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Marques, Marilis do Valle Biologia molecular e genética bacteriana / Marilis do Valle Marques. – Ribeirão Preto : Sociedade Brasileira de Genética, 2012. 348 p. : il. ISBN 978-85-89265-16-4 1. Genoma bacteriano. 2. Variabilidade genética. 3. Regulação gênica. 4. Sistemas de mobilidade. 4. DNA. I. Título.
Ilustrações: Telma A. Monezi e Marilis V. Marques Ilustração da capa: Telma A. Monezi
Capa, projeto gráfico, diagramação e normalização
Autora Marilis do Valle Marques possui Doutorado em Bioquímica pela Universidade de São Paulo e pós-Doutorado em Biologia Molecular pela University of California - Los Angeles (UCLA). Desde 1996 é professora do Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, tendo realizado sua Livre-Docência em Genética Bacteriana em 2005, onde trabalha na área de genômica funcional da resposta bacteriana a estresses, enfocando os mecanismos moleculares de regulação da expressão gênica.
Autores colaboradores Suely Lopes Gomes possui Mestrado em Biofísica e Microbiologia pela University of Pittsburgh, USA, Doutorado em Bioquímica pela Universidade de São Paulo, e Pós-doutorado em Biologia Molecular no Albert Einstein College of Medicine, USA. É Professora do Departamento de Bioquímica do Instituto de Química da Universidade de São Paulo, como Titular desde 1997, onde trabalha no estudo da diferenciação celular de microorganismos e mecanismos de regulação gênica em resposta a estresses. Rodrigo da Silva Galhardo possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestrado em Ciências Biológicas (Biofísica) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Doutorado em Microbiologia pela Universidade de São Paulo. É Professor Doutor do Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, onde atua principalmente na área de genômica funcional, estudando mecanismos de reparo de DNA, e mutagênese. José Freire da Silva Neto possui Bacharelado e Licenciatura em Ciências Biológicas pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Realizou seu Doutorado em Microbiologia e Pós-Doutorado no Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Atualmente faz Pós-Doutorado no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, atuando no estudo de reguladores transcricionais da resposta bacteriana a carência nutricional e estresse oxidativo. Wanessa Cristina de Lima possui Bacharelado e Licenciatura em Ciências Biológicas pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Realizou seu Doutorado em Microbiologia no Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Desde 2007, é pesquisadora visitante no Department of Cell Physiology and Metabolism, Faculty of Medicine, University of Geneva, atuando principalmente no estudo de relações hospedeiro-patógenos e via de endocitose.
agradecimentos
T
enho muitos agradecimentos a fazer, a todos aqueles que contribuíram inestimavelmente para que este livro fosse publicado. Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à Sociedade Brasileira de Genética, na pessoa de seu Presidente Prof. Dr. Carlos F. M. Menck e do Editor Prof. Dr. Élgion L. Silva Loreto, por acreditar nesta proposta e permitir que fosse publicada na íntegra e sem alterações. Agradeço imensamente à minha companheira de trabalho durante esses anos, a Telma Alves Monezi, por realizar a quase totalidade das ilustrações deste livro, pelas ideias e pela paciência com minhas constantes alterações de projeto. Agradeço aos meus co-autores, cujo conhecimento foi imprescindível para a existência de alguns Capítulos importantes: A Profa. Dra. Suely Lopes Gomes, minha amiga e colaboradora científica há mais de duas décadas, e uma das mais respeitadas pesquisadoras na área de Genética Bacteriana. O Prof. Dr. Rodrigo Galhardo, colaborador de longa data e atualmente colega no Departamento de Microbiologia, especialista na área de reparo de DNA e resposta SOS. A Dra. Wanessa Cristina de Lima, jovem pesquisadora de grande talento, e conhecedora dos mistérios da evolução bacteriana e dos métodos de estudo desta área. O Dr. José Freire da Silva Neto, meu grande amigo e colaborador, e jovem pesquisador de profundo conhecimento na área da regulação gênica. Agradeço ao grupo de editores da Editora Cubo, por seu empenho e profissionalismo e por suas boas ideias para o projeto gráfico do livro. Agradeço a todos os meus mestres, colegas e alunos, que me incentivaram continuamente durante todos esses anos, muitos para serem citados individualmente, e que foram muito importantes para que eu concluísse este trabalho e não perdesse o ânimo no caminho. Agradeço por fim especialmente ao meu marido José Eduardo, por seu amor, compreensão, paciência e incentivo, sem os quais esse livro não teria sido possível.
