Bioética e Direitos Humanos

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BIOÉTICA E DIREITOS HUMANOS análise sobre o início e o fim de vida

Cristiane Avancini Alves

Porto Alegre, 2015


Reitor Telmo Rudi Frantz Pró-Reitora de Graduação Laura Coradini Frantz Pró-Reitora de Pesquisa, Pós-Graduação e Extensão Márcia Santana Fernandes Diretor da Faculdade de Direito Augusto Tanger Jardim Coordenadora do Curso de Direito Campus Porto Alegre Alessandra de Moraes Vieira Russo Coordenador do Curso de Direito do Campus Canoas André Bencke

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Editor Chefe da Editora UniRitter Marcelo Spalding Editoração Eletrônica Alex Barreto Conselho Científico da Editora UniRitter Prof. Dr. Beatriz Daut Fischer (Unisinos), Prof. Dr. Bernardo Subercaseaux (Universidad de Chile), Prof. Dr. Diego Rafael Canabarro (UFRGS), Prof. Dr. Elias Torres Feijó (Universidade de Santiago de Compostela), Prof. Dr. Gilberto Ferreira da Silva (Unilasalle), Prof. Dr. Günther Richter Mros (Universidade Católica de Brasília), Prof. Dr. Jaqueline Moll (MEC), Prof. Dr. Júlio Van der Linden (UFRGS), Prof. Dr. Lucas Kerr de Oliveira (Universidade Federal da Integração Latino-Americana), Prof. Dr. Marizilda Menezes (UNESP Bauru), Prof. Dr. Taisy Weber (UFRGS) Conselho Editorial Anna Paula Canez, Gladimir de Campos Grigoletti, Hericka Zogbi Jorge Dias, Isabel Cristina Siqueira da Silva, Jacqueline Schaurich dos Santos, Josué Emílio Möller, Júlio César Caetano da Silva, Laura Glüer, Laurise Pugues, Luciano Reolon, Marc Antoni Deitos, Maria Luíza de Souza Moreira, Regina da Costa da Silveira, Rejane Pivetta.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) A474b Alves, Cristiane Avancini Bioética e direitos humanos: análise sobre o início e o fim de vida / Cristiane Avancini Alves – Porto Alegre: Ed. UniRitter, 2015. 142 p. : il ; 16x23cm. ISBN : 978-85-5572-004-8 1. Bioética. 2. Direitos humanos. I. Alves, Cristiane Avancini. II Título CDU 179.7 Ficha catalográfica elaborada no Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Dr. Romeu Ritter dos Reis


Para a amada “piccola” Isabela Kaori


AGRADECIMENTOS Uma das mais significativas lembranças que tenho quando recordo o início da minha trajetória acadêmica se refere à decisão de trabalhar com “bioética”. Muitas pessoas me perguntavam: bioética? O que é bioética? Devo dizer o quanto me orgulho desse tema, e o quanto sou apaixonada por ele; talvez, tenham sido esses sentimentos que me fizeram perseverar e fortalecer nas diferentes cidades em que estive e vivi nesses últimos anos. Quero agradecer a todos os amigos que conheci durante o Doutorado na Scuola Superiore Sant’Anna di Studi Universitari e di Perfezionamento em Pisa, Itália, pessoas especiais da minha vida, que seguem me iluminando para além do céu de Galileu Galilei. Entre essas importantes estrelas, tenho a querida família Dindo, com a admirável Kateryna e seus maravilhosos Nicola, Tommaso e Federico; minha “chéri” Violette Peignè, as minhas “care” Denise Amram, Chiara Certomà, Elena Asciutti, Vanessa Fischer, Adele Servadio, Milagros Koteich, aos meus amigos e colegas do primeiro ano do Doutorado, Elena Gomes, Ilaria Carmassi, Samuele Marchetti, Pietro Masala e Yixien Li, e ao meu “irmão espiritual” Nelson Correa. Tantas outras pessoas e nacionalidades participaram desse período, e afetuosamente agradeço aos membros e amigos do Lider-Lab da Scuola Superiore Sant’Anna, coordenado pelo Prof. Giovanni Comandè, que me acolheram com muito carinho e generosidade. Faço especial referência à minha orientadora de tese, Profa. Erica Palmerini, e ao seu relator, Prof. Francesco Donato Busnelli, pelo conhecimento e desafiadores questionamentos no decorrer do curso. Tive, ainda, a oportunidade de viver significativos momentos como “Visiting Researcher” no Kennedy Institute of Ethics, da Georgetown University (Washington, D.C., USA) e no Institute of Biomedical Ethics da Universidade de Zurique, Suíça. Respectivamente, agradeço ao Prof. John Keown e ao Prof. Roberto Andorno e família o carinho e a receptividade, que tornaram minha estadia mais calorosa e menos distante de casa. Retorno no tempo e volto ao Mestrado: entre os corredores da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, conheci amigos que, hoje, são, também, colegas de docência e parceiros na caminhada do processo educacional, do incentivo à pesquisa, da atribuição de significado ao que fazemos. Tive, nessa trajetória, a honra e a felicidade de ser orientada pela Profa. Judith Martins-Costa. Seu sentido de humanidade e sua honestidade intelectual iluminaram (e seguem iluminando) a minha atividade acadêmica, e a sua amizade é um privilégio que


enriquece a minha vida. Na volta, também, a Porto Alegre, após o Doutorado, tive a oportunidade de ingressar no corpo docente do UniRitter Laureate International Universities, onde pude encontrar um local de partilha não apenas do conhecimento e troca de experiências didáticas, mas, também, de amizade e vida. Desejo que a publicação deste livro por sua Editora possa trazer frutos importantes de debate e reflexão. Agradeço, ainda, aos meus dedicados alunos vinculados ao projeto de pesquisa e aos meus alunos de primeiro e segundo semestre, que engrandecem minha atuação por despertarem e requererem minha energia na busca de indicar, da melhor maneira possível, os primeiros passos na carreira jurídica. E, nesta ponte entre o Direito e a Bioética, tive a estrada segura e sempre instigante dos queridos amigos do LAPEBEC, Laboratório de Pesquisa em Bioética e Ética na Ciência do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, sob a chefia do Prof. José Roberto Goldim. Hoje, para além da admiração profissional, tenho a alegria da sua amizade. Ao seu lado, está a querida amiga Márcia Santana Fernandes, que conheci antes mesmo de sermos colegas no Mestrado, e que hoje segue e partilha, comigo, a atividade docente no Direito Civil e o entusiamo pela interface entre os dois campos dessa ponte. Nessa estrada interdisciplinar, agradeço as “amigas irmãs” Laura Arteche Courvoisier e Karina Couto Giron, que conheci no curso de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, e que seguem escrevendo as manchetes de nossas vidas com determinação e afeto. Há uma expressão que refere que, para voar, precisamos de base sólida de onde partir. Agradeço a Deus os alicerces maravilhosos que a vida me ofereceu: meus pais Jorge Antonio Schmidt Alves e Maria do Carmo Avancini Alves, pelo exemplo, otimismo e dedicação, e pelo apoio incondicional aos vários vôos que fiz, pois eu só os fiz com a mistura de serenidade e coragem porque sabia para onde podia voltar; aos meus irmãos e amigos Denise e Eduardo, não consigo imaginar minha vida sem suas palavras de entusiasmo, de força, e sem seus sorrisos, que iluminam a alma; aos meus cunhados Hildebrando e Carla, pelo sempre e especial companheirismo; a todos os meus familiares, representados pelos meus eternos padrinhos Anna e Fábio, e a uma linda pequena, que nasceu juntamente com esse livro, e a quem essa obra é dedicada, por representar a força da vida e do amor: que essa força possa impulsionar novas reflexões sobre a nossa existência e, assim, sobre a nossa própria humanidade.

Cristiane Avancini Alves Porto Alegre, maio de 2015


SUMÁRIO PREFÁCIO...............................................................................................................................11 INTRODUÇÃO.........................................................................................................................17 PARTE I – BIOÉTICA E DIREITOS HUMANOS: ORIGENS E CONEXÕES..............................23 1. Traços históricos da formação dos direitos humanos.......................................................24 1.1 Um breve percurso sobre a ideia de personalidade..................................................26 1.2 Personalidade, autonomia e campos de concentração.............................................33 2. O surgimento da bioética...................................................................................................36 2.1 Hipócrates e a medicina..............................................................................................36 2.2 A palavra “bioética”.....................................................................................................36 2.3 Saúde e consentimento após a Segunda Guerra Mundial.........................................38 3. A relação entre a bioética e os direitos humanos.............................................................45 3.1 Documentos internacionais e princípios....................................................................46 3.2 A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos......................................49 PARTE II – BIOÉTICA E DIREITOS HUMANOS: ANÁLISE QUANTO AO INÍCIO E FIM DE VIDA.....................................................................53 4. Início de vida: a reprodução assistida e a gestação de substituição................................54 4.1 Reprodução assistida...................................................................................................54 4.2 Gestação de substituição.............................................................................................77 5. Fim de vida: as diretivas antecipadas de vontade e os cuidados paliativos....................95 5.1 Diretivas antecipadas de vontade...............................................................................95 5.2 Cuidados paliativos....................................................................................................115 CONCLUSÃO..........................................................................................................................127 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................................................133



PREFÁCIO

À natureza e aos deuses do Olimpo era dada a imortalidade, a vida perpétua isenta de morte, doença, velhice. Por contraste aos deuses, encontravam-se os homens, os únicos mortais, em um universo imortal. Inserida num cosmo onde tudo era imortal, observa Hannah Arendt, “a mortalidade tornou-se o emblema da existência humana”1. Não se trata, porém, apenas do fato do fim da vida. Os homens são “os mortais”, diz ainda Arendt, são “as únicas coisas mortais que existem porque, ao contrário dos animais, não existem apenas como membros de uma espécie cuja vida imortal é garantida pela procriação. A mortalidade dos homens reside no fato de que a vida individual, com uma história vital identificável desde o nascimento até a morte, advém da vida biológica. Essa vida individual difere de todas as outras pelo curso retilíneo do seu movimento que, por assim dizer, intercepta o movimento circular da vida biológica. É isto a mortalidade: mover-se ao longo de uma linha reta num universo em que tudo o que se move o faz num sentido cíclico”2. A leitura do texto de Cristiane Avancini Alves ora dado a publicar recordou-me essa extraordinária passagem de Arendt porque – ao versar o início e o fim da vida sob a conjunta perspectiva da Bioética e dos Direitos Humanos – inicia a Autora com um trecho de Solo de Clarineta, de Érico Veríssimo, que junta ao reconhecimento de si (o rosto visto ao espelho) a memória de uma vida vivida, é dizer: uma história vital identificável e singular. Identificabilidade, singularidade, autorreconhecimento e memória são marcas do humano. São elementos de qualificação dos fatos expressos nos verbos nascer e morrer. Ainda que não assim diretamente expressada, essa é a perspectiva que encontro no texto que agora tenho a alegria de prefaciar. Com atenção textual e contextual rara em nossos autores, neste livro Vida (o início) e Morte (o fim) são qualificados para além do fato natural e jurídico, estando sua análise situada no ponto de entrecruzamento entre os Direitos Humanos e a Bioética, campos em que a Autora se tem positivamente destacado desde que aí decidiu centrar seus estudos acadêmicos. ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 27. 2 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 27. 1


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Sua formação, iniciada na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, prosseguiu com um Doutorado em Ciências Jurídicas na prestigiosa Scuola Superiore Sant’Anna di Studi Universitari e Perfezionamento, Itália3, com passagens, como pesquisadora visitante, nos não menos prestigiosos Institute of Biomedical Ethics – University of Zürich, Suíça, e Kennedy Institute of Ethics, Georgetown University, Estados Unidos. Sua atenção a essa complexa e delicada temática tem-se dado ao longo de quinze (15) anos, desde que se ocupou em seu Mestrado em Direito com o exame e a proposição de diretrizes para um estatuto jurídico do embrião humano no direito privado4, voltando os olhos, após, à análise do fundamento, pertinência e qualificação jurídica das “diretivas antecipadas de vontade”5 (mal chamadas, por alguns, de “testamento vital”). O livro traduz estudo, dedicação, experiência, reflexão, o necessário repensamento que exige o abandono da pressa e nasce da perplexidade, jamais da certeza. A reflexão acerca do início da Vida – e, portanto, o exame da reprodução assistida, da gestação de substituição e da proteção ao embrião humano – provém de estudos e inquietudes motivadoras de sua dissertação de mestrado e tese de doutorado. Amadureceu-os a Autora em suas horas de estudo em Sant’Anna, na Itália, no Kennedy Institute norteamericano e no Institute of Biomedical Ethics suíço. Seu pensamento sobre a ética e os direitos humanos foi agudizado também ao curso de sua estada na Europa, matriz dos direitos humanos e palco de algumas de suas mais aterrorizantes violações, consistentes na experimentação em seres humanos levada a efeito nos campos nazistas a pretexto de fazer-se Ciência. O tema do fim de vida surgiu mais tarde, quando, já retornada ao Brasil, passou a participar e a compartilhar questionamentos no notável grupo interdisciplinar reunido pelo Professor José Roberto Goldim no LAPEBEC/HCPA (Laboratório de Pesquisa em Bioética e Ética na Ciências do Hospital de Clínicas de

Human Embryo Donation: a bridge between health care and research in assisted reproduction. Ano de obtenção: 2009. Orientador: Erica Palmerini 4 Embrião Humano: diretrizes para um estatuto jurídico no direito privado. Ano de Obtenção: 2005. Orientador: Judith Martins-Costa. Para uma súmula: AVANCINI ALVES, Cristiane. Aspectos da Doação de Embriões Humanos no Cenário Brasileiro. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 49, 2012, p. 69-100. 5 Esses estudos estão expressos em: AVANCINI ALVES, Cristiane. Diretivas Antecipadas de Vontade e Testamento Vital: considerações sobre linguagem e fim de vida. Revista Juridica, ano 61, n. 427, 2013, p. 89-110; AVANCINI ALVES, Cristiane. Linguagem, Diretivas Antecipadas de Vontade e Testamento Vital: uma interface nacional e internacional. Revista Bioethikos, v. 7, n. 3, 2013, p. 259-270; AVANCINI ALVES, Cristiane; FERNANDES, Márcia Santana; GOLDIM, José Roberto. Diretivas Antecipadas de Vontade: um novo desafio para a relação médico-paciente. Revista HCPA, v. 32, 2012, p. 358-362. 3


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Porto Alegre)6, dali resultando estudos sobre diretivas antecipadas de vontade e a questão dos cuidados paliativos7. A par de excelentemente bem escrita e fundamentada, a obra é mais que oportuna. Vivemos um extremado processo de desumanização do humano, seja no início, seja no fim, seja, enfim, no transcorrer da vida. Há uma confluência de fatores, entre os quais a expansão de uma nova ética filosófica (o utilitarismo e o seu exacerbar no puro pragmatismo); elementos econômicos e políticos (a globalização); fatores tecnológicos (os avanços científicos na área biológica e, especialmente, na área das técnicas e meios informativos); ideológicos (as religiões impositivas de suas verdades, ainda que a custa do assassinato dos diferentes); e ainda há o pós-modernismo como doutrina e como apologia da ultrapassagem das categorias modernas, que vieram para afirmar, com as luzes da razão, os direitos de todos os homens, conjuntamente, e não apenas uma infinidade de “direitos dos casos concretos” que seriam resultantes de um absoluto “direito à diferença”8. Da ciência à estética o estilhaçamento, a fragmentação e a antinomia – e não a unidade, a harmonia, a integridade – se afirmam como padrões do nosso tempo. O avanço bio-tecnológico parece confirmar essa hipótese: não há sequer mais a integridade do humano. O ser humano é separado do seu corpo. Este, longe de ser visto como um aspecto constitutivo do ser é, agora, “material humano”, reificado e apropriado comercialmente. A liberdade do homem, categoria iluminista por excelência, é transformada em liberdade de atuação no mercado. www.ufrgs.br/bioetica/disbiodir.htm AVANCINI ALVES, Cristiane. ‘La prima cosa bella’: uno sguardo alle cure palliative. Revista de Bioetica y Derecho de la Universitat de Barcelona, v. 22, 2011, p. 48-55. 8 Do pós-modernismo como “um “pontilhismo” irredutivelmente pluralista, pluralismo perspectivado, porém, “não um sistema durkheimiano de solidariedades, mas uma nuvem de interações linguajeiras” fala ROUANET, Sergio Paulo. A Verdade e a Ilusão do Pós-Moderno. In: As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 234. Outros autores têm também percebido que esse pontilhismo, essa fragmentação pós-moderna, pode produzir o esvaziamento do conteúdo dos direitos fundamentais. A sua desordenada e infundada multiplicação, o seu “empolamento”, conduzem à respectiva banalização e enfraquecimento. Nessa linha, José Oliveira Ascensão afirma que “o empolamento dos direitos fundamentais implica que os afastemos cada vez mais da base que os deveria sustentar, que seria a imposição da personalidade humana. Por outro lado, os direitos entram em conflito entre si, limitando-se reciprocamente, de maneira que novos direitos, de justificação duvidosa, acabam por limitar antigos direitos, verdadeiramente fundamentais, preexistentes”. (ASCENSÃO, José de Oliveira. Os Direitos de Personalidade no Código Civil Brasileiro. Revista Forense, v. 342, abr.-jun. de 1998, p. 126). Neste mesmo sentido, João Carlos Loureiro afirma que “é a dignidade da pessoa humana que assegura a unidade do sistema de direitos fundamentais, mas o enraizamento destes não pode conduzir-nos a uma situação em que a violação de um qualquer direito seja sinónimo da violação da dignidade humana, sob pena de banalização deste topos”. (LOUREIRO, João Carlos. Os Genes do nosso (Des)Contentamento (Dignidade Humana e Genética: Notas de um Roteiro). Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. 77, 2001, p. 192). 6 7


