maquiavel, e O Tartufo, de Molière. Acreditando, segundo dizia Boal, que “um clássico só é universal na medida em que for brasileiro” (BOAL, GUARNIERI, 1967, p. 19). Mas foi a partir do Golpe Militar no Brasil, em 1964, que o Teatro de Arena buscou uma nova abordagem dramatúrgica que desencadeou um novo modelo de encenação. Certamente inspirados no sucesso do show Opinião e na força política de sua música, o TA, que já caminhava do “lado esquerdo da pista”, resolve resgatar os “heróis” nacionais como forma de desenvolver um teatro didático que convidasse o público a uma reflexão sobre o regime político que se instaurara. Assim, convidam Edu Lobo para a montagem de um espetáculo que ainda não existia, e após uma noite de “loucuras”, como define o próprio Guarnieri, resolvem criar o musical Arena conta Zumbi: A gente sabia que precisava mudar a forma narrativa. Não era uma discussão nova, mas se aguçou nesse período,

sobretudo depois que chegou Edu Lobo que veio chamado antes do tempo (...) Edu veio. Achando que tinha uma peça pronta pra ele musicar, mas a gente não tinha nada. A não ser a inquietação. A gente sentia a necessidade de romper com o que fazia antes. (...) Surgiu a magia do “conta”. E Edu começou a cantar umas músicas novas para a gente. Cantou uma sobre Zumbi. A gente passou uma noite de loucura pela cidade e às oito horas da manhã estava na praça da República comprando o livro do João Felício dos Santos, Ganga Zumba. Resolvemos contar a história da rebelião negra. Arena conta. Começamos a pesquisar. Boal chegou. Todos juntos. O elenco também. Dentro da maior alegria, da maior euforia. Todo mundo rompendo coisas até o nível pessoal, e todo o mundo buscando coisas novas. Época de euforia e alegria mesmo. E Boal organizando o trabalho coletivo. (PEIXOTO, 1978, p. 105)

Em 65 estreia Arena conta Zumbi. A história de Palmares é usada como metáfora para se questionar o regime militar vigente. 74 |


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Sobre o formato “Arena conta”, Décio de Almeida Prado afirma que, já sob a forma de protestos políticos que pudessem varar as malhas ainda não tão apertadas da Censura, são do ponto de vista estilístico respostas brasileiras ao brechtianismo. Não se queria aplicar ao pé da letra as lições do teatro épico, bastante conhecidas a esta altura, mas simulá-las, integrando algumas delas em soluções dramatúrgicas originais, adaptadas às condições específicas, não esquecendo as econômicas, seja do grupo, seja do Brasil. (PRADO, 2009, p. 70)

Os criadores de Zumbi não negam suas experiências artísticas do passado, muito menos suas referências. A estrutura dramática utilizada era a colagem, trechos do romance de João Felício dos Santos eram mesclados com recortes de notícias da época e costurados pelas músicas de Edu Lobo. Durante a montagem de Zumbi, foram aplicadas quatro técnicas básicas, que seriam denominadas por Boal como as “quatro regras do caos”; são elas: a desvinculação ator/personagem, a narrativa una, o ecletismo de gênero e estilo e o uso da música. A desvinculação ator/personagem permitia que alguns poucos atores alternassem-se na interpretação dos papéis. É importante ressaltar que o ano era 1965, sendo de praxe no teatro brasileiro técnicas mais tradicionais, o convencional era cada ator representando somente um personagem. Sobre a desvinculação, no artigo A necessidade do Coringa, Boal afirma: Certamente não foi esta a primeira vez que personagens e atores estiveram desvinculados. (...) Na tragédia grega dois e depois três atores alternavam entre si a interpretação de todos os personagens constantes no texto. Para isso, utilizavam máscaras (...) No nosso caso, tentamos também a utilização de uma máscara, não a máscara física, mas sim o conjunto de ações e reações mecanizados | 75


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do personagem. (Boal In BOAL e GUARNIERI, 1967, p.24)

Já para Guarnieri, “havia uma perspectiva cultural e moral mais que estética (...) O texto não permitia nenhum outro tipo de expressão senão aquela: não havia a psicologia do personagem, cada um representava uma função social.” (GUARNIERI, 1978. p.79) A narrativa una, a segunda regra, pode ser considerada uma consequência da desvinculação. A narrativa passa a ser contada por todo o elenco, segundo um nível de interpretação coletiva, como podemos ver no trecho de abertura do espetáculo Arena conta Zumbi, em que já na rubrica do texto podemos constatar o apontamento da técnica: (RITMO: ATABAQUE, BATERIA, TODOS OS ATORES ENTRAM E CANTAM. OS ATORES NÃO SAEM NUNCA DE CENA, ASSUMINDO OS SEUS DIFERENTES PERSONAGENS DIANTE DO PÚBLICO) O elenco do Arena começa a cantar: 1 – O Arena conta a história pra você ouvir gostoso, quem gostar nos dê a mão e quem não, tem outro gozo. 2 – História de gente negra da luta pela razão, que se parece ao presente pela verdade em questão, pois se trata de uma luta muito linda na verdade: é luta que vence os tempos, luta pela liberdade! (BOAL; LOBO, 2009)

O ecletismo de gênero e estilo é a terceira regra de criação de caos, muito criticada na época e muito utilizada no teatro brasileiro atual. Em um mesmo espetáculo as cenas poderiam ter variados gêneros, indo do melodrama até a chanchada, sem se preocupar com uma linguagem definida. Cada cena servia-se de um gênero e de um estilo de acordo com a necessidade da nar76 |


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rativa, do que se almejava comunicar com ela. Em Zumbi, havia cenas expressionistas, simbolistas e outras que beiravam o surrealismo, por exemplo. Já a utilização da música, a quarta regra, tinha como objetivo preparar o espectador “a curto prazo” para receber, através do lúdico imposto pela melodia, textos simplificados, além de ser uma forma de expressar nas entrelinhas o que o texto não poderia dizer diretamente. Sobre as técnicas, ainda no artigo A necessidade do Coringa, Boal afirma: Zumbi, primeira peça da série “Arena Conta...” descoordenou o teatro. Para nós, sua principal missão foi a de criar o necessário caos, antes de iniciarmos, com Tiradentes, a etapa da proposição de um novo sistema. A sadia desordem foi provocada por quatro técnicas principais que se usaram. (Boal In BOAL e GUARNIERI, 1967, p. 24)

Como todo produto artístico, tanto Arena conta Zumbi, quanto Arena conta Tiradentes estão sujeitos a avaliações positivas ou negativas referentes à sua originalidade e a suas qualidades. A grande quantidade de críticas e notas que surgiram com a estreia de ambos os espetáculos, sejam elas pautadas em elogios ou não, mostram o quanto a criação dessas obras foi provocadora para o movimento teatral da época e reforçam a importância dessas peças para o teatro nacional e para a arte de resistência. Zumbi destruiu convenções, destruiu todas que pôde. Destruiu inclusive o que deve ser recuperado: a empatia. Não podendo identificar-se a nenhum personagem em nenhum momento, a plateia muitas vezes se colocava como observadora dos efeitos mostrados. E a empatia deve ser reconquistada. Isto, porém, dentro de um novo sistema que a enquadre e a faça desempenhar a função que lhe seja atribuída. Atualmente o Arena elabora esse novo sistema, denominado Sistema Coringa. (BOAL; GUARNIERI, 1967, p. 21)

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Com a busca de retomar a empatia do público, nasce, em 1967, Arena conta Tiradentes, quando o sistema coringa torna-se efetivamente um método de encenação. Já na estreia do espetáculo, junto ao programa da peça, foram acrescentados dois artigos intitulados de “Questões Preliminares” e “Quixotes e Heróis”, que explicavam o sistema metodologicamente e defendiam-no enquanto formato a ser seguido, reforçando a ideia de que estava sendo apresentado ao público um novo modelo estético de linguagem teatral. “Infeliz é a nação que precisa de heróis”, a famosa frase dita por Brecht, foi respondida por Boal que disse “Porém, nós não somos um povo feliz. Precisamos de Tiradentes” (BOAL; GUARNIERI, 1967, p. 56). A história da Inconfidência Mineira, assim como em Zumbi, serviria de pano de fundo para o Arena contar mais uma vez uma narrativa de luta contra o poder vigente, reforçando seu posicionamento político através de exemplos anteriores da história brasileira. Segundo Magaldi, Na perspectiva adotada pelos autores, o paralelismo se estabelece de maneira rigorosa, servindo para diagnosticar tanto as causas do malogro da Inconfidência como daqueles que, dentro do Governo João Goulart e ou por intermédio dele, pretenderam subverter a estrutura antiga do país. Inconfidência palaciana seria seu epíteto pejorativo, bem como os incitamentos revolucionários, feitos recentemente, sem a participação do povo, significariam um jogo de cúpula, destinado ao inevitável esvaziamento. (MAGALDI, 1967, p. 37)

Dramaturgicamente, Tiradentes é um desdobramento melhor elaborado da linguagem experimentada em Zumbi. O texto foi criado após estudos de escritos científicos, da obra poética Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, de pesquisa de campo nos locais onde aconteceram os fatos históricos, exames do Auto da Devassa, entre outras fontes de pesquisa. Mas, assim como em Zumbi, a intenção não era a realização de um espetáculo pautado na fidelidade dos fatos ou nos moldes dos documentários 78 |


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cinematográficos, mas a narrativa de um determinado momento histórico a serviço de uma obra ficcional, contada a partir do ponto de vista dos autores do TA. O Sistema Coringa é apresentado em Tiradentes de forma concisa, metodologicamente estruturado. Se em Zumbi todos os atores desempenhavam todas as personagens, em Tiradentes – e no Sistema Coringa –, não. Boal não fala mais em divisão de personagens, mas em divisão de funções que seriam determinadas de acordo com a estruturação geral dos conflitos do texto. Cabe ao ator/coringa a consciência do dramaturgo, que se coloca para além das personagens, do espaço e do tempo que elas se encontram. Em Tiradentes, o Coringa é vivido do Gianfrancesco Guarnieri que, com o intuito de elucidar os acontecimentos, interpreta os fatos, avança ou retrocede as cenas, entrevista as personagens. Um recurso cênico transformador, que pode e deve ter uma atuação política e social, sendo o embrião do que mais tarde Boal chamaria de Teatro do Oprimido. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOAL, Augusto; GUARNIERI, Gianfrancesco. Arena Conta: Tiradentes. São Paulo: Editora Sagarana, 1967. BOAL, Augusto; LOBO, Edu. Arena Conta Zumbi. Website Pyndorama, São Paulo, 2009. Disponível em: <http://pyndorama.com/wp-content/ uploads/2009/01/arena-conta-zumbi.pdf>. Acesso em 19 out. 2013. CAMPOS, Cláudia de Arruda. Zumbi, Tiradentes (e outras histórias contadas pelo Teatro de Arena de São Paulo). São Paulo: Perspectiva/ Ed. USP, 1988. LIMA, Mariângela Alves de. História das ideias. In: Revista Dionysos. Especial: Teatro de Arena. MEC/FUNARTE/Serviço Nacional de Teatro, n. 24, out. de 1978. MAGALDI, Sábato. Arena conta Tiradentes. O Estado de São Paulo, São Paulo, 01 jul. 1967. Suplemento Literário, p. 37. Disponível em: <http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19670701-28286-nac-0037lit-3-not>. Acesso em: 19 out. 2013. PRADO, Délcio de Almeida. Teatro Brasileiro Moderno. São Paulo: Perspectiva, 2007. | 79



Pensamento e prรกticas da cena



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OS PRINCÍPIOS TÉCNICOS DE MARTHA GRAHAM COMO SUBSÍDIO PARA O TRABALHO DO ATOR Gabriela de Oliveira Gonçalves Orientador: Prof. Dr. Éden Peretta Mestranda, UFOP, Bolsista CAPES

A pesquisa intitulada “Os princípios técnicos de Martha Graham como subsídio para o trabalho do ator”, como sugere o próprio título, busca investigar os princípios fundamentais da técnica de Martha Graham – respiração, “contraction” e “release” (contração e expansão), centro motor e movimento espiral –, com intuito de apontar como estes podem ser pensados de forma a dialogar com o trabalho do ator, potencializando suas relações corpo e cena. Para tanto, está sendo investigado, por meio de pesquisa teórica, o arcabouço histórico, social, cultural, e particular, cujos fatores permearam a vida e a carreira de Graham, e os quais constituem sua poética, e que vem sendo considerados instrumentos-chave para a compreensão do desenvolvimento dos princípios fundamentais de sua técnica e de suas criações. Neste artigo, pretendese apresentar, de forma sucinta, estes aspectos direcionais e as expectativas concernentes à pesquisa. Martha Graham (1894-1991) é natural de Allegheny Count, Pennsylvania, nos Estados Unidos. Foi bailarina, coreógrafa, criadora de sua própria linha de investigação do corpo e do movimento, a Martha Graham technique. Fundou e dirigiu sua própria Cia e escola de dança – respectivamente, a Martha Graham Dance Company e a Martha Graham Contemporary School, ambas ainda existentes e localizadas em Nova York, EUA. É considerada uma das principais referências da Dança Moderna, mais especificamente da Modern Dance norte-americana, a qual também se pretende contemplar no decorrer da pesquisa. Em termos de contextualização, de acordo com Souza (2009), considera-se que o surgimento da Dança Moderna se deu no final do século XIX e início do século XX, principalmente nos Estados Unidos, onde ficou conhecida como modern dance, e na Alemanha, cujo movimento caracterizou-se, posteriormente, na dança | 83


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expressionista alemã. Nasceu no período da decadência do balé romântico europeu, questionando seus códigos de movimentação tradicional, cujo conteúdo não expressava as transformações da época. Coreógrafos precursores da modern dance, como Isadora Duncan, Ruth Saint-Denis, Martha Graham, Doris Humphrey; e da dança moderna alemã, como Mary Wigman, Kurt Jooss, dentre outros, proclamaram um caráter pessoal em suas obras, trazendo formatos intimistas, conteúdos subjetivos e questões individuais para o estilo do movimento, numa reação à abstração e ao vocabulário impessoal e codificado do balé. Para Souza (2009), a arte moderna, e por sua vez, a dança moderna, trouxe consigo a ideia do indivíduo e sua capacidade de refletir e questionar sobre o seu próprio tempo e suas relações com o espaço. Não se dança mais para o rei, não há corpo de baile. Na qualidade de cidadão urbano, o bailarino/coreógrafo, originalmente por meio de pesquisas individuais, quer traduzir e explicitar a rua, os conflitos, um novo tempo. O corpo que se move na coreografia pode propor aos corpos que se movem pelas veias da cidade uma relação de co-presença. Trata-se, também, de uma experimentação, de uma provocação (SOUZA, 2009:117).

Neste viés, pode-se dizer que a técnica de Graham foi gestada, portanto, no contexto da “era da ciência” – período de grandes descobertas cardiovasculares, respiratórias, neurológicas – do desenvolvimento da psicanálise, da “afirmação do individualismo”, da modernidade industrial, das influências orientais, advindas com o “imperialismo da Ásia”, e com o “orientalismo” ou o “exotismo”, herdado em grande parte do período tardo-romântico e reelaborado no século XX (SOUZA, 2009). De Mille (1991) afirma que Graham iniciou sua formação e carreira na dança, em 1916, aos 22 anos, na Denishawn School, onde obteve aulas de ballet, dança étnica (principalmente de índios americanos e espanhola), gestual dramático (fundamentado pelas teorias de François Delsarte12), dança oriental e yoga. A escola fundada e dirigida pelo casal Ruth St. Dennis13 e Ted Shawn 84 |


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tinha por objetivo promover aos alunos, além da aprendizagem técnico-corporal, conhecimentos sobre música (sob influência de Dalcroze14), história da arte, teologia e filosofia (principalmente Hindu, a qual Ruth teve estreito contato)15. Graham permaneceu na escola por sete anos, e ao sair (por motivos econômicos), decidiu construir o seu próprio caminho na dança (DE MILLE, 1991). François Delsarte (1811-1871) foi um teórico francês, criador do “sistema geral de análise da expressividade humana”, composto por três pilares, três linguagens artísticas: o canto, a enunciação e a pantomima. “A voz musicada, a voz que explicita o pensamento e o gesto eram seus objetos de estudo”. Suas pesquisas sobre o gesto promoveram fortes influências nas áreas do teatro e da dança, exercendo, nesta última, papel fundamental para a criação e desenvolvimento da dança moderna europeia e a modern dance americana (BISSE, 2008). 13 Ruth Saint Dennis (1879-1968) é natural de New Jersey, Estados Unidos. Considerada uma das pioneiras da modern dance (junto de Isadora Duncan), foi bailarina, coreógrafa e professora de dança, conhecida pelas suas interpretações de danças ritualísticas da cultura Hindu, adaptadas para a música ocidental. Ela e seu marido Ted Shawn fundaram, em 1915, na cidade de Los Angeles, a primeira escola de formação em dança da América do Norte, conhecida por Denishawn (DE MILLE, 1991). 14 Émile Jacques Dalcroze (1869-1950) foi um músico suíço, criador de seu próprio método de ensino musical, também formado por três pilares: o aprendizado rítmico, o aprendizado do solfejo e o aprendizado da improvisação ao piano. “A maneira como o corpo reage a estímulos musicais afim de interpretar sua natureza rítmica, o modo como o canto pode espontaneamente se relacionar com a leitura musical e a maneira como o aprendizado do piano pode estar relacionado com essas duas instâncias pedagógicas, foram as três buscas de Dalcroze” (BISSE, 2008). 15 Sobre o conteúdo de sua formação, Souza (2009) destaca que todos os pioneiros americanos (da modern dance), como Ruth Saint Dennis, estudaram o método de Delsarte, a obra de Dalcroze e as teorias do húngaro Rudolf Von Laban, este último, estudioso do movimento reconhecido pela criação de registros simbólicos geométricos sobre esforços do movimento. Para Bisse (2008), estes teriam sido as principais referências da dança moderna, em geral: “Delsarte valorizava a função do torso, local habitado por dois importantes agentes da expressão: o coração e a respiração (o berço do ritmo). Dalcroze já observava, como princípio fundamental do movimento, a tensão-relaxamento e contração-descontração. Mas talvez tenha sido Rudolf von Laban a primeira pessoa responsável por tal ênfase. Em suas primeiras considerações sobre a dança destacou que, desde que é constituída de movimentos, e o movimento resulta da ação muscular, a dança está entre os pólos do relaxamento total e da tensão total. Portanto, a qualidade do movimento é, em grande parte, regulada pelo grau, quantidade de força ou intensidade que contém. O uso do esterno (como centro energético e como foco privilegiado da expressão e da emoção) será largamente pesquisado na dança do século XX” (BISSE, 2008:36-37). 12