sumário
Prefácio
9
PRINCÍPIOS básicos 13 1. Estrutura do Genoma Bacteriano 14 2. Replicação do DNA e Divisão Celular 25 3. Plasmídeos 48 4. Transcrição 65 5. Tradução 78
Sistemas de mobilidade e variabilidade genética
105
6. Mutagênese e Sistemas de Reparo do DNA 106 7. Recombinação Homóloga 126 8. Transformação 146 9. Bacteriófagos e Transdução 157 10. Conjugação 181 11. Transposição 198 12. Evolução e Plasticidade dos Genomas Bacterianos 212
Regulação gênica
229
13. Mecanismos Regulatórios do Início da Transcrição 230 14. Mecanismos Regulatórios do Término da Transcrição 255 15. Regulação Pós-transcricional 268 16. Transdução de Sinais 288 17. Sistemas Globais de Regulação Gênica 308
índice
335
PREFÁCIO
A
compreensão da Biologia Molecular e Genética de bactérias é essencial para a manipulação destes organismos, consistindo na base da Biotecnologia moderna. A ideia deste livro nasceu da necessidade de um texto para estudo nos meus cursos para a Pós-graduação, e a seleção dos tópicos abordados tem mostrado atender às necessidades dos alunos de várias áreas que utilizam metodologias de Biologia Molecular. A proposta é fornecer uma base aos alunos dos cursos de Graduação e Pós Graduação em Biologia, Ciências Biomédicas, Biotecnologia, Medicina, Farmácia, Agronomia, Bioquímica, Veterinária e quaisquer outros que tenham cursos de Biologia Molecular em sua grade curricular. O objetivo primeiro deste livro é fornecer ao aluno a compreensão dos mecanismos moleculares que ele necessita conhecer para utilizar os organismos bacterianos ou sistemas derivados. Em minha experiência de mais de 15 anos de docência e orientação, tenho observado que a tendência dos alunos é cada vez mais a utilização de kits prontos de Biologia Molecular, às vezes sem ter uma ideia correta do que está realmente ocorrendo no tubo de ensaio ou no organismo. Um dos pontos que nortearam este livro foi fornecer um texto simplificado e direto, onde os assuntos são explicados de maneira clara e abrangente, sem entrar em detalhes às vezes desnecessários. O livro abrange tópicos atualizados sobre o assunto, incluindo as mais
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recentes descobertas da área, e em cada Capítulo existe um item sobre aplicações dos conceitos daquele capítulo nas técnicas correntes de Biologia Molecular. Os Capítulos contêm muitas ilustrações, que facilitam a compreensão de assuntos às vezes difíceis, e está organizado de uma maneira lógica, que parte de conceitos básicos e chega a assuntos mais complexos. As referências dos textos citados em cada Capítulo são indicadas ao final do mesmo na Leitura Recomendada, juntamente com outros textos de interesse na área. Procurei indicar artigos de revisão, onde o aluno pode encontrar mais detalhes sobre aquele assunto, e se necessário pode obter as referências das publicações das pesquisas originais. Como esta é uma área muito rica e dinâmica, certamente a lista de sugestões não pretende ser exaustiva, e outros artigos interessantes estão disponíveis, mas procurei citar aqueles que me pareceram mais didáticos em suas explanações. O livro está dividido em três grandes partes, enfocando processos básicos, os mecanismos que geram variabilidade genética e a regulação da expressão gênica. A primeira parte é uma apresentação dos processos de replicação de DNA, transcrição e tradução, enfocando as particularidades destes processos em bactérias, como o início do ciclo celular, as origens de replicação cromossômica e plasmidiais, a utilização de fatores sigma para o início da transcrição, o término da transcrição, etc. Esta parte é voltada para que os alunos possam entender técnicas que envolvem replicação de DNA, como sequenciamento de DNA e PCR, a utilização de vetores plasmidiais em Biologia Molecular, etc. A segunda parte aborda sistemas de mobilidade e variabilidade genética em bactérias: mutação e reparo, transformação, transdução, conjugação, transposição e recombinação, além de um Capitulo sobre processos evolutivos. Ao final de cada Capítulo são mostrados