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Porém, como diz antiga sabedoria, “contra fatos há argumentos”. Se a compreensão da Modernidade se estrutura num posicionamento crítico ante a factualidade e nas ideias éticas – e polarmente gemelares – da autodeterminação e da auto-responsabilidade, cabe examinar, frente a essa realidade de fatos, os argumentos que nos dão os Direitos Humanos no terreno da Bioética, compreendida como um conhecimento global9 capaz de estabelecer “um sistema de prioridades amplo na área da saúde e na área ambiental, visando permitir a sobrevivência aceitável dos seres humanos e de todos os demais seres vivos”, como propôs Potter ainda em 1988, ao acentuar a Bioética como o locus da reflexão acerca do senso de responsabilidade no seu sentido mais abrangente, a saber: o reconhecimento dos nossos limites e dos nossos erros, da nossa responsabilidade por um amplo aprendizado, utilizando conhecimentos disponíveis bem como de uma competência interdisciplinar e intercultural e que potencializa justamente o senso de humanidade10. A perspectiva global, própria da Bioética, não desfaz – antes exige – o domínio técnico adequado das categorias estruturantes dos diferentes campos do conhecimento. É como estudiosa do Direito, professora de Direito Civil (esse manancial quase inesgotável e milenarmente construído de categorias e formas de raciocínio amparados na lógica e na experiência) que Cristiane Avancini Alves aborda o tema da Vida e da Morte. Sem jamais se afastar da ética da responsabilidade de matriz kantiana, sem jamais abrir espaço para uma “moral de mercado à qual se devem subordinar todos os outros valores”11, sem resvalar nem de longe na naturalização da tecnociência e na redução simplificadora da complexidade, a Autora – especialmente na segunda parte da obra – examina os instrumentos, nacionais e internacionais, de regulação jurídica, com o que desvenda, com os óculos dados pelo Direito, a naturalização do discurso científico que já levou à biologização da

Como acentua José Roberto Goldim, “o Prof. Potter elaborou esta nova versão como forma de enfatizar a sua proposta de uma Bioética Global, isto é, com ampla abrangência. Este significado foi modificado, incorretamente, por outros autores alterando-o dentro de uma leitura desde o ponto de vista do processo de globalização”. O giro na concepção de Potter é marcado pela obra Global Bioethics - Building on the Leopold Legacy (1988). Para referencias, ver GOLDIM, José Roberto. www.bioetica.ufrgs.br 10 Goldim, José Roberto. Bioética. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2004. Disponível em: www. bioetica.ufrgs.br. 11 A expressão entre aspas é de BERLINGER, Giovanni. A Ciência e a Ética da Responsabilidade. In: NOVAES, Adauto (Org.). O Homem-Máquina: a ciência manipula o corpo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 9


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política num terrível passado sempre presente e hoje corre paralela ao indiferentismo ético que transforma o “poder-fazer” em “dever-ser”12. Porém, o Direito é ordenamento justamente porque sua função primordial e típica é justamente a de “pôr ordem” (ordenando, isto é, compondo complexas escalas de valores) e “pôr em ordem” (re-arrumando o caos, vazio primordial, espaço onde o princípio material de todas as coisas espera o momento da humana criação). Forma cultural por excelência, o Direito adapta-se especialmente, na sua metodologia, à realidade que deve ordenar. A “casa do Direito, nossa casa comum”, lembra Lambrusse-Riou, é feita de materiais duros e flexíveis, materiais que resistem, que se podem dobrar, mas não romper13. Vitam instituere, como diziam os Romanos, o Direito é tecido por polissemias14, permitindo, a cada época, a fecundação, nos seus institutos e na sua técnica, dos valores capazes de assegurar a manutenção do humano. Conquanto polarizado pelos fatos, o conteúdo do Direito não está condenado à facticidade, pois, não sendo uma simples técnica, não está restrito a cumprir apenas uma função instrumental, desembaraçada de qualquer referência a valores éticos. O Direito – ordem normativa – trabalha sempre com a questão ética fundamental – “quem somos, e o que queremos ser, como vivemos, como queremos morrer” – situando em seu horizonte, permanentemente, a questão da auto-responsabilidade pelas nossas próprias ações, apesar de não dispormos em nada sobre a essência nuclear de nossa construção e sobre as qualidades herdadas15. Bem por isso, os grandes problemas jurídicos (como a qualificação de “pessoa” e de “coisa”, por exemplo) não se podem estar desvinculados de uma forte referência ética que abarca,

Observa Taguieff: “Ainsi défini au début du XVIIe siècle, l’impératif techno-scientifique s’énonce hors de toute préoccupation éthique. Il est indifférent aux valeurs, plaçant la valeur des valeurs dans l’accroissement indéfini de la puissance de faire. L’impératif technicien s’avère ‘foncièrement an-éthique’, et, plus précisément, ‘hors morale, puisque le principe même de la morale consiste à ne pas faire tout ce qu’il est possible de faire, à imposer, de préférence librement et avec des raisons, des limites à la liberté’. Pour la position techniciste, la vie humaine n’étant plus un don de Dieu, un dépôt sacré ni un héritage à respecter et transmettre, elle devient simplement un ‘matériau qui se gère’, un ensemble d’éléments à manipuler, à dissocier et à recombiner indéfiniment, selon les désirs variables de l’homme – c’est-à-dire de certains hommes, dotés d’un pouvoir de décision”. (TAGUIEFF, Pierre-André. L’Espace de la Bioéthique. Esquisse d’une problématisation. Res Publica, n. 21). 13 LAMBRUSSE-RIOU, Catherine. Le Droit Saisi par la Biologie – des juristes au laboratoire. Paris: LGDJ, 1996, p. 9, referindo “la maison du Droit, notre maison commune”. 14 Assim lembra LAMBRUSSE-RIOU, Catherine. Le Droit Saisi par la Biologie – des juristes au laboratoire. Paris: LGDJ, 1996, p. 9. 15 Assim, HABERMAS, Jürgen. Escravidão Genética? Fronteiras Morais dos Progressos da Medicina de Reprodução. In: A Constelação Pós-Nacional. Ensaios Políticos. Tradução de Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Littera Mundi, 2001, p. 210. 12


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por exemplo, os problemas relativos à regulação da filiação; da disponibilidade, ou não, do corpo humano; do próprio estatuto do corpo humano; a relação entre médico e paciente (de que decorrerá inclusive a qualificação do que é “dano médico” ou o que é “ilícito médico”); da extensão do poder normativo de nossas decisões, expressas em declarações de vontade juridicamente prescritivas. Essas questões, ao serem regradas pelo Direito, não apenas se voltam aos dados fornecidos pela ciência, estando também polarizados pela ética. Trafegam, é bem verdade, num espaço tênue e muito frágil. Mas a inteligência e a responsabilidade da Autora permitem que chegue sã e salva a porto seguro, proporcionando-nos leitura tão agradável quanto proveitosa.

Judith Martins-Costa Canela, maio de 2015.


INTRODUÇÃO

O MEU AMIGO mais íntimo é o sujeito que vejo todas as manhãs no espelho do quarto de banho, à hora onírica em que passo pelo rosto o aparelho de barbear. Estabelecemos diálogos mudos, numa linguagem misteriosa feita de imagens, ecos de vozes, alheias ou nossas, antigas ou recentes, relâmpagos súbitos que iluminam faces e fatos remotos ou próximos, nos corredores do passado – e às vezes, inexplicavelmente, do futuro – enfim, uma conversa que, quando analisamos os sonhos da noite, parece processar-se fora do tempo e do espaço. Surpreendo-me quase sempre em perfeito acordo com o que o Outro diz e pensa. Sinto, no entanto, um pálido e acanhado desconforto por saber que existe no mundo alguém que conhece tão bem os meus segredos e fraquezas, uns olhos assim tão familiarizados com a minha nudez de corpo e espírito. Talvez seja por isso que com certa frequência entramos em conflito. Mas a ridícula e bela verdade é que no fundo, bem feitas as contas, nós nos queremos um grande bem1.

O reconhecer-se a si mesmo é uma das mais importantes manifestações de nossa história, de nossa autonomia e de nossa identidade. Quando Érico Veríssimo, em sua autobiografia, retrata o seu olhar sobre si mesmo a cada despertar, ele leva o leitor, também, à percepção da relação construída e da vida sentida na passagem do tempo. Nesse espelho, há uma forte conotação de liberdade: ainda que o outro conheça todos os segredos e fraquezas de Érico – o que lhe causa um certo desconforto –, a visualização de si mesmo em sua totalidade é uma das grandes conquistas pela qual o ser humano teve de lutar, construir ou reafirmar ao longo dos séculos. É por isso que a presente obra busca delinear os fios condutores e conectivos entre dois campos que espelham a realidade humana e que instigam o olhar sobre nós mesmos, para que nos reconheçamos como seres ínsitos de dignidade e que, ao nos reconhecermos assim, possamos ver não apenas o outro espelhado, mas, também, o outro social, da mesma maneira com que nos vemos a nós mesmos. A formação dos direitos humanos e o surgimento da bioética são esferas do conhecimento que nos auxiliam e levam a esse reconhecimento de si mesmo e do outro, bem como VERÍSSIMO, Érico. Solo de clarineta: memórias. Porto Alegre: Globo, 1973, (introdução).

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nos alertam para o não esquecimento de que a sociedade deve manter o permante reflexo dessa percepção, pois a ruptura com esse olhar pode nos fazer desviar de nossa própria humanidade. Ressalta-se que a presente obra pretende estabelecer uma relação mais direta entre os direitos humanos e os documentos internacionais que se referem aos aspectos biomédicos, fazendo-se uma delimitação nesse sentido. Assim, o objetivo inicial deste trabalho é a contextualização desses dois importantes campos de análise, qual sejam, os direitos humanos e a bioética, para, então, ser possível delinear elementos que participam do debate e da atuação das esferas do início e fim de vida nesse panorama. Essa escolha advém de uma motivação pessoal quanto ao difícil e sensível período que envolve a Segunda Guerra Mundial. Tem-se e registra-se a consciência de que há, ainda, muito o que ser trabalhado e estudado quanto a esse tema e tudo o que o circunda, especificamente quanto ao lugar que os campos de concentração ocuparam e sempre ocuparão em nossa memória. Os capítulos deste livro buscaram desenhar linhas iniciais de reflexão e, para tanto, o olhar sobre o início e o fim de vida possui importante conexão nesta “localização deslocante”2, ou seja, nestes campos que atrozmente marcaram o movimento totalitário e, por consequência, a própria sociedade. Para traçar essas considerações, o livro está dividido em duas partes. A Parte I descreve aspectos relativos à origem dos direitos humanos e da bioética, para que seja possível ter uma base de visualização dessas duas esferas de indagação e, assim, identificar as conexões entre elas. Este panorama está estruturado em três tópicos. No primeiro, a narrativa quanto aos traços históricos dos direitos humanos principia com a noção de pessoa e do atributo da personalidade em breves inserções na Antiguidade até os tempos atuais. Esse delineamento é importante na medida em que princípios fundamentais, como a liberdade e a igualdade, conseguem ser efetivamente

“O descolamento crescente entre o nascimento (a vida nua) e o Estado-nação é o fato novo da política do nosso tempo, e aquilo que chamamos de campo é o resíduo. A um ordenamento sem localização (o estado de exceção, no qual a lei é suspensa) corresponde agora uma localização sem ordenamento (o campo, como espaço permanente de exceção). O sistema político não ordena mais formas de vida e normas jurídicas em um espaço determinado, mas contém em seu interior uma localização deslocante que o excede, na qual toda forma de vida e toda norma podem virtualmente ser capturadas. O campo como localização deslocante é a matriz oculta da política que ainda vivemos, que devemos aprender a reconhecer através de todas as suas metamorfoses, nas zones d’attente de nossos aeroportos bem como em certas periferias de nossas cidades. Este é o quarto, inseparável elemento que veio a juntar-se, rompendo-a, à velha trindade Estado-nação (nascimento)-território”. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 182.

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implementados e vividos quando há proteção e garantia de autonomia e poder de decisão. Nesse contexto, a razão humana e sua trajetória no tempo é elemento de necessária conexão com o desenvolvimento da personalidade. Verificando-se essa importância, o segundo item deste tópico retrata como o tolhimento ou a suspensão de sermos quem somos e, assim, de nos reconhecermos (da mesma maneira como Érico Veríssimo consegue ver a si mesmo refletido no espelho), abre caminho para a despersonalização e, desse modo, para a implementação de movimentos totalitários que configuraram um novo cenário mundial que, após o regime nazista, precisou direcionar políticas concretas no que se refere à valoração e à proteção da dignidade da pessoa humana. Esse cenário inicial liga-se, no segundo tópico, às referências quanto ao uso da palavra “bioética” na literatura, e, também, ao seu surgimento e a sua solidificação como campo de encontro de disciplinas para a adequada análise dos casos que envolvem aspectos biomédicos. Essa percepção permite que ela se associe a diversas e concomitantes esferas do conhecimento. Portanto, não se adota e não se defende sua dissociação em termos como “biodireito”, “bioengenharia”, “biopsicologia”, pois o estudo da bioética e do caso concreto a ela associado ganha em interdisciplinaridade e, assim, profundidade, ao se conjugar com a especificidade de cada disciplina. Podese acrescentar a essa posição a percepção de que a bioética é, sobretudo, “uma parte de nossa responsabilidade simplesmente humana: deveres do homem para com outro homem, e de todos para com a humanidade”3. Portanto, falar em saúde e consentimento abre caminho para a conexão entre os direitos humanos e a bioética. Será referido como o conceito de saúde, elaborado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) após a Segunda Guerra Mundial, ao atribuir como elementos desse conceito não apenas o bem-estar físico, mas, também, social e psicológico, busca enaltecer a autonomia e, assim, a prerrogativa de cada ser humano em seu processo de tomada de decisão quando confrontado com circunstâncias biomédicas. O terceiro tópico expõe como essas situações e os traços históricos conjugamse na formação dos primeiros documentos internacionais de direitos humanos, em que a positivação de princípios como a igualdade, a autonomia, a solidariedade e a não-discriminação denotam o intuito de reafirmar a dignidade da pessoa humana. É interessante perceber que esses documentos, na verdade, não trazem a “novidade” da COMTE-SPONVILLE, André. Bom dia, angústia! São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 61.

