apresenta:
eu sou A MUDANÇA 100 projetos que usam a bicicleta para transformar o Brasil
utopia em construção Q
uando Renata Falzoni começou a usar a bicicleta como transporte, a única placa que se via nas ruas voltada aos ciclistas era a que proibia o uso da magrela. Uma ciclovia como esta da foto, cortando a mais icônica avenida da maior metrópole do país, era impensável. No Brasil da hiperinflação, saindo da ditadura, engarrafamentos e poluição eram problemas menores. Mesmo assim, Renata decidiu que o ciclismo urbano era uma bandeira que valia empunhar. Sem o trabalho de pioneiros como ela, a conscientização sobre a importância das bicicletas só chegaria com anos de atraso. Saiba mais sobre esta ativista que há décadas é a mudança que sonha para o mundo.
Desde quando você pedala? Aprendi aos 5 anos. Era como um tapete voador. Mas a brincadeira só virou transporte na faculdade, em 1976. São Paulo tinha passado por um boom automobilístico, mas ao retomar a bicicleta resgatei a liberdade da infância. Isso mexeu com a forma como eu via a cidade. Passei a conhecer mais gente e a enxergar os caminhos com mais atenção. 12 eu sou a mudança
Foi daí que veio a vontade de ser cicloativista? Eu notava que a cada viaduto que se erguia, a cidade ia excluindo os pedestres. E os trabalhadores que pedalavam precisaram se render ao transporte público por medo de andar nas avenidas. A única placa de rua que se referia a ciclistas no Código de Trânsito Brasileiro (CTB) era a que proibia as bicicletas. Era como se não
Na origem das centenas de projetos de apoio à bicicleta no país está o trabalho de pioneiros, como Renata Falzoni
existíssemos. Eu e alguns colegas já apontávamos esses problemas para o poder público, mas ainda éramos poucos. Como se fazer ouvir, então? Uma das ideias foi a criação dos night bikers no fim dos anos 1980: nós, ciclistas, nos inseríamos de forma organizada nas ruas e avenidas para sermos vistos pelos motoristas. Outra manifestação foi a campanha Bicicleta Brasil: Pedalar é um Direito, em 1997, quando fiz parte de um grupo de ciclistas que pedalou de Parati (RJ) até Brasília para celebrar as mudanças no CTB, que finalmente passou a mencionar a bicicleta como meio de transporte. Entre esses protestos maiores, aconteciam vários pequenos ativismos, como a entrega de matérias para a mídia veicular, de graça, e a reivindicação de espaço
Renata na ciclovia da avenida Paulista, em São Paulo – símbolo das conquistas possibilitadas pelo trabalho de ativistas de longa data, como ela
em vagões do metrô. Sempre foi um trabalho de formiguinha. Fomos ignorados por décadas até que começassem a nos ouvir. Foi o ativismo que levou você a trabalhar como repórter de trânsito? Entre 1999 e 2002 e, mais tarde, entre 2008 e 2012,
trabalhei como bikerepórter em uma rádio. Também em 1999, comecei a viajar por diversos países a convite de uma emissora de televisão, para documentar o cenário da mobilidade urbana pelo mundo. Isso ajudou a despertar o interesse para a causa. (Hoje, Renata mantém um site – veja na página 69.)
Como você vê o momento atual do cicloativismo no Brasil? Percebo que o Brasil está tirando suas boas leis do papel aos poucos. Acho admirável a postura do poder público de dar a cara para bater e começar a fazer mudanças, mas vale lembrar que isso não é nenhum ato de heroísmo – é apenas o cumprimento do Plano Nacional de Mobilidade Urbana. Como será o futuro da bicicleta no Brasil? O futuro vai exigir uma mudança de mentalidade. Nisso, nós, ciclistas, somos privilegiados, porque colocamos em prática aquilo em que acreditamos. Quando eu vejo pessoas de classes sociais muito diferentes entre si pedalando nas ciclovias, praticando juntas a solução, tenho certeza: a bicicleta é o que vai salvar o mundo.
“Fomos ignorados por décadas até que começassem a nos ouvir. Hoje, acho admiráveis as mudanças que têm sido feitas. E, sobre o futuro, tenho certeza: é a bicicleta que vai salvar o mundo.” Renata Falzoni, cicloativista © Fernando Genaro
eu sou a mudança 13
logística ecológica Ecobike courier Desde 2011 Realizado por Cristian Trentin Campinas (SP), Cascavel (PR), Curitiba, Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo www.ecobikecourier.com.br
A
redescoberta da bicicleta como solução para o trânsito levou ao surgimento de um novo setor de mercado: o das entregas sustentáveis, feitas por ciclistas. No Brasil, uma das empresas pioneiras no ramo é a EcoBike Courier, presente em seis cidades de quatro estados. Comparando com o tradicional serviço de motoboys, há limitações, é claro. Para não sobrecarregar os entregadores, o raio de ação é de 15 quilômetros. E os bikers, como são chamados, não podem passar por vias expressas proibidas para bicicletas (como a avenida 23 de Maio, em São Paulo). O diferencial decisivo, por outro lado, é a emissão zero de poluentes.
