Revista Sorria #20

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Nos domínios

da poesia texto R i t a L o i o l a

Às vezes, é um feixe de luz dourado coado pelas folhas das árvores. Uma flor miúda entre as rachaduras da calçada. O risco das letras que, unidas, se transformam em melodia. Detalhes que fazem o tempo parar, ficar suspenso em um suspiro... e então desabrochar em deslumbramento. Antes de aprender a ler, pedi aos meus pais que me ensinassem a escrever. Achava as palavras uma coisa mágica: quando se juntavam em fios sonoros, eram capazes de provocar essas maravilhas inexplicáveis que eu via, ouvia e sentia. Anos depois, descobri que esse arrepio se chamava poesia. No alto da página de um livro da escola, uma moça de cabelo muito escuro chamada Cecília Meireles me disse que cantava porque o instante existia e a vida estava completa. Ela não era nem alegre nem triste: era poeta. Foi como se eu tivesse aberto uma sala proibida. Com os olhos arregalados e o coração aos pulos, espiei estrofes, rimas, sonetos, canções – e os ritmos que percorria abriam espaços claros de emoção no meio dos meus dias. Em cadernos, eu copiava as sentenças mais bonitas e ensaiava as minhas. Guardava as páginas como se fossem pequenas pérolas, que jogavam brilho na rotina. Quando pude, comprei meu primeiro livro, uma antologia de capa branca e fina do Drummond. Foi quando entendi que poesia é transformar o comum em belo. Enxergar o mundo pelo prisma do singelo, do incrível. Mais do que em metáforas, o poético se esconde nos pequenos gestos. Congela em palavras a beleza que, de repente, decide se revelar. E constrói frases com ou sem rima, que tornam sentimento uma flor, uma linha de luz ou o risco das letras – que a qualquer um pode surpreender.

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tas poe m a r e b br m. scu ias De poes ia.co r e sor ista rev

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Conversa afiada texto K a r i n a S é r g i o G o m e s

foto F r a n k i e F r e i t a s

Na volta pra casa, o companheiro de viagem ficou mudo. O radinho sem bateria liberou meus ouvidos, e foi então que comecei a descobrir outros sons no vagão do trem. “É chego, não chegado!”, disse o filho. “Claro que não, é chegado”, retrucou a mãe. “O que eu queria mesmo era uma mulher que me deixasse ficar com a mão engordurada”, zangou o homem com a namorada. “Mas ele não é casado?”, desconfiou uma moça. “É, mas quando a gente não conhece a esposa, não conta”, esclareceu a amiga. “Eu não acredito nisso de lagarta virar borboleta”, revelou o menino para o irmão. Que retrucou, malvado: “Então, espera até saber como se faz um ovo de galinha!”. Capturadas aos pedaços, fora do contexto, elas soam absurdas. Mas ouvir conversas alheias, mais do que hábito de gente metida, é um exercício antropológico: ensina-nos sobre a natureza humana, estimula a imaginação, rende risadas e reflexões. Às vezes, é uma palavra dita de outro jeito, como a mulher que citou o medo de um tal “ET de

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Vargínia”, ou o senhor que confidenciou: “Quando bebo, sinto dor no figo”. Adoro também um mistério repentino. “Você ouviu a última declaração do Cachaça?”, pesquei outro dia, e lá fui eu criar uma história imensa na cabeça sobre a figura. Bom mesmo é quando o improvável toma a gente no meio da rua. “O cara não tem certeza, mas dá pra saber que aquela Capitu é uma safada só pelo olhar!”, escutei de um adolescente revoltado. Que belo resumo de Machado de Assis! E, mesmo na falta de conversa, sempre se pode tentar a leitura labial, ou até a livre interpretação de uma língua desconhecida. Vendo um casal de surdosmudos conversar outro dia, os gestos me deram a impressão de um papo assim. Ele: “Sim, separou. Não tá sabendo?”. Ela: “É, e foi com uma faca bem afiada”. E pensar que essa arte de ouvir anda ameaçada pelos fones de ouvido e celulares. Pois, quando a bateria acaba, a gente descobre que é destapando as orelhas que ouve o que interessa: a vida dos outros encontrando a nossa.

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envolver

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todos por todos

Vem pro

arraiá!