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igualdade, por exemplo, como princípio. O fato é que a ruptura estabelecida no âmbito da Segunda Guerra Mundial, novamente com referência aos campos de concentração, demonstrou como o ser humano pode esquecer de seu próprio caráter humano, e instrumentalizar seus pares. Uma das razões para essa manipulação consistiu na possibilidade de experimentação em seres humanos (ou seja, como “cobaias”) para a verificação dos efeitos de determinado fármaco, entre outras aplicações. Essa constatação nos remete à importância de se atribuir efetivo significado aos princípios jurídicos presentes em cada ordenamento e aos princípios bioéticos emanados em virtude da proteção do paciente. De acordo com Francesco Bellino, a dificuldade quanto à estruturação de sentidos dos princípios está em demonstrar as potencialidades e as implicações que eles já possuem; ou seja, não se trata de verificar se os princípios presentes no panorama exposto não sustentam, suficientemente, os temas que envolvem os direitos humanos e a bioética, “mas de que nossa sensibilidade cultural e psicológica vacile entre o fascínio do possível e os temores dos efeitos de certas inovações tecnológicas sobre o mundo vital e sobre as relações humanas”, ou, ainda, “entre o respeito do ‘naturalmente dado’ e o esforço para amoldar o dado segundo nossa vontade e artifício, entre a vida concebida como intocável e a qualidade da vida, entre o poder técnico-científico e o poder, que periga escapar-nos, de controlar o próprio poder”4. Esse poder atinge os extremos de nossas vidas. A conexão entre as duas partes dessa obra é estabelecida, exatamente, nos limites da nossa existência, momentos estes que caracterizam fortemente a relação entre os direitos humanos e a bioética. A referência ao início da vida é basilar: só há continuidade do nosso viver e, assim, percepção de seu fim, pelo seu começo. Esse é um tema extremamente delicado e que não possui hegemonia de entendimento entre os países. Deve-se atentar, ainda, às mudanças sociais e culturais que podem alterar posicionamentos e legislações sobre o tema. A análise feita com relação ao início da vida concentrou-se nos tópicos relativos à reprodução assistida e à gestação de substituição. Mesmo com essa delimitação, há um imenso número de novas situações que instigam a reflexão e a busca de alternativas quanto ao manejo e à aplicabilidade de novas técnicas nessa área. Portanto, procurouse conjugar a reprodução assistida com os aspectos relativos ao consentimento e à

BELLINO, Francesco. Fundamentos da bioética: aspectos antropológicos, ontológicos e morais. Bauru, SP: EDUSC, 1997, p. 70-71.

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doação do embrião humano, especialmente em razão da conexão com o tema da gestação de substituição. Neste último, foram abordados os contornos relativos a sua origem e à linguagem utilizada na sua caracterização, bem como a diversidade de regulamentações em diferentes países, e como as questões culturais e sociais também estão fortemente associadas a essa prática. Na linha de continuidade de nossa existência, chega-se ao tópico relativo ao fim de vida e, nele, a delimitação centrou-se no âmbito das diretivas antecipadas de vontade e nos denominados cuidados paliativos. Em ambos, há importante delineamento quanto à linguagem, seguindo-se o mesmo objetivo estabelecido para a gestação de substituição, ou seja, demonstrar que a maneira como cada um dos institutos é identificada pode gerar, por vezes, equivocadas interpretações quanto ao seu emprego e aplicabilidade. Essa constatação leva a uma interessante observação de Laura Palazzani quanto à conjugação entre a teoria e a prática no âmbito biomédico. Ela refere que, nesse contexto, propriamente porque é a prática que atrai a presença da teoria, esta (a teoria) não pode cair no erro de se submeter docilmente às pressões da exigência concreta. A autora considera que a tematização de conceitos e a aquisição de dados de conhecimento empírico (que fazem, por sua vez, a verificação dos conceitos) em vista de uma ação prática se constituem na motivação de ação da bioética; por isso, pode-se configurar o risco de utilizar os conceitos e os fatos para justificar determinados atos, já anteriormente escolhidos5. Essa atenção é de grande importância no debate que se quer suscitar com esta obra, na medida em que o rápido desenvolvimento das técnicas que envolvem tanto o início como o fim de vida desafiam o jurista quanto ao enquadramento do caso concreto e, para tanto, é necessária essa clareza ou, pelo menos, o acesso às alternativas e aos conceitos que podem auxiliar na delimitação do processo decisório. Ainda, é importante perceber o que denomino “fator temporalidade”, desenvolvido no âmbito das diretivas antecipadas de vontade, mas que possui papel decisivo também quanto ao início da vida. Essa denominação indica que o avanço das tecnologias relacionadas ao âmbito biomédico podem modificar nossa própria percepção sobre o tratamento que poderemos querer (ou não) receber quando confrontados aos aspectos abordados neste livro. PALAZZANI, Laura. Il concetto di persona tra bioetica e diritto. Torino: G. Giappichelli Editore, 1996, p. 25.

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Há uma “historicidade” presente na construção das nossas vidas, que se reflete na identidade pessoal de cada ser humano. Ela – a identidade pessoal – tem uma dimensão absoluta ou individual na medida em que cada pessoa humana é uma realidade singular, dotada de uma individualidade que a distingue de todas as demais, e uma dimensão relativa ou relacional, definida em função da memória familiar conferida pelos antepassados, sendo possível falar, portanto, de um “direito à historicidade pessoal”6. As alterações, as criações ou as recontruções de práticas relacionadas ao início e ao fim de vida (tanto nos seus aspectos positivos quanto negativos) refletem-se na própria formação social. É por isso que a sociedade, condicionada pela sociabilidade do homem7, vê-se, dessa maneira, diante de novos aspectos relacionais. O estudo bibliográfico e jurisprudencial utilizado como método para a realização desta obra revelou as inúmeras formas e perspectivas empregadas em diferentes países quanto à regulamentação dos temas aqui aboradados, bem como os procedimentos adotados na ausência de legislação sobre esses assuntos. Esse levantamento possibilitou oferecer uma certa amplitude relativa aos tópicos trabalhados, e a verificação de que não há respostas conclusivas ou hegemônicas na grande maioria dos casos que ilustraram e estabeleceram a conexão entre a teoria e a prática relacionadas aos respectivos temas. Deseja-se que as próximas páginas possam ser semelhantes ao espelho de Érico Veríssimo, ao possibilitarem a confrontação com os novos aspectos relacionais suscitados através da conjugação de reflexos e reflexões entre a bioética e os direitos humanos. Esses campos são bases fundamentais na construção de sentidos e significados que envolvem o desenvolvimento de novas tecnologias no âmbito do início e do fim de vida, uma vez que esse avanço repercute nas diversas instâncias do nascer, do viver, e do morrer. Independentemente da etapa na qual é feita a inserção das nossas percepções e avaliações, o “outro” espelhado precisa ser sempre reconhecido. Somente assim poderemos falar em plena proteção e garantia de nossa própria humana dignidade.

Expressão e diferenciação entre identidade absoluta e relativa extraídas de OTERO, Paulo. Personalidade e identidade pessoal e genética do ser humano: um perfil constitucional da bioética. Coimbra: Livraria Almedina, 1999, p. 64. 7 REALE, Miguel. Pluralismo e liberdade. São Paulo: Edição Saraiva, 1963, p. 64. 6


PARTE I – BIOÉTICA E DIREITOS HUMANOS: ORIGENS E CONEXÕES

Quando, contudo, eu entrava no cinema às quatro ou cinco, ao sair me surpreendia o sentido da passagem do tempo, o contraste entre as duas dimensões temporais diferentes, dentro e fora do filme. Eu tinha entrado em plena luz e encontrava, lá fora, a escuridão, as ruas iluminadas prolongavam o preto e branco da tela. A escuridão por vezes diminuia, por outras acentuava, a descontinuidade entre os dois mundos, porque faltava a passagem daquelas duas horas que eu não havia vivido, imerso em uma suspensão do tempo, ou na duração de uma vida imaginária, ou no salto para trás dos séculos8.

A passagem do tempo e os diversos cenários que compõem a vida e a imaginação estabelecem parâmetros de percepção da análise histórica desse mesmo tempo e de seus reflexos na formação do ser humano. Para Italo Calvino, havia uma vida não vivida naquelas duas horas em que ele estava no cinema, que o separava, de alguma forma, do mundo exterior. Na história da humanidade, podemos encontrar esses “momentos de suspensão” (que assim denomino), mas essa suspensão não está isenta de significados. Pelo contrário, o silêncio ou o intervalo do tempo podem trazer todas as formas de sentido e de valoração do momento vivido, pois falar em suspensão não significa falar em ausência de vida. Essa percepção conecta-se com a temática dos Direitos Humanos na sua força humana, como já refere a própria denominação desses direitos. A característica inerente de sermos seres e humanos já revela, por si, a importância da sua relação com a Bioética, campo de encontro da análise de preceitos e valorações éticas sobre a vida e o viver. A conexão entre essas esferas retoma a ideia de suspensão: início e fim de vida possuem, hoje, diversas formas de delineamento, especialmente e sobretudo em razão dos avanços tecnológicos que inovam, ampliam ou modificam o nascer e o Originalmente: “Quando invece ero entrato nel cinema alle quattro o alle cinque, all’uscirne mi colpiva il senso del passare del tempo, il contrasto tra due dimensioni temporali diverse, dentro e fuori del film. Ero entrato in piena luce e ritrovavo fuori il buio, le vie illuminate che prolungavano il bianco-e-nero dello schermo. Il buio un po’ attutiva la discontinuità tra i due mondi e un po’ l’accentuava, perché mancava il passaggio di quelle due ore che non avevo vissuto, inghiottito in una sospensione del tempo, o nella durata d’una vita immaginaria, o nel salto all’indietro nei secoli”. CALVINO, Italo. Autobiografia di uno spettatore. In FELLINI, Federico. Fare um film. Einaudi Editore, 2010, p. IX.

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morrer. Por isso, há a necessidade de uma atenção constante relativamente a esses novos contornos, pois a atenuação ou reforço das linhas que estabelecem esse cenário podem tanto enaltecer quanto macular nossa própria existência. A Primeira Parte desta obra traça os principais aspectos da formação histórica dos direitos humanos, de maneira a trazer os elementos essenciais para a análise de sua relação com a bioética. Nesse sentido, o surgimento da bioética no panorama mundial possui uma forte conexão com o surgimento das primeiras declarações de organizações internacionais referentes à proteção da pessoa humana. Esse contexto revela delicados enredos que ultrapassam as telas do cinema para participar, efetivamente, da história real de nossas vidas, tanto do seu início como do seu fim. 1. Traços históricos da formação dos direitos humanos A referência aos direitos humanos remete, na atualidade, a uma amplitude de percepções quanto a sua própria denominação em virtude da sua recepção em diversas legislações ou em razão do debate que o tema tem mundialmente suscitado. Os avanços de novas tecnologias na área da saúde, o desenvolvimento das redes computacionais, a facilidade de circulação de pessoas entre países (através da formação de grupos como a Comunidade Europeia ou o Mercosul, por exemplo), o controle de segurança internacional no âmbito biométrico, são apenas alguns dos fatores que ampliam o rol de situações em que o ser humano é personagem principal de análise e proteção. Essa abrangência, que traz, consigo, aspectos relacionados a situações sociais, políticas e culturais, possui uma outra indicação. Percebe-se, também, que “a multiplicidade dos usos da expressão demonstra, antes de tudo, a falta de fundamentos comuns que possam contribuir para universalizar o seu significado e, em consequência, a sua prática”9. Para tanto, torna-se importante traçar uma breve linha histórica em que se possa contextualizar a formação desses direitos, que participam na estruturação de diversos ordenamentos jurídicos e, assim, na própria formação social. O passo inicial dessa fundamentação diz respeito ao reconhecimento da igualdade como elemento partícipe da proteção de cada pessoa e, assim, da efetividade dos direitos humanos. Essa constatação advém do fato de que a afirmação desses direitos

BARRETO, Vicente. Ética e Direitos Humanos: aporias preliminares. In TORRES, Lobo (org.). Legitimação dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 570.

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surge com a concretização de princípios fundamentais decorrentes da ideia de centralidade da pessoa humana no cenário jurídico, social e político mundial, numa história que perpassa a Antiguidade. Percebe-se, em seus primórdios, uma forte relação entre aspectos religiosos nessa identificação: de um lado, a fé monoteísta através da criação do mundo por um Deus único e transcendente e, por outro lado, a presença de diversos deuses que refletem, mesmo na sua imortalidade, as paixões e defeitos dos seres humanos10. Tem-se, nesse contexto, a visualização da igualdade num plano divino. No século V a.C., a filosofia que começa a ser desenvolvida na Ásia e na Grécia afasta o caráter mitológico da tradição pelo saber lógico da razão. Nesse contexto, a filosofia grega debruça-se sobre o mundo das coisas humanas, sobre o universo da liberdade, passando, então, à reflexão metódica sobre a política e a ética e sobre o controle da lei11. É a primeira vez na história que o ser humano passa a ser considerado em sua igualdade essencial, como ser dotado de liberdade e razão. Associada a esse cenário, conjuga-se a lei escrita, elemento que leva à possibilidade de se estabelecer regras gerais e uniformes, igualmente aplicáveis a todos os indivíduos que vivem numa sociedade organizada12. Ainda, há a expressão da igualdade mediante a oposição entre a individualidade própria de cada homem e as funções ou atividades que ele exerce em sociedade. Essa função social “designava-se, figurativamente, pelo termo prósopon, que os romanos traduziam por persona, com o sentido próprio de rosto ou, também, de máscara de teatro, individualizadora de cada personagem”13. É, portanto, um cenário que denota o surgimento da percepção da ideia de personalidade, em que a oposição entre a máscara teatral, considerada como o papel de cada indivíduo na sociedade, e a essência individual de cada ser humano (sua personalidade), passam a permear todo o debate que daí decorre quanto à qualificação da palavra e do significado de “pessoa” no âmbito cultural, social e jurídico. O período histórico que auxilia a traçar o entendimento dessa linha temporal quanto ao conceito de pessoa é a modernidade14, um período de reformulação de estruturas sociais que se refletiram, de forma intensa, no desenvolvimento do pensamento jurídico. 12 13 14 10 11

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 1. LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história: lições introdutórias. São Paulo: Atlas, 2012, p. 21. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 12. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 15. A título complementar, torna-se interessante perceber que a ordem jurídica romana não reconhecia a todo e qualquer homem a qualidade de sujeito de direitos. O escravo não a possuía, pois era considerado coisa (res), isto é, objeto


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1.1 Um breve percurso sobre a ideia de personalidade Este percurso começa, portanto, em meados do século XVII. De acordo com Bartolomé Clavero, Thomas Hobbes foi o primeiro teórico que estabeleceu um igual significado entre pessoa e indivíduo. Antes desse período, relata o autor que pessoa significava a faculdade social ou a legitimidade processual para atuar no mundo do Direito em nome de interesses próprios, ou de interesses alheios, através de mandato. O indivíduo “tinha pessoa” e, por isso, poderia, então, atuar juridicamente. “Pessoa é, tradicionalmente, algo que se possui, não que se seja. Desde tempos antigos, o sintagma jurídico se formulava como ‘habere personam’, não como ‘ser pessoa’. O homem, por tê-la, não o era. E este possuir era dependência”15. O homem, por “ter pessoa”, não era pessoa, não era indivíduo. Até então, a personificação recaía também em coisas e animais. De acordo com Hans Hattenhauer, “sempre que o homem deposita sua confiança em algo, surge esta técnica de personificação de coisas e idéias”16. O descobrimento da América, contudo, de direitos. Para que fosse titular de direitos, era necessário que a ele fosse atribuída personalidade jurídica, apenas adquirida com os requisitos de ser livre e cidadão romano. Para que tivesse capacidade jurídica plena, tinha de ser, ainda, pater familias. Daí os três estados: status libertatis, status civitatis e status familiae. Luiz Roldão de Freitas Gomes, seguindo os ensinamentos de José Carlos Moreira Alves, salienta que os romanos não tinham termos específicos para exprimir as ideais distintas de personalidade jurídica, capacidade jurídica e capacidade de fato. Ressalta, ainda, a influência do Cristianismo no Direito Romano: “TROPOLONG, na clássica obra De l’Influence du Christianisme, Paris, 1843, após descrever a evolução no tratamento jurídico dos escravos (págs. 147/167), a cujo favor já intervinha SÊNECA (pág. 151), resume que, desde que o cristianismo propagou suas sublimes doutrinas de igualdade, uma fermentação secreta agitou esta classe imensa de homens despojados de direitos civis, alvo do rigor dos senhores, esmagados pelas misérias da mais vil condição. Ressalta, porém, caber à época feudal, mais tarde, a eterna honra de ter libertado as classes inferiores curvadas sob o jugo da escravidão (pág. 162)”. GOMES, Luiz Roldão de Freitas. Noção de pessoa no direito brasileiro. Direitos da personalidade. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. 69, 1993, p. 323-324. 15 Originalmente: “Persona es tradicionalmente algo que se posee, no que se sea. Desde tiempos antiguos, el sintagma jurídico se formulaba como ‘habere personam’, no como ‘essere persona’. El hombre, por tenerla, no lo era. Y la tenencia era dependencia”. CLAVERO, Bartolomé. Happy Constitution. Madrid: Editorial Trotta, S.A., 1997, p. 13. 16 Originalmente: “Siempre que el hombre deposita su confianza en algo, surge esa técnica de la personificación de cosas e ideas”. É o caso, citado por Hattenhauer, “del campesino germánico que hablaba con sus animales la noche de San Silvestre y les llamaba por sus nombres. El guerrero hablaba com su espada, cuyo apelativo importaba para el servicio. (...) El conductor le da un nombre a su automóvil. El motociclista acaricia a hurtadillas su fiel máquina para estimularla en su amor próprio del que espera el triunfo. (...) ‘El capital’, ‘la clase trabajadora’, ‘la sociedad’, ‘el pueblo’, son personas cuyo rango se sitúa muy por encima del individuo. Siempre que el hombre deposita su confianza en algo, surge esa técnica de la personificación de cosas e ideas”. Tradução livre: “do homem do campo alemão que falava com seus animais na noite de São Silvestre e os chamava pelo nome. O guerreiro falava com sua espada, cuja invocação era importante para o trabalho (...). O motorista dá nome ao seu automóvel. O motociclista acaricia furtivamente sua fiel máquina para a estimular em seu amor próprio, na espera do triunfo. (...). ‘O capital’, ‘a classe trabalhadora’, ‘a sociedade’, ‘o povo’, são pessoas cuja classe se situa acima do indivíduo. Sempre que o homem deposita sua confiança em algo, surge esta técnica de personificação de coisas e idéias”. HATTENHAUER, Hans. Conceptos Fundamentales del Derecho Civil. Barcelona: Ariel, 1987, p. 14.


