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Mais sorte que juízo
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MAIS
SORTE QUE
Sou um apaixonado por navegação. Na infância, as férias passadas junto ao mar certamente são a semente dessa paixão. Ter morado quase a vida inteira no Rio de Janeiro ajuda também. Hoje dou vazão a essa paixão brincando de navegar em águas abrigadas com meu pequeno veleiro e me aventurando em travessias virtuais em um simulador de navegação oceânica na internet. Mas, quando era criança, foi a leitura de A Ilha do Tesouro que me levou em viagens “por mares nunca dantes navegados”, em busca de ilhas desertas e tesouros enterrados.
Eu lia e relia esse livro durante as férias, enquanto o sol estava quente demais para brincar lá fora, e acho que em todas as vezes fiquei confuso entre ficar desconfiado ou deslumbrado com John Silver.
Mesmo que tenham inspirado vários filmes sobre o tema, os piratas de A Ilha do Tesouro são bem menos idealizados e limpinhos que os mostrados nos filmes de piratas. Além de serem durões e destemidos, são desleixados e cruéis. Nesse sentido, os recentes Piratas do Caribe se parecem mais com os piratas apresentados por Stevenson. Ele nos conta sobre piratas que seriam capazes de matar covardemente um garoto e sua mãe, mas que respeitam religiosamente sua própria hierarquia e seus rituais.
Isso é um dos aspectos mais interessantes da forma que a história se desenrola. Quase todos os personagens acabam apresentando uma ou outra contradição. Ben Gunn pode ter perdido um pouco da lucidez com o isolamento, mas se demonstra astuto e sagaz no momento decisivo. O barão fanfarrão e boquirroto não deixa de ser também um comba
SORTE QUE JUÍZO
tente valente e um homem capaz de servir ao grupo e de reconhecer seus próprios erros. O doutor é observador e engenhoso, mas é capaz de renovar os votos de confiança em Long John Silver mais de uma vez.
Ao falarmos da presença da contradição ou ambiguidade no comportamento dos personagens, sem dúvida nenhuma o maior símbolo disso é o cozinheiro de bordo. As cenas em que ele participa são sempre fascinantes, e, desde a primeira vez em que trocam palavras, Jim Hawkins pode até não ter consciência disso, mas percebe que o dono da taverna muda de tom quando se dá conta de que Jim foi enviado pelo barão e deve ser o grumete da tripulação. Gosto de uma passagem em especial, quando Jim está em poder dos amotinados na casa fortificada, e o capitão Silver recebe a mancha negra e joga com todas as armas ao seu dispor para manter suas opções em aberto enquanto for possível.
Jim, por sua vez, além de amadurecer com o rumo tomado pelos acontecimentos, vai nos surpreendendo a cada vez que toma uma decisão imprevidente, algumas vezes irresponsável, para em seguida contribuir com sorte e valentia para que o desfecho não seja trágico para a companhia leal.
Sobre o jovem grumete, me lembro de uma fala do capitão Smollett. Concordo com o capitão quando ele diz que Jim tem mais sorte que juízo, mas, na posição de leitor, gosto muito dessa característica, tão determinante para que essa história seja uma leitura essencial e garantia de bom divertimento.
Rodrigo Machado