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Segundo consta em sua autobiografia (GRAHAM, 1993), seu pai, George Graham, era médico psiquiatra, e sua pesquisa consistia, em suma, na relação entre as emoções humanas e seus reflexos no corpo do indivíduo, baseando-se inclusive na observação dos animais16. De Mille (1991), ressalta que o convívio com a pesquisa de seu pai, foi fundamental para o desenvolvimento da sua própria pesquisa corporal. Desde pequena, Martha foi treinada por ele a observar o comportamento e as ações dos animais e buscar comparativos com as mesmas ações humanas. Segundo Martha (1993), ele costumava dizer “the body never lies” (“o corpo nunca mente”), afirmação esta que impulsionou suas pesquisas corporais para as suas criações na dança - Martha (1993) conta que ao sair do “Follies”, em 1925, passava suas tardes no zoológico do Central Park, sentada em frente uma jaula, observando o caminhar do leão. Aprendeu com ele sua caminhada, e descobriu neste processo “o deslocamento de peso”, como aspecto chave para este movimento. Percebeu que este princípio, que posteriormente seria frequentemente trabalhado, principalmente na dança contemporânea, é executado da mesma maneira do animal. E foi a partir do diálogo entre suas experiências de observação, as experiências teatrais no “Follies”, e toda a eclética bagagem de estudos na Denishawn, que Martha começou a gestar sua própria dança, sua própria técnica. Ainda que, de acordo com Cravell apud Leal (2000), a criação de uma técnica nunca foi o objetivo de Martha. Esta teria surgido das “necessidades impostas pelas suas criações coreográficas, estas sim seu objetivo primeiro”. O intuito de Graham era revelar os mais íntimos sentimentos e as emoções humanas. A expressividade para ela consistia na capacidade do intérprete de trazer ao palco e ao público a emoção, o sentimento, a intenção do dançar. Como descreve Horosko (1991): O motivo de Graham era comunicar a intensidade de viver [...] num completo direcionamento a um dado instante. De acordo com De Mille (1991), a pesquisa de George Graham foi fortemente influenciada pelas teorias de Charlis Darwin, naturalista britânico que revolucionou o pensamento científico do século XIX, com a Teoria da Evolução.

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[...] Dançar, Martha diria, é movimento feito divinamente significante. Seu significado, no entanto, sempre foi no domínio do sentimento. Intuição preferivelmente ao intelecto foi a chave requisitada para entender a linguagem cinética de Martha (HOROSKO, 1991:85).

Para tanto, Martha ao longo de sua vida, investigou aspectos fundamentais a serem trabalhados para que seu objetivo principal, a expressão, pude ser alcançado. Os princípios técnicos responsáveis por guiar a sua dança são basicamente a respiração, o par contraction and release, o centro motor e o movimento em espiral. Para Leal (2000), um dos elementos fundamentais que teria influenciado suas investigações técnicas, e que foi legado de sua formação na Denishawn, foi o contato com a Yoga, mais especificamente a Hatha Yoga e a Kundalini Yoga17, ministradas por Ruth. Desta experiência, Graham teria desenvolvido seu trabalho de chão (floor work), as posições sentadas, ajoelhadas, o uso consciente da respiração, dentre outros aspectos. Martha sentaria por horas, com as pernas cruzadas na posição de lótus18, aprendida com Ruth, em suas aulas de Yoga na Denishawn, observando sua respiração e o caminho do movimento resultante desta ação no corpo. Baseando-se nos princípios da filosofia da Kundalini Yoga, realizou respirações profundas, que tinham início na região da pélvis, e percorriam o caminho do centro do corpo, passando pelo umbigo, coração, boca, até chegar à cabeça. Segundo De Mille (1991), Martha entendeu que nenhum movimento deveria ser executado sem que fosse mobilizado primeiramente pela crescente energia da respiração. Stodelle apud Leal (2000) descreve o Yoga consiste em uma combinação de posturas físicas, técnicas de respiração e meditação, com intuito de trazer equilíbrio para a mente-corpo. Hatha Yoga é um tipo de yoga que enfatiza a prática de posturas físicas e técnicas de respiração, buscando equilíbrio energético, força e flexibilidade corporal. Kundalini Yoga é outro tipo de yoga que tem como foco principal mobilizar, por meio de técnicas de respiração e meditação, a energia condensada na base da coluna, impulsionando -a em direção a cabeça, equilibrando e energizando todos os chakras, com intuito de atingir a transcendência, a iluminação espiritual (CYR, 2014, tradução livre). 18 “Padmasana” – posição meditativa com as pernas cruzadas e os pés sobre as coxas, mais conhecida como a posição de lótus (LEAL, 2000). 17

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resultado dessa experiência: Inalar deu a ela a sensação de poder, um sentimento do corpo se renovando; exalar foi, basicamente, um deixar o espírito sair como o ar. Ela tentou classificar os movimentos muscularmente chamando-os ‘contraction’ para o ato da exalação e ‘release’ para o ato da inalação (STODELLE, 1984:48).

Nascem, assim, dois princípios técnicos, responsáveis por esculpir em sua técnica e obra uma identidade única: contraction and release (contração e relaxamento). De Mille (1991) aponta que Martha define a contração por um espasmo do diafragma, como quando mobilizamos os músculos para tossir ou rir. E esta contração, definida por este espasmo, é claramente visível e impulsiona todo o restante dos movimentos do corpo, seguidos ou não pelo relaxamento. Leal (2000) afirma que Graham também acreditava que as emoções, os sentimentos e o movimento são primeiramente visíveis na região central do corpo, partindo da pélvis e seguindo a coluna em direção à cabeça. Desta forma, definiu que a origem de todo movimento em sua técnica partiria do centro motor, situado, para ela, na região da pélvis. A utilização deste compreende o princípio condutor de todos os movimentos. Por último, destaca-se o princípio do “movimento em espiral”. Inerente ao princípio básico contraction and release, e seguindo o mesmo caminho da respiração, os movimentos são desenvolvidos em uma torção completa do torso em um dos sentidos (horário/ anti-horário), a partir da pélvis até o topo da cabeça. Neste sentido, “contraction” é uma resposta ao máximo do alongamento e o “release” um crescimento espiral para cima. Considerando sempre o impulso do movimento partindo do centro do corpo para as extremidades (LEAL, 2000). Na técnica de Graham tudo deve ser motivado pelo interior do dançarino ou ator. “A dança não é, para Martha Graham, um espelho da vida, mas sim uma participação na vida, uma liberação da vida pelo movimento” (GARAUDY, 1980:92). O corpo deve ser preparado de modo a executar os movimentos com eficiên88 |


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cia e disponibilidade suficientes para expressão dos sentimentos e emoções desejados. Martha Graham morreu aos 97 anos, em abril de 1991. Dedicou aproximadamente 70 anos de sua vida elaborando e experimentando esses princípios técnicos em suas mais de duzentas criações. Deixou um grandioso legado poético, estético, técnico, artístico, histórico e cultural, conhecido e difundido mundialmente. Sua técnica tem sido utilizada como base de processos criativos e coreográficos até os dias de hoje (DE MILLE, 1991). Desta forma, a partir da investigação das raízes e rizomas que compõem sua poética, brevemente apresentados aqui, e que são considerados essenciais para o desenvolvimento de sua própria linguagem corporal e artística – os princípios técnicos e suas criações –, espera-se instigar e problematizar a possibilidade de utilização destes princípios técnicos na área teatral. Com intuito, não de criar moldes, ou receitas prontas, mas de apontar caminhos, provocações, reflexões para a investigação corporal; de gerar autonomia ao ator, quanto à investigação, experimentação, e utilização de seu próprio corpo, nas suas potencialidades, para suas necessidades de criação, trazendo possibilidades de transformação e questionamento, cujas ações irão reverberar, de forma plural, em suas relações corpo e cena. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BISSE, Jaqueline de Meira. Dança e Modernidade. [Dissertação de Mestrado em Educação]. Unicamp, São Paulo, 2008. DE MILLE, Agnes. Martha: the life and work of Martha Graham. New York: Random House, 1991. GARAUDY, Roger. Dançar a vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. GRAHAM, Martha. Memória do sangue: uma autobiografia; tradução Claudia Martinelli Gama. São Paulo: Siciliano, 1993. LEAL, Patricia Garcia. As relações entre a respiração e o movimento expressivo no trabalho de chão da técnica de Martha Graham. [Dissertação de Mestrado em Artes]. Unicamp, São Paulo, 2000. SOUZA, José Fernando Rodrigues de. As origens da modern dance: uma | 89


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análise sociológica. São Paulo: Annablume, UCAM, 2009. Artigos e Revistas online CYR, Brenda. Kundalini Yoga Vs. Hatha Yoga. Live Strong. 06/02/2104. Disponível em <http://www.livestrong.com/article/ 366636-kundalini-yoga-vs-hatha-yoga/>. Acesso em 14 jun 2014. HOROSKO, Mirian. Martha’s Prince. Dance Magazine, U.S.A, July, p.46-47, 1991. Disponível em < http://www.dancemagazine.com/issues>. Acesso em: 14 jun 2014.

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O TRABALHO ENERGÉTICO NA PREPARAÇÃO CORPORAL DO ATOR Geraldo Magela Silva Rocha Orientador: Prof. Dr. Éden Silva Peretta Iniciação Científica, UFOP, bolsista do Programa de Incentivo à Pesquisa (PIP)

Da observação do fazer artístico e do próprio homem - que naturalmente é criador por excelência - pretendíamos com esta pesquisa enveredarmo-nos por matrizes orientais, muito visitadas por artistas do século XX, como Antonin Artaud, Jerzy Grotowski, Eugênio Barba, dentre tantos outros. Contudo, nosso objeto de estudo concentrou-se não em uma manifestação cênica, mas em conceitos e técnicas que não possuíam imediata correlação com esta arte, não obstante isso, eram extremamente bem vindas ao trabalho artístico e muito tinham a oferecer. Nossa principal influência foi a Técnica Energética, que virá representada neste trabalho com a sigla “TE”, e foi sistematizada e difundida pela Professora Doutora Marília Vieira Soares. Está técnica nasceu da abordagem corporal advinda do ioga e da filosofia indiana – que naturalmente transborda o conceito ocidental de “corpo”, fazendo-nos entendê-lo como uma junção de instâncias – corpo físico, corpo mental, corpo espiritual, corpo etérico – que criam uma imagem de “corpos sutis” interdependentes e complementares. O acréscimo mais significativo que demos à pesquisa foi a importação das ideias e metodologias de uma terapia nascida no Japão do século XX conhecida como Reiki. A partir das imbricações dos procedimentos contidos no Reiki com a metodologia da TE encontramos sua aplicabilidade no fazer artístico. Esta confluência nos levou a mais um conceito incorporado neste trabalho: as mandalas. A percepção e a proposição desta tríade composta pela TE, pelo Reiki e pelo estudo da Mandala é fruto da pesquisa desenvolvida durante o período que compreende o mês de Agosto de 2012 ao mês de Agosto de 2013. Quando nos propusemos a pesquisar o trabalho energético na | 91


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preparação corporal do ator, partimos do pressuposto de que um corpo para ser preparado precisa ser conhecido anteriormente. Tomamos, no entanto, o cuidado de não racionalizarmos em demasiado o conceito de corpo, porque a racionalidade humana fica reduzida ao formalismo dos dados e à descoberta de suas relações espaço-temporais. (…) fica-se preso ao formalismo matemático e se abandona toda pretensão do conhecimento.(SILVA, 2010, p.28).”

Essa prisão ao formalismo poderia prejudicar o andamento de um processo como o que fora pretendido por nós, uma vez que não nos deteríamos ao corpo estritamente científico. O campo das artes é caracterizado por uma maior abrangência na forma de olhar e perceber o mundo que cerca o observador. Não só a ciência, mas a poesia, a subjetividade, as idiossincrasias, as afinidades artísticas, os objetivos cênicos – tudo isso é fundamental e indispensável ao pensarmos no fazer artístico e, no nosso caso, no corpo cênico. Para chegarmos a uma reflexão satisfatória foi preciso uma abordagem generosa e despida de pré-conceitos, pois “(...) ao analisar cientificamente o corpo, o ser humano acaba se afastando dele; aproxima-se de uma representação de corpo fundada na tecnicidade moderna que quer interferir nesse corpo” (SILVA, 2010, p.31). Para não corrermos o risco de nos afastarmos do corpo que estava além do corpo físico, com seus órgãos e funções já antigas conhecidas da ciência tradicional, buscamos desvendar nosso próprio fazer científico, onde as imagens, as sensações, a criatividade, as emoções, a energia pessoal e universal, a arte em si – tudo era material rico em nosso laboratório vivo. As informações sobre a TE vieram principalmente dos estudos da Professora Doutora Marília Vieira Soares. Segundo ela, energia é o modo pelo qual uma força atua. A atuação de uma força sobre qualquer outra provocaria uma mutação. Diante disso, o corpo seria uma manifestação de um conjunto de energias em constante mutação. A premissa para entender a TE seria a estética teatral como harmonia das energias que traduzem o ser humano em sua essên92 |


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cia. Segundo Soares o teatro seria um campo unificado através do circuito no qual a plateia seria o receptor e o palco o transmissor. A questão da identificação com o público seria uma questão energética. Ela afirma que o teatro seria um fenômeno energético. A autora nos diz que a preparação do movimento, nesta perspectiva, trabalharia a energia como um produto coletivo e que essa conscientização energética levaria a um estado alterado de percepção – o que define a participação da TE dentro da sala de ensaio. Soares nos deu um roteiro/ritual, chamado de “instalação”. Este ritual deveria ser repetido todos os dias antes do início do trabalho propriamente dito. Ele consistiria em um momento de harmonização da energia de todos os participantes através da meditação. Os participantes em roda de mãos dadas deveriam agitar as mãos de baixo para cima até atingirem um nível perceptível de energia. Feito isso, a energia seria jogada para o alto e trazida de volta para a terra. Em seguida, os conteúdos e atividades a serem trabalhados naquele dia deveriam ser mencionados, completando assim o momento de “instalação”. Isto geraria uma energia coletiva, um campo magnético que permearia todo o trabalho. Em seguida, para o trabalho corporal, seria necessária a ativação dos chakras (centros de energia do corpo). O método utilizado por Soares era a entoação das vogais correspondentes às regiões centrais do corpo, obedecendo à sequencia A, I, O, E, U. Marília cita o esquema de centros de energia criado por Miroel Silveira da seguinte forma: 1 – pés; 2 – joelhos; 3 – região sacral; 4 – plexo solar; 5 – cardíaco; 6 – região faringe/laringe e 7 – visual/coronário. Nessa perspectiva, os três primeiros corresponderiam à vogal A, o 4º à vogal I, o 5º à vogal O, o 6º à vogal E e o 7º à vogal U. Saltando para a investigação reikiana temos que “Reiki” significa “Energia Universal”. (REI – Universo, KI – Energia). Ele é um tratamento baseado na canalização da energia universal e sua distribuição através da imposição de mãos e do direcionamento dessa energia recebida. No Japão do início do século XX, Mikao Usui, budista e observador da energia cósmica sistematizou o Reiki, criando o Usui Reiki Ryoho Hikkei, onde ele ofereceu descrições | 93


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detalhadas das posições das mãos nos pontos específicos para o toque no corpo a fim de realizar o tratamento de certas áreas e distúrbios de saúde. A técnica reikiana é dividida em três pilares: Gassho, Reiji-Ho e Chiryo. Gassho é a meditação. Frank Arjava Petter fez o manual original do dr. Usui chegar ao ocidente e Euclides L. Calloni o traduziu para o português. Neste manual, Petter nos indicou como proceder ao realizar o Gassho: Para praticar a meditação Gassho, sente-se com os olhos fechados e as mãos postas diante do peito. Concentre toda a atenção no ponto onde os dois dedos médios se tocam. Procure esquecer tudo o mais. Se pensamentos (…) começarem a passar pela sua mente, apenas observe-os e veja-os afastarem-se.” (PETTER, 2012, p.15)

Nesse processo de meditação, não há nada a conseguir. Apenas o estado de presença e observação interna. Reiji-Ho, segundo Petter, são métodos de indicação de energia. O Reiji-Ho se inicia com breve Gassho e a partir dessa meditação, o terapeuta se sintonizaria com a energia Reiki e é neste momento em que o reikiano se transforma em um condutor de energia. Cada reikiano possui suas afirmações e frases para determinarem seus objetivos a serem atingidos na seção de Reiki que se iniciará. O Reiji-Ho, segundo nossa leitura, é o momento em que o indivíduo manifestaria sua plena presença para desenvolver a atividade. O terceiro pilar – o Chiryo – é o tratamento propriamente dito. O paciente fica deitado confortavelmente em um lugar tranquilo enquanto o reikiano realiza as posições de mão no corpo a ser tratado. Existem 12 posições principais (4 posições de cabeça, 4 de tronco e 4 de costas), mas no manual do dr. Usui estão representadas 80 possibilidades de tratamento. Além disso, a intuição do reikiano é sempre muito útil no tratamento. É a intuição e a experiência adquirida pela prática que direcionarão o reikiano no tratamento do corpo e suas enfermidades. O Reiki integra este trabalho científico trazido por Geraldo Rocha, bolsista-pesquisador graduando em Artes Cênicas e Rei94 |