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afastou o reconhecimento das criaturas inanimadas como pessoas: “tanto na Idade Média não era clara, como é para nós a relação entre pessoa e ser humano, que mesmo a idéia de que todos os seres humanos são pessoas foi apenas cunhada no século XVI, por obra do jusnaturalismo espanhol”17, em decorrência da necessidade de se aferir qual o status jurídico das populações nativas daquele continente. Conforme Hobbes, “a pessoa é o indivíduo e ele mesmo deste modo se considera como sujeito de direito. Terá se ser sua natureza humana, bem como terão de ser suas necessidades sociais, as que determinem o ordenamento, e não o inverso”18. Contudo, Gláucia Alves pontua que o pensamento de Hobbes possui fortes resquícios medievais, por estabelecer a definição de pessoa pelo seu papel. Refere-se a autora a uma “identidade estatutária”19, em que pessoa é, na verdade, a atuação – novamente, o papel exercido – dentro da organização social20. Uma concepção mais elaborada do indivíduo como sujeito de direitos, titular e ator de liberdades, como também, paralelamente, uma concepção do Estado como instituição de respaldo e garantia desta mesma posição do indivíduo como sujeito21 é encontrada em John Locke. Em seu “Segundo Tratado sobre o Governo”, o autor afirma que “todo hombre tiene la propriedad de su propia persona”. Na análise de Clavero, esse direito proprietário é, sobretudo, um direito sobre si mesmo, um direito de auto-disposição da pessoa, um radical direito de liberdade. O indivíduo é a pessoa. CUNHA, Alexandre dos Santos. Dignidade da pessoa humana: conceito fundamental do direito civil. In: MARTINSCOSTA, Judith (Org.). A reconstrução do direito privado: reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no direito privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 234. 18 Originalmente: “la persona es el individuo y el mismo de este modo se concibe por sí como sujeto de derecho. Habrá de ser su naturaleza humana como habrán de ser sus necesidades sociales las que determinem el ordenamiento, y no la inversa”. CLAVERO, Bartolomé. Happy Constitution. Madrid: Editorial Trotta, S.A., 1997, p. 15. 19 ALVES, Gláucia Correa Retamozo Barcelos. Sobre a dignidade da pessoa. In: MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A reconstrução do direito privado: reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no direito privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 216. 20 Ressalta Clavero que, ainda que Hobbes tenha proporcionado um ponto de partida à coincidência entre pessoa e indivíduo “y así la entidad de éste como sujeto del derecho y de un derecho de libertad”, não ofereceu uma “construcción constitucional”. Ou seja, “El individuo sería sujeto de derechos en un âmbito civil, pero objeto de derecho en el político, debiendo ofrecer lo segundo amparo y garantía a lo primero, pero sin que estas funciones pudieran someterse a intervenciones ni sujetarse a contrapesos por no apoderarse precisamente a unos individuos por encima de otros. Coincidían y se relacionaban unas primeras concepciones del individuo y del Estado, pero no de ambos constitucionales”. Tradução livre: “O indivíduo seria sujeito de direito em um âmbito civil, porém objeto de direito no político, devendo o segundo oferecer amparo e garantia ao primeiro, porém sem que estas funções pudessem se submeter a intervenções e nem se sujeitarem a compensações, por não se apoderarem precisamente de determinados indivíduos por sobre os outros. Coincidiam e se relacionavam as primeiras concepções de indivíduo e de Estado, porém, ambas, não necessariamente constitucionais”. CLAVERO, Bartolomé. Happy Constitution. Madrid: Editorial Trotta, S.A., 1997, p. 19. 21 CLAVERO, Bartolomé. Happy Constitution. Madrid: Editorial Trotta, S.A., 1997, p. 20. 17


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Entretanto, ainda que pareça uma categoria universal, destinada a todo homem, sua concepção é dirigida para pessoas determinadas, ou seja, essa propriedade não é apenas consequência, mas, também, pressuposto. O “individuo constitucional es el sujeto propietario”, aquele que dispõe das coisas porque dispõe de si mesmo, aquele que dispõe de si mesmo porque dispõe das coisas. “A falta de requisito, a carência de um título que não é questão apenas de fato, mas, antes, de direito, cancela o acesso à condição de sujeito”22. Hobbes e Locke conectam duas situações. Ainda que o primeiro tenha percebido a pessoa como alguém que exerce determinado papel social, num sentido, conforme acima exposto, de “identidade estatutária”, ele propicia, paralelamente, segundo Judith Martins-Costa, a construção de uma nova ideia: junto à noção de “ator jurídico”, “isto é, sujeito de direito, a palavra pessoa passará a designar o ser humano individual, por si só sujeito de direitos, e de direitos não por acaso denominados ‘direitos subjetivos’, o primeiro deles sendo o domínio, ou propriedade”23. Ocorre, dessa forma, uma primeira conexão entre ser humano, indivíduo, pessoa e sujeito de direitos (subjetivos). Em relação a Locke, Celso Lafer, ao retomar o pensamento de Hannah Arendt, acredita que há uma relação direta entre a teoria política de Locke e os princípios que inspiraram a tutela dos direitos fundamentais do homem no constitucionalismo. Entende Lafer que a passagem do Estado Absolutista para o Estado de Direito transita pela preocupação do individualismo em estabelecer limites ao abuso de poder do “todo” em relação ao “indivíduo”24. Para o autor, a grande novidade do Iluminismo foi trazer a ideia de que os homens poderiam organizar o Estado e a sociedade de acordo

Originalmente: “La falta del requisito, la carencia de un título que no es cuestión sólo de hecho, sino antes de derecho, cancela el acceso a la condición de sujeto”. Locke retrata um panorama do período europeu colonial, em que a população indígena das Américas (conforme já retratado no corpo do presente trabalho) remete a um questionamento relativo à qualificação dos nativos no cenário jurídico-social da época. Neste sentido, o pensamento de Locke delineia que a população indígena não satisfaz ao requisito “de individualidad propietária que franquea el acceso a la condición constitucional de sujeto”. Interessante a observação de Clavero ao afirmar que “con esta mirada a la humanidad, el panorama no se dilata, sino que muy al contrario se reduce”. Em seus “Comentários sobre las Leyes de Inglaterra”, da segunda metade do século XVIII, William Blackstone considera “sujeto legítimo” apenas a parte “civilizada” da humanidade. “Todo esto – segundo Clavero – abunda en la eliminación de la posibilidad de un reconocimiento constitucional de individuos que no fueran los varones propietarios de una parte sola, la civilizada”. A frase de Locke e demais citações deste parágrafo estão em Clavero: CLAVERO, Bartolomé. Happy Constitution. Madrid: Editorial Trotta, S.A., 1997, p. 21e 26. 23 MARTINS-COSTA, Judith. Pessoa, Personalidade, Dignidade. (Ensaio de uma qualificação). Tese de livre-docência em Direito Civil apresentada à Congregação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, maio de 2003, p. 38. 24 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 122. 22


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com sua vontade e razão, pondo de lado a tradição e os costumes. A Ilustração “trouxe a substituição do princípio de legitimidade dinástica que, na forma da monarquia hereditária, foi o legado que a Idade Moderna herdou da sociedade medieval, baseada nos costumes, pelo princípio da soberania popular, de origem contratualista”25. Durante o século XVIII, a esfera pública assume funções políticas e adquire um papel central, o que a solidifica como princípio organizatório dos Estados de Direito burgueses com forma de governo parlamentar (na Inglaterra, por exemplo, depois da “Reform Bill” de 1832). Dessa maneira, “a esfera pública com atuação política passa a ter o status normativo de um órgão de automediação da sociedade burguesa com um poder estatal que corresponda às suas necessidades”26. As relações sociais passam a ser mediadas por relações de troca, e os donos de mercadorias ganham autonomia privada: o sentido positivo de “privado” constitui-se, sobretudo, à base da concepção de dispor livremente da propriedade que funcione capitalisticamente27. Assim, foi no momento da transição histórica preparada pelo Iluminismo e representado pela Revolução Francesa que Immanuel Kant28 inaugurou a deontologia moderna da pessoa. No núcleo dessa concepção, encontra-se, essencialmente vinculada ao valor “liberdade”, a noção de “personalidade”. Dessa forma, para Kant, a faculdade do homem de ser responsável por sua conduta se constitui em fundamento do conceito de “pessoa”, ou seja, não basta possuir a razão, antes tida por absoluta,

LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 123. Segundo o autor, “no jusnaturalismo, que inspirou o constitucionalismo, os direitos do homem eram vistos como direitos inatos e tidos como verdade evidente, a compelir a mente. Por isso, dispensavam tanto a violência quanto a persuasão e o argumento. Seriam, na tradição do pensamento que remonta a Platão, uma medida de conduta humana que transcende a polis, da mesma maneira como, nas palavras de Hannah Arendt ao analisar esta tradição, ‘um metro transcende todas as coisas cujo comprimento pode medir, estando além e fora destas’”. Dessa forma, de acordo com Lafer, a proclamação dos direitos do homem surge “como medida deste tipo, quando a fonte da lei passa a ser o homem e não mais o comando de Deus ou os costumes. De fato, para o homem emancipado e isolado em sociedades crescentemente secularizadas, as Declarações de Direitos representavam um anseio muito compreensível de proteção, pois os indivíduos não se sentiam mais seguros de sua igualdade diante de Deus, no plano espiritual, e no plano temporal no âmbito dos estamentos ou ordens das quais se originavam. É por isso que a positivação das declarações nas constituições, que se inicia no século XVIII com as Revoluções Americana e Francesa, tinha como objetivo conferir aos direitos nelas contemplados uma dimensão permanente e segura”. 26 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 93. 27 Complementa Habermas que, “com tais liberdades básicas do sistema de Direito Privado, também se articula a categoria da capacidade jurídica universal, garantia para o posicionamento jurídico da pessoa; esta já não é mais definida conforme o estamento e o nascimento. O ‘stauts libertatis, o status civilis e os status familiae’ cedem lugar ao ‘status naturalis’ que, agora, passa a ser aplicado genericamente a todos os sujeitos de direito – o que corresponde ao princípio da igualdade dos donos de mercadorias no mercado e das pessoas cultas na esfera pública”. HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 94. 28 Kant viveu entre 1724 e 1804. 25


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pois o que realmente diferencia o homem dos animais é a sua capacidade e obrigação de poder e dever prestar contas de seus atos. Escreve Hattenhauer que “pessoa e personalidade apareciam claramente diferenciadas. A pessoa era um conceito jurídico; a personalidade, uma qualidade ética, uma capacitação para a liberdade na qual o homem deveria se desenvolver”29. Segundo ele, o pensamento de Kant revela um homem que se converte em sujeito jurídico. Nesse sentido, é no início do século XIX que principia a concepção da capacidade jurídica, da capacidade do homem de ser portador de direitos e deveres, período em que se chegou a aplicar, indistintamente, as palavras “pessoa”, “sujeito de direito” e “capacidade jurídica”. Essa concepção de capacidade é reafirmada e aprofundada por Savigny30, para quem toda relação jurídica consistia na relação de uma pessoa com outra pessoa. Percebe Hattenhauer que ele não mais se interrogava sobre a pessoa em si e sua definição e que falava de pessoas no plural, no sentido de que as pessoas tinham se convertido em materiais de construção, indispensáveis para propósitos de maior “envergadura”31. Elas não eram o fundamento do Direito, visto que o decisivo nelas era exclusivamente a qualidade que garantia sua aplicabilidade nas relações jurídicas, pois a ordem jurídica “se situava sobre o individual, como algo objetivamente preestabelecido, em que a pessoa tinha de se adequar”32. Paralelamente a esta conceituação de “pessoa”, o final do século XVIII é palco da emergência do constitucionalismo, movimento que visava a elaboração de uma constituição, entendida como conjunto de normas jurídicas que institucionaliza o poder33. Neste contexto, ser sujeito de direito é ter capacidade jurídica numa esfera de atuação ainda embebida de uma lógica proprietária: “a burguesia, sequiosa Originalmente: “persona y personalidad aparecían claramente diferenciadas. La persona era un concepto jurídico; la personalidad, una cualidad ética, una capacitación para la libertad en la que debería desenvolverse el hombre”. HATTENHAUER, Hans. Conceptos Fundamentales del Derecho Civil. Barcelona: Ariel, 1987, p. 21. Maior importância teve para a história do Direito, segundo Hattenhauer, a proposição de que a ‘pessoa’ estava subordinada a sua própria ‘personalidade’ e que, em conseqüência, o conceito jurídico de ‘pessoa’ não era um valor supremo. Antepunha-se uma crença ética. No momento em que os jusnaturalistas quiseram expressar, com sua definição do conceito de pessoa, a fé na liberdade do indivíduo, a ideologia da liberdade foi além do conceito jurídico. O que ocorreu foi conjugar a teoria da ‘pessoa’, própria do Direito civil (relegada a mero auxiliar construtivo) com o credo político da burguesia. 30 Friedrich Carl von Savigny viveu entre 1779 e 1861. 31 HATTENHAUER, Hans. Conceptos Fundamentales del Derecho Civil. Barcelona: Ariel, 1987, p. 20. 32 Originalmente: “se situaba por encima de lo individual, como algo objetivamente preestablecido, a lo que la persona tenía que acomodarse”. HATTENHAUER, Hans. Conceptos Fundamentales del Derecho Civil. Barcelona: Ariel, 1987, p. 20. 33 AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Constituição e codificação: primórdios do binômio. In: MARTINS-COSTA, Judith. (Org.). A reconstrução do direito privado: reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no direito privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 56. 29


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por consolidar suas conquistas, logo percebe o valor político do jurídico e o utiliza, habilmente, em seu proveito”34. Desta forma, “declarados os direitos fundamentais e firmada a separação dos poderes segundo a receita liberal de Montesquieu, entraram em cena os códigos, destinados a fixar o ideário da revolução burguesa”35. Na percepção de Clavero, os Códigos e as Constituições identificam igualmente Estado e Nação e, assim, um primeiro status, o da pertença e dependência da pessoa individual e de seus direitos em relação à instituição política e seu ordenamento36. Afirma o autor: Há entre constitucionalismo e codificação, entre direitos e leis, toda uma micro-história constitucional, a do sujeito individual, a mais importante e menos atendida desde que se impôs a astuta divisão entre ‘direito civil e direito constitucional’. Com esta divisão entre o civil e o constitucional que foi selada pela codificação, deixou-se de considerar o principal: um ‘direito de pessoas’, de indivíduos, como questão básica ou como questão primeira do constitucionalismo. Logo começará uma recuperação de ‘direitos constitucionais’ de caráter subjetivo que, entre titulares individuais e titulares sociais, entre condições e situações que podem retornar a ser de ‘status’, não vem a resgatar como sujeito de partida o ser humano. (...) Por mais que o direito todo tenha padecido com a perda do sujeito e porque também, todavia, se ressinta deste padecimento, nunca será tarde para um resgate que interessa ao indivíduo e seus direitos, a todos, a todas e nossas liberdades. Por enquanto, entre o longo trajeto da pessoa que não é indivíduo e o curto transcurso do indivíduo que é pessoa, o que temos é toda uma história perdida e toda uma historiografia futura37.

AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Constituição e codificação: primórdios do binômio. In: MARTINS-COSTA, Judith. (Org.). A reconstrução do direito privado: reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no direito privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 58. 35 AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Constituição e codificação: primórdios do binômio. In: MARTINS-COSTA, Judith. (Org.). A reconstrução do direito privado: reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no direito privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 58-59. 36 CLAVERO, Bartolomé. Happy Constitution. Madrid: Editorial Trotta, S.A., 1997, p. 32. 37 Tradução livre: “Hay aqui entre constitucionalismo y codificación, entre derechos y leyes, toda una microhistoria constitucional, la del sujeto individual, la más importante y la menos atendida desde que se impusiera la escisión artificiosa entre ‘derecho civil y derecho constitucional’. Con dicha misma división entre lo civil y lo constitucional que fuera sellada por la codificación pudo dejar de considerarse lo principal: un ‘derecho de personas’, de individuos, como cuestión básica o como cuestión sin más del constitucionalismo. Comenzará luego una recuperación de unos ‘derechos constitucionales’ de carácter subjetivo que, entre titulares individuales y titulares sociales, entre condiciones y situaciones que pueden volver a ser de ‘status’, no acaba de rescatar como sujeto de partida el ser humano. (...) Por mucho que el derecho todo haya padecido con la pérdida del sujeto y porque también todavia se resienta del 34


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Nesse contexto de formação dos primeiros Códigos e Constituições elaborados com um intuito sistemático de estruturação, em que o papel da pessoa é alvo de permanente estudo e, também, proteção, tem-se a interface entre o direito natural e o direito positivo, que perpassa o debate quanto ao delineamento dos direitos humanos no sentido de prevalência (ou não) de cada um desses direitos. De acordo com Vicente Barreto, as Revoluções Norte-Americana (1776) e Francesa (1789) introduziram um novo tipo de direito relativo à pessoa humana na ordem constitucional, ou seja, os direitos humanos, que levaram à elaboração teórica da categoria dos direitos públicos subjetivos38. A relação e embate, por assim dizer, entre as correntes do direito natural e do direito positivo, residem no fato de que há autores que entendem que o direito natural (ou jusnaturalismo) indica um conjunto de doutrinas variadas que possuem, como característica comum, a crença de que o direito positivo deve ser objeto de uma valoração com referência a um sistema superior de normas ou princípios. Essas valorações “formam parte da tarefa do jurista, que não deve limitar-se à análise do direito existente, mas que deve considerar como um aspecto essencial do seu trabalho científico o aspecto ético do Direito”39. Os direitos naturais não são considerados direitos criados ou outorgados pelo legislador, mas direitos que decorrem da natureza humana e que expressam a razão na tomada de decisão de cada indivíduo40. O direito positivo, por sua vez, busca deduzir as normas jurídicas e a sua aplicação “exclusivamente a partir do sistema, dos conceitos e dos princípios doutrinais da ciência jurídica, sem conceder a valores ou objectivos extra-jurídicos (por exemplo religiosos, sociais ou científicos) a possibilidade de confirmar ou infirmar as soluções jurídicas”41. Torna-se importante referir que a relação entre direito natural e direito positivo possui séculos de história e elementos ainda maiores no processo de formação do pensamento jurídico do que os agora expostos, especialmente no que diz respeito aos autores e obras clássicas que trataram e tratam do tema. Entretanto, essa breve padecimiento, nunca será desde luego tarde para un rescate que interesa al individuo y sus derechos, a todos, a todas y nuestras libertades. De momento, entre el largo trayecto de la persona que no es individuo y el corto transcurso del individuo que es persona, o que tenemos es toda una historia perdida y toda una historiografía sucedánea”. CLAVERO, Bartolomé. Happy Constitution. Madrid: Editorial Trotta, S.A., 1997, p. 32-33. 38 BARRETO, Vicente. Ética e Direitos Humanos: aporias preliminares. In TORRES, Lobo (org.). Legitimação dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 574. 39 LATORRE, Angel. Introdução ao Direito. Coimbra: Livraria Almedina, 1978, p. 166. 40 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 28. 41 WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 3ª edição, 2004, p. 492.


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indicação auxilia a visualizar o panorama no qual o tema desta obra está inserido, e na importância do jusnaturalismo como propulsor da razão humana no âmbito do período Iluminista, bem como na força do positivismo no processo de formação das primeiras Constituições e Codificações no período posterior às Revoluções NorteAmericana e Francesa. 1.2 Personalidade, autonomia e campos de concentração Após esse processo de estruturação dos novos textos normativos, chega-se ao século XX e ao referencial de que as Constituições dos séculos XVIII e XIX são denominadas “Constituições-garantia”42, essencialmente por disporem sobre a distribuição de competência dos poderes políticos e por elencarem os direitos voltados para assegurar a liberdade. Contudo, a passagem do tempo e da formação normativa revela que as Constituições contemporâneas podem ser classificadas como “Constituições programáticas de ânimo dirigente”, por conterem normas definidoras de programas de ação e de linhas de orientação. Para tanto, um ponto fundamental de observação demonstra que, especialmente nas Constituições elaboradas após a Segunda Guerra Mundial, além das regras de atribuição de competências, há a importante presença dos princípios gerais43. Tem-se, aqui, um importante fato histórico que introduz essa reformulação jurídica quanto à importância dos princípios na prática legal, especialmente porque foi um acontecimento que tolheu, ao ser humano, os mesmos princípios pelos quais havia lutado no decorrer dos últimos séculos: sua liberdade e igualdade, sua autonomia e, sobretudo, sua dignidade - emerge, em 1936, a Segunda Guerra Mundial, como consequência das atrozes práticas em forma de experimentação em seres humanos durante a denominada “Era Hitler”44. Os campos de concentração, como “gigantescas máquinas de despersonalização de seres humanos”45, suscitaram, assim, novo debate quanto à proteção da pessoa humana. A formação dos movimentos totalitários (como no caso da Alemanha da acima citada “Era Hitler”) procura e quer organizar as massas, e não necessariamente as classes ou os cidadãos. De acordo com Hannah Arendt, depois da Primeira Guerra Considerações deste parágrafo em: LAFER, Celso. A Internacionalização dos Direitos Humanos: Constituição, Racismo e Relações Internacionais. Barueri, SP: Manole, 2005, p. 12. 43 O tema referente aos princípios gerais será aprofundado no decorrer da obra. 44 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 184. 45 Expressão de: COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 23. 42


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Mundial, ouve uma onda antidemocrática e pró-ditatorial de movimentos totalitários e semitotalitários que percorreu a Europa, como no caso da Itália sob o comando de Benito Mussolini. Esses movimentos tornam-se possíveis em lugares onde essas massas aproximam-se e simpatizam com a organização política46. Segundo a referida autora, as massas não se unem pela consciência de um interesse comum, bem como não possuem a articulação que as classes organizadas constroem entre si. Para Arendt, o termo massa “só se aplica quando lidamos com pessoas que, simplesmente devido ao seu número, ou à sua indiferença, ou a uma mistura de ambos, não se pode integrar numa organização baseada no interesse comum, seja partido político, organização profissional ou sindicato de trabalhadores”. Essa percepção demonstra que, na ascensão dos movimentos totalitários, são recrutados os membros dessa massa de pessoas aparentemente indiferentes, que não tinham recebido atenção de outros grupos ou partidos políticios e, assim, sua própria nãoparticipação política permite a inserção de novos métodos de propaganda política. Nesse contexto, “sem necessidade e capacidade de refutar argumentos contrários, preferiram métodos que levavam à morte em vez da persuasão, que traziam terror em lugar da convicção”. É, também, elemento peculiar de estudo a respeito desse tema o que Giorgio Agamben denomina de “paradoxo da soberania”47, ou seja, quando o soberano está, ao mesmo tempo, fora e dentro do ordenamento jurídico. O referido autor associa as suas percepções com o pensamento de outras obras que relatam como esse fenômeno participou da formação dos campos de concentração, lugares em que o chamado “estado de exceção”, proclamado pelo soberano, suspende a própria validade do ordenamento. O paradoxo reside, exatamente, no fato de alguém poder estar do lado de fora desse ordenamento e, ao mesmo tempo, pertencer a ele, porque consegue suspendê-lo. No que concerne ao campo de concentração, Agamben entende que ele “é o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a tornar-se regra”48. Assim, esse estado de exceção, que seria a suspensão temporal do ordenamento em determinado contexto fático de perigo, passa a ter uma “disposição espacial permanente que, como Considerações e citações deste parágrafo em: ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp. 438-439. 47 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: il potere sovrano e la nuda vita. Torino: Einaudi, 2005, p. 19. 48 Citações desde parágrafo em: AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, pp. 175-177. 46


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tal, permanece, porém, estavelmente fora do ordenamento normal”. É por isso que, na medida em que esse estado de exceção passa a ser aceito e, até mesmo, desejado, inaugura “um novo paradigma jurídico-político, no qual a norma torna-se indiscernível da exceção. O campo é, digamos, a estrutura em que o estado de exceção, em cuja possível decisão se baseia o poder soberano, é realizado normalmente”49. A força dessas considerações reside no quanto determinado contexto cultural, social, econômico e político pode alterar, profundamente, a configuração jurídica de determinado ordenamento, mudança essa que atinge, diretamente, nossa própria humanidade. O fim da Segunda Guerra Mundial levou os países vencedores a estabelecer um julgamento das práticas efetuadas naquele contexto, no qual o genocídio foi classificado, portanto, como um dos crimes contra a humanidade50. É nesse sentido que a internacionalização dos direitos humanos constitui um movimento extremamente recente na história, que surge com o pós-guerra, e se legitima através da necessidade de que a população mundial precisa, constantemente, renovar ou reascender a memória frente às garantias fundamentais que permeiam nossa sociedade. Portanto, “em face das atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional passou a reconhecer que a proteção dos direitos humanos constitui questão de legítimo interesse e preocupação internacional”51. É por isso que, de acordo com Flávia Piovesan, eles transcendem e extrapolam o domínio reservado do Estado ou a competência nacional exclusiva, criando parâmetros globais de ação estatal. Essa importância associa-se à Bioética, que configura um importante campo de encontro de diversas áreas do conhecimento conectadas à proteção da vida humana em suas variadas perspectivas. A experimentação em seres humanos ocorrida nos campos de concentração foi um dos componentes históricos que levou a comunidade mundial a definir e, também, aprimorar princípios basilares de aplicabilidade e conduta na relação entre a ciência e a pessoa humana. Uma importante obra sobre esse período é de: ARENDT, Hannah. Eishmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 50 “A qualificação técnico-jurídica do genocídio como crime contra a humanidade é uma das consequências da ruptura totalitária. A base inicial da tipificação deste crime, em texto internacional, encontra-se no ato constitutivo do Tribunal de Nuremberg, de 8 de agosto de 1945. O Tribunal, criado pelos governos da França, EUA, Grã-Bretanha e URSS, para julgar e punir os grandes criminosos de guerra e das potências européias do Eixo, tinha competência e jurisdição, nos termos do art. 6º do seu estatuto, em relação aos crimes contra a paz, os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade”. LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 167. 51 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 61. 49


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2. O surgimento da bioética A referência ao surgimento da bioética indica, na verdade, um amplo e profundo cenário que não está limitado a datas ou acontecimentos específicos. Existem, por certo, indicadores históricos ou casos emblemáticos que oferecem a contextualização da sua afirmação no tempo; mas um elemento importante, nesse ponto, é a visualização do processo de evolução do ser humano e das mudanças sociais, econômicas e políticas que instigaram a busca de novos questionamentos e reflexão quanto à vida e, também, quanto ao seu fim. 2.1 Hipócrates e a medicina Na Antiguidade, a cultura ocidental possui um dos marcos da área médica com o Juramento de Hipócrates (séculos VI-I a.C.) como um primeiro testemunho da relação entre a prática da medicina e as implicações éticas de sua aplicação. Há indicação de que o juramento possui duas partes fundamentais: na primeira, aborda as obrigações éticas do médico para com seus mestres e familiares, e, na segunda parte, trata de suas relações com o doente. De acordo com Javier Gafo Fernandez, esse documento “será adotado pela tradição ocidental, eliminada a invocação inicial aos deuses do Olimpo, e constituirá um documento venerável que condensa as obrigações éticas básicas que o médico deverá observar no exercício de sua profissão”52. As primeiras escolas de medicina que surgem no período da Idade Média mantêm a tradição de citar o Juramento de Hipócrates ao final do curso como pré-requisito para o exercício da profissão. Na sequência, especificamente no contexto do século XIX, a obra do médico inglês Thomas Percival sobre ética médica retrata os aspectos éticos do exercício da medicina. Nesse período surgem, também, os primeiros códigos deontológicos, que “sintetizam, a partir dos valores inspirados na ética hipocrática, as obrigações que os médicos devem observar”53. 2.2 A palavra “bioética” No ano de 1971, ocorre o registro da palavra “bioética” associada à conexão entre a ciência e a humanidade, sendo que, por muitos anos, esse foi considerado o marco FERNÁNDEZ, Javier Gafo. 10 palavras-chave em bioética. São Paulo: Paulinas, 2000, p. 12. Considerações e citação deste parágrafo em: FERNÁNDEZ, Javier Gafo. 10 palavras-chave em bioética. São Paulo: Paulinas, 2000, p. 13.