métodos de Biologia Molecular que utilizam estes conceitos, como por exemplo, a eletroporação (no capítulo de Transformação), a utilização de vetores cosmídeos (no capítulo de Bacteriófagos) ou geração de bibliotecas de mutantes por transposons (no capítulo de Transposição). A terceira parte envolve os mecanismos de regulação da expressão gênica, divididos entre os que agem no início e no final da transcrição (como ativação, repressão, antiterminação e atenuação), bem como regulação pós-transcricional (com grande enfoque em temas atuais, como a regulação por RNA). Também há um Capítulo sobre os sistemas de transdução de sinais mais conhecidos, e a utilização de moléculas sinalizadoras. O último Capítulo exemplifica alguns sistemas globais de regulação, para mostrar ao aluno como os mecanismos estudados podem ser misturados para coordenar as respostas celulares. Espero que este livro seja de utilidade para todos os que estudam a Biologia Molecular deste grupo fascinante de organismos, e que permita um vislumbre da maravilhosa precisão que rege seu funcionamento.
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BIOLOGIA MOLECULAR E GENÉTICA BACTERIANA
PRINCÍPIOS BÁSICOS
1
ESTRUTURA DO GENOMA BACTERIANO
O
genoma é o conjunto completo dos genes de um organismo. As bactérias possuem uma estrutura genômica simples, e este fato permitiu que uma grande quantidade de conhecimento venha sendo acumulada sobre estes organismos. Muitos projetos de sequenciamento de genomas completos vêm sendo desenvolvidos intensivamente nos últimos anos, o que trouxe uma nova visão sobre filogenia, fisiologia, patogenicidade e regulação em bactérias. Vários processos celulares básicos foram primeiramente descritos em bactérias (e nos vírus que as infectam, chamados bacteriófagos), devido às suas características genéticas e fisiológicas simples de organismos unicelulares. Uma vantagem das bactérias em estudos genéticos é o seu tempo de geração muito reduzido. Tempo de geração é o tempo necessário para que um organismo dê origem a seus descendentes. No caso de bactérias, que se dividem por fissão binária, é o tempo necessário para que se dupliquem e deem origem a duas células-filhas. No caso de algumas linhagens da bactéria Escherichia coli, por exemplo, o tempo de geração pode ser de 20 minutos, sob condições favoráveis, o que as torna um ótimo organismo para estudo. Entre as propriedades úteis das bactérias, cabe destacar o fato de serem haploides, isto é, possuem geralmente apenas um alelo de cada gene, ao contrário de organismos eucarióticos superiores, que são pelo menos
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PRINCÍPIOS BÁSICOS
diploides. Este fato favorece a aplicação de várias técnicas de genética clássica, através do estudo de mutantes, que trazem grande avanço na análise funcional dos genes. A identificação dos genes mutados permite inferir seu papel no fenótipo apresentado, levando à identificação de sistemas ou vias completas. O crescimento bacteriano em laboratório permite a separação de organismos geneticamente idênticos, através do crescimento em placas contendo meio de cultura sólido. As bactérias se multiplicam, formando colônias a partir de um único indivíduo após muitas divisões sucessivas, e podem ser facilmente isoladas para estudo. Milhares de colônias podem ser avaliadas simultaneamente na busca por algum fenótipo específico, simplificando o trabalho. A possibilidade de seleção de um fenótipo específico é de extrema importância, pois permite identificar um indivíduo entre a população de bilhões de células. Isto é valioso para o isolamento de mutações muito raras. O genoma bacteriano também é passível de modificações induzidas por manipulação genética, e as ferramentas disponíveis atualmente permitem realizar virtualmente qualquer alteração de interesse. Os processos de transferência genética horizontal, como transformação, transdução e conjugação, permitem a introdução de material genético exógeno nas bactérias. Estes processos serão abordados em detalhes mais adiante neste livro.
