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15 Beta‑alanina como Recurso Ergogênico para o Exercício e o Esporte

Rafael Pires da Silva

Q introdução

Uma alimentação equilibrada integra parte fundamental de um contexto global para comportamento saudável no mundo moderno, que também inclui, entre outros fatores, a redução do tempo sedentário e o aumento da atividade física.1,2 A associação entre nutrição e exercício é ainda mais relevante no esporte de alto rendimento, uma vez que pode ser fator decisivo no sucesso e, até mesmo, no fracasso de um programa de treinamento ou competição.3 Isso porque a articulação de componentes nutricionais e do treinamento físico se torna um desafio, pois são necessários ajustes finos da multiplicidade de fatores que envolvem:

 Cenário esportivo: y Característica do exercício/modalidade. y Números e períodos de competições. y Deslocamentos/viagens.

 Dieta: y Predileções pessoais. y Disponibilidade do alimento. y Fontes alergênicas ou irritantes.

 Ou ambos: y Ajuste do gasto calórico. y Acesso e reposição a fontes energéticas durante a competição.

No que se refere às características do exercício, é importante levar em consideração as demandas metabólicas envolvidas. Ou seja, o comportamento das vias predominantes no sistema de transferência de energia para a realização de determinada tarefa motora (ATP-CP*, glicolítico, oxidativo), fornecendo bases fundamentais para a escolha da melhor intervenção nutricional.4 Existem modalidades que são caracterizadas pela alta intensidade, de perfil anaeróbico bem característico, que podem ser:

 De forma contínua: y Provas de 100 a 400m, no atletismo. y Provas de 50 a 100m, na natação.

 De forma intercalada (exercício‑repouso‑ exercício): y Lutas em geral. y Tênis. y Canoagem slalom. y Fases agudas tanto no ciclismo de estrada quanto de mountain bike

A energia utilizada na ressíntese de adenosina trifosfato (ATP) para a realização dessas atividades advém, em grande parte, de vias anaeróbicas,5-7 sobretudo, com aumento da taxa de utilização do glicogênio no músculo ativo e, consequentemente, acúmulo considerável de diversos metabólitos, entre eles:8,9

* ATP-CP refere-se ao sistema dos fosfagênios; mecanismo de transferência de energia via ressíntese da molécula de adenosina trifosfato (ATP) pela hidrolise da fosfocreatina ou creatina-fosfato (CP).

 Adenosina difosfato (ADP).

 Fosfato inorgânico (Pi).

 Íons H+ e [lactato]–.

A produção elevada desses metabólitos resultante do exercício intenso tem capacidade de inibir enzimas do sistema glicolítico,10 além de prejudicar diretamente (competição entre H+ e Ca++ pelo sítio da troponina) diversas etapas do processo contrátil e causar fadiga.11,12 Embora ainda haja controvérsia na literatura sobre o exato mecanismo de fadiga e os papéis desses metabólitos, existem diversas evidências in vivo demonstrando que a acidose intramuscular (via redução do pH – medida da concentração de ácidos/íons H+) é uma das principais causas da fadiga em exercícios de alta intensidade.13,14 Tendo em vista a importância da regulação do pH durante o exercício de alta intensidade, estratégias que contribuam para a manutenção do equilíbrio ácido-básico tornam-se potencialmente ergogênicas.

Neste capítulo, serão abordados os recursos ergogênicos nutricionais enquanto mecanismo físico -químico fundamental para a regulação do pH intracelular dentro dos valores fisiológicos.15 No centro dessa discussão está o tamponamento por peptídios e aminoácidos realizado pelas moléculas que apresentam grupos químicos imidazóis,16,17 em especial, a carnosina (beta-alanil-L-histidina), um dipeptídio intracelular citoplasmático encontrado em altas concentrações no músculo esquelético.18

Estimativas realizadas inicialmente por Harris et al. (2006)19 sobre a contribuição significativa da carnosina para a capacidade tamponante total do músculo19 despertaram a curiosidade para o entendimento dos possíveis fatores intervenientes na concentração de carnosina e, por sua vez, na melhora do controle ácido -básico.

A compreensão desses mecanismos, entretanto, não motiva apenas pesquisadores, mas também atletas, treinadores e nutricionistas, que buscam o aprimoramento de seus programas de intervenção profissional e/ou científico. O interesse fica evidente, sobretudo, após achados de que o fornecimento exógeno da beta-alanina, um dos aminoácidos constituintes da carnosina, parece ser a maneira mais eficiente de melhorar a capacidade tamponante muscular decorrente do aumento das concentrações de carnosina,20,21 bem como os efeitos associados à melhora do desempenho esportivo.22

A seguir, serão apresentadas as particularidades e principais funcionalidades da carnosina e da beta-alanina, como:

 Fontes na dieta.

 Protocolos e segurança da suplementação.

 Efeitos ergogênicos sobre desempenho físico e esportivo.