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kiano Nível III-A (Mestre Interior), iniciado no Nível I em 2009, formado no Nível II em 2011 e no nível III-A em 2013. O aspecto ritualístico do Reiki não será discutido nesta pesquisa por não ser esse o nosso foco, além da necessidade da preservação e do resguardo de certas informações específicas que só dizem respeito aos iniciados no Reiki. Para essa pesquisa científica, pretendíamos encontrar uma forma do ator canalizar a sua própria energia, inspirado na técnica reikiana, porém sem a necessidade do ator ser iniciado no Reiki ou o diretor/professor que estivesse utilizando nossa pesquisa em seu trabalho fosse um mestre reikiano. Assim, o ator aprenderia as 4 posições de cabeça e as 4 posições de tronco a fim de realizar a autoimposição de mãos enquanto respiraria profundamente, ativando sua energia interior. Outra importante contribuição do Reiki para o processo foram os conceitos de yantra e mantra. Os símbolos sagrados do Reiki possuem o yantra (seu desenho – o símbolo propriamente dito) e seu mantra (o som/palavra característico de cada símbolo). A ativação da energia depende da execução do yantra, com a visualização mental da imagem do símbolo e seu desenho no ar – seu movimento – juntamente com seu mantra, seu som, suas palavras. Sobre a mandala, nossa fonte foi o trabalho de DAHLKE, 2007. Contudo, nem mesmo Dahlke se mostrou conclusivo confirmando o caráter empírico do tema trabalhado. Isto não foi, de forma alguma, um problema para o andamento desta pesquisa, pois o campo das artes abraça mais facilmente novas formas de pensamento. Inicialmente, chegamos a uma ideia sobre o que seria uma mandala. Para nós, seria uma representação gráfica de algo que gire em torno de um centro. A definição de Dahlke nos diz que “a mandala é movimento, é a roda da vida, é a imagem do universo, que surge continuamente do mesmo centro, desenvolvendo-se para o exterior e ao mesmo tempo convergindo da multiplicidade para o centro unificador.” (DAHLKE, 2007, p.28)

Essa ideia de movimento constante foi fundamental para a elaboração de uma ponte para os outros dois temas que permearam a | 95


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pesquisa – TE e Reiki – e o trabalho da preparação corporal em si. Outra possibilidade de junção de informações se deu a partir da comparação feita por Dahlke entre mandala, meditação e o jogo. Vários exemplos de mandala elucidaram e clarearam nosso pensamento e o também o daqueles que participaram de nossas atividades práticas. O Universo foi descrito como uma grande mandala composta de incontáveis mandalas. O Sistema Solar também seria uma mandala, bem como o planeta Terra, o ser humano, um cristal de terra, uma célula ou ainda, um átomo. Dessa relação entre a semelhança visual do sistema solar com o átomo, o autor nos fala sobre o microcosmo e o macrocosmo, onde o primeiro e o segundo seriam muito próximos, porém em proporções diferentes. Isto reforçou a ideia de que o ser humano está conectado energeticamente com o Universo e esta ideia complementa, segundo a nossa percepção, a possibilidade do Reiki ser a energia universal. Para complementar seu pensamento, Dahlke traz o pensamento junguiano afirmando que “foi sobretudo C. G. Jung quem, nos tempos modernos da nossa cultura, ocupou-se com as mandalas e descobriu que elas surgem como imagens interiores espontâneas, particularmente em situações críticas de caos interior; (…)” (DAHLKE, 2007, p.48).

Acreditamos que a contribuição de Jung exposta por Dahlke abriu possibilidades de entendimento da mandala pessoal de cada ator no processo prático. Durante o processo de estudo da TE, do Reiki e da Mandala, vários itens se repetiram, porém sob ópticas diferentes. Nosso trabalho consistiu nesta etapa em estabelecermos relações entre eles ou diferenciá-los, encontrando uma forma de aplicá-los de forma prática. A “instalação” veio da TE como forma de equilibrar a energia de todos os participantes do trabalho a ser desenvolvido e direcionar as atividades a serem realizadas naquele momento. No Reiki ela chegou até nós como o Gassho e o Reiji-Ho e mostrou-se importante no processo de sintonização da energia e do processo de conduzi-la para uma função. Na mandala, a meditação apa96 |


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rece como exemplo da própria forma, uma vez que a meditação concentra-se em um ponto fixo e determinado sem esquecer do que gira ao nosso redor. A questão dos centros de energia – chakras – tem função de motor criativo na TE, tem papel fundamental no tratamento reikiano e por girar ao redor de um ponto específico, é considerado uma mandala. Durante a pesquisa, a percepção do corpo e do grupo de trabalho foram endossados pelo pensamento de Silva quando ela diz que “(...) é através do corpo que o ser humano se relaciona com o restante da Natureza e, nessa relação, constitui sua própria subjetividade. (SILVA, 2001, p.37)”. Foi justamente dessa relação entre o homem e a construção da subjetividade que conseguimos analisar os resultados práticos obtidos e sua consonância com a teoria levantada. No decorrer da pesquisa, percebemos que a Técnica Energética que nomeia este trabalho não é estritamente a utilizada por Marília Soares. Ela também não é um tratamento reikiano em grupo, pois seu objetivo enquanto método é contribuir com nova gama de elementos para o trabalho de qualquer profissional das artes cênicas, especialmente os atores, mas também os diretores, bailarinos, performers e afins, independente de haver um reikiano presente na sala de trabalho. Chegamos a uma Técnica Energética Híbrida que absorveu elementos de três pilares (TE, Reiki e Mandala) e que gerou produtos artísticos. Nossa metodologia foi aplicada no Grupo Artes Cênicas Omkara (Ouro Preto) e manteve o ritual inicial descrito por Marília Vieira, ora através da roda de abertura dos chakras, ora através da autoimposição de mãos realizada pelos membros do grupo. A abordagem dos chakras seguiu os pressupostos reikianos. Os participantes passaram por um período de autoconhecimento, pois julgamos benéfico ao ator conhecer-se antes de emprestar seu corpo a algum personagem ou trabalho cênico. Uma vez trabalhados os chakras com seus fatores naturais, suas funções emocionais e bloqueios, os participantes elegeram seus pontos centrais pessoais e desenharam suas mandalas de aquecimento. Uma vez desenhada, ela serviu de roteiro para seu aquecimento corporal e vocal tanto para o trabalho em sala de ensaio quanto para a | 97


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preparação de antes de entrarem em cena. Outra contribuição desta pesquisa é a mandala corporal, onde os atores em círculo criaram formas de alongamento e aquecimento corporal onde todos utilizariam os apoios dos corpos dos outros atores para formarem uma imagem circular enquanto preparavam seus corpos para o início das atividades. Ao fim da pesquisa, chegamos a uma metodologia híbrida de trabalho que, através da meditação, da ativação da energia pessoal e da representação gráfica do corpo em movimento constante, ofereceria ao corpo cênico potencialidades de presença e prontidão que transitam entre a sala de ensaio e a força deste corpo na cena. A metodologia desenvolvida durante a pesquisa continua a ser utilizada dentro do grupo Artes Cênicas Omkara e, como a pesquisa também está em constante movimento, apresenta variações individuais, fruto da apropriação das ideias e exercícios trabalhados segundo o interesse dos atores. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DAHLKE, Rüdiger. Mandalas: formas que representam a harmonia do cosmos e a energia divina. São Paulo: Pensamento, 2007. PETTER, Frank A.. Manual de Reiki do Dr. Mikao Usui. Tradução de Euclides L. Calloni. 6ª edição. São Paulo: Editora Pensamento-Cultrix, 2012. SILVA, Ana Márcia. Corpo, ciência e mercado: reflexões acerca da gestação de um novo arquétipo da felicidade. Campinas, SP: Autores Associados: Florianópolis: Editora da UFSC, 2001. SOARES, Marília Vieira. Técnica Energética: fundamentos corporais de expressão e movimento criativo. 182p. Tese (Doutorado). Faculdade de Educação. Universidade Estadual de Campinas, SP, 2000.

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INTERFERÊNCIAS ADVINDAS POR MEIO DA APLICABILIDADE DE MATERIAIS EXPRESSIVOS, REALIZADAS PELO CENÓGRAFO EM ESTRUTURAS ARQUITETÔNICAS URBANAS, PARA A COMPOSIÇÃO CENOGRÁFICA TEATRAL Daniel Marcos Pereira Mendes - Daniel Ducato Orientador: Prof. Dr. Rogério Santos de Oliveira Mestrado Acadêmico, UFOP, bolsista CAPES

INTRODUÇÃO O espaço do teatro contemporâneo é o centro de experiências demasiado numerosas para ser reduzido a algumas características. Toda dramaturgia, e mesmo todo espetáculo é objeto de uma análise espacial e de um reexame de seu funcionamento. O espaço não é mais concebido como concha em cujo interior certos arranjos são permitidos, mas como elemento dinâmico de toda concepção dramatúrgica. Ele deixa de ser um problema de invólucro para tornar-se o lugar visível da fabricação e da manifestação de sentido. (PAVIS, 2011, p.135).

A Cenografia Teatral é um dos elementos da encenação que sofreu notáveis mudanças no teatro contemporâneo, em consonância com as variações também percebidas nos Espaços Cênicos. Partimos do princípio de que um Espaço Cênico não é tão somente uma caixa preta ou um espaço retangular, aonde se instala um pano de fundo, com um ator situado à frente a interpretar um texto e do outro lado uma plateia para assisti-lo. Existem outros espaços aonde a ação cênica pode se desenvolver, que se diferenciam daqueles modelados para o fim teatral e que contemporaneamente podemos entendê-los enquanto “espaços alternativos de uso não convencional”. Nos espaços alternativos ocorrem inúmeros agenciamentos, devido à mutabilidade de lugares impregnados de significações | 99


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que podem ser dinamizados para uma encenação. De acordo com Michel de Certeau, o “lugar” denota uma apresentação estável de um certo arranjo ou ordenação de elementos. Cito-o: “Um lugar é uma ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de coexistência. Aí se acha portanto excluída a possibilidade, para duas coisas, ocuparem o mesmo lugar. Aí impera a lei do ‘próprio’: os elementos considerados se acham uns ao lado dos outros, cada um situado num lugar ‘próprio’ e distinto que o define. Um lugar é portanto uma configuração instantânea de posições. Implica uma indicação de estabilidade. (CERTEAU, 2014, p.184).

Segundo CERTEAU (2014, p.184) o “espaço é um lugar praticado”, quando as ações e os deslocamentos de pessoas e coisas, em consonância ou repelência, impregnam os lugares de fluxos, significando-os enquanto espaços. Ele escreve: Existe espaço sempre que se tomam em conta vetores de direção, quantidades de velocidade e a variável do tempo. O espaço é um cruzamento de móveis. É de certo modo animado pelo conjunto de movimentos que aí se desdobram. Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais. (CERTEAU, 2014, p. 184).

Por analogia a este mesmo viés, Milton Santos em seu estudo sobre a geografia e a leitura do espaço social, nos ilumina sobre as possíveis definições de espaço. Para SANTOS (2002, p. 61) o espaço pode ser percebido como “um conjunto de fixos e fluxos”. Segundo o autor: Os elementos fixos, fixados em cada lugar, permitem ações que modificam o próprio lugar, fluxos novos ou renovados

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que recriam as condições ambientais e as condições sociais, e redefinem cada lugar. Os fluxos são um resultado direto ou indireto das ações que atravessam ou se instalam nos fixos, modificando a sua significação e o seu valor, ao mesmo tempo que, também, se modificam. (SANTOS, 2002, p. 61-62).

E refinando o raciocínio sobre a lógica da fixação dos elementos em um dado lugar e a constituição espacial dada pelo fluxo destes elementos, Santos completa: A Configuração Territorial é dada pelo conjunto formado pelos sistemas naturais existentes de um dado país ou numa dada área e pelos acréscimos que os homens superimpuseram a esses sistemas naturais. A configuração territorial não é o espaço, já que sua realidade vem de sua materialidade, enquanto o espaço reúne a materialidade e a vida que a anima.” (SANTOS, 2002, p.62).

Dissertaremos neste artigo acerca da “encenação vinculada a um determinado lugar”. De acordo com Patrice Pavis, em seu Dicionário de Teatro, tratam-se das: Encenações e espetáculos concebidos a partir e em função de um lugar encontrado na realidade (e, portanto, fora dos teatros estabelecidos). Grande parte do trabalho reside na procura de um lugar, muitas vezes insólito, carregado de história ou impregnado por uma forte atmosfera: barracão, fábrica desativada, parte de uma cidade, casa ou apartamento. A inserção de um texto, clássico ou moderno, neste local descoberto lhe confere uma nova iluminação, uma força insuspeitada, e instala o público numa relação completamente diferente com o texto, o lugar e a intenção. (PAVIS, 2011, p. 127).

Parte de nossos estudos estão direcionados aos processos inerentes à encenação teatral contemporânea, quando a arquitetura elegida e a configuração cenográfica proposta pelo Cenógrafo | 101


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(em conjunto com o diretor e os atores), dinamizam a tessitura dramatúrgica. Em sua tese de doutoramento, Rogério Santos de Oliveira profere: Cuando un nuevo elemento es incorporado al proceso creativo, no solo pasa a ser un elemento estético, sino también un elemento con posibilidad de juego en dicho proceso. Una escenografía que se incorpora al trabajo, por ejemplo, se transforma en estructura de juego, en fuente de descubrimientos, en tanto que posibilita distintas relaciones estructurales de los actores con su espacio de juego. (OLIVEIRA, 2009, p. 200)19.

Discorreremos nossa análise sobre os processos criativos e técnicos intrínsecos à composição cenográfica a partir do estudo de um caso relativo a uma ocupação realizada na cidade de Belo Horizonte. A ocupação de espaços alternativos é recorrente no teatro realizado contemporaneamente. Muitos dos artistas cênicos optam pela realização de seus espetáculos nestes lugares, com o intuito de usufruírem das suas partes arquiteturais (pilastras, portas, grades, janelas, etc.) e também dos objetos encontrados (livros, cadeiras, macas, etc.). Nestas ocupações (em espaços que se encontram abandonados, em ruínas ou vazios) além das características físicas, identificamos relações mais profundas, inerentes à carga de suas dimensões simbólicas. Entendemos que existe também um outro sentido presente nas ocupações cênicas, quando os espaços elegidos se encontram ativos, e de certa forma habitados. Nesta acepção, existe uma co -habitação espacial, um “habitar com”. É também dentro da proposição de ocupação e/ou co-habitação “Quando um novo elemento é incorporado ao processo criativo, não só se torna um elemento estético, mas também um elemento com possibilidade de jogo neste processo. Uma cenografia que é incorporada ao trabalho, por exemplo, se transforma em estrutura de jogo, uma fonte de descobertas, que possibilita distintas relações estruturais dos atores com seu espaço de jogo”. (tradução nossa).

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que acontecem as instalações cenográficas, isto é, a intervenção e aplicação de elementos cenográficos sobre as estruturas arquitetônicas, compondo novas camadas às camadas pré-existentes. Análogo a este pensamento da sobreposição de camadas, estão evidenciados nossos esforços de rascunhar junto à codificação cenográfica símiles ao termo palimpsesto. Na Idade Média, o termo significava a condição de se apagar os escritos dos pergaminhos, para uma nova escrita sobre o suporte antigo. Palimpsesto significa literalmente “aquilo que se raspa para escrever de novo”. De acordo com (CERTEAU, 2014, p.280), “O lugar é o Palimpsesto”. COMPOSIÇÃO CENOGRÁFICA E MATERIAIS EXPRESSIVOS Partimos da definição de que composição é uma organização, disposição ou arranjo de elementos, no intuito da criação de mensagens visuais. Conferindo esse significado às artes, no que tange a construção cenográfica, a composição lida com a distribuição dos elementos formais (pontos, linhas, cores, texturas, formas dinâmicas, etc.) pelo espaço, a partir de um ou alguns princípios da linguagem visual (equilíbrio, harmonia, proporção, ritmo, etc.). A composição cenográfica teatral herda um vasto repertório de possibilidades para ser agenciada, desde o vazio completo, passando pelas proposições de pinturas de painéis, podendo transitar por propostas simbolistas advindas do uso da iluminação sobre tridimensionalidades arquiteturais e ainda, inclusive, se articular através de um vetor hibrido composto por vários modos de operação. Os objetos cênicos, os adereços, os figurinos e a cenografia, são todos elementos pronunciados pela composição de materiais de caráter expressivo. Entendemos por materiais expressivos toda matéria, materiais e objetos que articulados, modificados, aplicados, gesticulados, venham gerar sentido de expressividade artística. Percebemos que o entendimento da expressividade cênica de um determinado material, está ligada por dois aspectos: 1) Aspecto vinculado à sua composição física e estrutural, que também é pertencente ao seu alcance visual; e 2) Aspecto vinculado aos princípios cinéticos, decorrentes da dinamização advinda de sua composição espacial (pela dinâmica visual das formas) e propriamente | 103