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inicial do uso da palavra “bioética”. Nesse contexto, o livro “Bioética: uma ponte para o futuro”, do bioquímico americano Van Rensselaer Potter54, procurou imprimir um sentido de desenvolvimento e de caráter evolucionista, combinando o conhecimento biológico (‘bio’) com o conhecimento do sistema de valores humanos (‘ethics’). Desse primeiro momento, outras duas etapas do pensamento de Potter irão caracterizar a bioética: a primeira, ao final da década de 1980, quando ele enfatiza o seu caráter interdisciplinar e abrangente, denominando-a de “Global”, e a segunda, em 1998, ao redefinir a bioética como “Profunda”, ao entendê-la como “ciência ética que combina humildade, responsabilidade e uma competência interdisciplinar, intercultural, que potencializa o senso de humanidade”55. Por muitos anos essa referência pautou a origem da palavra “bioética”. Entretanto, estudos revelam que o termo “bio-ethics” foi utilizado pela primeira vez em 1926, por Fritz Jahr, pastor protestante, filósofo e educador alemão, no texto “Life science and ethics: old knowledge in new clothing”, sendo que, até pouco tempo, o primeiro registro da palavra datava de 1927, também em um texto de Jahr, publicado na revista Kosmos, quando o autor designou a “assunção de obrigações éticas não apenas com relação ao homem, mas a todos os seres vivos”56. Para Jahr, plantas e animais “são parceiros morais dos seres humanos, e essa relação atribui obrigações aos humanos para que tratem animais e plantas apropriadamente”57. É por isso que, de acordo com José Roberto Goldim, a percepção de bioética de Fritz Jahr era, como a de Potter, completa e abrangente, não limitada ao âmbito da saúde e da medicina. Jahr compartilhou, juntamente com Potter e André Hellegers58, a necessidade de uma especial atenção ao ensino da ética num contexto POTTER, Van Rensselaer. Bioethics: bridge to the future. Englewood Cliffs, New Jersey: Prentice-Hall, 1971. Considerações sobre as etapas do pensamento de Potter em: GOLDIM, José Roberto. Bioética e complexidade. In MARTINS-COSTA, Judith; MÖLLER, Letícia Ludwig (orgs). Bioética e Responsabilidade. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 56. 56 O texto “Life science and ethics: old knowledge in new clothing” possui a seguinte referência: Fritz Jahr: Wissenschaft vom Leben und Sittenlehre. In: Die Mittelschule. Zeitschrift für das gesamte mittlere Schulwesen, 1926, 40:604-6-5 [15. Dezember 1926]. Quanto à citação, originalmente: “assumption of ethical obligations not only to humans but to all living beings”. ENGELS, Eve-Marie. O desafio das biotécnicas para a ética e a antropologia. Veritas – Revista Trimestral de Filosofia da PUCRS. Porto Alegre, v. 50, n. 2, junho 2004, p. 218. 57 Originalmente: “are moral partners of human beings, and that this partnership entails obligations on humans to treat animals and plants appropriately”. GOLDIM, José Roberto. Revisiting the Beginning of Bioethics: the contribution of Fritz Jahr (1927). Perspectives in Biology and Medicine, volume 52, number 3 (summer 2009):377–80, by The Johns Hopkins University Press. 58 André Hellegers usou o termo “bioethics” em 1970 para indicar os novos estudos relacionados à reprodução assistida. Ele foi um dos fundadores do Kennedy Institute of Ethics da Georgetown University, Washington, D.C, EUA. Mais 54 55


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profissional e pessoal, na medida em que o progresso nos campos da ciência e da tecnologia requeriam novos posicionamentos no campo social59. A bioética, segundo Jahr, “não é uma descoberta do presente”60, e remete essa percepção a São Francisco de Assis61, considerado um grande protetor dos animais. Jahr viveu em um período de transformações sociais, sendo que entre os anos 1926 e 1927, datas em que escreveu e registrou a palavra “bioética”, há um progressivo avanço das ciências da vida, em especial os estudos relacionados à psicologia62. A Europa ainda não tinha vivido a experiência das duas Grandes Guerras Mundiais, que irão influenciar fortemente a própria humanidade63. Nesse sentido, é interessante perceber que Jahr, já naquele contexto, “delineou uma aproximação abrangente da bioética, que incluiu os seres humanos em relação de progressiva complexidade com a sociedade, com a humanidade, e com a biosfera”64. Sua atenção com o desenvolvimento de disciplinas que cuidassem da sustentabilidade do planeta no âmbito educacional é base para o atual panorama do ensino da bioética. 2.3 Saúde e consentimento após a Segunda Guerra Mundial É importante ressaltar que o contexto da primeira obra de Potter retrata um período de desafio quanto à reaproximação da prática médica e seu paciente, especialmente no período posterior à Segunda Guerra Mundial. Um recorte que pode informações em: GOLDIM, J. R. Bioética: origens e complexidade. Rev HCPA 2006;26(2):86-92; WALTERS, LeRoy. The birth and youth of the Kennedy Institute of Ethics. In: WALTER, Jennifer K. and KLEIN, Eran P (Editors). The story of bioethics: from seminal works to contemporary explorations. Washington, D.C.: Georgetown University Press, 2003, p. 215 ss. 59 Nesse sentido, “The quest for interaction between expertise and ethics and the double focus on professional skills, principles, and institutionalisations on one side, and on ethics, compassion, and character formation on the other, as the main forces to protect and to serve fellow humans and human cultures seems to be one legacy shared by Jahr, Potter, and Hellegers, the three visionary pioneers in bioethics. Future terminological discourse definitely is necessary and clarity will be instrumental in determining more precisely the vision and mission of human responsibilities toward life and toward humans”. SASS, Hans-Martin. Fritz Jahr’s Concept of Bioethics. Kennedy Institute of Ethics Journal, Vol. 17, No. 4, December 2007, p. 293. 60 Originalmente: “is not quite the discovery of the present”. JAHR, F. “Life science and ethics: old knowledge in new clothing”, Fritz Jahr: Wissenschaft vom Leben und Sittenlehre, in: Die Mittelschule. Zeitschrift für das gesamte mittlere Schulwesen, 1926, 40:604-6-5 [15.Dezember 1926]. 61 Francesco Bernardone, conhecido como São Francisco de Assis, nasceu em Assis, na Itália, em 1181 ou 1182 (não há precisão entre os historiadores). LE GOFF, Jaques. São Francisco de Assis. Rio de Janeiro: Record, 2001. 62 SASS, Hans-Martin. Fritz Jahr’s 1927 Concept of Bioethics. Kennedy Institute of Ethics Journal, Vol. 17, No. 4, 2008, p. 208. 63 The analisis of Fritz Jahr’s life in this period in: PESSINI, L. At the origins of bioethics: from Potter’s bioethical creed to Fritz Jahr’s bioethical imperative. Rev bioét (Impr.) 2013; 21 (1): 9-18. 64 Originalmente: “outlined a comprehensive approach to bioethics, one that includes human beings in progressively complex relations in society, in humanity, and in the biosphere”. GOLDIM, J. R. “Revisiting the beginning of bioethics: the contribution of Fritz Jahr (1927)”. Perspectives in Biology and Medicine 52.3 (Summer 2009): 377(4). Academic OneFile. Gale. CAPES. 18 Aug. 2009.


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ser feito para demonstrar essa circunstância diz respeito ao conceito de saúde definido após a queda do movimento nazista, publicado em julho de 1946 pela Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS). Nela, o conceito de saúde inclui o bem-estar mental e social, e não apenas aquele físico65. Essa definição, analisada dentro do seu contexto histórico, indica o surgimento da ideia de um Estado Social, e, também, de uma “medicina social”, o que leva à passagem do cuidado à saúde de uma esfera privada para uma responsabilidade pública. Nesse contexto, os princípios da liberdade e da autonomia possuem forte conotação, principalmente em virtude da formação de documentos que visam proteger o paciente através do adequado processo de informação. O consentimento informado é um dos elementos que participa do debate bioético, pois implica, diretamente, na tomada de decisão do paciente, fato ignorado durante o período totalitário. Sendo assim, é interessante perceber que a questão dos limites ao direito a um tratamento começa a surgir por volta de 1970, em virtude de dois fenômenos: a crise econômica de 1973 e o progresso tecnológico, que leva à possibilidade de manter vivas pessoas que, sem a técnica, não teriam chances de sobreviver. Perguntas como “existe uma obrigação, em nome da justiça, de oferecer todo tipo de tratamento médico em determinado cenário clínico?” começam a surgir nesse período66. Houve, ainda, a transformação na relação médico-paciente, medicina-sociedade, após 1960. Antes, o médico tomava a decisão sobre o tratamento, o que se altera na metade de 1970. Segundo David Rothman, o impacto desses acontecimentos “foi o de tornar visível o invisível. Pessoas de fora do âmbito médico – ou seja, advogados, juízes e acadêmicos – entraram em cada canto e recanto do processo de dar à medicina um excepcional destaque na agenda pública e de tornar o tema um discurso popular”67. O conceito de “saúde” presente na Constituição da Organização Mundial da Saúde: “Health is a state of complete physicial, mental and social well-being and not merely the absence of disease and infirmity”. Disponível em: http:// www.who.int/governance/eb/who_constitution_en.pdf, acesso em 20 de outubro de 2007. 66 “This fact, it might be observed, was nothing else but a particular example of something that medicine had transformed into a norm – anti-Darwinian action. If nature, as Darwin asserted, selects the fittest and condemns the weakest and the least fit to death, then medicine acts in exactly the opposite way. This meant that the number of the chronically and terminally ill (mentally retarded children, the gravely infirm, the elderly etc.) became ever greater, something which brought with it the so-called ‘cost-explosion’. Once again the question was posed as to whether justice requires that all these sick people are taken care of using all means available. What limits should be placed on their treatment? From what point of departure does the obligation to treat and care for them cease to be total (or one of justice) and become one which is incomplete or a matter of charity?”. GRACIA, Diego. The economy and medicine in the twentieth century. Dolentium Hominum, No. 43, Year XV, No. 1, 2000, p. 48. 67 Originalmente: “The impact of these events, most generally framed, was to make the invisible visible. Outsiders to medicine – that is, lawyers, judges, legislators, and academics – penetrated its every nook and cranny, in the process 65


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Nesse sentido, a prática médica torna-se parte de um contexto econômico ao ser percebida como elemento que gera “possibilidades de vida”68, ou seja, na medida em que os indivíduos possuem mais chances de “viver”, a sociedade como um todo é beneficiada. A conexão entre bem-estar, desenvolvimento tecnológico e elementos sociais influencia diretamente o cenário biomédico. Atualmente, “a tecnologia atua em situações concretas que dependem, contextualmente, de uma qualidade moral. A tecnologia cria uma questão moral, e essa circunstância produz o campo em que vai ocorrer determinada decisão”69. A primeira citação relativa a uma situação envolvendo consentimento e informação de que se tem conhecimento data de 176770. Na decisão inglesa Slater v. Baker and Stapleton, o autor, Slater, contratou os médicos Baker e Stapleton para tratar uma fratura óssea em sua perna. Sem o consentimento do paciente, os médicos, propositadamente, desuniram o calo ósseo, com o objetivo de utilizar um método não convencional durante o processo de consolidação. Slater acusou os médicos por ignorância e imperícia ao terem causado nova fratura, e os médicos que testemunharam como peritos no caso alegaram que não era usual o procedimento adotado por Baker e Stapleton, bem como, em seus lugares, teriam requerido o consentimento do paciente. A sentença judicial condenou os médicos por quebra de contrato na relação assistencial com o paciente. O caso Slater representa uma importante demonstração de como a decisão judicial pode ser influenciada tanto por considerações práticas quanto teóricas, “resultando em uma espécie de falta de clareza que tem dificultado a compreensão de lei referente ao consentimento informado desde o seu primeiro desenvolvimento”71. giving medicine an exceptional prominence on the public agenda and making in the subject of popular discourse”. ROTHMAN, David J. Strangers at the bedside: a history of how law and bioethics transformed medical decision making. New York: Aldine de Gruyter, 2003, p. 03. 68 “We become richer the more individuals or societies have life possibilities. This is important because it introduces many factors into economic activity which did not form a part of classical theory”. GRACIA, Diego. The economy and medicine in the twentieth century. Dolentium Hominum, No. 43, Year XV, No. 1, 2000, p. 49. 69 Originalmente: “technology, as it actually operates in concrete situations has a contextually dependent moral quality. Technology creates a moral situation, and this situation should provide the context for decision making”. BUCHHOLZ, Rogene A. and ROSENTHAL, Sandra B. Technology and business: rethinking the moral dilemma. Journal of Business Ethics, volume 41, Nos. 1/2, November (II), December (I) 2002, p. 48. 70 CLOTET, Joaquim; FRANCISCONI, Carlos Fernando; GOLDIM, José Roberto (Org.). Consentimento informado e sua prática na assistência e pesquisa no Brasil. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p. 29. 71 Originalmente: “resulting in the kind of unclarity that has hindered understanding of informed consent law since its earliest development”. FADEN, Ruth R., BEAUCHAMP, Tom L. A history and theory of informed consent. New York, Oxford: Oxford University Press, 1986, p. 116.


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Na área de pesquisa, a primeira utilização de documento que pode ser considerado similar ao consentimento informado ocorreu em outubro de 1833. O médico William Beaumont estabeleceu um contrato com um paciente, Alex St. Martin, que recebeu casa, alimentos e o valor de 150 dólares durante um ano para ficar à disposição do médico quanto a qualquer experimento que pudesse ser realizado em seu corpo. O paciente, em consequencia de um tiro, teve seu estômago aberto, o que permitiu ao médico observar diretamente o interior do estômago de Martin por muitos anos. Dessa forma, Beaumont conseguiu realizar um grande número de experiências ligadas ao processo digestivo72. O termo “consentimento informado” foi criado em 1957, em uma sentença judicial, resultante do caso Salgo v. Leland Stanford Jr University Board of Trustees, julgado na California (EUA)73. Martin Salgo sofreu paralisia permanente após uma aortografia diagnóstica, e entrou com uma ação contra a universidade acusando os médicos por negligência e por não terem informado sobre os possíveis eventos adversos decorrentes do procedimento. A Corte ressaltou que o médico tinha o dever de informar sobre todos os fatos necessários que poderiam embasar a decisão do paciente quanto ao tratamento proposto. A decisão do caso Salgo introduziu novos elementos na esfera legal. De acordo com Ruth Faden e Tom Beauchamp74, ao contrário de julgamentos anteriores, a referida sentença não estava interessada em apenas verificar se o consentimento havia sido oferecido em relação aos procedimentos propostos, mas, também, se ele havia sido, efetivamente, informado. A Corte criou o chamado “consentimento informado” ao invocar a importância da autonomia no sentido de que o esclarecimento a respeito de todos os elementos do consentimento – sua natureza, consequências, danos, benefícios, riscos e alternativas de determinado tratamento – deveriam ser considerados essenciais para que o paciente soubesse o que estava, realmente, escolhendo. Adiantando-se e conduzindo-se a uma primeira conexão entre a bioética e os direitos humanos, atesta-se que o Relatório do Comitê Internacional de Bioética da GOLDIM, José Roberto. O consentimento informado numa perspectiva além da autonomia. In DE SOUZA, Ricardo Timm, (Org) et all. Ciência e Ética: os grandes desafios. EDIPUCRS, 2006, p. 46. 73 GOLDIM, José Roberto. O consentimento informado numa perspectiva além da autonomia. In DE SOUZA, Ricardo Timm, (Org) et all. Ciência e Ética: os grandes desafios. EDIPUCRS, 2006, p. 46. 74 FADEN, Ruth R., BEAUCHAMP, Tom L. A history and theory of informed consent. New York, Oxford: Oxford University Press, 1986, pp. 125 e 126. 72


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UNESCO sobre Consentimento afirma que o consentimento informado é um princípio fundamental, que marca o destaque da autonomia no que se refere ao estudo da ética médica. O documento explica que a necessidade do consentimento informado na pesquisa biomédica ganhou importância após o julgamento de Nuremberg, que revelou procedimentos de experimentação humana nos prisioneiros dos campos de concentração, e continuou necessário em virtude dos experimentos que sucederam a própria Segunda Guerra Mundial. De acordo com Rothman, durante boa parte do século XIX, esses experimentos foram mantidos nos Estados Unidos por serem considerados uma espécie de “indústria caseira que se transformou em um programa nacional”75. Houve uma espécie de justificação para a prática de pesquisa sem o processo de consentimento, tendo como base o esforço militar dos soldados, do país. Em 1941, foi criado o Committee on Medical Research (CMR), e seus membros ajudaram a desenvolver e distribuir medicamentos cujos experimentos eram realizados em orfanatos, asilos e prisões, sem consentimento. Uma vez que estas investigações foram essenciais para o esforço militar, as regras do campo de batalha pareciam aplicar-se, também, para o laboratório. Os pesquisadores não eram mais obrigados a obter a permissão dos sujeitos (de pesquisa), assim como o “Selective Service” para obter a permissão de civis para se tornarem soldados. Uma parte da máquina de guerra recrutava soldados, e a outra parte recrutava sujeitos de pesquisa, sendo que os mesmos princípios eram aplicados a ambos76.

