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Finalmente
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Bem cedo na manhã seguinte, começamos a transportar o grande monte de ouro até a Hispaniola. Era uma tarefa considerável para um grupo tão pequeno de trabalhadores. Os três sujeitos que andavam soltos pela ilha não nos preocupavam muito. Bastava um sentinela no topo da colina para nos prevenir contra qualquer ataque de surpresa.
Desta forma, o trabalho era executado com rapidez. Gray e Ben Gunn iam e vinham com o bote, enquanto o resto de nós empilhava o tesouro na praia. Da minha parte, já que as barras de ouro eram muito pesadas para mim, fiquei encarregado de embalar o dinheiro em sacos de pão.
Era uma estranha coleção, parecida com o tesouro de Billy Bones na diversidade, mas muito maior e variada. Eram inglesas, francesas, espanholas, portuguesas, Georges e Luíses, dobrões e guinéus, as figuras de todos os reis da Europa nos últimos 100 anos, estranhas moedas orientais estampadas com o que parecia fiapos de barbante ou pedaços de teias de aranha, moedas redondas e quadradas, e moedas com um furo no
meio, como se servissem para pendurar no pescoço. Acredito que praticamente todas as variedades de dinheiro do mundo devem ter feito parte daquela coleção.
Nosso trabalho prosseguiu por vários dias. No início, não ouvimos nenhum sinal dos três amotinados.
Até que, penso que foi na terceira noite, ouvimos um som trazido pelo vento. Era uma mistura de gritos com cantoria. Foi só um fragmento que nos chegou aos ouvidos, seguido pelo silêncio anterior. — Que Deus os perdoe — disse o doutor. — São os amotinados! — Todos bêbados, senhor — comentou Silver. Silver tinha total liberdade para ir e vir e, a despeito de sofrer algumas rejeições diárias, parecia considerar-se novamente integrado. A resposta do doutor veio num tom ríspido. — Bêbados ou delirantes — disse. — Tem toda razão, senhor — continuou Silver —, e não podemos afirmar com certeza uma coisa ou outra. — Meus sentimentos podem surpreendê-lo, senhor Silver — devolveu o doutor, com um tom de sarcasmo. — Mas, se tivesse certeza de que estão delirando, deixaria esse acampamento e, correndo o risco que fosse, ajudaria como pudesse. — Com seu perdão, doutor, mas o senhor estaria cometendo um erro — disse Silver. — Perderia sua vida preciosa, pode ter certeza. Aqueles homens lá embaixo são incapazes de
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manter a palavra. Nem mesmo se assim o quisessem. E não conseguirão acreditar na sua palavra tampouco.
Bem, essa foi uma das últimas vezes que tivemos notícias dos três piratas. Um conselho foi formado e ficou decidido que devíamos abandoná-los na ilha, para imensa alegria de Ben Gunn e com a firme aprovação de Gray. Deixamos um bom estoque de pólvora e munição, a maior parte da carne de cabra salgada, uns poucos remédios e outros artigos úteis, como ferramentas, roupas, uma vela reserva, algumas braças de corda e, de acordo com a vontade do doutor, um belo presente em forma de tabaco.
O tesouro já estava todo guardado e levamos a bordo água suficiente e o restante da carne de cabra salgada.
Finalmente, numa manhã agradável, levantamos âncora e partimos pela boca da Enseada do Norte, navegando sob a mesma bandeira que o capitão tinha desfraldado e pela qual tínhamos combatido na paliçada.
Para atravessar a passagem estreita, precisávamos passar muito perto do litoral mais ao sul e avistamos ali os três piratas ajoelhados em uma ponta de areia, suplicando com os braços levantados. Nossos corações ficaram tocados, mas não podíamos correr o risco de outro motim, e levá-los de volta para entregá-los à forca seria uma forma esquisita de compaixão. O doutor os chamou e contou sobre os mantimentos que tínhamos deixado e onde poderiam ser encontrados.