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vinculado à sua ação (pelo movimento no instante da cena). ESTUDO DE CASO: “ROSINHA DO METRÔ” “Rosinha do Metrô” é um texto teatral escrito por Fernando Limoeiro, que foi encenado no ano de 2010 com a direção de Raquel Castro, como Espetáculo de encerramento de Curso do Teatro Universitário da UFMG (TU). Através de um Projeto de Ensino Docente em Caracterização Cênica, me foi designada a parte de Direção de Arte, no que tange a resignificação e caracterização do espaço, além da concepção e execução da cenografia e dos figurinos. Estavam presentes no texto de Limoeiro as premissas sobre o ambiente onde a história se passaria: um barracão do canteiro de obras da construção do metrô da cidade do Rio de Janeiro, na década de 1970. Precisávamos achar um local escuro, com as características de uma edificação não acabada. Nos alimentávamos das imagens de um ambiente incompleto, mal iluminado, com muita poeira, terra e restos de materiais de construção. Não que fosse necessário trazer tal realismo para dentro da cena, mas gostávamos da ideia de inserir nosso público em um lugar úmido, que cheirasse mofo, para que imersos nessa atmosfera a história ganhasse ainda mais força. Foi sugerido para a montagem de “Rosinha do Metrô” a intervenção no espaço conhecido por GRUTA, conduzido pelo “Coletivo Casa de Passagem”. Trata-se de uma casa situada na região do Bairro Horto, em Belo Horizonte, que já foi explorada enquanto espaço para investigação de outros espetáculos e hoje é utilizada para atividades artísticas e culturais. Após a ocupação e o mapeamento de todas as áreas da GRUTA, pudemos perceber outros fatores que influenciaram diretamente na concepção do espetáculo: 1) O reconhecimento dos espaços pelos atores; 2) O vasto processo para a escolha de pontos específicos que seriam destinados às cenas; 3) A localização geográfica e a inserção do público; 4) A composição cenográfica; 5) A iluminação mais adequada; 6) A influência dos fatores não materiais 104 |


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que existiam dentro daquele ambiente, como os ruídos urbanos e os cheiros impregnados. Os ensaios que aconteciam nas salas do TU foram transferidos para a GRUTA. Passamos juntos pelo processo de investigação dos cômodos e chegamos à um delineamento do nosso fluxo para dinamizar a encenação. O público adentrava a GRUTA através de um corredor (aonde já acontecia uma cena) e depois migrava até o salão principal. Tanto o salão quanto o corredor são cobertos por telhas de amianto antigas, suportadas por caibros velhos e ripas de madeira desiguais. No salão o público era locado em bancos compridos de madeira velha, que possuíam uma proximidade visual com os caibros do telhado. Ali o público permanecia até o final do espetáculo. Além do salão principal as cenas aconteciam em vários outros pontos: 1) Haviam três cômodos situados ao fundo (vistos através da abertura das janelas e portas de madeira) que imprimiam profundidade ao salão principal; 2) Foram utilizados os arredores da base da ampla escada fixa de madeira, como também da exploração dos seus planos baixo, médio e alto. 3) A escada dava acesso à uma laje, aonde havia uma grade de metal com uma portinha. O público podia ver as cenas com os atores por detrás da grade, mesclado este ponto de vista à outras cenas que ocorriam concomitantemente na parte de baixo. A cenografia foi composta sobre a arquitetura. No salão principal foram instalados sacos de linhagem cheios de areia, inteiros e rasgados, colocados disformemente sobre uma plataforma que foi montada na lateral esquerda. Os sacos com areia também foram dispostos pelos demais pontos de visão do público, de forma a reforçar a ideia do canteiro de obras. A dinamização da dramaturgia também se evidenciou através das interferências pictóricas. De súbito veio o desejo de reforçar a carga de abandono através da mimese de mofo e poeira, por meio da aplicação de outras camadas de tinta. Também foram aferidas “escarificações” sobre as camadas de pintura, tal qual as arranhaduras nas paredes para a contagem do tempo realizadas pelos detentos. A síntese para arrematar nosso espaço simbólico veio através | 105


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do uso da iluminação. Lembro-me de um dia adentrar o espaço e ver que estavam sendo instalados alguns refletores elipsoidais no salão principal. Eu fiquei confuso com a interferência, pois não conseguia compactuar aquele ambiente danificado com os refletores teatrais dependurados. Daí surgiu a ideia de se trabalhar com uma iluminação mais improvisada. Foram feitas instalações elétricas com aspecto de precárias, distribuídas por pontos estratégicos das cenas, que completaram a visualidade desejada. A sensação de abandono e decadência que já eram latentes se potencializou depois das nossas interferências e agenciamentos espaciais. Investigamos as relações de resignificação espacial, pensando a arquitetura urbana e a composição cenográfica não como um simples suporte, mas enquanto elementos da encenação, que interferem e que modificam a narrativa cênica. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS - CERTEAU, Michel de. A invenção do Cotidiano: 1. Artes de fazer. Tradução: Ephraim Ferreira Alves. 21. ed. - Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. - OLIVEIRA, Rogério Santos de. El Proceso Creativo Teatral: Conceptualización y análisis a través de su aplicación a la obra de de Albert Boadella y Els Joglars. Alcalá - Espanha: Tesis Doctoral. Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Alcalá, 2009. - PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Tradução: J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. 3. ed. - São Paulo: Perspectiva, 2011. - SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4. ed. 7. reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012.

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A DIREÇÃO TEATRAL E A CONFORMAÇÃO DO “SISTEMA CULTURAL” NA CRIAÇÃO CÊNICA Du Sarto. (Luiz Carlos Costa Sarto) Orientador: Rogério Santos de Oliveira Mestrado em Artes Cênicas, UFOP, Bolsista Capes

O objetivo deste artigo é refletir sobre a possível formação de um sistema cultural desenvolvido em um processo de criação cênica20 a partir do viés da Direção Teatral. Em um processo de criação cênica tradicional o diretor, geralmente, planeja as atividades a serem desenvolvidas e as executa em sala de ensaio para o desenvolvimento do processo de criação proposto. Como características deste planejamento inicial constam como atividades geridas pelo diretor: o desenvolvimento de metodologias, a aplicação de técnicas e/ou indicações estéticas a serem investigadas e/ou utilizadas no desenvolver do processo de criação. No desenvolver destas atividades de criação propostas, suscitamos que exista uma interação entre os elementos cênicos envolvidos21. E também que esta interação possa originar uma série de relações entre estes elementos, de tal maneira, a se transformarem em um conjunto padronizado de materiais criativos utilizados pelos participantes do dado processo, quase como uma conduta específica ou um vocabulário de ações, que por sua vez dominados pelos integrantes de determinado grupo, formaliza um sistema próprio de comunicação, estabelecendo uma linguaEntendemos aqui, por processo de criação cênica um agrupamento de artistas cênicos, que localizados em um dado espaço de criação – e/ou ensaio – por um período de tempo contínuo e cotidiano desenvolve atividades técnicas e de criação, se dispondo a agir a partir de estímulos criativos, guiados ou não por um diretor, e desenvolvendo assim ações que constituem uma memória coletiva dos acontecimentos ali gerados, com base no estabelecimento de signos, condutas e comportamentos coletivos vivenciados e revividos a cada novo encontro pelos participantes de dado processo em atividade de criação. 21 Como elementos cênicos entendemos todos os elementos que possam vir a constituir a cena como: diretor, atores, performers, bailarinos, textos, objetos, iluminação, cenário, figurino entre outros. 20

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gem em comum aos envolvidos. Para Santos (2002:326): “A cultura, maneira de comunicação do individuo e do grupo com o universo, é uma herança, mas também uma reaprendizagem das relações profundas entre o homem e seu entorno.” Já para Geertz (apud Laraia, 2009:63): “Estudar a cultura é, portanto, estudar um código de símbolos partilhados pelos membros dessa cultura”. Ainda para ele (Geertz apud Laraia, 2009:63) “os símbolos e os significados são partilhados pelos atores (os membros de um sistema cultural) entre eles.”. Referimo-nos nesta fase inicial de pesquisa somente a relação estabelecida entre ator e diretor desenvolvida durante a criação, pois apesar da variedade possível de elementos cênicos contidos num processo de criação, manteremos como foco de pesquisa a ação destes indivíduos. Isto, por serem eleitos aqui, como os primeiros elementos causadores desta ação22 - elemento fundamental na criação cênica - e no estabelecimento de relações, além de seu estabelecimento entre os outros possíveis elementos criativos que possam ser acrescidos em um processo criativo. Assim, a partir desta relação, entre o conteúdo desenvolvido pelo diretor junto aos atores, e o estabelecimento das relações dos atores com este conteúdo, e quiçá com outros elementos advindos da criação, acreditamos originar-se neste espaço de ensaio um provável “sistema cultural” de criação, específico e reconstituído a cada novo processo de criação desenvolvido por um grupo de indivíduos artistas. Para Laraia (2013: 45): O homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é um herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquiridas pelas numerosas gerações que o antecederam. A manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural permite as inovações e a invenções. Estas não são, pois, o produto da ação isolada de um gênio, mas o resultado do esforço de toda uma comunidade. 22 Entendemos aqui “ação” como sendo “iniciar, por em movimento” (ARENDT, 2003:190).

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Estas relações de conhecimento e aprendizado repassadas de geração em geração podem ser vistas como elementos de constatação da cultura em uma sociedade, quiçá a própria cultura, que dinâmica23, sempre se coloca em movimento de ação e reconstrução através das experiências adquiridas, repassadas e renovadas pelos seus próprios membros envolvidos num dado contexto sociocultural. Para Geertz (1973:39) “As formas da sociedade são a substância da cultura”. Pensamos então que: O que seria a construção de um processo cênico de criação senão uma forma de sociedade específica, e que desenvolve sua própria cultura? A princípio já para uma reflexão breve, pensemos sobre este processo de criação cênica como sendo, um lugar em desenvolvimento, sempre dinâmico, onde as ações dos envolvidos fundam um dado grupo social, e através da relação gerada entre estes estabelece suas vivências em um mesmo espaço-tempo, assim originando modelos de comunicação, de aprendizagem e assim a padronização de uma linguagem em comum. Destacamos aqui alguns paralelos junto ao conceito de cultura que podem elucidar nosso pensamento: 1 a cultura como determinante no comportamento do homem e influenciadora de suas realizações – Que no processo de criação: pode ser visto como o grupo de artistas reunidos em uma sociedade específica e que reproduz cotidianamente sua linguagem de trabalho e reaprendizagem da mesma; 2 a ação do homem sob os aspectos de padrões culturais – Que no processo de criação: podem ser vistos como os padrões de linguagem e códigos estabelecidos pelos artistas em criação; 3 o processo de troca envolvido na aprendizagem para dada função – Que no processo de criação: pode ser visto como as relações entre os envolvidos geradas pelas práticas de atividades individuais/coletivas e que trazem um conhecimento adquirido para o desenvolvimento de dada atividade criativa ou técnica; além do processo acumulativo adquirido por uma relação histórica com suas ações passadas estimulando a ação criativa e a produção de um novo material a partir de produções “No Manifesto sobre aculturação, resultado de um seminário realizado na Universidade de Stanford, em 1953, os autores afirmam que ‘qualquer sistema cultural está num contínuo processo de modificação” (Laraia, 2013:96).

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já realizadas – e por ultimo, 4 a geração de símbolos e códigos próprios – Que no processo de criação: podem ser vistos como as ações, jogos condutas, signos, estruturas físicas, marcos temporais, entre outros - que se repetem cotidianamente, e dia a dia, vão se compondo e gerando novos materiais criativos num procedimento de “reavivamento” e continuidade do processo de criação. Ainda para Geertz: Os símbolos e significados são partilhados pelos atores (os membros de um sistema cultural) entre eles, mas não dentro deles. São públicos e não privados. (...) Estudar cultura é, portanto, estudar um código de símbolos partilhados pelos membros dessa cultura (GEERTZ apud Laraia, 2013:63).

Também se faz interessante para nós, o pensamento de Geertz (1973) em relação ao símbolo e a percepção do homem como ser cultural, envolvido em uma cultura específica e que se manifesta e se comunica através símbolos dessa cultura, fazendo deles códigos e marcos de suas presença e historicidade naquela determinada sociedade. Voltemos a pensar num processo de criação cênica, onde a simbolização como maneira de comunicação e percepção do individual e coletivo também é bastante pertinente, e necessária para um entendimento do que está sendo produzido e desenvolvido como material criativo, pois ao gerar símbolos para demarcar aquela vivência coletiva ou uma ação individual, os artistas conformam um sistema de comunicação entre si, que possivelmente será reestabelecido a cada reencontro e gerará uma linguagem comum a todos, tornando-o, um significado padronizado do que foi apreendido por todos os participantes daquela esfera cultural. Assim formando padrões de comunicação, ou podemos dizer, padrões culturais entre os envolvidos. O conceito de cultura para Geertz: Denota um padrão de significados transmitido historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida (Geertz,1973:103).

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Nestas pontuações acima nos são interessantes para a reflexão cultural do processo cênico: a cultura pensada como sistema, ou seja, padrões estabelecidos socialmente por um grupo, e que geram sistemas culturais e de reestabelecimento do mesmo. Ao produzir um material criativo, através de jogos e ações cênicas, e estabelecê-lo como padrão de conduta entre envolvidos, estes constroem a partir de seus códigos e signos próprios um sistema cultural do processo criativo no qual estão envolvidos, que pode ser apreendido e ressignificado pelo próprio grupo de artistas em criação a todo o momento. Acreditamos ser esta abordagem, da cultura como sistema simbólico, bastante útil em nosso intento de alcançar um conceito de cultura que abarque as investigações da construção e o possível ambiente cultural desenvolvido na criação de um processo cênico, tanto por suas características ligadas a uma análise semiótica dos elementos que para o autor compõe a cultura, quanto por suas definições abrangentes em relação aos termos: símbolos, sistema social, padrão de comportamento e sistema cultural. Ao trazermos as reflexões de Geertz (1973) sobre o conceito de cultura, e relacioná-las ao processo de criação, concluímos então na exposição deste estudo, ainda em fase inicial, com uma definição do que seria até o momento, para nós, o sistema cultural do processo de criação cênica pensado sob um sistema simbólico: este seria então um complexo de atos simbólicos – códigos e /ou estruturas conjuminadas - que partilhados pelos atuantes de um grupo específico e estabelecidos a partir de sua comunicação, relacionam-se diretamente com a maneira de existir e desenvolver de um grupo em ação num dado espaço de criação. Ao congregarmos um grupo de artistas em uma sala de ensaio e desenvolvermos junto a eles atividades de criação, sejam individuais ou coletivas, estamos criando ali uma experiência de vida em comum e modelando processos sociais que possivelmente se transformarão em sequencias de novos processos, desencadeando uma relação de trocas e experiências coletivas entre os envolvidos, gerando assim um histórico e uma dada identidade a aquele processo, tornando-o assim a partir do convívio de seus integrantes um ambiente social. | 111


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Ao pensarmos o processo de criação como sendo um ambiente social, suscitamos que ele também venha a ser um ambiente potencializador de uma cultura, ou um ambiente cultural de fato, padronizado por sistemas culturais próprios de seu desenvolvimento. Portanto, entendemos os processos cênicos em espaço de criação - espaço de ensaio - em desenvolvimento entre ator(es) e diretor, como sendo uma maneira de comunicação dos mesmos: com seu espaço, seus companheiros de trabalho, entre suas ações ali realizadas e suas memórias advindas do próprio processo criativo em desenvolvimento. Produzindo assim, uma sucessão de signos, estruturas, relações e comportamentos próprios daquele grupo em estado criativo e que são apreendidos e partilhados pelos membros do mesmo, assim se conformando como um sistema cultural específico do processo de criação cênica estabelecido. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2003. BRAUN, Edward. El director y la escena. Del naturalismo a Grotowski. Buenos Aires, Ed Galerna, 1986. CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas. São Paulo, EDUSP, 1998. GEERTZ, Clifford. A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro, Ed Zahar, 1973. HOBSBAWN, Eric. RANGER, Terence. A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 1984. LARAIA, Roque de Barros. Cultura um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2009. OLIVEIRA, Rogério Santos de. O Espaço-Tempo da Vertigem. Grupo Teatro da Vertigem. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, 2005. ROUBINE, Jean-Jaques. A Linguagem da Encenação Teatral. Rio de Janeiro, Ed Zahar, 1998. SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. São Paulo: Editora EDUSP, 2002.