Se você misturar pinhão, quentão e música caipira sai uma festa junina. Veja como três grupos juntam esses ingredientes, reúnem os amigos e ainda ajudam o próximo

texto D a n i e l a A l m e i d a

ilustração B e r n a r d o F r a n ç a

JUNHO CHEGA E, COM ELE, vem a vontade de quentão, quadrilha e fogueira. Para matarem esse desejo, os moradores do condomínio Alta Vista, em Guarulhos (SP), resolveram se juntar e fazer uma festa junina com som de música caipira e gosto de pé de moleque. “As mulheres se uniram para comemorar e reunir as famílias”, conta a subsíndica Neusa Rodrigues. Para eles, a brincadeira começa antes mesmo da data, com um bingo que levanta o dinheiro para bancar a festança e, de quebra, ajuda a reforçar os laços entre os vizinhos. Essa alegria do encontro é o que anima os amigos do professor universitário Fábio Mariano, 35 anos, a preparar um arraial com bastante vinho quente e paçoca. Companheiros há 16 anos, a turma de São Paulo decidiu há quatro reservar o mês para comemorar a amizade, em uma festa particular. E, já que estavam reunidos, por que não levar essa alegria para outras pessoas também? Foi assim que começaram a usar o arraial para juntar roupas, alimentos, móveis e até ração de animais para doar a entidades carentes. Aquecer outros corações pode render até uma festa profissional, como a da Seara Bendita, instituição filantrópica espírita na capital paulista. Há oito anos, suas barraquinhas de jogos e comidinhas, bingos e quadrilhas reúnem cerca de 12 mil pessoas no bairro de Campo Belo, e já chegaram a arrecadar 80 mil reais para uma escola apoiada pela entidade. E o melhor é que, assim, o lucro vem de prenda da diversão. Para entrar na dança também, espie a seguir as dicas desses três grupos de festeiros. Com a bênção de São João, São Pedro e Santo Antônio, os padroeiros do mês, preparar um arraial vai ser mais fácil do que você imagina.

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PREPARANDO O TERRENO Como os moradores do Alta Vista festejam juntos, não pagam taxa de reserva do salão. Já a turma do Fábio aluga um sítio. Para usar a rua, como faz a Seara Bendita, é preciso pedir permissão à prefeitura e ao Detran. Para decorar, a dica é fazer os próprios enfeites, como bandeirinhas de jornal, ou visitar lojas de festa que vendam no atacado.

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2 23 OLHA A COBRA! No condomínio Alta Vista, há animadores contratados para organizar os jogos. No sítio de Fábio, já teve até cavalo para o noivo fazer uma entrada triunfal na quadrilha. Agora, vão infiltrar sabotadores e lobisomens na dança. Na Seara, as prendas chegam por doação ou são compradas com a renda dos convites. “A preocupação é não repetir os brindes e deixar a coisa mais divertida para as crianças”, diz Roberto Carvalho, diretor da entidade.

BOTA ÁGUA NO PINHÃO Cada morador leva um prato e as bebidas que for consumir no Condomínio Alta Vista. Fábio e seus amigos definem o cardápio, vão às compras três dias antes da festa e deixam só os perecíveis para o último minuto. No arraial da Seara, cada barraca tem um grupo da instituição que arranja as doações de comida SOM NA CAIXA

e organiza o trabalho.

Um karaokê resolve o som na festa dos vizinhos de

Alguns espaços, como o do

Guarulhos. Da próxima, o plano é contratar um violeiro.

churrasco, são terceirizados

Na festa do Fábio, os amigos ligam o computador e cada

para profissionais, que

um leva um pen drive com músicas. Quando cansa, alguém pega o violão e solta a voz. O esquema é mais profissional na festa da Seara, que busca apoio da prefeitura para montar o palco e bandas que toquem na faixa.

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doam 40% do faturamento as eceit are r Prep as com br . junin rria.com aso t s i v re

na festa à entidade.

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crescer

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É

(

)(

)

valores que mudam a vida

CONVERSAR É... USAR A INTUIÇÃO, A SINCERIDADE E A PACIÊNCIA PARA OUVIR OS OUTROS E FALAR O QUE É PRECISO, COMO FAZ A SÍNDICA REJANE (À DIREITA) COM SEUS VIZINHOS

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No fio do texto K a r i n a S é r g i o G o m e s ilustrações G r a n d e C i r c u l a r

diálogo

Foto: Guilherme Gomes / Beleza: Élcio Aragão (Maizena) (Agência First) / Fotodesign: Felipe Gressler