O genoma bacteriano O genoma bacteriano compreende um ou mais cromossomos, que podem conter outros DNAs integrados, como bacteriófagos, ilhas genômicas e elementos transponíveis, e pode também compreender um ou mais DNAs de replicação independente, os plasmídeos (Figura 1.1). O conjunto de todos estes elementos constitui o genoma daquela linhagem bacteriana, e deve-se ter em mente que é um conjunto dinâmico, sujeito a inúmeras alterações. O genoma da E. coli K12 é diferente do da E. coli O157:H7, mesmo sendo linhagens da mesma espécie: 1915 genes estão
Figura 1.1. Elementos do genoma bacteriano. Estão indicados alguns dos diferentes elementos que compõem o genoma bacteriano. Os plasmídeos e o(s) cromossomo(s) são unidades replicativas autônomas. Integrados em qualquer uma destas unidades podem ser encontrados elementos de inserção, bacteriófagos (profagos), ilhas genômicas, entre outros.
Estrutura do Genoma Bacteriano
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presentes em uma linhagem e não na outra! Embora haja um conjunto mínimo comum de genes que definem a espécie, há uma grande quantidade de genes próprios de cada linhagem que as distinguem, e de fato a E. coli O157:H7 é uma linhagem patogênica, enquanto a E. coli K-12 não o é. Os genomas bacterianos são bastante compactos, ou seja, sua quase totalidade (cerca de 85%) é informativo, seja para RNA ou para proteínas. Os outros 15% são regiões não codificadoras, em geral regiões regulatórias dos processos de transcrição e da própria replicação do DNA. Os introns (sequências não codificadoras removidas do mRNA) são extremamente raros em genomas bacterianos. O tamanho médio de um gene bacteriano é de 1000 pares de bases, e os genomas já sequenciados mostram uma grande diversidade de tamanho (Tabela 1.1). As bactérias parasitas obrigatórias possuem os menores genomas, sendo que o menor já descrito é o de Mycoplasma genitalium, que contém 0,58 Mb (1 Mb significa um milhão de pares de bases) codificando apenas 470 genes! Estas parasitas vivem obrigatoriamente dentro de células do hospedeiro eucariótico, e portanto não possuem muitos dos genes importantes para a vida livre, mas seu genoma é considerado o mínimo necessário para manter uma célula viva. As bactérias de vida livre no ambiente com os menores genomas possuem em média 1500 genes, o que também equivale às arqueias com o mesmo estilo de Tabela 1.1. Alguns genomas bacterianos completamente sequenciados. Tamanho em Mb
Número de genes (preditos)*
Mycoplasma genitalium G-37
0,58
482
Buchnera aphidicola Sg
0,61
545
Phytoplasma asteris Onion Yellows
0,86
754
Espécie e linhagem
Rickettsia prowazekii Madrid E
1,11
834
Aquifex aeolicus VF5
1,55
1522
Haemophilus influenzae KW20
1,83
1737
Xylella fastidiosa 9a5c
2,73
2832
Bacillus subtilis 168
4,21
4100
Leptospira interrogans L1-130
4,62
3660
Escherichia coli K12 MG1665
4,64
4289 4407
Chromobacterium violaceum ATCC12472
4,75
Xanthomonas axonopodis pv. Citri 306
5,17
4312
Bacteroides thetaiotaomicron VPI-5482
6,26
4965
Anabaena variabilis ATCC 29413
7,07
5697
Pseudomonas fluorescens Pf-5
7,07
6144
Mesorhizobium loti MAFF303099
7,59
7277
Burkholderia sp. 383
8,67
7731
Bradyrhizobium japonicum USDA 110
9,10
8317
Myxococcus xanthus DK 1622
9,14
7380
*Indica o número de ORFs codificando proteínas preditas no(s) cromossomo(s). Os números são apenas indicativos e podem sofrer alterações de acordo com os métodos utilizados.