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ESTRUTURAÇÃO DO CONCEITO DE ATMOSFERA CÊNICA Robison Breno Oliveira Carvalho Orientador: Rogério Santos de Oliveira Mestrando. UFOP, Bolsista UFOP

No intuito de estabelecer o foco de nossa pesquisa, buscaremos aqui ampliar a conceituação da utilização do termo ‘atmosfera’. Como sabemos esse termo originalmente provém dos estudos da Física; que por sua vez, indica uma camada de gases que envolvem e acompanham a Terra em todos os seus movimentos devido à força da gravidade. Nosso interesse, no entanto recai sobre a utilização metafórica do termo. Gernot Böhme, filósofo alemão, afirma que o termo passou a ser usado metaforicamente a partir do século XVIII, certamente evidenciado pelos ideais românticos. O emprego do termo nesse caso aparece indicando que “algo está no ar”, ou que o ambiente está sendo afetado por uma relação entre os objetos e a situação, que se alteram a partir de sua percepção. It is only since the 18th century that it has been used metaphorically, for moods which are “in the air”, for the emotional tinge of a space. Today this expression is commonly used in all European languages; no longer it seems artificial and is hardly even regarded as a metaphor. (Böhme, 2013, p. 2)24

Assim, pretendemos colocar aqui uma relação entre este estudo da estética, no qual o termo ‘atmosfera’ é tratado pelo filósofo Gernot Böhme e o conceito estabelecido por Michael Chekhov no Foi somente a partir do século 18 que o termo passou a ser usado metaforicamente, para indicar o estado de animo que esta “no ar”, para o tom emocional de um espaço. Hoje, essa expressão é comumente usada em todas as línguas europeias; já não parece tão artificial e dificilmente é mesmo considerada como uma metáfora. (tradução nossa)

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livro ‘para o ator’. Chekhov propõe a efetivação de uma atmosfera cênica que dê suporte à ação do ator. Um ambiente propício à encenação, que envolva o ator em seu trabalho criativo e por sua vez abrace também o espectador dentro do evento teatral. Os estudos realizados por Böhme seguramente reforçam o posicionamento de Chekhov e nos possibilitam ampliar o conceito. Interessante afirmar que este esclarecimento nos fornecerá dados que servirão de base para compreender como a dita “atmosfera cênica” é construída na criação teatral. Começamos então por entender o termo e suas utilizações. A expressão atmosfera é comumente utilizada metaforicamente de múltiplas formas sendo recorrente nos estudos de estética da percepção e da recepção. Sob esta perspectiva a palavra é sempre empregada para demonstrar, significar ou representar: sentimentos, humor, ambiência, tonalidades e sensações. Pode apresentar a distinção entre pessoas, objetos e espaços. Também é possível falar da atmosfera de uma manhã ensolarada ou de uma tarde chuvosa, da atmosfera de uma sala onde acabou de acontecer um encontro amoroso, a atmosfera de uma cidade, de uma rua, ou de uma época, ou da atmosfera que ronda uma personalidade. Muitos fatos ou eventos podem ser descritos pela sua utilização metafórica. De modo que seu efeito está presente de uma forma etérea no espaço onde se instaura uma ação, evidenciada na relação entre sujeito-objeto de modo que sua atuação é capaz de alterar a percepção que temos do ambiente. Segundo Böhme: Atmosphere can only become a concept, however, if we succeed in accounting for the peculiar intermediary status of atmospheres between subject and object. (Böhme, p. 114)25

No entanto a atmosfera não está nem na esfera do objeto nem do sujeito, pelo contrário, é uma co-presença que existe na relação sujeito/objeto. A atmosfera só é diferenciada, retrospectivamente, a partir da percepção que estabelecemos nas polaridades Atmosfera só pode tornar-se um conceito, no entanto, se conseguirmos perceber o estado intermediário peculiar de atmosferas entre sujeito e objeto. (tradução nossa) 25

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entre o ‘eu’ e a ação que percebo, assumindo assim um pacto fixo entre sujeito e objeto. Uma atmosfera flui para fora do espaço, alterando a sua percepção e transformando-o em um lugar; mesmo que não seja de maneira definitiva. Nós só podemos acompanhar a sua presença na medida em que temos a experiência direta da mesma. É preciso estar aberto para entendê-la e assim, ser afetivamente influenciado por ela, afetado em ambos os sentidos da palavra. Logo, por exemplo, um determinado estado de espírito alegre ou depressivo pode prevalecer em um ambiente, em detrimento ao outro, entendendo claramente que isso não é um fato subjetivo. A atmosfera é a sensação que temos a partir de uma experiência imediata quase que exterior a nós. Assim, o que aqui designamos como atmosfera da cena é uma condição comum para a percepção individual de sua ambiência. Temos então uma experiência imediata a partir dos “fenômenos atmosféricos”, como qualidades que podem proporcionar a ligação da energia no corpo ou o sentido emocional com as forças da natureza personificadas no ambiente da cena. Procuramos então colocar o ponto de convergência em que constatamos o entendimento deste estudo acerca da utilização do temo e a sua efetivação prática, fato que conduzirá a nossa pesquisa. Pontuando aqui o entendimento da efetivação, ou construção, de uma ambiência especifica criada para uma situação ou cena. Algo que provoque e estimule a relação entre emissor e receptor. Na percepção da cena, o indivíduo não apenas sentirá a presença do fenômeno externo, mas algo em seu próprio corpo relacionado com o que ele sente ou percebe. As materialidades surgem aqui a partir da necessidade do estabelecimento desta atmosfera, percebê-las é um processo dinâmico, porque elas próprias produzem atmosferas e, portanto, o nosso sentido de contextualização. Assim, promovem a sensibilidade para a percepção da cena através de uma atmosfera que abrace sujeito e objeto. De modo que os processos criativos de sua instauração devem ser cuidadosos, no sentido de que um equívoco em construção pode afetar todo o evento cênico. O que distingue esta materialidade é o seu lugar espacialmente estabelecido, sua corporeidade, a sua identidade, a forma como | 115


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funciona como potência, ou ponto de condensação de qualidades que possam ser percebidas atmosfericamente. É sua a percepção que constitui a primeira relação sujeito-objeto e que criará um ponto de contato entre ambos. Nós podemos experimentar de fato que existe um mundo objetivo além do sujeito, tal como definido por essa relação afetiva que Chekhov nos propõe: Os atores que possuem ou recém adquiriram amor e compreensão pela atmosfera de uma performance sabem muitíssimo bem que forte vínculo ela cria entre eles e o espectador. (Chekhov, 1986, p.52)

Este vínculo é algo que está entre o sujeito e o objeto. Algo suspenso no ar entre o tempo e o espaço, ou que seja o próprio tempo/espaço a atmosfera que envolve tanto o sujeito quanto o objeto. É a atmosfera instaurada no ambiente que abraça a performance do ator/criador/artista. No entanto, quando a atmosfera está plenamente instaurada ela envolve tanto o artista quanto o espectador que é o receptor da obra. Aqui consideramos o espectador como um elemento que faz parte do processo criativo. Sendo este espectador, então, integrante da criação artística. Inclusive dentro da encenação é fato importante pensar o lugar da audiência, de modo que a recepção esteja integrada dentro processo de criação da obra. Um desempenho coercivo, irresistível resulta da ação recíproca entre o ator e espectador. Se os atores, diretor, autor, cenógrafo e, com frequência, os músicos criaram verdadeiramente a atmosfera para a performance, o espectador não será capaz de lhe permanecer distante, mas, pelo contrário reagirá com inspiradoras ondas de amor e confiança. (Chekhov, 1986, p. 52)

Este pensamento revela onde o autor nos afirma que a atmosfera é dada na articulação dos elementos da cena. A sua construção acontece em acordo íntimo com a criação geral do espetáculo. Ampliando esta visão fica evidenciado que ela permeia todo o 116 |


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espetáculo, estando presente em todos os seus elementos. Isto é, a atmosfera está diretamente relacionada com a articulação de todos os elementos presentes na cena. É importante entender o que vem a ser esta articulação. Pois é na confluência dos objetos que se instaura a atmosfera, é na articulação certeira destes que se torna possível estabelecer um acordo íntimo que constitua o diálogo entre sujeito e objeto. Temos na percepção deste acontecimento o ponto de explosão onde fica esclarecida e relação afetiva que se forma ao redor da cena. Cada elemento então deve pensado, estudado e estruturado formando dentro do evento cênico teatral a confirmação de sua efetiva presença. É neste momento que se torna justificável a presença do olhar de um diretor que coordene estes elementos de modo que sua construção seja harmoniosa. O espaço, o ar em redor que você encheu de atmosfera sempre sustentará e despertará novos sentimentos e impulsos criativos. A atmosfera incita-nos a atuar em harmonia com ela. (Chekhov, 1986, p. 54)

O que é a força dinâmica e propulsora que impulsiona a atmosfera? Esta pergunta certamente é a base de nossa pesquisa. Buscamos aqui entender os meios pelos quais se instaura atmosfera no âmbito da encenação e como esta a influencia. De fato, colocamos em nossa proposta o diretor como o articulador dos elementos que conformarão a atmosfera. Não existe atmosfera desprovida de dinâmica interior, vida e vontade. Tudo o que se precisa para obter inspiração vinda dela e abrirmo-nos para seu influxo. (Chekhov, 1986, p. 55)

A instauração deste movimento dinâmico conduz o jogo da cena à concretização da atmosfera propícia ao acontecimento cênico. A articulação dos elementos, a ativação da memória relativa às espacialidades, o fluxo dos sentidos, conduz atores e espectadores a se perceberem na cena. Logo, quando todos se percebem | 117


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é porque estão realmente dentro da cena. É este exato momento quando está estabelecida a atmosfera. Quando os atores e espectadores se entendem na dinâmica do processo e se estabelecem dentro da cena é que a atmosfera está instaurada É através do sensível que podemos sentir os pontos de evidência mais claros onde é possível perceber a concretização da atmosfera como mais um elemento da cena. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BÖHME, Gernot. “The art of the stage set as a paradigm for an aesthetics of atmospheres”. Ambiances. 2013. (Acessado em 28/07/2014 URL: http://ambiances.revues.org/315) BÖHME, Gernot. “Atmosphere as the Fundamental Concept of a New Aesthetics”. Thesis Eleven, 1993. (Acessado em 28/07/2014. URL: http://desteceres.com/boehme.pdf) CHEKHOV, Michael. Para o Ator. SP: Martins Fontes, 1986. GRANT, Sutart. “Performing an Aesthetics of Atmosphere”. Journal of Literature and Aesthetics 23 (1), 2013.

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Tempo, ritmo e teatralidade



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O TEMPO-RITMO DE STANISLÁVSKI E GROTOWSKI: FORMAS DE TRABAHO NA PESQUISA DO ATOR Adriana da Silva Maciel Orientador: Ricardo Carlos Gomes Mestrado, UFOP, bolsista UFOP

Apresentarei neste trabalho dois recortes principais referentes a pesquisa de mestrado intitulada “O tempo-ritmo de Stanislávski e Grotowski- conceitos e práticas na arte do ator ” realizada na Universidade Federal de Ouro Preto- UFOP. O primeiro refere-se ao processo de pesquisa sobre o tempo-ritmo no Núcleo de Pesquisa A Arte do Ator entre o Oriente e o Ocidente, o segundo as formas de trabalho de Jerzy Grotowski (1933-1999) e Constantin Stanisávski (1863-1939) em relação ao conceito de tempo-ritmo na perspectiva do ator. O tempo-ritmo no Núcleo de Pesquisa a Arte do Ator entre o Oriente e o ocidente No ano de 2012 realizei uma pesquisa de iniciação científica PIBIC-UFOP- CNPQ, no Núcleo de Pesquisa A Arte do Ator entre o Oriente e o Ocidente, no qual pude efetuar um trabalho teórico-prático. Sediado na UFOP desde 2009, o Núcleo tem coordenação atual do Professor Dr. Ricardo Gomes, sendo também composto por alunos que desenvolvem uma pesquisa coletiva na área de Interpretação Teatral, que prevê o aprendizado e a incorporação de técnicas de atuação orientais e ocidentais. Na pesquisa realizada, coletei canções na cidade de Ouro Preto através de gravações sonoras com as quais realizei o trabalho de mimese26. Através desta ideia inicial, comecei a fazer experimentações sonoras que influenciaram diretamente o processo de experimentação Pesquisa desenvolvida pelo Lume teatro- Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da UNICAMP, que consiste na “observação de um ator, (não de um antropólogo) e na imitação de ações físicas e vocais do cotidiano, além de imitações físicas e ações em imagens; fotos e quadros seguidos de memorização, codificação e teatralização” (BENTLEY e GOMES, 2010, p.3). 26

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em sala de ensaio, influindo assim no meu processo de criação. Com este material de criação, realizei em parceria com o aluno Henrique Manoel Manara, uma cena, na qual utilizei principalmente a melodia, a vibração da voz e o tempo-ritmo das canções coletadas com o texto Navio Negreiro de Castro Alves. Apresentada a cena, percebi como a utilização de um tempo-ritmo já “pronto” (o tempo-ritmo das músicas), havia influenciado, facilitado e potencializado meu trabalho de criação. Em outras palavras, havia utilizado o mesmo tempo-ritmo das canções coletadas na fala do texto Navio Negreiro. Paralelamente a esta pesquisa, realizava outros trabalhos com o Núcleo de pesquisa Arte do Ator entre o Oriente e o Ocidente, no qual tive o contato com o conceito tempo-ritmo, através de Stanislávski e Grotowski, sempre citados em nossas referências teóricas. Através desses contatos, percebi que o tempo-ritmo poderia ser muito útil no trabalho de criação. Então, comecei a questionar se era possível “criar” um tempo-ritmo, adequado às necessidades, que funcionasse tão bem como na pesquisa anterior, que fosse útil nas experimentações, no trabalho de pesquisa, que fosse útil em outros trabalhos artísticos. No ano de 2013, ainda no Núcleo aqui citado, me confrontei novamente com o tempo-ritmo na montagem de Fim de Partida de Samuel Beckett. Fazendo o personagem Hamm, perguntava se o tempo-ritmo poderia ajudar com os extensos monólogos de Hamm, personagem da peça, bem como as pausas e a estrutura daquele texto. “Às vezes sinto que perco o ritmo da cena, e o público diz ter a impressão de que o espetáculo durou mais tempo, no entanto, teve a mesma duração do dia anterior.” (MACIEL, 2013, p. 20). Até que ponto o tempo-ritmo pode ser útil para o ator? Como usá-lo como ferramenta criativa? É possível dominar o tempo-ritmo ou ele é algo espontâneo, natural? O conceito tempo-ritmo No dicionário não há a definição de “tempo-ritmo”. Já no universo musical, até o momento não foram encontradas referências sobre o “tempo-ritmo”. Em ambos encontramos as definições de “tempo” e “ritmo”. Então, a princípio, o “tempo-ritmo” parece ser 124 |


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um conceito pertencente apenas ao universo teatral. No dicionário, a definição de “tempo” aparece relacionada à sucessão dos anos, dos dias, das horas, etc; ou aquilo que envolve, para o homem, a noção de presente, passado e futuro. Na música está relacionado à duração de cada uma das unidades do compasso; O significado de “ritmo” no dicionário aparece como: movimento ou ruído que se repete no tempo a intervalos regulares, com acentos fortes e fracos. Na música: agrupamento de valores de tempo combinados de maneira que marquem com regularidade uma sucessão de sons fortes e fracos, de maior ou menor duração, conferindo a cada trecho características especiais. Buscando pela etimologia das palavras “tempo” e “ritmo”, encontramos outras significações. O “tempo” para gregos poderia ser Kairos - momento oportuno, certo, supremo, ou Choronos - pai de Kairos, relação com o tempo das estações. O “Ritmo” vem do verbo grego rheo, que significa correr, fluir. Como se pode perceber os conceitos de “tempo” e “ritmo” podem ser amplos. Já quando se falamos em questões sociais, culturais e físicas o significado de “tempo”, torna-se ainda mais complexo. Norbert Elias afirma, Não são ‘O homem e a natureza’, no sentido de dois dados separados, que constituem a representação cardinal exigida para compreendermos o tempo, mas sim ‘os homens no âmago da natureza. (ELIAS, 1984, p. 12).

Nesta fala, Elias propõe uma visão de tempo integrada do homem social com o universo físico. De certa forma, isto é positivo no sentido das possibilidades de visão do conceito de tempo. Entretanto, problematiza o sentido deste conceito em outras áreas, visto a complexidade da transposição do significado de “tempo” da física para a técnica do ator, por exemplo. Ateremos-nos então às visões de tempo que sejam mais acessíveis ao trabalho artístico, àquilo que possa ser percebido pelo ser humano: 1º) pelo tempo disponível, 2º) pela aplicabilidade técnica deste conceito, através de relações com o tempo “convencionalizado”, como o do relógio, por exemplo, ou o tempo social, e.g, qual a diferença do tempo | 125


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-ritmo na percepção de alguém que mora em uma cidade pequena e outra pessoa que mora em uma cidade grande, ou então, o tempo psicológico. O tempo-ritmo para quem está fazendo um discurso pode passar mais rápido ou mais devagar dependendo da situação. Ou seja, iremos lidar aqui com o tempo-ritmo que for mais palpável e perceptível para o trabalho do ator. Em seus últimos trabalhos, Stanislávski buscava formas de acessar a criatividade através do que chamava de tempo-ritmo. Que diz significar: Tempo é a rapidez com que se alternam períodos iguais, de uma medida qualquer, que por convenção se tornam unidades. Ritmo é a relação quantitativa dos períodos efetivos do movimento e som, a respeito dos períodos estabelecidos por convenção como unidades em um tempo e medida determinada. Medida é a soma repetida (ou que se presume repitida) de períodos iguais, que, por convenção se estabelecem como unidades e assinaladas pela acentuação de uma delas (duração do movimento do som). (STANISLÁVSKI, 1997, p.133- tradução nossa).

No entanto, após oferecer esta caracterização diz: Entenderam? Sem criticar as fórmulas científicas, no momento atual, quando ainda não captamos interiormente a significação e influência do tempo-ritmo na cena essas fórmulas não nos terão utilidade prática. Dificultam a aproximação com o tempo-ritmo e os impedirão de desfrutar com ele um modo fácil, livre e despreocupado na cena, serão como um joguete. (STANISLÁVSKI, 1997, p.134- tradução nossa).

Por meio de ferramentas como metrônomo ou lembranças sonoras, ele buscava estímulos criativos para o ator. Durante algum tempo, Stanislávski afirma ter se interessado pelo tempo-ritmo, mas não ter comentado a respeito devido ao fato de não poder 126 |


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enxergá-lo. Para ele só foi possível falar de tempo-ritmo, a partir do momento em que percebeu que poderia dividi-lo em tempo-ritmo interno e externo. O tempo-ritmo interno seria aquele relacionado a vivencia interior, por isso invisível. O tempo-ritmo externo, relacionado então às ações físicas, e por tanto, acessível à visão humana (STANISLÁVSKI, 1997, p.133- tradução nossa). Com esta descoberta, Stanislávski chega a relações processuais baseadas na utilização direta do tempo-ritmo, tanto no âmbito vocal quanto corporal. “Desta forma, o tempo-ritmo conserva-se na nossa memória, e está apto para a finalidade criadora”. (STANISLÁVSKI, 1997, p. 143-tradução nossa). Visto que o tempo-ritmo externo seria mais acessível, Stanislávski elabora uma série de exercícios, nos quais se utiliza de alguns elementos mecânicos para influenciar as ações do ator. Com estes ele observa como seus alunos eram influenciados, o estado de ânimo, memórias, imagens e por consequência, suas ações. Desta forma, o tempo-ritmo torna-se um elemento essencial para o entendimento das ações físicas. Para Stanislávski, a ação física seria uma ação ligada a algum tipo de justificação interior. Por exemplo, se me levanto de uma cadeira é há algum motivo por trás disso, uma justificativa. Não podem dominar o método das ações físicas se não dominam o ritmo. Toda a ação física está ligada a um ritmo que a caracteriza. Se tudo que fazem está em um mesmo ritmo, que é próprio de cada um, como irão se transformar? (STANISLÁVSKI apud GORCHACOV & TOPORKOV, 2004, p. 428).