Ultrapassar a barreira do silêncio e trocar palavras com outras pessoas faz surgir relações, famílias, a política, o amor e a paz. Para chegar lá, é necessário conjugar um único verbo: conversar – O VIZINHO está fazendo barulho! – O capacho da minha porta sumiu! – O cheiro que vem da casa da vizinha me dá dor de cabeça! Manhã, tarde, noite. Não tem hora para os problemas surgirem. Mas a síndica Rejane Albuquerque, 54 anos, consegue fazer com que os moradores dos 164 apartamentos de um edifício na Zona Norte de São Paulo vivam em paz. Como? “Conversando”, diz a ex-tenente da Aeronáutica, gestora do prédio há 18 anos. E ela é tão boa de papo que, em todo esse tempo e com toda essa gente, só três casos chegaram ao extremo: receberam uma única multa e os problemas acabaram. É que, ali, o diálogo começa logo na chegada dos novos moradores. Rejane os recebe com um sorriso e faz uma “reunião de integração”. Apresenta as normas, os procedimentos e os valores que os vizinhos respeitam e responde a dúvidas. Depois das boas-vindas, coloca-se à disposição para as dificuldades eventuais. Normalmente, trabalha como mediadora das questões entre os corredores: – Rejane, a vizinha da frente está passando algum produto na porta e o perfume me dá dor de cabeça – reclama uma senhora. E lá vai a síndica gentilmente bater na porta da suspeita: – Reclamaram do cheiro de um pro-

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duto que você está passando no apartamento logo pela manhã. – Mas, Rejane, eu não passo nenhum produto... Só passo perfume, em mim, quando saio para o trabalho. – Ah, desculpa. Mas, então, será que você pode passar só um pouquinho antes de sair? Aí você não incomoda ninguém. Caso esclarecido, Rejane volta a bater na porta da vizinha queixosa: – O que você está sentindo é o perfume que ela passa para ir trabalhar, mas já conversamos e ficou tudo bem. Depois disso, a reclamação chegou ao fim. Simples assim. Uma não sabia que aborrecia a outra e, não fosse pela conversa, o problema poderia terminar em confusão. “Gosto de tentar solucionar as questões na base do diálogo. Para isso, não precisamos mais do que o instinto e um pouco de paciência”, diz a síndica, que desde que assumiu o cargo vem sendo reeleita a cada dois anos. “Ouvir os lados e tentar negociar é o segredo. Às vezes, a coisa vira um tumulto por simples falta de comunicação”, atesta. Com suas palavras, a síndica já resolveu o sumiço misterioso de capachos de um andar, regulou o som das festas e do namoro de casais empolgados, resolveu fofocas e má vontade entre vizinhos. Para que todos convivam em harmonia, ela

vai aparando arestas, mostrando o ponto de vista das outras pessoas e pedindo a compreensão dos envolvidos. Com o diálogo, faz com que os moradores ao seu redor enxerguem que estão juntos e precisam se entender. Para ela, a vitória vai ser seus serviços se tornarem obsoletos. “Se as pessoas usassem o diálogo para resolver seus pequenos conflitos, talvez não precisassem de um síndico.”

De ouvidos bem abertos E, com conversa, provavelmente suas relações sociais também seriam mais fortes. Afinal, ninguém vive sozinho – e o diálogo é o que cria o vínculo entre as pessoas. “Da conversação surgem todas as nossas relações sociais, da família às decisões políticas, passando pela amizade e pelo amor”, afirma a filósofa Márcia Tiburi. Falar com os outros é uma das maiores e mais importantes dimensões da vida, a cola que nos liga aos outros, cimentando os laços e nos fazendo crescer. Conversando, fundamos a sociedade, criamos a cultura, elegemos representantes. É esse ato que faz com que, além de pensar sozinhos, possamos pensar juntos. O embate entre pontos de vista é um dos fundamentos do saber. Quando o pensamento de um encontra o pensamento do outro, nasce o conhecimento

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comer

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sabores que confortam

Ao vencedor,

as batatas De mil tipos e cores, quando nascem por baixo

da terra, elas se esparramam por incontáveis receitas. De quebra, ainda fazem um bem danado à saúde texto R i t a L o i o l a

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Produção culinária: Carolina Saraiva | Produção de objetos: Márcia Asnis