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BIOLOGIA MOLECULAR E GENÉTICA BACTERIANA
vida. O genoma de Aquifex aeolicus é um dos menores entre as bactérias de vida livre, com cerca de 1,5 Mb e 1522 genes. Embora haja um número mínimo de genes para configurar um genoma, aparentemente há muito maior flexibilidade no limite superior. Os maiores genomas já sequenciados até o momento possuem em torno de 9,2 Mb, com cerca de 8000 genes, o que equivale a genomas de eucariotos unicelulares. Uma grande parte dos genes nos genomas sequenciados foi identificada por similaridade de sequência e não têm função determinada experimentalmente. Atualmente, pelo menos de 30% a 40% dos genes de cada genoma bacteriano ainda não têm função atribuída, seja por similaridade ou por experimentação.
O nucleoide As bactérias possuem em geral um cromossomo circular, que carrega os genes essenciais à manutenção da viabilidade celular, mas podem também conter plasmídeos que carregam em geral genes mais voltados à adaptação a situações adversas ou versatilidade metabólica (ver Capítulo 3). Alguns gêneros bacterianos, como Borrelia e Streptomyces, possuem, entretanto cromossomos lineares, e tendem também a possuir plasmídeos lineares. Os cromossomos bacterianos não são envolvidos por membranas, como os eucarióticos, mas ficam no citossol das células constituindo o chamado nucleoide, que é visto sob microscopia eletrônica como uma região mais densa no centro da célula. O DNA no nucleoide é extremamente compactado, chegando a ter uma densidade de 10 mg/mL. Esta compactação é garantida pela interação com proteínas estruturais, similares às histonas eucarióticas, mas o nucleoide bacteriano não forma as estruturas características de nucleossomos. As proteínas associadas ao nucleoide são as proteínas HU, IHF (Integration Host Factor) e H-NS, que mantêm certo nível de condensação e superenovelamento do DNA, mas mais frouxo do que o das células eucarióticas. Entretanto, seu papel como principais mantenedoras da estrutura do nucleoide ainda não foi bem estabelecido, pois mutações nestes genes não causam severos danos à célula. Estas proteínas se ligam de maneira a causar enovelamento e distorções nas hélices, alterando a topologia do DNA. A proteína IHF tem papel em reações de recombinação e regulação gênica, causando distorções na hélice do DNA, e a proteína H-NS tem preferência por ligação a DNA dobrado.
O enovelamento do DNA O DNA é mantido em domínios independentes, formando alças de aproximadamente 40 kb que são mantidas unidas na base, ou cerne (Figura 1.2). Estas alças de DNA são superenoveladas de maneira independente, o que significa que a perda do enovelamento de uma alça não altera o enovelamento das outras. A hélice do DNA possui uma periodicidade de 10,5 pb por volta (veja adiante a estrutura do DNA). O superenovelamento do DNA acontece porque as hélices são torcidas sobre si mesmas, causando o chamado superenovelamento positivo (se a torção é na mesma direção das voltas da hélice) ou negativo (se a torção é na direção contrária). O
Estrutura do Genoma Bacteriano
17
Figura 1.2. Esquema da organização do nucleoide bacteriano. O DNA bacteriano é organizado por proteínas que se ligam a algumas regiões, formando alças que são superenoveladas independentemente. O detalhe mostra como o DNA se encontra associado em toda a extensão do nucleoide a estruturas proteicas.
