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O PALCO NUNCA MAIS FOI O MESMO

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CAR SWEET HOME

CAR SWEET HOME

O PALCO NUNCA MAIS FOI O MESMO O arquiteto e professor Flávio Império elevou a cenografia teatral a um novo patamar ao ampliar a funcionalidade de objetos simples de cena nos engajados anos 1960

por ana elisa meyer

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O artista no quintal de sua casa, em São Paulo, nos anos 1980. Na outra página, cena de Arena Conta Tiradentes, de 1967

Éimpossível falar da história da cenografia do teatro brasileiro sem mencionar Flávio Império (1935-1985). Nascido em São Paulo, o arquiteto, cenógrafo, figurinista, diretor, professor e artista plástico, foi um profissional multifacetado que transitou por todas essas áreas com desenvoltura e muita originalidade. Responsável por inovar a cenografia nacional, Império ingressou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP) aos 21 anos. Ao mesmo tempo que seguia o curso, iniciou seu trabalho cenográfico no grupo de teatro amador da Comunidade Cristo Operário, na periferia de São Paulo, onde entrou em contato pela primeira vez com a dramaturgia engajada do alemão Bertolt Brecht (1898-1956) e experimentou o desafio de criar com poucos recursos. Dois anos depois, em 1958, deu início à parceria artística com o dramaturgo Augusto Boal ao integrar o Teatro de Arena. De cara teve de pensar a cenografia de maneira distinta do que estava acostumado. No Arena, o palco não era italiano, de perspectiva frontal, mas circular, totalmente cercado pelos espectadores, uma maneira de tornar mais democrática a fruição da peça pelo público. A partir dessa nova necessidade, o artista optou por objetos ao mesmo tempo simbólicos e funcionais, como os praticáveis, que iam ganhando funções diversas ao longo do espetáculo. Com isso, Império imprimiu um novo significado à cenografia, que passou a ser dotada de uma postura reflexiva e crítica.

Cenas de Morte e Vida Severina, de 1960, com Walmor Chagas, em que Império cuidou dos figurinos e cenografia

O rompimento com as estruturas tradicionais fez nascer um teatro provocativo e ousado, no qual a escassez de recursos converteu-se em possibilidade criativa. O cenógrafo alcançou uma potente síntese ética e estética ao conceber, em 1960, os cenários e figurinos de Morte e Vida Severina para o Teatro Experimental Cacilda Becker. Na peça, Império utilizou materiais simples e baratos, como tecidos tingidos artesanalmente, papel e cola. A partir disso e da projeção de uma série de imagens, ele recriou a realidade miserável do nordeste brasileiro – um tanto pior em meados do século 20 do que hoje. Em 1962, o cenógrafo iniciou sua colaboração com José Celso Martinez Corrêa no Teatro Oficina. Lá assinou importantes trabalhos, como Os Inimigos (1966), no qual juntou as técnicas cenográficas artesanais e rusticas à ideologia do tropicalismo. Paralelamente, continuou a realizar importantes obras para o Arena, como Arena Conta Zumbi (1965) e Arena Conta Tiradentes (1967). Mas foi a partir do espetáculo Roda Viva, de Chico Buarque, em 1968, ao lado do diretor Zé Celso, quando incorporou o colorido, os elementos da cultura popular e a assemblage – técnica de colagem ou agrupamento de figuras, objetos e elementos visuais, criando efeitos pelo acúmulo ou da simples disposição espacial – que definiu as características que marcaram seus trabalhos ao longo das décadas seguintes.

Depois trabalhando também como diretor, buscou acentuar o rompimento entre palco e público. Naquele mesmo tumultuado ano de 1968, em Os Fuzis de Dona Tereza, adaptação da obra de Brecht, a plateia é invadida por um coro de atores utilizando matracas no lugar de vozes, mudando o foco do individual para o coletivo, com o intuito de representar o povo brasileiro e o drama

Acima, imagens do útimo trabalho do artista, o show 20 Anos de Paixão, da cantora e amiga Maria Bethânia, em 1985

político que o Brasil vivia naquele momento. Mas se Império usou Brecht para engajar politicamente os espectadores, também usou de sua formação como arquiteto para discutir a nova perspectiva da caixa cênica e

“O teatro me ensinou a vida; a arquitetura o espaço; o ensino a sinceridade; a pintura a solidão”

FLÁVIO IMPÉRIO

O histórico Teatro Oficina, em 1968, em que Império militou

as relações espaciais entre palco, plateia, ambientação e percepção.

Ao mesmo tempo em que revolucionava a cena teatral, associou-se aos arquitetos Sérgio Ferro e Rodrigo Lefèvre (1938-1984) criando o Grupo Arquitetura Nova, que era uma alternativa à modernização técnica e estética defendida pelo arquiteto e mestre de todos eles Vilanova Artigas (1915-1985). Por sete anos, realizaram uma série de projetos em que adotaram o mesmo princípio espacial de integração e valorização dos espaços coletivos e a utilização de técnicas elementares e materiais comuns de baixo custo. Império também atuou como um professor inovador na FAU entre 1962 e 1977, ano em que se demitiu em solidariedade aos professores cassados pela ditadura. Acabou sendo readmitido em 1985. Além da FAU, foi docente no curso de cenografia da Escola de Arte Dramática de São Paulo (EAD), no curso para formação de professores de desenho da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap) e na faculdade de arquitetura da Belas Artes. Como artista plástico, Império buscava por meio do desenho, da pintura e da litografia organizar suas ideias. As cores, para ele eram elementos sensoriais, evidenciando o aprendizado e a adesão do artista à linguagem modernista. Mas o espaço tridimensional era seu território preferencial. Na metade da década de 1970 deu início à parceria com Fauzi Arap (1938-2013) em espetáculos teatrais e musicais. Juntamente com o diretor e dramaturgo paulista, realizou as elogiadas peças Pano de Boca (1975) e Um Ponto de Luz (1977), de autoria de Arap. Essa nova parceria o levou a trabalhar com grandes nomes da música popular brasileira, tais como Maria Bethânia e Doces Bárbaros, incorporando todo o seu conhecimento de organização do espaço e o uso de matérias alternativos, transformando as apresentações musicais em verdadeiros espetáculos visuais.

Nos seus últimos anos de vida, criou cenários e figurinos cheios de brasilidade para as peças Chiquinha Gonzaga (1983) e O Rei do Riso (1985) e realizou a cenografia do show 20 Anos de Paixão de sua mais fiel parceira no meio musical, Maria Bethânia.

Por certa ironia do destino, Flávio Império morreu no Dia da Independência do Brasil, 7 de setembro, em 1985 – prestes a completar 50 anos –mas seu rico legado seguirá presente na nossa cultura. n

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