Quando os piratas viram que o navio seguia seu rumo, um deles ficou de pé, apontou o mosquete e deu um tiro que passou assobiando sobre a cabeça de Silver e através da vela principal. Depois disso, nos mantivemos abrigados e, quando olhei de novo, os três tinham desaparecido na faixa de areia, e a própria ponta de areia já ia sumindo de vista ao longe. Antes do meio-dia, não tinha como expressar minha alegria ao constatar que a mais alta rocha da Ilha do Tesouro tinha afundado no mar azul que preenchia todo o horizonte.
Faltavam mãos para operar o barco e todos a bordo tinham que trabalhar. Exceto o capitão, que ainda precisava de repouso e só podia nos comandar deitado em um colchão na popa. Rumamos para o porto mais próximo na América espanhola, para nos reforçar com novos marinheiros descansados, pois não podíamos arriscar uma longa travessia. Realmente, bastou o vento variar um pouco e enfrentarmos um par de ventanias moderadas, e já estávamos exaustos.
Baixamos âncora num lindo golfo protegido por terra por quase todos os lados. Era bem na hora do pôr do sol e fomos imediatamente cercados por canoas cheias de habitantes do local, vendendo frutas e vegetais, e se oferecendo para mergulhar em troca de moedas.
O doutor e o barão desembarcaram e me levaram com eles para passar o início da noite em terra firme. Lá conheceram o capitão de um navio de guerra inglês que nos levou para
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conhecer o navio. Para resumir, foi tudo tão agradável que o dia estava raiando quando voltamos à Hispaniola.
Ben Gunn estava sozinho no convés e, mal chegamos a bordo, ficamos sabendo que Silver tinha ido embora. O marujo abandonado foi conivente com sua fuga numa canoa poucas horas antes. Mas dizia que só tinha feito isso para proteger nossas vidas, pois elas estavam correndo perigo com “aquele homem de uma perna só a bordo”. E isso não era tudo. Ele não tinha partido de mãos vazias. Tinha conseguido levar um dos sacos de moedas, valendo, talvez, uns 300 ou 400 guinéus. Penso que todos nós ficamos satisfeitos por nos livrarmos dele por tão pouco.
Para encurtar uma longa história, completamos a tripu
lação e fizemos uma ótima viagem de volta para a casa. Che
gamos a Bristol bem quando começavam a pensar no nosso
resgate. Daqueles que tinham partido, apenas cinco homens
regressavam. “Bebida e o diabo acabaram com o resto”, como
se fosse vingança.
Cada um ficou com uma parte generosa do tesouro, que
foi usada de acordo com cada natureza. O capitão Smollett
aposentou-se do mar. Gray não só soube poupar, como tam
bém ascendeu na vida. Passou a estudar e agora é dono de uma
fragata mercante, além de ter se casado e tido filhos. Quanto a
Ben Gunn, ficou com mil libras, que foram gastas em 19 dias.
No 20. o dia, já estava de volta pedindo mais. Então ganhou uma
cabana de guarda-caça para tomar conta, exatamente o que temia que acontecesse. Ainda mora lá e revelou-se ótimo cantor nas missas de domingo e festas na igreja do vilarejo. É muito popular por lá, ainda que seja alvo de brincadeiras dos meninos da região.
Nunca mais ouvimos falar de Silver. Aquele marujo formidável com uma perna só não faz mais parte da minha vida. Mas ouso afirmar que ele reencontrou sua velha senhora, e talvez vivessem confortáveis com o papagaio Capitão Flint.
As barras de prata e as armas ainda estão lá, até onde eu saiba, onde Flint as enterrou. Com certeza, se depender de mim, é onde ficarão. Não volto para aquela ilha nunca mais. Os piores pesadelos que tenho são aqueles em que ouço o barulho das ondas explodindo naquela costa, ou quando me sento assustado na cama, com a voz aguda do Capitão Flint ainda ecoando nos ouvidos: “Peças de oito! Peças de oito!”.