30 eu sou a mudança
Em vez de motoboy, biker: empresa de entregas feitas por ciclistas aposta na valorização da sustentabilidade
“A cidade ganha em sustentabilidade, e faz bem para a minha marca esse tipo de associação”, afirma Ethel Perlman, proprietária de um e-commerce atendido pela EcoBike. “Fora isso, o custo é próximo ao dos Correios e os prazos são cumpridos com rigor”, diz. Além de encomendar entregas avulsas, os clientes da EcoBike Courier podem requisitar um biker fixo, que fica à disposição na própria sede da empresa contratante. “Esse modelo já representa 60% do faturamento das operações em São Paulo”, afirma Daniel Jones, diretor executivo da EcoBike na capital paulista. Por ser um negócio inovador, encontrar mão de obra apropriada é um desafio. Os entregadores percorrem 50 quilômetros por dia, enfrentando ladeiras, tráfego pesado e as variações do clima. “Além do condicionamento físico, é preciso
preparo psicológico para não perder a paciência no trânsito”, ressalta Daniel. Por isso, a empresa investe em treinamentos trimestrais sobre segurança e educação. “Queremos que nossos ciclistas sejam uma referência inspiradora”, diz o diretor. A empresa também quer ser reconhecida como fonte de informação sobre ciclismo urbano – nesse sentido, a filial de São Paulo planeja realizar palestras abertas ao público sobre temas como segurança, manutenção e políticas públicas. Outra iniciativa de responsabilidade social, já em prática, aposta na formação da próxima geração de ciclistas: a cada entregador fixo locado por uma empresa, a EcoBike doa uma bicicleta para uma criança com renda familiar de até um salário mínimo. A ideia é acompanhar o beneficiado até seus 16 anos, trocando o veículo de tempos em tempos.
a cada entregador fixo locado por uma empresa, a EcoBike doa uma bicicleta para uma criança com renda familiar de até um salário mínimo
Projetos semelhantes BASE Courier Ananindeua (PA) www.basecourier. blogspot.com.br Ciclo Courier Rio de Janeiro www.ciclocourier. com.br DeBike Courier Brasília, Goiânia, Marabá (PA) e Palmas fb.com/dbcourier Pedal Express
•17•
Os bikers já
CO2 evitadas
6 voltas
toneladas de
na atmosfera © Marcelo Curia
pedalaram o equivalente a ao mundo
A empresa
tem filiais em 6 cidades
_
de 4 estados
Da esq. para a dir., Andrey Padilha e Jean Felipe Winck, entregadores da EcoBike Courier de Porto Alegre
Porto Alegre www.pedalexpress. com.br Recibike Recife www.recibikepe. wix.com/ recibikeentregas
eu sou a mudança 31
oficina de ideias P
atrícia Valverde e Fernando Rosenbaum acreditam que a discussão sobre mobilidade urbana não precisa envolver só dados técnicos, estatísticas e discursos prontos. Para o casal, tão importante quanto isso é aproximar as pessoas do assunto de forma sensível e humana. Motivados por essa causa, eles fundaram a Bicicletaria Cultural, em Curitiba. Muito mais do que uma oficina, o local é um dos polos do cicloativismo na capital paranaense, servindo de palco para eventos artísticos e educativos e de ponto de encontro para os interessados em compartilhar ideias para a construção de uma cidade melhor.
bicicletaria cultural Desde 2011 Realizada por Patrícia Valverde e Fernando Rosenbaum Curitiba www.bicicletariacultural. com.br
64 eu sou a mudança
De que forma eventos culturais podem colaborar para a promoção da bicicleta? Quando falamos de cultura, conseguimos tocar as pessoas em um ponto mais sensível. Enumerar as vantagens da bicicleta para a saúde, as cidades e o meio ambiente é importante, mas também é possível dar uma abordagem mais sentimental ao tema, lembrando-se das sensações boas que
Na bicicletaria de Patrícia e Fernando, interação social e cultura são ferramentas para a construção de uma cidade mais sustentável
acompanham o ato de pedalar, por exemplo. Isso aproxima as pessoas. E como isso acontece no dia a dia da Bicicletaria Cultural? Ela é um lugar de troca. É um ponto de encontro feito para que as pessoas convivam e conversem. Essa interação pode acontecer enquanto elas estão fazendo a manutenção da própria bicicleta ou participando de uma atividade como um curso de música ou de idiomas, por exemplo. É esse fluxo de pessoas e de ideias que gera mobilização e pode acabar transformando a cidade. Acreditamos que foi por isso que a Bicicletaria Cultural foi eleita pelo Smart Living Challenge, uma competição internacional de inovação, uma das melhores ideias para coabitar centros urbanos.