DNA bacteriano é, em sua maioria, superenovelado negativamente, ou seja, são necessários mais de 10,5 pb para gerar uma volta na hélice do DNA. As proteínas SMC (structural maintenance of chromosomes) e MukB são responsáveis por estabilizar a condensação do DNA em subdomínios topologicamente independentes. A torção do DNA causa um estresse sobre a estrutura das hélices, que deve ser controlado. A manutenção deste superenovelamento é possível porque as alças de DNA estão presas às proteínas que formam a estrutura do cerne, e também porque o DNA tende a se enrolar sobre partículas proteicas (Figura 1.2). O nível de superenovelamento do DNA precisa ser alterado, seja em determinado local ou de maneira geral, para que os processos de replicação do DNA e de transcrição possam ocorrer. Estes processos requerem a abertura das duas fitas do DNA, gerando grandes alterações na sua topologia. O superenovelamento do DNA na célula é modulado por enzimas chamadas topoisomerases, que podem introduzir ou remover superenovelamento. As topoisomerases de DNA realizam esta função através da quebra de uma ou ambas as fitas do DNA, passagem da fita intacta pelo sítio de quebra e nova ligação (Figura 1.3). A enzima mantém as pontas do DNA ligadas covalentemente durante a reação, impedindo que haja pontas livres, sendo que a maioria das topoisomerases bacterianas liga o 5’-fosfato do DNA a um resíduo de tirosina. As topoisomerases podem ser divididas em duas classes, de acordo com seu mecanismo de ação: as topoisomerases de tipo I causam quebra temporária de apenas uma das fitas do DNA (Figura 1.3a), enquanto que as de tipo II quebram as duas fitas (Figura 1.3b). Assim, as topoisomerases de tipo I mudam um round de enovelamento de cada vez, e as de tipo II mudam dois rounds de uma vez. Pode existir mais de uma topoisomerase de cada tipo na célula. As topoisomerases variam com relação às mudanças topológicas que causam, sendo que algumas podem relaxar superenovelamento positivo e negativo e
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BIOLOGIA MOLECULAR E GENÉTICA BACTERIANA
Figura 1.3. Ação das topoisomerases. (a) As Topoisomerases do tipo I causam quebra temporária de apenas uma das fitas do DNA, passam a fita intacta pelo sítio de quebra e realizam uma nova ligação. (b) As Topoisomerases do tipo II quebram as duas fitas em um ponto do cromossomo, passam a dupla fita pelo sítio de quebra e religam. Ambos os mecanismos alteram o estado de enovelamento do DNA.
outras, somente superenovelamento negativo. A introdução de superenovelamento negativo é feita pela enzima DNA girase, uma topoisomerase de tipo II que tem papel importante na conversão do enovelamento positivo que é gerado à frente da RNA polimerase em enovelamento negativo (ver Capítulo 4). O aumento do enovelamento negativo deixado atrás da RNA polimerase é removido pelas DNA topoisomerases. As topoisomerases de tipo II também têm papel importante na separação de moléculas de DNA concatenadas, que são geradas após a replicação ou recombinação. O relaxamento de superenovelamento pelas topoisomerases do tipo I é feito sem dispêndio de energia, pois a enzima transfere as ligações originais para si, não causando uma separação permanente das fitas, e o pareamento de bases é refeito como antes. As topoisomerases de tipo II necessitam de hidrólise de uma
Estrutura do Genoma Bacteriano
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molécula de ATP para cada evento catalítico, sendo a energia necessária para a religação das pontes fosfodiéster. A DNA girase é a principal topoisomerase de tipo II da célula e pode introduzir superenovelamento negativo em moléculas circulares relaxadas numa velocidade de até 100 rounds de superenovelamento por minuto. A enzima é um tetrâmero composto de duas subunidades codificadas pelos genes gyrA e duas pelo gene gyrB. A proteína GyrA é o alvo para o antibiótico ácido nalidíxico, enquanto GyrB é o alvo da novobiocina, e estes antibióticos têm o efeito de inibir a replicação do DNA, mostrando o papel importante da DNA girase neste processo.