O período compreendido entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o relatório de Henry Beecher (1966)77 foi considerado “os anos dourados” da pesquisa, período ROTHMAN, David J. Strangers at the bedside: a history of how law and bioethics transformed medical decision making. New York: Aldine de Gruyter, 2003, pp. 30-31. 76 Originalmente: “Since these investigations were integral to the military effort, the rules of the battlefield seemed to apply to the laboratory. Researchers were no more obliged to obtain the permission of their subjects than the Selective Service was to obtain the permission of civilians to become soldiers. One part of the war machine conscripted a soldier, another part conscripted an experimental subject, and the same principles held for both”. ROTHMAN, David J. Strangers at the bedside: a history of how law and bioethics transformed medical decision making. New York: Aldine de Gruyter, 2003, p. 49. 77 Henry Beecher, Professor de “Research in Anesthesia” na Harvard Medical School, publicou o artigo “Ethics and Clinical Research” no New England Journal of Medicine (NEJM), que trouxe enorme comoção na area científica porque reuniu 50 artigos publicados em 11 conhecidas revistas científicas e após a proposição do Código de Nuremberg, mostrando fortes desvios metodólogicos e de ordem ética. Ele revelou que apenas em dois dos artigos citados foi requerido o 75


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em que os princípios da participação voluntária e do consentimento não foram seguidos. A mídia e a sociedade norte-americana não deram importância ao Código de Nuremberg, porque estabeleceram uma dicotomia entre os médicos e os chamados “Nazis”: os culpados não eram os médicos, os cientistas, mas os seguidores de Hitler. Um outro fator relevante desse contexto residiu no argumento trazido por diversos estudos de que as atrocidades cometidas e julgadas em Nuremberg foram resultado da interferência governamental na condução da pesquisa: “A ciência era pura – era a política que corrompia. Assim, o controle do Estado sobre a medicina através de regulamentos que se introduziam na relação privada entre o médico e o paciente ou entre pesquisador e sujeito de pesquisa suscitavam uma medicina corrompida”78. Alguns anos após o relatório de Henry Beecher, vem a público a denúncia de uma experiência realizada em Tuskegge, estado do Alabama (EUA), em que se negou tratamento com antibióticos a indivíduos da raça negra portadores de sífilis no estudo sobre a evolução da doença79. Houve forte reação da opinião pública contra esse fato, o que levou à instalação da denominada “Comissão Nacional” (“National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research”, 19741978), que estabeleceu os parâmetros a serem observados na experiência com seres humanos, especialmente quanto aos membros de grupos vulneráveis. O “Relatório Belmont”, que reúne as deliberações da Comissão sobre esse assunto, será um importante documento para a análise e o desenvolvimento da bioética. Um outro caso que gerou amplo debate nos Estados Unidos ocorreu em 1975, envolvendo a jovem americana Karen A. Quinlan. Relata-se que, ao entrar em estado de coma, os pais adotivos, “católicos praticantes, assessorados pelo padre de sua igreja, diante do prognóstico de irreversibilidade da filha para uma vida consciente, pediram à direção do hospital que desligasse o respirador que a mantinha viva”80. Houve a abertura de processo judicial, e o Tribunal Superior do Estado de Nova Jersey

consentimento informado dos participantes de pesquisa. CLOTET, Joaquim; FRANCISCONI, Carlos Fernando; GOLDIM, José Roberto (Org.). Consentimento informado e sua prática na assistência e pesquisa no Brasil. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p. 45. 78 Originalmente: “Science was pure – it was politics that was corrupting. Hence, state control over medicine through regulations that intruded in the private relationship between doctor and patient or investigator and subject were likely to pervert medicine”. ROTHMAN, David J. Strangers at the bedside: a history of how law and bioethics transformed medical decision making. New York: Aldine de Gruyter, 2003, p. 63. 79 Informações deste parágrafo em: FERNÁNDEZ, Javier Gafo. 10 palavras-chave em bioética. São Paulo: Paulinas, 2000, p. 17. 80 Citações deste parágrafo em: FERNÁNDEZ, Javier Gafo. 10 palavras-chave em bioética. São Paulo: Paulinas, 2000, p. 18.


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reconheceu à jovem “o direito de morrer em paz e com dignidade”. Esse caso suscitou controvérsias, bem como abriu caminho para a elaboração e o reconhecimento, nos Estados Unidos, das diretivas antecipadas de vontade81. O percurso delineado até aqui demonstra o contexto em que a palavra bioética ocupou as discussões sociais, políticas e jurídicas no período de formação dos primeiros institutos e divulgação de obras importantes sobre o tema. Na passagem dos anos, a bioética tornou-se um campo de estudo presente em diversos países82. Além do âmbito acadêmico, a conexão entre assistência clínica e pesquisa atuam incisivamente na reflexão e na aplicação dos princípios bioéticos que envolvem a relação médicopaciente. No Brasil, um estudo realizado por José Roberto Goldim oferece a percepção da denominada “Bioética Complexa”, que visa permitir uma perspectiva integrada do processo de tomada de decisão envolvido em questões bioéticas práticas83. Para o autor, “a adequada identificação do problema ou conflito bioético é o primeiro passo para a sua eventual resolução”84.

O tema das diretivas antecipadas de vontade será abordado na Parte II desta obra. TEN HAVE, H. A. M. J. Bioethics education. In H.A.M.J. ten Have, B. Gordijn (eds.), Handbook of Global Bioethics, DOI 10.1007/978-94-007-2512-6_96, # Springer Science+Business Media Dordrecht 2014. 83 Registra-se que o Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), hospital universitário da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é um dos maiores hospitais públicos universitários do Brasil, sendo centro de referência para o tratamento de dezenas de doenças no país. José Roberto Goldim chefia o Serviço de Bioética do HCPA, e, em relação ao pioneiro Serviço de Bioética desta instituição, registra-se que: “The Support Program to Bioethics Problems (Programa de Apoio aos Problemas de Bioética) of the Hospital de Clínicas de Porto Alegre was created in 1993 with the purpose of reflecting on the moral dilemmas resulting from the practice and procedures performed in this hospital. (…) Between November 1994 and October 2007, 937 consults were addressed, which can be done on-demand basis or in systematic activities. Specific on-demand consults can be provided mainly to the hospital wards themselves, or in other areas of the HCPA Medical Services or in the Bioethics and Science Ethics Research Laboratory. Systematic consults are scheduled in advance with groups of health professionals who have recurring problems which, this way, can be addressed in a proactive manner. Such proactive consults may be provided in areas of the HCPA Services or in other rooms that allow the professionals to interact. In order to provide the on-demand consults, also known as ward bioethics’ consults, the Clinical Bioethics Committee of the HCPA has a board composed of five consultants available to provide the services. All consultants have postgraduate studies in Bioethics. Ward consults are preferably provided by two consultants, in order to avoid a single approach to the problem in question. All consult requests are answered in less than 24 hours. On-demand consultancy services were mostly requested by assistant physicians, as well as other health professionals, patients, patients’ families, members of the Hospital Administration or religious communities. Such consults were requested by 58 different areas of the HCPA, especially by Pediatrics, Internal Medicine, Psychiatry, Gynecology and Obstetrics, Oncology and Hematology. The main issues addressed by such consults were: the patients’ privacy; HIV diagnosis disclosure to partners; late onset genetic diseases; end-of-life decisions; medically assisted reproduction; transsexual surgeries and blood transfusions in Jehovah Witness patients”. GOLDIM, José Roberto; RAYMUNDO, Márcia M.; SANTANA FERNANDES, Márcia; ITAQUI LOPES, Maria Helena; KIPPER, Délio José; and FRANCISCONI, Carlos Fernando. Clinical Bioethics Committees: a Brazilian experience. Journal International de Bioéthique, 2008, vol. 19, n° 1-2, pp. 181-192. 84 GOLDIM, José Roberto. Bioética e complexidade. In MARTINS-COSTA, Judith; MÖLLER, Letícia Ludwig (orgs). Bioética e Responsabilidade. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 69. 81 82


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Esse problema, seguindo-se a linha da Bioética Complexa, advém do desconforto que ele traz ao profissional, ao paciente, ao familiar, ou a um terceiro envolvido na situação. O referido problema é contextualizado no presente, sendo que os fatos, as circunstâncias, o referencial teórico e o repertório de casos são trazidos do passado para que formem um “presente histórico” durante a própria reflexão. As alternativas possíveis para a resolução do problema e suas respectivas consequências são projeções previsíveis, sendo que os fatos permitem identificar melhor o problema, e as circunstâncias podem elucidar características por vezes ocultas, que não se revelam num primeiro momento. Segundo Goldim, “o levantamento de aspectos éticos, morais, legais, sociais, biológicos, assistenciais, profissionais, entre outros, é que possibilita uma visão abrangente do problema a ser abordado. Chegamos, assim, a compreender a Bioética como um espaço de interfaceamento dos diferentes aspectos envolvidos em um problema”85. A interdisciplinaridade torna-se elemento fundamental na reflexão bioética, especialmente pelas relações estabelecidas entre as diversas áreas do conhecimento, o que enriquece o debate e a aplicabilidade das informações obtidas ou recebidas em todo e qualquer processo de tomada de decisão que envolva o âmbito biomédico. Assim, a interface entre a bioética e os direitos humanos é um rico e profícuo campo de indagação e delineamento de diretrizes no que diz respeito à vida e à proteção da pessoa humana, em todas as suas esferas. 3. A relação entre a bioética e os direitos humanos As linhas anteriores já indicaram alguns elementos de conexão e interface entre a bioética e os direitos humanos. Constata-se que, paralelamente à afirmação dos direitos humanos no pós-guerra, discutem-se os avanços tecnológicos e sua repercussão no campo da saúde. Se o marco de conexão dos direitos relativos ao ser humano como direitos de toda a humanidade ocorre com o fim da Segunda Guerra Mundial, percebe-se que, entre os aspectos que participam ativamente dessa totalidade, a saúde caracteriza-se como marco determinante na proteção do ser humano e no desenvolvimento de sua personalidade.

GOLDIM, José Roberto. Bioética e complexidade. In MARTINS-COSTA, Judith; MÖLLER, Letícia Ludwig (orgs). Bioética e Responsabilidade. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 69.

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A referência ao conceito de saúde definido pela OMS como sendo um estado de completo bem-estar físico, mental e social, que não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade, revela o quanto a saúde passa a ter um caráter inclusivo, que independe de gênero ou raça, consistindo em dever estatal para a garantia do desenvolvimento social. Nesse cenário, a formação da Organização das Nações Unidas (ONU) traduz o surgimento de uma nova ordem internacional, e instaura um novo modelo de conduta nas relações internacionais. 3.1 Documentos internacionais e princípios Entre os documentos internacionais sobre direitos humanos publicados após a Segunda Guerra Mundial, é importante destacar aqueles que trazem princípios relevantes para os temas biomédicos. Tem-se, no artigo I da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a afirmação da dignidade inerente a toda pessoa humana, titular de direitos iguais e inalienáveis. O artigo III garante o direito à vida, e o artigo XII dispõe sobre a proteção à privacidade e a informações pessoais. Esse documento, “retomando os ideais da Revolução Francesa, representou a manifestação histórica de que se formara, enfim, em âmbito universal, o reconhecimento dos valores supremos da igualdade, da liberdade e da fraternidade entre os homens (...)”86. Sua implementação requer o esforço sistemático de cada país para que a sociedade incorpore os direitos humanos como prática efetiva da vida em comunidade. Por ser uma declaração, tecnicamente, o documento não tem força vinculante. Contudo, o reconhecimento desses direitos deve ser exercido no âmbito do direito internacional. Afirma-se que “a Declaração Universal tem sido concebida como a interpretação autorizada da expressão ‘direitos humanos’, constante da Carta das Nações Unidas, apresentando, por esse motivo, força jurídica vinculante”87. Nesse ponto, é importante resgatar a influência dos princípios na estruturação e na interpretação jurídica e bioética. Conforme visto no primeiro item desta Parte I, as Constituições elaboradas após a Segunda Guerra Mundial trouxeram a presença dos princípios gerais, atualmente considerados como fontes de direito, que estabelecem “regramentos básicos aplicáveis a um determinado instituto ou ramo ju COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 223. “Artigo I – Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e deve, agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”. 87 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 211. 86


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rídico, para auxiliar o aplicador do direito na busca da justiça e da pacificação social”88. A referência aos princípios jurídicos remete, ainda, à concepção de Robert Alexy, para quem os princípios são normas89 que ordenam que algo seja realizado, na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Por isso, os princípios são “mandatos de otimização”, caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus, e a medida devida de seu cumprimento não só depende das possibilidades reais, bem como das jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado por princípios e regras opostos90. Dessa forma, eles são normas que prescrevem fins a serem atingidos91, exercendo uma função interpretativa e conferindo coerência ao sistema92. No âmbito bioético, o já citado Relatório Belmont, que reuniu as conclusões da Comissão Nacional criada na década de 1970 nos EUA, faz a indicação dos princípios que se tornam referência nesse campo: o princípio da beneficência (ou não-maleficência), o da autonomia, e o da justiça. Com eles, “os problemas de bioética já não são analisados de acordo com os códigos deontológicos, mas com base nos princípios citados e nos procedimentos deles derivados”93. Quanto aos princípios de ética médica, eles se configuram como diretrizes gerais “que deixam um espaço considerável para um julgamento em casos específicos e que proporcionam uma orientação substantiva para o desenvolvimento de regras e políticas mais detalhadas”94. Os autores Beauchamp e Childress definem que o princípio da beneficência reúne um grupo de normas para proporcionar e ponderar benefícios contra riscos e custos, TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012, p. 22. De acordo com Humberto Ávila, as normas não são textos nem o conjunto deles, “mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos”. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2002, p. 22. 90 Delimita-se que a referência aos princípios não vai discutir a relação entre eles e as regras, mas, apenas, delinear a importância dos mesmos na relação entre os direitos humanos e a bioética. Contudo, para demonstrar brevemente a questão, pode-se referir que, para Alexy, as regras se diferenciam dos princípios na medida em que são normas que podem ou não ser cumpridas. Se uma regra é válida, deve ser feito o que ela exige. Por isso, as regras contêm “determinações” no âmbito do que é fático e juridicamente possível. Isto significa que a diferença entre regras e princípios é qualitativa e não de grau. “Toda norma es o bien una regla o un principio”. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002, p. 87. 91 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2002, p. 15. 92 Considerações de: GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2002, p. 180. 93 FERNÁNDEZ, Javier Gafo. 10 palavras-chave em bioética. São Paulo: Paulinas, 2000, p. 22. 94 BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 55. 88 89


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enquanto que a não-maleficência previne que se provoquem danos. O respeito pela autonomia reside, propriamente, no respeito pela capacidade de tomada de decisão de pessoas autônomas, enquanto que o princípio da justiça consiste num grupo de normas para distribuir os benefícios, os riscos e os custos de forma justa95. A relação entre a bioética e os direitos humanos possui essa necessária conexão com os princípios, especialmente pela verificação de que eles interagem, cada um na sua esfera conceitual, com as declarações e os tratados emanados internacionalmente, e de que possuem indicação efetiva de aplicabilidade. Nesse sentido, pode-se ter como exemplo a relação entre princípios como a igualdade, a liberdade e a dignidade que, nas palavras de Fábio Konder Comparato, revelam que a dignidade da pessoa “não consiste apenas no fato de ser ela, diferentemente das coisas, um ser considerado e tratado, em si mesmo, como um fim em si e nunca como um meio para a consecução de determinado resultado. Ela resulta também do fato de que, pela sua vontade racional, só a pessoa vive em condições de autonomia, isto é, como ser capaz de guiarse pelas leis que ele próprio edita”96. Com esse olhar voltado à sociedade, após a Declaração Universal dos Direitos Humanos houve o seguimento da institucionalização dos direitos humanos. Em 1966, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos trouxe, em seu artigo 7º, a importância e a necessidade da utilização do consentimento informado como documento que atesta a adequada informação no processo de tomada de decisão na área biomédica. Essa percepção conecta-se ao artigo 12 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, publicado no mesmo ano, ao ressaltar o acesso à saúde e o pleno exercício desse direito como elemento fundante da afirmação dos direitos humanos. O desenvolvimento de novas tecnologias, no decorrer dos anos posteriores a esses documentos, levou as organizações internacionais a uma nova reflexão. O Conselho da Europa, através da Convenção sobre Direitos Humanos e Biomedicina realizada em 1997, também conhecida como “Convenção de Oviedo”, busca harmonizar o delineamento de reflexões ou soluções para os questionamentos ou conflitos que surgem nesse campo. De acordo com Roberto Andorno, “a necessidade de ‘common standards’ mínimos para os novos dilemas que surgem na área biomédica levaram

BEAUCHAMP, Tom L. e CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 56. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 21.