Como funciona a Bicicletaria Cultural? Para começar, o lugar não tem muitas portas. É aberto e de fácil locomoção. Procuramos fazer com que as pessoas se sintam bem-vindas. Também não há restrição de público. Assim, um adulto e uma criança, por exemplo, convivem e podem aprender um com o outro. Além disso, sempre há uma programação com cursos, palestras, oficinas, rodas de conversa, exposições e apresentações artísticas, tudo aberto ao público. De que maneira é possível atrair as pessoas que ainda não usam a bicicleta? É preciso fazer isso convidando-as a se relacionar com a cidade. Hoje, vivemos uma cultura que diz que é muito importante estar sempre abrigado, inclusive nos
deslocamentos. O carro nos dá essa noção de proteção, quando, na verdade, é uma forma de engessamento que impede o motorista de interagir com o clima, as pessoas e os imprevistos do dia a dia. É preciso mostrar que essa falsa proteção enfraquece nossa capacidade de adaptação, reação e percepção. É aí que entra a bicicleta, que, além de tudo, torna os trajetos mais prazerosos. Qual é o segredo para fazer mudanças? Cobrar o governo? É importante fazer cobranças. Mas essa não é a principal saída, já que o poder público é uma máquina muito complexa e burocrática, que costuma ir, geralmente, só onde estão fazendo mais barulho. A ferramenta principal para as grandes mudanças são as pessoas. São elas que vão desenvolver ideias e concretizá-las.
“é esse fluxo de pessoas e de ideias que gera mobilização e pode transformar a cidade” Patrícia Valverde e Fernando Rosenbaum, proprietários da Bicicletaria Cultural © Eduardo Macários
eu sou a mudança 65
como organizar um evento cultural ciclístico? Fazer uma grande festa nas ruas da sua cidade pode ser uma maneira muito eficiente de divulgar a causa da bicicleta. Você vai precisar basicamente de muita disposição e de gente interessada em ajudar. Confira um passo a passo para pôr essa ideia em prática!
1
2
reúna pessoas dedicadas
crie a programação
Realizar um evento interessante e relevante vai exigir muitos braços. Portanto, com meses ou semanas de antecedência, procure gente com vontade, tempo e disposição para colaborar. Formada a turma, organize-a para distribuir tarefas e combinar prazos – seriedade e comprometimento são fundamentais para o sucesso de empreitadas voluntárias.
Que atrações você quer oferecer? Se a ideia é atingir quem ainda não está envolvido com a bicicleta, aposte em uma programação variada. Shows são uma ótima pedida, pois o som chama atenção em um raio amplo. Barraquinhas de comida atiçam o olfato e o paladar. E não esqueça de atividades que promovam interação, como oficinas artísticas.
Fontes: Bicicletaria Cultural, CicloIguaçu e Instituto Aromeiazero
3
4
5
6
Busque parceiros
Monte a estrutura
Esteja atento
Avalie o resultado
Vá atrás de gente que se identifique com a causa e que possa se beneficiar com o evento ao divulgar seu trabalho, como donos de foodbikes, bandas locais, artistas de rua e palestrantes. Se precisar custear alguma despesa, busque apoio de empresas locais ou use ferramentas de financiamento coletivo, como os sites Catarse e Startando.
Já que bike tem tudo a ver com ocupar a cidade, realize o evento em um local público, amplo e movimentado. Não esqueça de comunicar a prefeitura. Se precisar tornar o local mais confortável, providencie bancos, tendas, tapetes, vasos de plantas. Paralelamente ao planejamento, claro, divulgue o evento, abusando das redes sociais e do boca a boca.
Durante o evento, seja receptivo e gentil com os curiosos – muitos deles vão passar por ali sem saber o que está acontecendo, e é importante ter uma resposta acolhedora na ponta da língua. Monitore o desenrolar de cada atividade, mas mantenha a cabeça aberta: às vezes as interações mais bemsucedidas são aquelas que não estavam planejadas.
Converse com os participantes para descobrir o que estão achando de cada atração. O que está sendo mais legal? O que não deu certo? Como aperfeiçoar? Além disso, monitore o feedback nas redes sociais. Uma boa forma de fazer isso é divulgar uma hashtag do festival. Tudo isso será importante na hora de fazer uma nova edição!
eu sou a mudança 73
Ela é transporte eficiente, mercado em expansão, sinônimo de sustentabilidade. Com ela, dá para praticar vários esportes, conhecer o mundo, se divertir no fim de semana. Ela abre nossos olhos para a sociedade, faz bem para o corpo e a alma e proporciona incríveis aprendizados. A bicicleta está inspirando cidadãos, empresas e governos a construir cidades mais inteligentes, funcionais, saudáveis e divertidas. Conheça 100 projetos que apostam nela para transformar o Brasil. Parte da renda deste livro é destinada para projetos que lutam pela mobilidade urbana. Saiba mais e conheça outras publicações sociais: www.bancadobem.com.br