Estrutura do DNA A determinação da estrutura do DNA por James Watson e Francis Crick em 1953 forneceu o modelo final para explicar uma série de conclusões de trabalhos anteriores de vários cientistas. O pareamento de bases em uma hélice de duas cadeias (chamada dupla-hélice) é um modelo hoje extremamente conhecido, e abordaremos nesta parte apenas os aspectos de maior interesse para a compreensão dos próximos capítulos. Um esquema do modelo de Watson e Crick está mostrado na Figura 1.4. O DNA é uma hélice formada por duas cadeias antiparalelas enlaçadas entre si, que lembram uma escada em espiral. Uma fita de DNA é um polímero composto de três partes: um grupo fosfato, um açúcar e uma base nitrogenada. O corrimão da escada é formado por grupos fosfato e moléculas de açúcares, e portanto possui carga negativa, enquanto que os degraus são formados por bases nitrogenadas pareadas entre si como detalhado a seguir. A unidade básica que é polimerizada para dar origem a uma fita de DNA é o deoxinucleotídeo (Figura 1.5a). Os deoxinucleotídeos são formados pelo açúcar de cinco carbonos deoxiribose , um grupo trifosfato ligado à posição 5’ do açúcar e uma base nitrogenada ligada à posição 1’ do açúcar (observe a numeração dos carbonos na Figura 1.5.c). A deoxiribose é um derivado da ribose que possui uma hidroxila na posição 2’, enquanto que a deoxiribose possui apenas um átomo de hidrogênio nesta posição. A ribose é o açúcar que forma a molécula de RNA. As bases nitrogenadas podem ser de dois tipos (Figura 1.5b): as pirimidinas possuem um único anel, e as purinas possuem um anel duplo, sendo, portanto maiores. Esta diferença de tamanho terá um papel importante para a estrutura, como explicado a seguir. As pirimidinas presentes no DNA são duas, a citosina e a timina, enquanto que no RNA não se encontra timina, mas sim sua variante sem o grupo metil, a uracila. As purinas podem ser a adenina e a guanina, e estão presentes tanto no DNA como no RNA. Nas pontas de uma cadeia linear de DNA, estarão de um lado um fosfato (na posição 5’) e do outro uma hidroxila (na posição 3’). As extremidades 5’ e 3’ indicam a direção da cadeia, e, como veremos nos capítulos seguintes, a informação genética é lida sempre na direção de 5’ para 3’. Na molécula de DNA dupla fita, uma das cadeias estará na direção 5’-3’, enquanto que a outra estará necessariamente na direção 3’-5’, formando uma dupla hélice de cadeias antiparalelas (Figura 1.6). 20
BIOLOGIA MOLECULAR E GENÉTICA BACTERIANA
Figura 1.4. Modelo da estrutura do DNA. O DNA é composto por duas fitas antiparalelas (rosa e azul), que se ligam através das bases nitrogenadas pareadas entre si. A hélice do DNA é torcida em torno de um eixo central (linha preta).