Pensando na potência provocadora do tempo-ritmo nos sentimentos, Stanislávski considera que uma ferramenta ainda mais forte sobre o ator seria o tempo-ritmo da linguagem sobre seu próprio corpo e aquele que o ouve. Com isto, o pesquisador vê na possibilidade do estudo rítmico da linguagem, como por exemplo, frases, palavras, sons, pausas, outro grande aliado aos seus estudos, associando muitas vezes a música e a fala.

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As letras, sílabas e palavras são as notas musicais da linguagem, com as quais se formam os compassos, Arias e sinfonias completas. Não é em vão que se diz que uma bela forma de falar é musical. Essa forma sonora e mesurada de falar aumenta a força de seu efeito (STANISLÁVSKI, 1997, p. 162- tradução nossa).

Já para Grotowski, no período final de sua vida no trabalho com Workcenter27, o tempo-ritmo aparece como um elemento integrante dos cantos e é acompanhado pela vibração da voz e a essência que a mesma pode trazer para o trabalho. Desta forma, ele é visto como um dos pontos para o encontro com o sentido e impulsos28 buscados por Grotowski. Não é apenas uma questão de captar a melodia com sua precisão, ainda que sem isso nada seja possível. Também é necessário encontrar um tempo-ritmo com todas as suas flutuações dentro da melodia. (...) Quando falo desse “sentido”, falo também dos impulsos do corpo; isso significa que a sonoridade e os impulsos são o sentido, de maneira direta. (GROTOWSKI, 2007, p. 235). É importante observar aqui que para Grotowski a noção de impulso está relacionada a algo anterior as ações, intenção e mobilidade muscular. Para Grotowski o tempo-ritmo aparece também como algo que possa contribuir com a influência dos cantos sobre a mente e, como Stanislávski, também acredita na influência do tempo-ritmo externo sobre o interno, ou seja, a influência de ações tanto corporais quanto vocais sobre a mente.

O canto da tradição como instrumento da verticalidade, pode ser comparado ao mantra da cultura hindu ou budista. O mantra é uma forma sonora, muito elaborada, que engloba a posição do corpo e a respiração, e que faz 27 O trabalho realizado no Workcenter de Pontedera, Itália, é um dos últimos realizados antes de sua morte, abarcando o período que chama de “Arte como veículo”. 28 Grotowski, em um de seus apontamentos entende o impulso como algo inerente e anterior à ação física, algo invisível e, portanto, não pertencente apenas ao corpo físico (GROTOWSKI apud RICHARDS, 2012, p. 108).

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aparecer uma determinada vibração num tempo-ritmo tão preciso que ele influencia o tempo-ritmo da mente. (GROTOWSKI apud RICHARDS, 2012, p.143).

Como podemos ver, para ambos o tempo-ritmo aparece como um elemento essencial no trabalho de investigação do ator. Conclusão O conceito de tempo-ritmo parece ter características amplas, entretanto, o entendimento mínimo deste é essencial para sua utilização na prática do ator. Podemos observar, que tanto Stanislávski quanto Grotowski o relacionam à ideia de impulso. Thomas Richards afirma que Stanislávski associava os impulsos às partes periféricas do corpo (RICHARDS, 2012, p. 108). Entretanto, como podemos observar, Stanislávski não deixa claro o que seria o impulso, porém o conceito aparece relacionado a questões mais complexas ocupando o lugar de “gerador e resultante” das ações físicas, ao mesmo tempo que relacionado ao subconsciente (BONFITTO, 2009, p. 34). Podemos observar também que Stanislávski e Grotowski possuem formas diferentes de abordagem no trabalho de investigação do ator, o que proporciona diferentes perspectivas sobre a abordagem com o conceito de tempo-ritmo. Outro ponto a ser observado é a utilização do termo “ritmo” e “tempo-ritmo”, na obra de ambos pesquisadores, isto pode envolver alguma diferença conceitual. Atualmente, no Núcleo de Pesquisa a Arte do Ator entre o Oriente e o Ocidente, tem-se tentado entender as formas de abordagem utilizadas com o conceito de tempo-ritmo, entretanto este processo se faz complexo devido à obscuridade do conceito e as possibilidades existentes. Referências Bibliográficas

BENTLEY, N & GOMES, R. Teatro, Antropologia e a Arte do Ator entre Oriente e Ocidente. IV Congresso de pesquisa e pós-graduação em Artes Cênicas 2010. BONFITO, M. O Ator compositor. São Paulo: Editora Perspectiva, 2009. | 129


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ELIAS, N. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1984. GORCHAKOV. N & TOPORKOV. V. El proceso de direccion escenicaApuntes de ensayos. Méximo: Escenologia AC, 2011. GROTOWSKI, J; FLASZEN, L. O teatro laboratório de Jerzy Grotowski (1959-1969). (Org. Carla Pollastrelli e Ludvik Flaszen). São Paulo: Perspectiva, 2007. MACIEL, A. S. A ótica vocal no processo de construção da personagem Hamm- Relatos de uma experiência Intercultural. Trabalho de conclusão de curso apresentado no departamento de Artes Cênicas da UFOP, sob orientação do Prof. Dr. Ricardo Carlos Gomes, 2013. RICHARDS, Thomas. Trabalhar com Grotowski sobre as ações físicas. São Paulo: Perspectiva, 2012. STANISLÁVSKI, C. El Trabajo Del Actor Sobre Sí Mismo Em El Processo Creador. Argentina: Editorial Quetzal, 1997.

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POR UMA POÉTICA POLÍTICA: A PRESENÇA E O ANKOKU BUTOH Bárbara de Souza Carbogim Orientador: Éden da Silva Peretta Mestranda, UFOP, bolsista FAPEMIG

Apresenta-se como fundamento base pesquisa denominada “Por uma poética política: a presença e o ankoku butoh”, o estudo da presença cênica, construída por meio de uma poética política. O conceito de poética não será uma das vertentes aqui desenvolvidas, porém faz-se necessário ressaltar aqui que o conceito de poética utilizado se respalda nos estudos do filósofo Luigi Pareyson. Poética é um termo que surge no pensamento aristotélico e vem se desenvolvendo e se modificando de acordo com o olhar de cada estudioso. Dessa forma, trata-se na contemporaneidade, de um conceito aberto com diversas definições. Para o melhor diálogo com a ideia central da pesquisa, o conceito de poética escolhido se define como: programa de arte, declarado num manifesto, numa retórica ou mesmo implícito no próprio exercício da atividade artística; ela traduz em termos normativos e operativos um determinado gosto, que, por sua vez, é toda a espiritualidade de uma pessoa ou de uma época projetada no campo da arte (PAREYSON, 1997, p.11).

Para o desenvolvimento da pesquisa, portanto, foi necessário partir de três perspectivas, quais são: biopolítica, presença e dança butoh. A reflexão sobre o corpo está circunscrita nas vertentes dessa pesquisa, de modo que um dos objetivos é investigar o caráter político que tange este mesmo corpo. É preciso esclarecer que a noção de política a qual essa fala se refere se faz no corpo, pelo corpo e em suas relações, ou seja, não se trata de uma ideologia político-partidária e nem mesmo de uma discussão administrativa acerca do aparelho de Estado. | 131


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Por meio dos estudos do filósofo Michel Foucault se entende a sociedade hoje regida por um poder não concentrado somente no Estado, ou seja, hoje e contando isso a partir do século XVIII o poder passa para o corpo, toma-o de assalto. Dessa forma, as análises de Foucault nos explicitam que somos todos transmissores e receptores de poder, concomitantemente, quando estamos em relação social. Portanto, o poder começa a produzir o indivíduo ao invés de somente reprimi-lo, interferindo, dessa forma, no modo como ele próprio reage e lida com o seu cotidiano. Quando este já não se pode dizer alheio ao que acontece em seu entorno, se situa em uma condição de imersão no poder, tornando-se assim, um centro de transmissão do mesmo: “O indivíduo é um efeito do poder e simultaneamente, ou pelo próprio fato de ser um efeito, é seu centro de transmissão” (FOUCAULT, 1979, p. 183 e 184). Portanto, há algum tempo que o poder deixou de ser exercido somente por um Estado, o mesmo se transforma na medida em que invade a subjetividade do ser humano, assim como nos diz o filósofo contemporâneo Peter Pál Pelbart: “o fato é que vemos instalar-se nas últimas décadas um novo modo de relação entre o capital e a subjetividade” (2006, p.2). É esse novo modo de relação que podemos denominar de biopolítica. Pode-se perceber que esse poder se dissipa e se enlaça no que Pelbart chama de “redes de vida” (2006, p.3), através das quais há uma expansão do âmbito comercial para as relações cotidianas, ou seja, já não há a preocupação apenas com o mercado – compra, venda – e sim com a vida do indivíduo, como este se relaciona, como se coloca e como pode ir a favor do sistema de consumo. Assim, as estratégias da biopolítica penetram e adentram na população de diversificadas maneiras, atingindo a subjetividade dos indivíduos. A biopolítica vem a ser uma vertente do biopoder, na medida em que este último está ligado ao poder sobre a vida e o poder sobre a morte. Quando a “sociedade normalizadora”29 supera a lógica de afirmação de seu poderio econômico e/ou social através da matança de pessoas ou etnias, esta entra em uma fase de valorização da vida. Entende-se a partir daí a preocupação em cuidar do corpo, ou Segundo Foucault, “uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida” (FOUCAULT, 1988, p.190). 29

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seja, em estar supostamente “em forma” e “saudável”. Desse modo, o biopoder desdobra-se em outra vertente: a biopolítica. A biopolítica encontra estratégias – estruturadas pelas tentativas de homogeneizar as existências individuais – e assume um determinado modelo de ser e existir, o qual atinge grandes proporções na vida do indivíduo. Através de inúmeras estratégias de convencimento e condicionamento, os indivíduos assumem esse ideal, levando isso a um determinado ponto de alienação em que começam a acreditar que se não se enquadrarem no modelo imposto, não serão bem sucedidos ou algo semelhante. O filósofo contemporâneo Peter Pál Pelbart nos mostra a importância de entendermos as formas do poder, e mais, justifica o estudo do corpo: O poder sobre a vida e as potências da vida. São como o avesso um do outro. Se você seguir em linha reta você chega ao outro e vice-versa. E a gente poderia, para testar essa hipótese, tomar algo que hoje em dia é cada vez mais essencial, a saber, o corpo (PELBART, 2007, p.58).

Partimos, então, dessa reflexão sobre o corpo. Poderíamos concluir que, perante a sociedade, o indivíduo cria um corpo socialmente aceito, um corpo apresentável, um molde. Esse é o nosso corpo cotidiano, o qual pode ser chamado de corpo social30. Bem, geralmente o corpo na dança, no teatro ou na performance art não é um corpo cotidiano31. Na dança butoh de Tatsumi Hijikata, se encontra não só um corpo fora dos moldes sociais, mas um corpo que possui em seu processo de construção um forte ativismo contra esse corpo social – em japonês chamado de shintai. 30 Corpo social é uma terminologia usada pelo projeto para explicitar o corpo cotidiano, podemos encontrar essa mesma expressão na Dança Butoh de Hijikata. Há também registro desse termo na obra Microfísica do Poder de Michel Foucault (1979, p. 146), porém o autor não o desenvolve como um conceito. 31 Esta afirmação é uma generalização, o que não impede que na arte se use o corpo cotidiano, ou em cena não se trabalhe justamente o corpo social. A intenção aqui é que quando assumimos um corpo cênico, por ele já estar em uma situação não cotidiana, este mesmo assume um corpo extracotidiano, ou simplesmente porque se construiu outro corpo, uma personagem.

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Faço, então, um breve histórico da dança butoh: surge em um contexto de Japão pós-guerra, o qual se apresentava como um país destruído e começando a ser fortemente influenciado pela cultura norte-americana. Portanto, inicia-se um conjunto de manifestações urbanas e experimentações artísticas (surgidas em Tóquio, conhecida naquela época como “cidade das cinzas”) como forma de protestar contra uma cultura vinda de fora, contra a situação da população e a reconstrução do país; ao mesmo tempo em que reforça e recria a própria arte japonesa, também influenciada pelas vanguardas. É imersa nesse universo que a dança butoh vai ganhando forma, decorrendo das pesquisas individuais32 dos dançarinos – reconhecidos como os fundadores da dança – Tatsumi Hijikata (1928-1986) e Kazuo Ohno (1906-2010). Retomando ao foco principal, a poética de Hijikata na sua dança, denominada ankoku butoh – “dança das trevas”, busca na materialidade do corpo a dissolução das amarras sociais. Assim sendo, por meio da pesquisa do corpo de carne – nikutai – Hijikata constrói sua dança com extrema sensibilidade para com as mazelas da sociedade e preocupação com a marginalidade e os excluídos. A pesquisa de Hijikata não é uma proposta meramente técnica, e sim, um projeto político-artístico que se materializa na presença cênica. Dessa forma, o próprio dançarino relata: Todo o poder da moral civilizada, de mãos dadas com o sistema capitalista e suas instituições políticas, está profundamente oposto ao uso do corpo simplesmente para o objetivo, meio ou ferramenta do prazer. Ainda mais, para uma sociedade orientada à produção, o uso despropositado do corpo, ao qual eu chamo dança, é um inimigo mortal que precisa ser tabu. Eu sou capaz de dizer que minha dança compartilha uma base comum com o crime, a homossexualidade masculina, os festivais e rituais porque são comportamentos que explicitamente ostentam seu despropósito na face de uma sociedade orientada produtivamente. Neste sentido, minha dança baseada na auto-ati32 Os dois dançarinos possuíam estéticas e pesquisas diferenciadas, até porque o butoh também parte do indivíduo, da sua memória e da sua relação com o universo.

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vação humana, incluindo a homossexualidade masculina, o crime e uma batalha naife com a natureza, pode naturalmente ser um protesto contra a “alienação do trabalho” na sociedade capitalista. Esta é também provavelmente a razão porque expressamente aproximei-me dos marginais (HIJIKATA apud PERETTA, 2014, p.62 e 63).

A proposta de encenação de um espetáculo de butoh não objetiva uma compreensão lógica pré-estabelecida, e sim, como dito acima, um uso despropositado do corpo. Portanto, levando em consideração que o exercício de interpretar racionalmente um espetáculo de butoh não satisfaz a poética inicial de Hijikata – na medida em que não estão disponíveis na encenação referências claras capazes de encerrar o sentido do que é proposto – é possível concluir que o projeto de Hijikata não cede preponderância somente à dimensão racional e narrativa da encenação. Desse modo, o dançarino parece estar focado em algo para além da dimensão do sentido. De que se trata? Pode-se dar seguimento a esta inquietação com os estudos do pensador alemão Hans Ulrich Gumbrecht, na medida em que sua obra Produção de Presença – o que o sentido não consegue transmitir é movida pela investigação acerca da tensão entre presença e sentido. É preciso esclarecer que Gumbrecht realiza este estudo tentando ultrapassar a forte metodologia acadêmica (especificamente dento das Humanidades) pautada pela metafísica e, defendendo – mas não desconsiderando a forma anterior – uma nova maneira de pesquisa pautada na presença, na substância e não na intelectualidade, ou na dimensão de sentido apenas, a qual considera exclusivamente a interpretação. Então, propõe-se aqui uma relação entre este estudo e a poética de Hijikata, tendo a consciência que Gumbrecht fala de presença em seu sentido mais amplo, não somente na arte. Nessa obra fica evidente que o autor em nenhum momento defende a presença em favor da eliminação do sentido, pelo contrário, são duas formas de ver o mundo que caminham juntas. Porém, na sociedade ocidental – em sua maioria – regida pela “cultura de sentido”, a “cultura de presença” não possui um espaço significativo para se efetivar. Nas palavras do autor: | 135


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Primeiro, a autorreferência humana predominante numa cultura de sentido é o pensamento (poderíamos dizer também a consciência ou a res cogitans), enquanto a autorrefência predominante numa cultura de presença é o corpo. Segundo, se a mente é a autorreferência predominante, está implícito que os seres humanos se entendem como excêntricos ao mundo (que, numa cultura de sentido, é visto como consistindo exclusivamente de objetos materiais). Essa perspectiva torna claro que a ‘subjetividade’ ou o ‘sujeito’ ocupam o lugar de autorrefência humana predominante numa cultura de sentido, enquanto nas culturas de presença os seres humanos consideram que seus corpos fazem parte de uma cosmologia (ou de uma ação divina). Nesse caso, não se veem como excêntricos ao mundo, mas como parte do mundo (de fato, estão no- mundo, em sentido espacial e físico). Numa cultura de presença, além de serem materiais, as coisas do mundo tem um sentido inerente (e não apenas um sentido que lhes é conferido por meio da interpretação), e os seres humanos consideram seus corpos como parte integrante da sua existência (GUMBRECHT, 2010, p.107).