 Efeitos colaterais.

 Entre outros.

e da beta-alanina

Estrutura, absorção e síntese

A carnosina pertence a uma família de dipeptídios histidil (dipeptídios contendo histidina) e é constituída pelos aminoácidos L-histidina e beta-alanina (Figura 15.1). A carnosina apresenta dois análogos metilados ao nitrogênio do anel aromático da L-histidina na estrutura (adição de CH3):15

1. Ofidina (também chamada de balenina).

2. Anserina.

Embora esses dipeptídios se distribuam bem entre as diferentes espécies, a anserina está mais presente em aves e peixes, enquanto a ofidina, em mamíferos marinhos e répteis, porém, até o momento, o único dipeptídio contendo histidina encontrado em tecidos humanos é a carnosina.23 Estima-se que o tecido muscular armazene a maior quantidade (>95%) de carnosina existente no corpo humano, algo

Endogenia Suplementação Dieta

FIGURA 15.1 Modelo esquemático da estrutura molecular, da disponibilidade e da síntese da carnosina e de seus aminoácidos precursores (beta‑alanina e L‑histidina) em torno de 21mmol/kg de músculo seco* (5mmol/L de músculo úmido) no músculo esquelético, considerando um indivíduo saudável e com dieta não restritiva aos derivados proteicos.24 Embora a carnosina esteja presente em outros tecidos (cérebro, rins, coração) e com propriedades relevantes, sobretudo de forma promissora em ações terapêuticas e de saúde, teremos como foco principal neste capítulo apenas as particularidades relacionadas ao músculo esquelético humano.

Fonte: elaborada pelo autor.

Carnosina

Consumida na dieta, a carnosina é clivada no lúmen intestinal pela enzima carnosinase tecidual em seus aminoácidos constituintes (beta-alanina e L-histidina), que são posteriormente absorvidos no jejuno e no ílio e transportados** pelos enterócitos até a corrente sanguínea.25 Entretanto, quantidade muito pequena de carnosina (~10%) é absorvida*** de forma intacta. Dessa fração intacta, parte é levada até tecidos específicos, que conseguem captá-la na forma íntegra, enquanto outra parte chega aos túbulos renais para ser excretada.26 No entanto, é provável que, alcançando o plasma, a carnosina seja clivada pela carnosinase sérica,27 pois suas concentrações sanguíneas são praticamente indetectáveis.28

* Músculo seco faz referência ao processo de desidratação da amostra de tecido antes da quantificação do analito, nesse caso, a carnosina.

Até o momento, evidências sugerem que o músculo esquelético não é capaz de captar a carnosina do meio extracelular nem produzir seus aminoácidos precursores, mas consegue sintetizá-la em reação catalisada pela enzima

** Transporte de beta-alanina realizado pela proteína ABAT0+ (aminobutirato aminotransferase).

*** Transporte de carnosina realizado pela proteína PEPT1 (trasportador de peptídios 1).

Beta-alanina dos alimentos

Estudos demonstram certa estabilidade da carnosina no processo de cocção, ao passo que temperaturas elevadas (75°C) não parecem degradar significativamente a concentração de carnosina.28 Por outro lado, a quantificação da beta-alanina nas fontes animais não apresenta a mesma estabilidade, podendo variar de acordo com a raça, a idade, e o sexo do animal, bem como se recebeu ou não tratamento hormonal. O mesmo corte, por exemplo, pode apresentar concentrações diferentes da carnosina e de seus análogos.

Em linha disso, a estimativa do conteúdo de beta-alanina nos alimentos até o momento tem como base os dados de Jones et al. (2011),54 que investigaram o conteúdo de dipeptídios imidazólicos (carnosina e anserina) em algumas poucas fontes alimentares de origem animal normalmente consumidas pela população (ver Figura 15.2).54 Dessa forma, é possível ter estimativa do consumo de beta-alanina na dieta dos indivíduos.54

Nesse sentido, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com o Ministério da Saúde, realiza pesquisas de orçamentos familiares (POF) que têm como um dos resultados o consumo habitual de diversos alimentos.55 Tomando como base a quantificação de dipeptídios histidínicos realizada por Jones et al. (2011)54 e as informações de consumo médio diário per capita de alimentos divulgadas pela POF (2008-2009),*55 é possível produzir uma estimativa da ingestão de beta-alanina na população brasileira. Gonçalves (2019)56 mostrou que, no Brasil, o consumo habitual elevado de peixes responde pela maior quantidade de beta-alanina na dieta das populações do Norte e do Nordeste (Figura 15.3).56 De modo semelhante, o maior consumo de carnes, peixes e aves entre adultos (18 e 59 anos de idade) justifica a maior concentração de beta-alanina na dieta em comparação aos adolescentes (10 a 17 anos de idade) e aos idosos (<60 anos de idade). Cabe destacar, entretanto, que o conhecimento da quantidade de beta-alanina na dieta se restringe atualmente

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