As duas cadeias são mantidas unidas pela formação de pontes de hidrogênio entre as bases nitrogenadas, sendo que timina sempre forma pareamento com adenina, e guanina com citosina. Esta obrigatoriedade é dada tanto pelo tamanho das moléculas de nucleotídeos como pela quantidade de pontes de hidrogênio entre elas (Figura 1.7). As bases adenina e timina podem formar duas pontes de hidrogênio, enquanto que citosina e guanina formam três pontes. Como as purinas são maiores que as pirimidinas, para que a largura da dupla hélice se mantenha constante, é necessário que uma purina pareie sempre com uma pirimidina. Como as pontes de hidrogênio só podem ser formadas na combinação acima, estes dois fatores restringem as combinações possíveis. Continuando a analogia com uma escada em espiral, os degraus formados pelas bases nitrogenadas estão em um plano perpendicular ao corrimão de açúcares e fosfatos (Figura 1.6). Devido ao fato das duas cadeias estarem enroladas uma sobre
Estrutura do Genoma Bacteriano
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Figura 1.5. Componentes do DNA. (a) Estrutura de um nucleotídeo, nela estão indicadas as três partes que o compõem: base nitrogenada, pentose e três grupos fosfato. O asterisco indica a posição em que pode ou não haver um átomo de oxigênio formando um nucleotídeo ou um desoxinucleotídeo. (b) As bases nitrogenadas podem ser purinas (adenina e guanina) ou pirimidinas (timina, citosina e uracila). Timina está presente somente no DNA, uracila presente somente no RNA e citosina em ambos. (c) Pentoses podem ser riboses (presentes somente no RNA) ou desoxiribose (presente somente no DNA). A pentose é formada por cinco carbonos, sendo quatro (carbonos 1’a 4’) no anel e um (carbono 5’) fora.
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Figura 1.6. As cadeias do DNA são antiparalelas. O esquema mostra duas cadeias da dupla fita do DNA, estando uma das cadeias na direção 5’-3’ e a outra na direção 3’-5’, formando uma dupla hélice de cadeias antiparalelas. Note que as bases nitrogenadas estão perpendiculares aos açúcares. A fita azul representa os grupos fosfato.
a outra, a hélice resultante tem uma periodicidade de 10,5 nucleotídeos por volta, com as bases no centro empilhadas umas sobre as outras. A hélice segue na direção horária quando se olha a partir do eixo central, e esta estrutura causa a formação de duas fendas, a fenda menor e a fenda maior (Figura 1.4). A fenda menor é a separação entre cada uma das duas cadeias e a fenda maior é a separação entre a dupla-fita de uma volta e a dupla-fita da outra. Existem várias formas de DNA que variam nas dimensões entre as fendas e na direção da hélice, mas a forma mais comum é a forma B, que possui em média cerca de 10 Å de diâmetro com
Figura 1.7. Pareamento das bases nitrogenadas. As bases adenina e timina formam duas pontes de hidrogênio, enquanto que citosina e guanina formam três pontes.
Estrutura do Genoma Bacteriano
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fenda menor de 12 Å e fenda maior de cerca de 22 Å. A topologia local pode afetar a estrutura do DNA, como visto anteriormente. A compreensão da correta estrutura do DNA é essencial para o estudo de suas funções, como veremos nos próximos capítulos.
Leitura recomendada Boccard, F., Esnault, E. and Valens, M. 2005. Spatial arrangement and macrodomain organization of bacterial chromosomes. Mol Microbiol 57:9-16. Dame, R. T. 2005. The role of nucleoid-associated proteins in the organization and compaction of bacterial chromatin. Mol Microbiol 56:858-870. Thanbichler, M., Viollier, P. H. and Shapiro, L. 2005. The structure and function of the bacterial chromosome. Curr Opin Genet Dev 15:153-162. Rocha, E. P. C. 2008. The Organization of the Bacterial Genome. Annu Rev Genet 42:211-233. Luijsterburg, M. S., White, M. F., Van Driel, R. and Dame, R. T. 2008. The major architects of chromatin: architectural proteins in bacteria, archaea and eukaryotes. Crit Rev Biochem Mol Biol 43:393-418.
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