A partir deste estudo comparativo é possível adotar a hipótese de que o butoh faz uma intensa relação com “produção de presença”, uma vez que Hijikata propõe a desorganização da dimensão social do corpo, transformando seus movimentos em algo que não é possível o entendimento somente pela razão. Da mesma maneira, há uma tensão com a “cultura de sentido”, no momento em que não se estabelece com precisão o sentido racional. Pois bem, essa pesquisa trabalha na aproximação desse conceito de presença e a matriz poética de Hijikata para apresentar como um viés político pode vir a ser fundamental para a obra do artista e, de que forma isso se dá na presença, no corpo. Gumbrecht acredita que em nosso cotidiano e em nossa cultura, a presença se dê em momentos efêmeros; são instantes em que conseguimos nos distanciar do “sentido” e nos relacionar com o mundo. 136 |


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Da mesma forma, acredito que são instantes como esses em que o artista consegue se diluir do seu corpo social e se apreender em sua materialidade, produzindo, assim, presença. Ora, ao olharmos o trabalho de Hijikata notamos a forte “produção de presença” inscrita nele e a maneira pela qual se reverbera em sua própria vida e/ou vice-versa. Mas, qual seria a relação entre presença e política? Entre sentido e biopolítica? Por que fazer da arte e do corpo uma política? Talvez tendo consciência política no corpo se possa de forma momentânea livrar-se das amarras sociais, diluir o corpo social e junto com ele quebrar o propósito que se fundamenta em mais uma estratégia da biopolítica: encerrar o corpo em um molde de sentido. Talvez assim, seja possível encontrar a materialidade da própria carne, transfigurar o corpo em outra coisa33, e por meio disso, ir ao encontro da presença. Neste quadro, se configura o problema central da minha pesquisa: como a dimensão política se manifesta na dança butoh de Hijikata levando à presença? No caso de Hijikata, a política que permeia seu corpo está intimamente ligada com a sua dança, na medida em que seus trabalhos político-artísticos buscam a subversão da biopolítica. Arte e presença podem se efetivar juntas para uma nova maneira de estar no mundo. É nesse ponto que este projeto se justifica, quando propõe também, assim como a obra de Gumbrecht, um olhar menos direcionado para o “sentido” e mais aberto para a “presença” no trabalho de um artista político, pois: faz sentido esperar que a experiência estética possa nos ajudar a recuperar a dimensão espacial e a dimensão corpórea da nossa existência; faz sentido esperar que a experiência estética nos devolva pelo menos a sensação de estarmos-no-mundo, no sentido de fazermos parte de um Hijikata em sua metodologia da “dança das trevas”, na qual a busca pelo ankoku se torna um elemento fundamental, parte da dissolução do shintai para a chegada a um estado de corpo-morto, a um grau zero. Nesse momento é que o corpo do dançarino de Butoh, não mais influenciado socialmente estaria perto de algo não humano, próximo a um objeto.

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mundo físico de coisas (GUMBRECHT, 2010, p.146).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. __________. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Trad.: Maria Thereza da Costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988. GUMBRECHT, H. U. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Trad.: Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2010. PAREYSON, L. Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes, 1997. PELBART, P. P. Biopolítica. Sala Preta 7: revista do Depto. de Artes Cênicas/ECA-USP, São Paulo, n.7, 2007. ___________. Exclusão e biopotência no coração do Império, 2006. Disponível em: <http://www.cedest.info/Peter.pdf>. Acessado em 10 de out. 2013. PERETTA, É. O soldado Nu origens da Dança Butô. São Paulo: Perspectiva, 2014 (no prelo).

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O QUE É TEATRALIDADE? DA MITOLOGIA AO RITUAL E DO RITUAL ÀS ORIGENS DO TEATRO GREGO Bruna Massaro Orientadora: Luciana Costa Dias Iniciação Científica, UFOP, bolsista PIVIC

Essa pesquisa tem por objetivo central investigar a noção de teatralidade, partindo de sua relação com o ritual e a mitologia para melhor esclarecimento das origens do teatro e o papel do aedo (ator-poeta-sacerdote-curador) neste processo. Para tanto, serão discutidos: símbolo, mito, ritual e teatralidade em suas inter-relações, a fim de clarificar sua relevância para o nascimento do teatro ocidental. Essa investigação se dará em perspectiva hibrida (histórica, antropológica e filosófica) para revelar possíveis contribuições ao estudo das artes cênicas. Inicialmente, observamos que, na “busca incansável” do ser humano por uma explicação capaz de reunir o todo que o rodeia, significando a realidade, surge o mito. Surge das histórias contadas (ou cantadas) por uma determinada cultura, que transferem o conhecimento de geração em geração. O mito é a narrativa da criação, o canto das origens, sobre a organização do mundo e da sociedade é através dele que as culturas encontram coesão, pois ele explica dentro de cada visão de mundo a transformação do caos em cosmo, como o homem deve viver e quem são os seres ou forças que regem o universo. (ELIADE, 1989) Podemos definir Mito como sendo: “a narrativa de uma criação: Conta-nos de que modo algo, que não era, começa a ser.” (BRANDÃO, 1987, p.36)

A existência de uma narrativa de criação faz com que algo invisível se transforme em algo crível, tornando os deuses e o universo vivos em nós e entre nós. Essa transformação nos leva a crença em algo divino que explica a nossa existência partindo da personificação de arquétipos,a vivência da Mnemosyne (Memória) | 139


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em busca da alethéia (verdade – o que não deve ser esquecido). A apropriação do conhecimento se dá através da transformação do mito em um ritual e há alguns fatores que devem ser definidos antes de explicarmos essa mudança, partiremos inicialmente da linguagem simbólica, ou seja do símbolo, e para compreendê -lo é preciso ter como pré-suposto a diferença entre simbolizar e sinalizar, sendo assim, o que difere sinais de símbolos. Sinais são imagens criadas e usadas para transmitir mensagens simples e diretas, um exemplo claro no nosso cotidiano são as placas de sinalização do transito, uma linguagem escrita e visual. Já símbolos transmitem mensagens indiretas a serem interpretadas, são um emaranhado de significados em que cada detalhe faz a diferença para se compreender o todo. Ou seja, dentro do mito e dos rituais estão presentes principalmente símbolos por sua subjetividade. (CHAVALIER, 1991) Para compreendermos essa utilização pegaremos um resumo de um mito que simboliza a passagem das estações, essencial para a subsistência das culturas agrárias, no caso da mitologia grega, que é a abordada, o mito de Perséfone como explicação para os ciclos das estações. Afrodite, a deusa do amor e da beleza, em uma de suas brincadeiras com seu filho Eros disse para que ele atingisse com suas setas o coração de Hades e da filha de Deméter, quando Hades a visse na superfície. Perséfone se encontrava, (...) colhendo lírios e violetas, (...). Quando Hades a viu, apaixonou-se por ela e raptou-a. (...) Deméter procurou a filha por todo o mundo. (...) Tudo foi em vão. (BULFINCH, 2002, p 72)

Até que a ninfa da fonte Aretusa contou que, tendo mergulhado pela terra para chegar a Sicília, ao passar pelas camadas inferiores da terra, vi Perséfone. (...) Seu aspecto era o de uma rainha: a poderosa esposa do monarca do reino dos mortos. (IDEM)

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Deméter perplexa e revoltada buscou então a intercessão de Zeus, Zeus consentiu em regata-la, com a condição: a de que Perséfone não tivesse tomado qualquer alimento, durante sua permanência no mundo inferior; ou as Parcas proibiam sua libertação. (...) Infelizmente, a donzela aceitara uma romã que Hades lhe oferecera. (...) Fez-se então um acordo, contudo, pelo qual Perséfone passaria metade do tempo com sua mãe e o resto com Hades. (BULFINCH, 2002, p. 73)

Nesse mito podemos distinguir claramente o caráter simbólico. Todo o mito gira em torno do tempo e do ciclo das estações: ao tempo que ela ficará no Mundo Inferior, corresponde o Inverno – como o momento que Deméter se retira do mundo e retira da terra seus favores. Perséfone representa a semente do trigo, que, quando enterrada no chão, ali fica escondida, isto é, levada pelo deus do mundo subterrâneo. Depois reaparece, isto é, Perséfone é restituída a sua mãe. A primavera a faz voltar à luz do dia. (BULFINCH, 2002) Essa história, em seu caráter simbólico, ensinava aos gregos o tempo de plantar e o tempo de colher, a própria arte da agricultura e sua promessa de alimento. Consequentemente todos os anos eles comemoravam esse ciclo de renovação, nos Mistérios de Eleusis, celebrando a terra que germina com o retorno da deusa, ritualizando a alètheia (a verdade que o mito desvela) e encarnando os deuses. (WRIGHT, 2004) A essa ritualização e encarnação tem como intuito tornar o deus vivo em nós e entre nós, para que aja o religare (ligar com, ligar novamente, restabelecer a ligação perdida com o mundo que nos cerca ou com o nosso interior). A alétheia é, pois, essa abertura para o ser e o pensar, e esse desvelamento-abertura não se dá pelo caminho da opinião dos mortais, não se atém à evidência fornecida pela experiência à certeza manifesta (GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Palavra e Verdade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990. Pag. 12) | 141


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O aedo (ator- poeta- cantor- xamã- curador primitivo) é responsável por essa transmissão de conhecimento, é aquele que, como o sacerdote das sociedades mais antigas, consegue viajar entre os dois mundos, tem seus talentos refinados através de treinamentos, inclusive a capacidade da auto-indução à estados de êxtase e transes, consegue entrar nesse limiar em religare. Ao imergir nesse estado ele desenvolve uma grande sabedoria que é convertida a capacidade de curar e aconselhar física e espiritualmente sua comunidade. (ARMSTRONG, 2010) Partindo do princípio de que o mundo do xamã é o mundo da “louca sabedoria” é preciso muito treinamento para que ele saiba diferir a realidade e as visões. O xamã não é treinado para se tornar “reativo” durante tais episódios, os quais podem causar redirecionamentos prematuros em relação ao mundo externo. Ao invés disso, ele desenvolve uma atitude imparcial em relação às visões reveladas. (OLSEN, 2004, p..22)

Assim sendo, Isto eventualmente proporciona uma reintegração positiva de sua psique. Nesta perspectiva, o xamã é o louco curado (IBDEM)

Independente para qual intuito do xamã ao emergir no estado de transe o que nos interessa aqui é o processo que ele utiliza, pois na maior parte das vezes esse estado é atingido por danças e a utilização de máscaras. As máscaras, como representativas dos espíritos, podem transportar o xamã para o plano psíquico necessário para completar a sua tarefa. A dança serve também para induzir ao transe, como fazem os toques dos tambores, os cantos e as plantas psicotrópicas.(IBDEM)

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A comparação do xamã com o ator feita por Olsen (2004) é pelo fato de o ator tal como o xamã se utiliza da repetição de movimentos, palavra cantada, máscaras e dança para construir um ambiente entre o limiar do cotidiano e do espiritual. O xamã, em uma perspectiva antropológica, seria o proto-ator. Nessa perspectiva, o proto-ator atua como ponte, sendo responsável em guiar os demais que pertençam a essa coletividade por esse caminho, transformando o mito em ritual, executando uma ação que se repete periodicamente para contar histórias e demarcá-las, as repetindo e tornando-as vivas. E para tal ele se utiliza de vários componentes, sobretudo a palavra cantada e o ritmo bem marcado. A palavra cantada tinha o poder de fazer o mundo e o tempo retornarem à sua matriz original e ressurgirem com o vigor, perfeição e opulência de vida com que vieram à luz pela primeira vez. A recitação de cantos cosmogônicos tinha o poder de pôr os doentes que os ouvissem em contato com as fontes originárias da Vida e restabelecer-lhes a saúde, tal o poder e impacto que a força da palavra tinha sobre seus ouvintes (TORRANO, 1991, p. 14)

A palavra cantada é definida então como a entoação do mito em forma de poesia durante um ritual em um ambiente que está no limiar do cotidiano e do espiritual, para alcançá-lo Schechner vai dizer que preciso mais do que movimentação, máscaras e objetos, mesmo que essas características sejam essenciais para a sua concepção. De acordo com Turner (1974): Os atributos de liminaridade, ou de personae (pessoas) liminares são necessariamente ambíguos, uma vez que esta condição e estas pessoas furtam-se ou escapam à rede de classificação que normalmente determina a localização de estados e posições num espaço cultural. As entidades liminares não se situam aqui nem lá; estão no meio e entre as posições atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e cerimonial. (TURNER, 1974 APUD COSTA, 2013, p.52) | 143


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E para estar preparado para entrar nesse limiar o ator precisa adquirir uma nova percepção, de acordo com Olsen que o ator original era o mais altamente qualificado dançarino, cantor, portador de máscaras e xamã da tribo. (OLSEN, 2004, p.21)

É nesse ambiente sábio e louco, ambiente ritual, que os mitos irão ser representados, para transmitir conhecimentos antigos e adquirir novos, é onde surge o que chamaremos aqui de seres regentes e eles tomam corpo e voz. Sendo assim unimos os quatro fatores que tornam o mito em ritual, mas o que seria de um ritual, narrativa, espetáculo, sem os seus personagens? É nesse ponto que definimos que seres regentes, são a personificação de arquétipos coletivos o que podemos chama dentro da mitologia grega de deuses e deusas, e para compreender seu surgimento podemos partir do conceito de Carl Jung definido como a conscientização dos arquétipos do inconsciente coletivo, bem como as formas através das quais o inconsciente se manifesta. (BRANDÃO, 1987, p.37)

Os deuses que são os princípios dos quais o coletivo se identifica, e podem ser encontrados de formas recorrentes em todas as culturas apenas com nomes e características regionais diferente, Olsen vai tratar o tema como lei da tipicidade humana, baseandose na premissa de que os humanos são todos formados por um conjunto determinado de tipos, arquétipos, sendo que cada tipo possui uma energia de composição específica e função na vida. (OLSEN, 2004, p. 29) O Aedo, a partir da Mnemosyne (Memória) ao qual recorre se utilizando da palavra cantada (também conhecida como Musas), cria o limiar entre o cotidiano e o espiritual, induzindo os demais a um êxtase ritual.

É através da audição deste canto que o homem comum podia romper os restritos limites de suas possibilidades

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físicas de movimento e visão, transcender suas fronteiras geográficas e temporais, que de outro modo permaneceriam infranqueáveis, e entrar em contato e contemplar figuras, fatos e mundos que pelo poder do canto se tornam audíveis, visíveis e presentes. O poeta, portanto, tem na palavra cantada o poder de ultrapassar e superar todos os bloqueios e distâncias espaciais e temporais, um poder que só lhe é conferido pela Memória (Mnemosyne) através das palavras cantadas (Musas). (RORRANO, 1991, p. 11)

O ritual estabelece um “lugar”, um espaço tempo com uma nova definição de tempo, espaço e status, tudo se transforma em símbolo e carrega um novo significado inexistente no cotidiano. E como tudo que carrega um significado ele se transforma em um enigma a ser decifrado, a busca pela alétheia. Procurar a verdade é supor que ela não esteja dada em nossa experiência cotidiana, mas para que essa suposição possa ser feita é necessário que o seio mesmo dessa experiência algo insinue que não estamos de posse da verdade. Esse algo é da ordem do equívoco, do erro, da mentira, da dissimulação. É, portanto na dimensão do erro que a verdade faz sua emergência, ou se quisermos, a história da verdade é coextensa à história do erro. (GARCIA-ROZA, 1990, p.10-11)

Por tanto é através desse jogo de velar a mostrar da palavra cantada que se esconde a alétheia, a verdadeira razão do ritual que é fornecida pelo mito a fim de manter vivos os modelos para o comportamento humano e consequentemente conferir significado e valor à existência e transmitir conhecimento e é onde apresentamos o conceito de um diálogo entre teatralidade e mitologia. Chegamos ao final do presente texto observando que os elementos aqui apresentados representam os Resultados Parciais da investigação empreendida, uma vez que esta pesquisa de Iniciação cientifica ainda se encontra em desenvolvimento. O passo a seguir consistirá na definição de teatralidade como ritualização originária e na investigação de como, na Grécia do século V a.C, | 145


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esta se modificará em direção ao que entendemos como a origem do teatro ocidental, as tragédias e comédias gregas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS ARMSTRONG, Karen. Breve história do Mito. São Paulo: Cia das letras, 2005. ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2004. BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro Grego: Tragédia e Comédia. Petrópolis: Vozes, 2009. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega Volume I. Petrópolis, Ed. Vozes,1987. BULFINCH,Thomas. O livro de ouro da mitologia: (a idade da fábula): histórias de deuses e . Rio de janeiro, 2002. CAMPBELL, Joseph. O voo do pássaro selvagem: ensaio sobre a universalidade dos mitos. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos, 1997. CHAVALIER, Jean. Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). Rio de Janeiro: José Olympio, 1998. COSTA, Grasielle Aires da. O Conceito de Ritual em Richard Schechner e Victor Turner: Análises e Comparações. Revista aSPAs, Brasil, v. 3, n. 1, p. 49-60, dez. 2013. DIAS, Luciana da Costa. “O Teatro e a Cidade: notas sobre uma origem comum”. In: Revista Artefilosofia, UFOP, v. 12, 2012, p. 48-61. ELIADE, Mircea. Aspectos do mito. Lisboa: Edições 70, 1989. GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Palavra e Verdade: na Filosofia Antiga e na Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1995. HESIODO. Teogonia: a origem dos deuses. Tradução e Introdução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 1991. TORRANO,Jaas. Introdução a “Teogonia: A origem dos deuses.” IN: HESIODO. Teogonia: a origem dos deuses. São Paulo: Iluminuras, 1991. WRIGHT, Dudley. Os Ritos e Mistérios de Elêusis. São Paulo: Madras Editora. 2004. ICLE, Gilberto. O ator como xamã. São Paulo: Perspectiva, 2006.

