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DE CONVERSA EM CONVERSA

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POR AÍ

POR AÍ

POR ANTONIO BIVAR

MITO E FAMA

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Ser mito não é para qualquer um, defende nosso colunista neste mês. Aqui, uma reflexão sobre os verdadeiros mitos pelo mundo

No dicionário, a palavra “mito”, substantivo masculino, tem uma vastidão de significados. Aqui me detenho a um deles: o “personagem real exagerado pela imaginação popular”. Mito é o povo que cria. Mito é a torcida popular. Na Inglaterra, em Oxford, na segunda década do século passado, dois futuros gigantes da literatura, J. R. R. Tolkien e C. S. Lewis, discutiam o mito. Lewis entendia que mito era mentira, falso. Tolkien, também filólogo, defendia e explicava que a mentira estava no exagero, mas que no cerne, na fundação, estava a verdade do mito. Jesus, por exemplo, foi transformado em mito. A Bíblia, em si, o Velho Testamento, principalmente, é um livro de mitos. Deus não existiria se o homem não o tivesse chamado assim. Uma rosa não seria uma rosa, se o homem não tivesse lhe dado esse nome. Uma estrela não seria uma estrela, e assim por diante. Mas, por trás do homem que engrandece o incrível, o fantástico, o extraordinário, está o mito. Que não seria mi

tificado, não fosse incrível, fantástico, extraordinário. Simples assim. Mês passado perdemos João Gilberto. Não fosse ele teria existido a bossa nova? Não tivesse Ronaldo Bôscoli ter dado o nome “bossa nova” ao movimento, a batida minimalista inventada por João Gilberto sem dúvida existiria, mas um movimento não se faz sozinho, assim como uma só andorinha não faz verão, e sem um nome, movimento não existe. Em “Desafinado”, João Gilberto canta “Que isto é bossa nova, que isto é muito natural”. Décadas antes, Carmen Miranda em “O Samba e o Tan

FOTOS ARQUIVO PESSOAL; GETTY IMAGES

go” cantava “um sambinha cheio de bossa, sou do Rio de Janeiro”. E na guinada da década de 1950 para 1960, no boom da bossa nova entraram Tom e Vinicius, Nara Leão, Roberto Menescal e todo aquele pessoal. Na onda dessa simplicidade embarcaram a “Garota de Ipanema” e até o “O Barquinho”, da Maysa (“o barquinho vai, a tardinha cai”). E assim, partindo do lugar certo, na hora certa, e na voz certa – Astrud Gilberto, que foi mulher de João Gilberto, com quem teve um filho, mas que dele separada se casa com o saxofonista americano Stan Getz (1927-1991) e juntos dão voz e som definitivo a “The Girl from Ipanema” – o movimento cresceu, conquistou o planeta, transformando-se em coisa real e o mito se fez. Não há quem lhe conteste.

Muita gente que ajuda o fabrico do mito é passada para trás pela energia de novos espertos que ouvem o canto do galo e correm a tomar para si a coisa com rugido de leão. E assim o mito não morre. Quer mito mais consagrado no futebol como o Pelé? E na velocidade, o Ayrton Senna? De modo que para ser mito de verdade tem de ser maior que a vida. Mitos vêm de baixo e atingem o zênite. Andy Warhol silver screen, cantou Bowie. Os Beatles. Mick Jagger. Marta Rocha, a insuperável Miss Brasil. Quer mito maior que Carmen Miranda? Mitos saem de cena. Se humanos, um dia morrem; mas, se realmente grandes e únicos, sempre voltam e com maior força. Garbo, James Dean, Marilyn. E na mitologia grega, pois os mitos também vêm dela. Existem mitos maiores e menores, deuses e heróis.

Santos Dumont, o pai da aviação; Getúlio Vargas, muitos precisam se matar para conquistar o definitivo status de mito. No rock, outro mito musical, quantos se mataram? Kurt Cobain, nem faz tanto tempo. Nirvana ainda

vende. E assim, ídolos de pés de barro ou não, mito é mito e faz parte do folclore. E o astral é cada vez mais povoado por mitos. Mitos são como os contos de fadas para crianças e adultos. Devemos distinguir fato de ficção. Não perder a cabeça é fundamental para a mente humana em seu apetite por maravilhas. Ser mito não é para qualquer um, depende da credulidade. Existem os mitos de fama passageira. No momento em que o encanto é rompido e o feitiço quebrado, a magia falha e o mito é abortado. Isso acontece muito.

Mitos têm algo de sobrenatural. Mas para ser mito tem de também ter muita personalidade. Altas e baixas mitologias, basicamente não existe distinção fundamental entre elas. Sejam reis ou campônios, o que a carne herda passa por semelhante mortalidade física. História e mito são feitos da mesma matéria. Postos num mesmo caldeirão. E caldeirão em função não existe sem cozinheiro. É aquela coisa: a vida é muito monótona; para se livrar do enfado e da chatice o povo precisa de mitos. Indiscriminadamente, sem análise mais profunda. Jean Cocteau escreveu “la vérité du mensonge” (“a verdade da mentira”). Diz que no fundo da mentira tem muita verdade. Que é exatamente o que acontece com os mitos.

Em julho, a Flip, lá em Paraty, foi dedicada ao mítico escritor Euclides da Cunha, autor de Os Sertões, obra superconsiderada, muito estudada, mas pouco lida. Na literatura brasileira, Euclides é o verdadeiro mito. Assim como mitificado também é Machado de Assis. E que tal na nossa lusa língua Camões e Os Lusíadas? Matérias obrigatórias na formação escolar, para a maioria quase um castigo ter que lê-los. Para poucos, um deleite.

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ANTONIO BIVAR, escritor e dramaturgo, acredita que devagar e sempre, nesse passo, vai até honolulu

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