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NO FIM DA MINHA INFÂNCIA, o cardápio de casa passou por uma revolução. De repente, apareceram sobre a mesa travessas com batatas diferentes. Umas eram firmes e fortes. Havia as farelentas e as cheias de água. Outras se desfaziam em fios adocicados. Foi um problema de saúde de nossa cozinheira (minha mãe, no caso) que nos apresentou ao mundo maravilhoso de raízes e caules, como aipim, cará, mandioquinha. Lembro-me das dicas de tias-avós mineiras e das incursões aos livros de receitas de umbanda – que indica os ingredientes de cor clara para homenagear Oxalá. Ainda sinto a sensação de destampar panelas de pedra em que borbulhavam pedaços de inhame e de deixar derreter na boca chips fininhos de batata-doce. Em pouco tempo, nos deslumbramos com as possibilidades dessas polpas. Dá para prepará-las de diversas maneiras: ensopadas, refogadas, assadas, recheadas ou fritas. E a textura semelhante possibilita substituir uma raiz por outra na hora de cozinhar. Além da diversão gastronômica, aprendemos que esses tubérculos subterrâneos são fontes de energia – a digestão leve foi o motivo da indicação médica. “Eles são carboidrato puro, de fácil absorção e imprescindíveis à saúde”, diz Gisele Raymundo, professora do curso de nutrição da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. “Sessenta por cento das calorias de nossa dieta vêm desse tipo de nutriente. É por isso que as raízes são uma das fontes de energia mais antigas da humanidade.” A batata-doce, por exemplo, é utilizada há pelo menos 10 mil anos na nossa alimentação. Com a mandioca, consumida por cerca de 500 milhões de pessoas na América do Sul, ela constitui a base energética do continente. Ainda trouxemos a mandioquinha dos Andes, o inhame da Ásia e o cará da África. São tantas opções que essas batatas diferentes nunca mais deixaram os pratos lá de casa. Quer experimentar?

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ROSTIE

FEIAS, MAS GOSTOSAS

INGREDIENTES

Elas são duronas à primeira vista.

• 800 g de mandioquinha sem casca ralada

Mas é só levar ao fogo para revelar todo o sabor

• 1 cenoura grande sem casca ralada • 1 cebola-roxa pequena picada • 200 g de bacon em fatias, cortadas em pedaços • 1 ovo • 2 1/2 colheres (sopa) de farinha de trigo • 1 colher (chá) de sal • 1 pitada de pimenta-do-reino • 200 g de queijo parmesão ralado • 1/3 de xícara de salsinha picada • 3 ramos de tomilho

CARÁ Branco e de casca escura, é um caule subterrâneo rico em potássio.

MODO DE PREPARO

Algumas variedades crescem em

Coloque em um escorredor a

trepadeiras – é o cará aéreo.

mandioquinha, a cenoura e a cebola e pressione para retirar o excesso de água. Frite o bacon até ficar crocante e escorra-o em papel toalha. Enquanto esfria, misture o ovo, a farinha, o sal e a pimenta em uma tigela. Junte a mistura de mandioquinha, o bacon, o queijo e as ervas. Forme com

INHAME É um caule subterrâneo, rico

as mãos panquecas achatadas e frite-as,

em magnésio, potássio e fósforo.

aos poucos, em uma frigideira antiaderente

Nascido na Ásia, chegou até nós via África,

untada com azeite. Doure por cerca

nas malas de viajantes e escravos.

de 4 minutos de cada lado.

CHIPS DO BRASIL INGREDIENTES • 600 g de batata-doce ou outra raiz de sua preferência • 2 litros de óleo • Sal a gosto MODO DE PREPARO Lave as raízes, descasque-as e fatie bem fino, no sentido mais comprido, com bom cortador. Frite-as aos poucos em uma panela funda, em óleo bem quente. Quando elas estiverem douradas, retire, coloque sobre papel absorvente e salgue. Se preferir

BATATA-DOCE Essa raiz pode ter muitas cores: sua polpa pode ser roxa, salmão, amarela, creme ou branca. Boa para doces e salgados, é rica em vitamina A.

fazer os chips assados, coloque-os em uma assadeira e deixe meio centímetro de espaço entre uma fatia e outra. Leve ao forno em fogo baixo por, no mínimo, 1h30, até que fiquem crocantes e dourados. O preparo é o mesmo para chips de mandioca, inhame, cará e mandioquinha. DICA! Os chips ficam uma delícia servidos com geleias, açaí, cream cheese e patês. *Receita da chef Dani Padalino, da Banqueteria

MANDIOQUINHA Cor amarelo-ouro, rica em vitaminas do complexo B, ela veio do Equador e do Peru. Batata-salsa, baroa e cenoura amarela são seus codinomes.

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