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DA PALAVRA MÍTICA À PALAVRA DIALOGADA: CONFLUÊNCIAS ENTRE AS ORIGENS DO TEATRO E DA FILOSOFIA NA GRÉCIA ANTIGA Dalila David Xavier Orientadora: Luciana da Costa Dias Iniciação científica, UFOP, PIVIC

Essa pesquisa de iniciação científica tem por objetivo central investigar pontos de confluência entre a origem trágica do teatro ocidental e o nascimento da filosofia, na Grécia dos Séculos VI-IV a.C; a partir do fenômeno em comum da laicização da palavra e da descoberta do diálogo (pautado na argumentação racional e na coesão do discurso), fenômenos que se destacam como marcantes do período e acontecendo quase em paralelo. Para melhor clarificar esta relação, é necessário discutir conceitos como: mito e ritual, determinantes para o nascimento do teatro ocidental, e também o conceito de logos (ou razão), o qual, como se pretende alcançar, além de ligados ás origens do pensamento filosófico, se relaciona também com a consolidação do fenômeno teatral no ocidente em sua forma trágica. O significado e a relevância do mito nas civilizações mais antigas, se difere consideravelmente do conceito atual. Para estes povos a palavra mito é uma história ou narrativa verdadeira, e sobretudo sagrada, a respeito da criação do mundo e do homem. Sua função seria explicar as origens do universo e da realidade, agregando-lhe o valor metafísico. Considerando seu caráter oral, uma vez que a escrita ainda não era uma prática comum entre os povos antigos, é fácil observar a força da palavra mítica pelo fato de ter sobrevivido ao tempo e às gerações. Mas de onde vem tal força? Ao ser fecundada pelo soberano Zeus, memória (Mnemosyne), da vida à palavra cantada, ou seja, às musas. Portanto a palavra cantada, oral, advém da memória, assim, o poeta, como nos afirma Jaa Torrano (1991, p.11) “...tem na palavra cantada o poder de ultrapassar e superar | 147


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todos os bloqueios e distâncias espaciais e temporais, um poder que só lhe é conferido pela Memória (Mnemosyne) através das palavras cantadas (Musas).”

De maneira que para os Gregos do período Arcaico a palavra não se limitava á representação mas ela tinha o poder de tornar presente, aquilo que era dito. Através dela, o poeta dirigia os homens a um momento atemporal, presentificando o passado. Em um tempo que precede a palavra escrita , a palavra cantada se manteve como principal fonte religiosa e espiritual dos povos. Isso se deve, talvez, a seu caráter Idealizador, no sentido de educar o comportamento humano. Pela palavra mítica o homem aprende a maneira ideal de se comportar e agir diante do mundo. Entretanto, nesta mesma Grécia religiosa e ritualística desponta o logos, definido pela autora Marilena Chauí (2002, p.504) como razão íntima de uma coisa, explicação reacional de algo,ele dá a razão, sentido valor e causa a algo. Nesta perspectiva o logos opõe-se ao mito. É como se de alguma forma as explicações mítico-religiosas não mais suprissem a curiosidade e necessidade humana de dar sentido às coisas. Assim o logos, explica o mundo de forma racional. Por consequência das profundas mudanças ocorridas, tem-se a laicização da palavra. O aperfeiçoamento do alfabeto promove a desvalorização da Alethéia, aquilo que não deve ser esquecido (a verdade),em prol da doxa, a opinião que nos remete ao discurso, á palavra dialogada. Que só pode ocorrer na medida em que os homens passam a se relacionar em termos de igualdade, retirando do poeta a exclusividade da palavra. Ao relatar sobre este momento de dessacralização da palavra o autor Luís Alfredo García Roza (1955) aponta “Simonides é o primeiro poeta a fazer da poesia um ofício remunerado, mas sua grande novidade não reside nisto e sim no fato de que é o primeiro a reconhecer o caráter artificial da palavra, isto é, que ela é \uma imagem do real e não parte do real.” (GARCIA-ROZA,1995,p.35)

Ao contrário do período Arcaico, agora a palavra passa ser 148 |


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representativa, ela apenas representa ou nomeia algo real, mas não é a realidade em si. A grande questão, na verdade, é a maneira com que o embate entre o mito e o logos ou ainda entre a palavra mítica e a palavra dialogada, se mostram na civilização Grega, ao longo do período entre os séculos VI e VII a.c. De certa forma o argumento que iremos desenvolver aqui é o de que a tragédia não é o mito, mas sim o choque entre esses dois valores. O mito como palavra revelada, perdendo força, e o logos que ainda está se ascendendo e por isso mesmo não possui forma dada ou definida, quadro que se alterará somente no século IV a.c, com Platão e Aristóteles. Vejamos como isto aconteceu. Em um tempo anterior à tragédia, isso que chamamos hoje de “Grécia” era formada por pequenas comunidades rurais. Nesta cultura agrícola-pastoril predominava a ordem religiosa, o mito e o culto aos Deuses, exprimidos por meio dos Rituais. No século XII a.C os povos iniciam movimentos migratórios (como é o caso dos Aqueus quando sofreram a invasão Dórica). Os constantes movimentos de migração aproximaram os povos que não só foram então se desenvolvendo economicamente como também culturalmente. Parte crucial deste desenvolvimento foi a navegação, que propiciou contato, sobretudo, com os povos do Oriente fomentado não só o comércio mas, sobretudo, novas descobertas como a invenção da moeda, do calendário e do alfabeto. Ancoradas nas transformações citadas acima o que temos entre os séculos VII e VI a.C é a crescente urbanização e uma nova forma de pensar - a que chamaremos Filosofia. Segundo a autora Marilena Chauí (1994) a filosofia nasce nesse contexto entre o fim do século VII e início do século VI a.C . As profundas modificações oriundas do fenômeno urbano alteram a vida não só estruturalmente, mas também espiritualmente. Em termos espirituais o homem urbano nascente em muito se difere do rural: sua instância primeira passa a ser a “razão”, o discernimento e o diálogo. O homem dá, com isso, os primeiros passos em direção ao reconhecimento de si mesmo como agente do destino. Entende-se por agente, aquele que age ou ainda | 149


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aquele que toma para si a ação, assumindo suas consequências e responsabilidades. Podemos assim afirmar a filosofia como manifestação primeira do desejo humano de liberdade e autonomia. Sabemos que o nascimento da filosofia representa modificações profundas no pensamento do homem grego. Cabe refletir, no entanto, acerca dos fatores que contribuíram para que esta nova maneira de pensar se estabelecesse entre os homens, pois ainda que tenhamos em conta o desenvolvimento obtido pelo contato entre os povos, como o comércio a criação do alfabeto e da moeda, estes ainda se mostram insuficientes para explicar por si só um fenômeno tão inusitado e complexo como a filosofia como nos diz Marilena Chauí. “...A principal determinação histórica para o nascimento da filosofia é política: O nascimento simultâneo a ela, da Cidade- Estado, isto é , da Pólis, pois com esta desaparece a figura que foi a do antecessor do filósofo, o mestre da verdade( o poeta, o advinho e o rei -de- justiça).” (CHAUÍ, 1994 p.35)

Em outras palavras podemos concluir que a cidade, foi a grande responsável pelo nascimento da filosofia na medida em que estabelece uma nova relação entre os homens. Despontam ideais políticos como a democracia e justiça que permitem ao homem a isegoría (o direito a palavra ou opinião) e a isonomia (igualdade perante as leis e perante e os outros homens), direitos fundamentais para o exercício da filosofia. Em contraposição ao período arcaico em que a palavra era privilégio dos poetas, detentores únicos do conhecimento e da verdade, a democracia traz como consequência a laicização da palavra, agora exprimida pelo diálogo que permite que os homens cheguem através do discurso a um consenso, ou não, daquilo que deve ser tomado como verdade, como certo ou errado. Denominamos o período de nascimento da filosofia (século VI a.C) até Sócrates (Século V a.C) como Pré-Socrático, exatamente por ser anterior ao nascimento de Sócrates, personagem fundamental para a consolidação da filosofia bem como seu objeto de estudo. 150 |


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A filosofia Pré-socrática, não possui, portanto, um corpo consolidado e ao contrário do que se pensa ela não tem como objetivo romper os laços com a palavra mítica. Ela busca na verdade o mesmo que o mito. A palavra Mítica narra a criação do universo pela interseção de seres sobrenaturais. Assim sabemos que a principal questão do mito é a origem do universo e de todas as coisas. Ora, também a filosofia nascente se debruçará sobre essa questão, buscando dar-lhe, contudo, uma resposta mais crível utilizando para isto da razão ou (logos). Para evidenciar tal colocação basta pensarmos em Tales de Mileto, considerado um dos primeiros filósofos da Grécia Antiga que propôs a água como origem das coisas. “Tales de Mileto, o primeiro a indagar estes problemas, disse que a água é a origem das coisas e que Deus é aquela inteligência que tudo faz da água” (Cícero, Da Natureza dos Deuses apud CHAUÍ, 1994, p.49)

As palavras de Cícero esclarecem um pouco sobre o pensamento pré-socrático e torna perceptível a tentativa de Tales em solucionar de forma lógica e racional a questão do surgimento do universo ao colocar no elemento água uma possível resposta para a origem do universo. A medida que a filosofia vai ganhando força ela vai também mudando o seu objeto de estudo que passa nos Séculos V e IV a.C, do estudo da natureza ou da cosmogonia para o da formação do cidadão e do sábio virtuoso, ocupando-se da política e da ética sendo, então, a partir do Século V a.C (Período Socrático) a Pólis e o homem seus principais objetos de estudo. Isto ocorre em função da consolidação de Cidades-estado das quais se destacou uma em particular, Atenas. “Dentre as várias póleis, Atenas, centro comercial e intelectual do mundo grego, terá lugar de destaque: a cidade mais rica, umas das primeiras a instituir a democracia, modelo para a toda a Hélade, principalmente em termos culturais. Atenas, em seu apogeu, consolidou o fenômeno urbano na | 151


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Antiguidade: mais de 250 mil habitantes, forte comércio e manufatura, e principalmente organização estatal laica.” (DIAS, 2012, p.51)”

Os cultos agrários ou rituais ditirâmbicos, ao serem atingidos pelo evento das grandes cidades se transformam constituindo a cena, ou ainda, aquilo que hoje denominamos Teatro. Não podemos desconsiderar toda a teatralidade presente nos ritos mais antigos, mas o teatro ocidental como entendemos em termos de cena, diálogo e até mesmo local específico de encenação nasce com a cidade no século V a.C na cidade de Atenas, como não poderia deixar de ser em vista de sua grandiosidade. Ao que se sabe hoje, as primeiras tragédias foram encenadas no governo do tirano Psístrato, no ano de 534 a.C nas Grandes Dionisíacas, festival realizado em honra á Dionísio. A esse respeito nos diz a autora Margot Berthold (2011) “Pisístrato, o sagaz tirano de Atenas que promoveu o comércio e as artes e foi o fundador das Panateneias e das Grandes Dionisíacas, esforçou-se para emprestar esplendor a essas festividades Públicas. Em março do ano de 534 a.C; trouxe de Icária para Atenas o ator Téspis, e ordenou que ele participasse da Grande Dionisíaca. Téspis teve uma nova e criativa ideia que faria história. Ele se colocou á parte do coro como solista, e assim criou o papel do hypocrites ( “respondedor e, mais tarde, ator), que apresentava o espetáculo e se envolvia num diálogo com o condutor do coro. Essa inovação, e primeiramente não mais do que o embrião dentro do rito do sacrifício, se desenvolveria mais tarde na tragédia, etimologicamente, tragos(“bode”) e ode (“canto”).” (BERTHOLD, 2011 p.104)

A própria etimologias da palavra Teatro provem do grego “Thea” olhar com interesse e “tron” donde. Significa, pois, local de onde se vê e me pareceria impensável seu despontar não fosse a laicização da palavra e do espaço trazidas pela filosofia. É possível evidenciar a todo o momento na Tragédia as in152 |


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fluências do pensamento Filosófico. Tínhamos a princípio o predomínio da palavra cantada, o ditirambo, e dele se destaca o diálogo que ganha cada vez mais importância sobre o coro, que curiosamente é, segundo Nietzsche em O nascimento da Tragédia (1992), justamente aquilo que ainda sobrevive da palavra Mitológica. Se antes os cultos se realizavam nas propriedades ou nas pequenas comunidades, agora ele é um evento da cidade aberto a todos os cidadãos e com isso conquista um lugar próprio que são o grande Teatro como o Epidauro, um dos mais antigos. Sabemos que a tragédia surge junto aos sofistas no século V a.C – logo após os Pré Sócráticos, mas antes ainda da institucionalização da filosofia com Platão e Aristóteles – período em que a filosofia deixa de ocupar-se com o ser das coisas e passa a debruçar-se sobre o homem e as questões mais concretas da realidade. A tragédia emerge, pois, das novas relações que se estabelece entre os homens na vida urbana. O convívio nas grandes cidades pressupõe uma política de coletividade afirmada pela implementação da democracia, conceito crucial para se pensar as origens do Teatro Ocidental. “Trata-se, sobretudo de uma maneira de explicitar, em versos a procurada medida para a boa convivência de todos, sob a égide da sagrada Díke, da justiça. Trata-se de explorar os limites impostos a cada um e ao todo, de modo que a singularidade não ultrapasse a generalidade, noções insistentemente veiculadas nos versos trágicos e que serão amplamente refletidas nos textos filosóficos.” (GAZOLLA, 2003 p.6)

Mais do que explicitar em versos, falamos aqui da origem de um novo gênero, desconhecido anteriormente, pautado não apenas em versos e narrativa, mas sim no diálogo, traçando um jogo de argumentação semelhante á prática dos sofistas e mais tarde dos Pré Socráticos como Platão que escreve diálogos providos de grande caráter imagético. A esse respeito nos diz Pessanha:

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“Ora, todos – comentadores ou simples leitores – percebem que Platão, além de grande pensador, tem um talento literário extraordinário. Ele consegue criar personagens vivas e consegue fazer com que os seus discursos expressem as diferentes personalidades, os diferentes caráteres. Sem dúvida alguma o maior exemplo,e o mais óbvio é certamente o Banquete, que é um diálogo inteiramente constituído através de grandes lances dramáticos. Sob todos os aspectos, este diálogo que você lê o tempo todo visualizando cenas , é um grande drama [no sentido lato do termo] ; sob todos os aspectos sugere a encenação.” (PESSANHA, 1997,p.11)

Ésquilo é considerado o pai da Tragédia, pois, é ele que, sessenta anos após Téspis ter instituído um primeiro ator protagonista que se destaca do coro, insere um segundo ator, criando a possibilidade do diálogo. O coro, elemento de maior importância anteriormente, vai perdendo espaço em detrimento de um diálogo cada vez mais elaborado. E não apenas isso, o diálogo abre ainda as portas para a conversão da narrativa em ação. Os acontecimentos não são mais narrados e sim vivenciados em cena pelos atores surgindo assim o teatro, uma situação de representação organizada que discute as questões pulsantes de determinado contexto histórico e social. Assim percebemos Tragédia e Filosofia como eventos que surgem juntos vão se desenvolvendo e se alterando mutuamente. Uma vez que esta pesquisa de Iniciação cientifica ainda se encontra em andamento (com previsão de término somente em fevereiro de 2015), este texto apresenta somente seus Resultados Parciais. O passo agora em andamento pretende analisar as modificações observadas entre as obras de Ésquilo (525 a.C-456 a.C), um dos primeiros tragediógrafos dos quais se tem notícia, e Eurípedes (480 a.C- 406 a.C), o último, que marcariam o distanciamento e as aproximações entre a Tragédia e o Diálogo filosófico (formato utilizado por Platão).

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Referências Bibliográficas BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2004 CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da Filosofia: dos présocráticos a Aristóteles, SãoPaulo: Companhia das letras,2002. DIAS, Luciana da Costa. “O Teatro e a Cidade: notas sobre uma origem comum”. In: Revista Artefilosofia, UFOP, v. 12, 2012, p. 48-61. ELIADE, Mircea. Aspectos do mito. Lisboa: Edições 70, 1989. GAZZOLA, Rachel. “Tragédia Grega: A cidade Faz Teatro”. Revista Philosophica, 2003. n. 26. GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Palavra e Verdade: na Filosofia Antiga e na Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1995. HESIODO. Teogonia: a origem dos deuses. Tradução e Introdução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 1991. EASTERLING, P.; HALL, E. (orgs). Atores Gregos e Romanos. São Paulo: Odysseus Editora, 2010. NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. PESSANHA, José Américo. Platão. “O teatro das Ideias” .In: Revista o que nos faz pensar n° 11,PUC-Rio,1997 p.7-35

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Dizem que os primeiros passos de um recém-nascido ficam indeléveis mais na memória daquele que os vê do que daquele que os vive. Se isso é verdade, a presente publicação tem o singelo objetivo de deslocar nossos olhares, isto é, de tirar-nos o protagonismo dos primeiros passos, dados pelo nosso recém criado programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, projetando-nos no lugar de espectadores. Como a organização deste nosso primeiro Seminário de Pesquisa se deu de forma endógena e conduzida com muita dedicação e afinco, talvez nos tenha faltado o fôlego e a distância para degustarmos melhor os seus frutos, nossos primeiros passos. Neste sentido, a materialização de seus Anais, nos serve aqui como uma espécie de reificação da memória, emprestando-nos o lugar de terceira pessoa, uma vez que nos possibilita agora analisa-lo não mais como um cambaleante protagonista e sim como sereno observador. Com a distância e com esse objeto em mãos podemos sim refletir, problematizar e tensionar melhor as férteis pesquisas que compartilhamos nestes ricos dias de encontro. E o fazemos não somente para gozar das virtudes e das destrezas de nossos passos; mas também para encontrarmos os limites e as lacunas de nossos pensamentos, para neles vermos as potências de nosso caminho futuro. Neste contexto, a realização do Primeiro Seminário e de seus Anais, detém significado ainda maior de natividade, uma vez que o esforço presente é a continuidade do esforço inaugural de nosso Programa, existente a menos de um ano quando da realização do Seminário e completando o primeiro aniversário na ocasião do lançamento destes Anais. Tal esforço, coletivo e apaixonado, tem sido a pedra fundamental desta empreitada, pois é apenas em conjunto que o conhecimento humano se tem feito e se faz. Que assim continuemos, no novo ano que se inicia e na nova vida que se deseja longa, filhos e pais de nosso próprio sonho. Cabe aqui, portanto, um sincero agradecimento a todos e todas aquele(a)s – indivíduos e instituições – que tornaram possível a realização deste pequeno, mas grandioso, passo na consolidação de nosso Programa, certos de que cada ação, impregnada das energias individuais, geram aqui uma matéria humana e coletiva que é o conhecimento. Que o caminho nos seja longo! Organização do I Seminário de Pesquisa do PPGAC / IFAC / UFOP


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