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a que organizações governamentais promovessem, a partir de meados de 1990, a procura de um consenso internacional relativo a algumas normas tidas como básicas na área biomédica”97. A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos resulta desse panorama. 3.2 A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos Posteriormente à Convenção de Oviedo, outros três importantes documentos que tratam da área biomédica surgem no cenário internacional: a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos (1997), a Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos (2003), e a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (2005). Este último é de grande importância, pois é o primeiro documento internacional que, numa esfera global, estabelece a relação entre a Bioética e os Direitos Humanos. Entre os objetivos das disposições gerais da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, destaca-se a contribuição para o respeito pela dignidade da pessoa humana e a proteção dos direitos humanos, garantindo o respeito pela vida dos seres humanos e as liberdades fundamentais de modo compatível com o direito internacional, bem como a promoção do acesso equitativo aos progressos da medicina, da ciência e da tecnologia. O documento indica, logo após, os princípios e sua aplicação, e como deverá ser feita a promoção da Declaração pelos Estados, pela esfera educacional, pela cooperação internacional, além de expor as iniciativas de acompanhamento da UNESCO. Ressalta-se, em suas disposições finais, que a Declaração “deve ser entendida como um todo e os princípios devem ser entendidos como complementares e interdependentes. Cada princípio deve ser considerado no contexto dos outros, na medida apropriada e pertinente, de acordo com as circunstâncias”98. Um exemplo que pode ser mencionado nesse contexto diz respeito ao seu art. 5º, que dispõe que “a autonomia das pessoas no que respeita à tomada de decisões, desde que assumam a respectiva responsabilidade e respeitem a autonomia dos outros, deve ser respeitada. No caso das pessoas incapazes de exercer a sua autonomia, devem ser Originalmente: “Aware of the need for minimal common standards, some intergovernmental organizations began in the mid-1990’s to promote an international consensus on some basic norms relating to biomedicine”. ANDORNO, Roberto. Global Bioethics and Human Rights. Medicine and Law, 2008, 27(1):1-14. 98 Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Disponível em: unesdoc.unesco.org/images/0014/.../146180por.pdf. Acesso em 05 de fevereiro de 2015. 97


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tomadas medidas especiais para proteger seus direitos e interesses”. De acordo com uma análise desenvolvida por Donald Evans sobre esse item da Declaração, a bioética surge através de um diferenciado número de contextos, sendo possível destacar dois deles: o primeiro refere-se ao surgimento das noções de direitos humanos e individuais durante a segunda metade do século XX, e o segundo denota a reação aos abusos cometidos na esfera dos direitos humanos nesse mesmo período quanto à prática de pesquisa clínica99. Segundo o autor, a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 trouxe uma clara referência à proteção desses direitos quando indica que todos os seres humanos nascem livres e em igualdade de direitos e de dignidade, documento que “seguiu o Código de Nuremberg (1947), que tomou por base os julgamentos de Nuremberg em relação aos médicos pesquisadores que foram acusados e condenados por cometer crimes contra a humanidade em nome da pesquisa médica”. Seguindo esse cenário, o Código traz o consentimento informado como tangível expressão do respeito à autonomia. Na importância de se conectar a bioética com os direitos humanos, “ficou claro para aqueles que estavam elaborando a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos que um artigo que dispõe sobre o respeito pela autonomia das pessoas envolvidas no tratamento médico e de pesquisa era uma exigência absoluta”100. Essa exigência tem como fundamento a humanidade ínsita a cada pessoa, o que torna possível falar da universalidade dos direitos humanos. O caráter de universalidade presente na análise dos direitos humanos, em razão de serem tidos como direitos inerentes a todo ser humano, reflete-se na possibilidade de sua aplicação num amplo e importante espectro de diversidade cultural. É nesse sentido que países de orientações políticas, religiosas ou sociais diversas ratificam ou aderem aos tratados e convenções que envolvem esse tema, pois “trata-se essencialmente de um direito de

EVANS, Donald. Article 5: Autonomy and individual responsibility. In The UNESCO Universal Declaration on Bioethics and Human Rights: background, principles and application. Edited by Henk A. M. J. ten Have and Michèle S. Jean. Paris: UNESCO 2009, p. 111. 100 Originalmente: “followed hard on the heels of the Nuremberg Code (1947), which issued from the Nuremberg trials of medical researchers who were accused and convicted of committing crimes against humanity in the name of medical research” e “became clear to those developing the Universal Declaration on Bioethics and Human Rights that an article enjoining respect for the autonomy of persons involved in medical treatment and research was an absolute requirement”. EVANS, Donald. Article 5: Autonomy and individual responsibility. In The UNESCO Universal Declaration on Bioethics and Human Rights: background, principles and application. Edited by TEN HAVE, Henk A. M. J. and JEAN, Michèle S. Paris: UNESCO 2009, pp. 111-113. 99


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proteção, marcado por uma lógica própria, e voltado à salvaguarda dos direitos dos seres humanos e não dos Estados”101. O ordenamento jurídico brasileiro positiva, no art. 4º, II, da Constituição Federal, a prevalência dos direitos humanos como princípio que rege as relações internacionais. Após a promulgação da Emenda Constitucional nº 45, de 2004, foi incluído o § 3º ao art. 5º da Carta Magna, que assim dispõe: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Esse dispositivo suscitou interessantes debates quanto à hierarquia das normas, mas para a presente obra é importante referir, diretamente, que a temática dos direitos humanos possui força constitucional102. Ressalta-se que a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos não é um tratado, mas, conforme também já referido acima, o reconhecimento dos direitos humanos no cenário mundial e a importância de sua garantia e memória quanto à proteção da pessoa humana remetem à interpretação vinculante de suas disposições, associada aos princípios que embasam essa mesma interpretação. É o denominado “sentido de direção”103 que se busca oferecer à sociedade, especialmente quando nos referimos a temas que nos confrontam com a nossa própria humanidade.

CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, volume I. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1997, p. 20. 102 Este debate está retratado e documentado em: PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 127-129. 103 LAFER, Celso. A Internacionalização dos Direitos Humanos: Constituição, Racismo e Relações Internacionais. Barueri, SP: Manole, 2005, p. 13. 101



PARTE II – BIOÉTICA E DIREITOS HUMANOS: ANÁLISE QUANTO AO INÍCIO E FIM DE VIDA

Gostaria de tomar as coisas a distância. Certos problemas éticos tornamse mais claros para mim ao refletir sobre alguns problemas semânticos – e não se preocupe se alguns dizem que falamos difícil: eles poderiam ter sido encorajados a pensar fácil demais pela “revelação” da mídia, previsível por definição. Que aprendam a pensar difícil, pois nem o mistério, nem a evidência são fáceis104.

As palavras provocadoras de Umberto Eco, presente em uma das cartas escritas ao cardeal Carlo Maria Martini, representam como o autor se sentia em relação a temas semelhantes àqueles que serão abordados nas próximas linhas. Na obra que reúne as correspondências trocadas entre eles, o início da vida é palco de sensíveis discussões, e o fim da vida perpassa esse mesmo “situar-se” na vida e no seu decorrer. As indagações suscitadas por essas reflexões são alimento e motivação para todos aqueles que percebem, assim como Eco, que os limites da nossa existência não são perceptíveis a olho nu – e nos despojam, paradoxalmente, das certezas (ou incertezas) que limitam a própria reflexão sobre a nossa humanidade. O presente capítulo aborda os extremos da vida e, portanto, não tem a intenção de esgotar todos os aspectos que envolvem essa temática. Entretanto, conforme já referido nos capítulos anteriores, a relação entre a bioética e os direitos humanos possui a vocação da união dessas extremidades, reveladas através da continuidade de nossa formação e construção pessoal e social. Nesse percurso entre as pontas e as pontes do começo e do fim, a vida revela-se com diferentes nuances. Os próximos tópicos elegeram a reprodução assistida e a gestação de substituição como temas basilares para esse início, e chega-se à outra margem com as diretivas antecipadas de vontade e os cuidados paliativos. Esses temas retratam situações e circunstâncias que, assim como as palavras de Eco, provocam nossa reflexão, e mostram como não há fácil evidência nas suas análises. ECO, Umberto e MARTINI, Carlo Maria. Em que crêem os que não crêem? Rio de Janeiro: Record, 2001, 6ª edição, pp. 80-81.

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4. Início de vida: a reprodução assistida e a gestação de substituição Os avanços biomédicos trouxeram o desenvolvimento e o aumento do número de êxitos dos tratamentos de saúde em diferentes áreas e, entre eles, a reprodução assistida (RA) ocupa um lugar decisivo. É interessante citar o quanto esse tema inspira, também, as fantasias ou ficções levadas, por exemplo, às telas do cinema, ou a obras que remetem a um tempo que não o presente. Contudo, a passagem do tempo ocorre, e tanto esse passado quanto esse futuro participam da construção de nossa própria identidade. A emblemática frase que abre a história do filme “Gattaca”105, dirigido por Andrew Niccol, afirma que “não há gene para o espírito humano”. Nesse roteiro, a reprodução assistida embasa a trama, e princípios como autonomia, liberdade e dignidade humana participam no embate que se estabelece entre a naturalidade do procriar e do nascer e a manipulação dos genes para o melhoramento físico dos personagens que compõem a obra. A realidade e o cotidiano prático que instigam a reflexão e a análise sobre as técnicas que envolvem a reprodução assistida demonstram que sua evolução, bem como novas alternativas para o tratamento da infertilidade, trouxeram não apenas esperança mas, também, responsabilidades relacionadas ao sucesso dos respectivos procedimentos. Novos elementos e o estabelecimento de novas relações tornaram-se parte desse processo. O presente capítulo visa traçar os principais contornos sobre o tema, e referir as recentes discussões sobre a gestação de substituição, que é um dos aspectos originados do desenvolvimento dos mecanismos de implementação da reprodução assistida. 4.1 Reprodução assistida O contexto que envolve o surgimento da técnica relativa à reprodução assistida inicia em 1978, com o nascimento da primeira criança concebida por fertilização in vitro (FIV)106

. Esse procedimento pode ocasionar a formação dos chamados

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Para uma análise mais aprofundada do filme, ver: TRIVIÑO, José Luiz Perez. Gattaca. Revista de Bioetica y Derecho, número 15, enero de 2009, pp. 15-18. 106 PASSOS, Eduardo Pandolfi. History of assisted reproduction: lessons learnt and future challenges. Reviews in Gynaecological Practice 4 (2004) 199-202. 107 As técnicas de RA podem consistir em: remédios que aumentam a fertilidade, na fertilização in vitro (FIV), e na injeção intra-citoplasmática de espermatozoides (ICSI – intra-cytoplasmatic sperm injection), que podem ser usados para contornar problemas de fertilidade, preservando uma ligação genética. Os remédios que aumentam a fertilidade podem ser usados para estimular a ovulação e aumentar as chances de uma mulher de engravidar; na fertilização 105


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“embriões excedentários”108. Uma combinação de diferentes motivos abre o caminho para a formação desses embriões durante o tratamento. Ao lado das questões técnicas, alguns autores indicam que “não apenas a despesa e a falta de cobertura de seguro detêm muitos casais inférteis de prosseguir o tratamento mas, ainda, esses desincentivos financeiros estimulam a implantação de vários embriões ao mesmo tempo e criam mais embriões do que o casal vai realmente precisar”109. Dessa forma, os pacientes reduzem seus custos através da fertilização de diversos óvulos no mesmo processo e da implantação de embriões em número que possa gerar a esperança de que pelo menos um deles consiga se desenvolver110. Uma delicada circunstância vivenciada pelas clínicas de fertilização diz respeito à implicação sócio-econômica do processo e à formação de gêmeos111. Nesse sentido, “os protocolos de reprodução assistida passam, atualmente, por uma interessante fase de discussão, já que as leis que proíbem o congelamento de embriões ou a fecundação/ transferência de mais de quatro oócitos estão sendo aplicadas em vários países”112. O objetivo de alcançar a gravidez, independentemente das implicações envolvidas no procedimento, pode obstruir a procura por protocolos que levem em consideração os aspectos que podem afetar o casal e a sociedade. A FIV levanta questões sobre o número de embriões a serem criados e a sua conservação para uso futuro, bem como o que fazer quando casais não estão de acordo entre si com relação aos embriões excedentários. Associa-se a esse debate outra questão: embriões humanos podem ser fontes de células-tronco. As células-tronco são células indiferenciadas que têm a capacidade de se renovar e de se especializar em vários tipos de células, como as do sangue, dos Embriões também denominados “excedentes” ou “supranumerários”, são aqueles que foram produzidos in vitro, mas não implantados no mesmo momento no útero materno. São, assim, congelados, para posterior implantação. Utilizase o termo “excedentário” neste trabalho por ser a mesma expressão empregada no Código Civil (art. 1.597, inciso IV). 109 Originalmente: “Not only do the expense and lack of insurance coverage deter many infertile couples from pursuing treatment, these financial disincentives encourage the practices of implanting multiple embryos at one time and creating more embryos than the couple will ever need”. ASCH, Adrienne and MARMOR, Rebecca. Assisted reproduction. From Birth to Death and Bench to Clinic: The Hastings Center Bioethics Briefing Book for Journalists, Policymakers, 2008-2009, p. 6. 110 Elementos presentes nesta obra também estão retratados e aprofundados em: AVANCINI ALVES, Cristiane. Aspectos da doação de embriões humanos no cenário brasileiro. Revista Trimestral de Direito Civil, ano 13, vol. 49, jan/mar 2012, pp. 69-100. 111 PASSOS, Eduardo Pandolfi. History of assisted reproduction: lessons learnt and future challenges. Reviews in Gynaecological Practice 4 (2004) 199-202. Observações e citações deste parágrafo referem-se ao autor. 112 Originalmente: “assisted reproduction protocols are current undergoing an interesting phase of discussion, since laws prohibiting embryo freezing or fertilization/transfer of over four oocytes are being enforced in several countries”. 108


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muscúlos e das células nervosas. Elas foram isoladas e conservadas, pela primeira vez, em 1998 por James Thomson e seus colegas na Universidade de Wisconsin, Estados Unidos. Desde então, mais de mil amostras diferentes de “linhas” de células-tronco embrinárias foram criadas e compartilhadas por pesquisadores do mundo inteiro. As principais questões éticas e políticas relativas às células-tronco embrionárias diz respeito à destruição de embriões, além de haver preocupação com um adequado tratamento em relação aos doadores desses embriões113. Esse cenário cria uma nova dimensão quanto ao uso das técnicas de RA. Como o acesso ao uso de embriões humanos é uma das condições para a realização de pesquisas através de células-tronco embrionárias, a utilização de embriões excedentários estabelece uma conexão entre ciência e medicina, pesquisa e assistência clínica. Nesse sentido, “com a pesquisa em células-tronco como um possível uso de embriões, esses embriões possuem um valor reprodutivo dobrado, não sendo percebidos apenas como uma criança em potencial mas, também, como fonte de medicina reprodutiva”114. Esse contexto mostra que os embriões presentes nas clínicas de fertilização não são vistos apenas como um caminho dos casais inférteis para chegar ao objetivo de ter filhos, mas, também, como potenciais fontes para doação e, assim, obtenção de célulastronco embrionárias para pesquisa. Essas situações revelam a estrita conexão entre a bioética e os direitos humanos, especialmente quando se verifica que o desenvolvimento da biomedicina desafia a esfera jurídica e a sua participação em áreas que, antes, eram circunscritas à esfera bioética. O uso de embriões excedentários para pesquisa faz parte do cenário que conecta esses campos. Um dos aspectos que podem exemplificar essa afirmação ocorre quando, na esfera reprodutiva, pode haver uma prevalência quanto ao bemestar da mulher infértil (ao se evitar que a mulher seja submetida a um novo processo de obtenção de óvulos a cada nova tentativa, se assim for necessário) em relação ao risco de haver embriões excedentários (no caso da opção em haver um número maior de óvulos numa única vez, de forma a criar embriões que poderão ser implantados numa posterior tentativa). Ou seja, “nos contextos jurídicos que decidiram assim, o HYUN, Insoo. Stem cells. From Birth to Death and Bench to Clinic: The Hastings Center Bioethics Briefing Book for Journalists, Policymakers, 2008-2009, p. 159. 114 Originalmente: “with stem cell research as a possible application of embryos, embryos gain a double reproductive value, not only valuable as a potential child but also as a source for regenerative medicine”. SVENDSEN, Mette N. and KOCH, Lene. Unpacking the ‘Spare Embryo’: Facilitating Stem Cell Research in a Moral Landscape. Social Studies of Science 38/1 (February 2008), p. 94. 113


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interesse da mulher é superior ao do embrião, ainda que isso signifique um risco de que eles não sejam utilizados com o objetivo reprodutivo inicial”115 116. O exemplo acima trazido demonstra que outras circunstâncias participam do atual debate sobre a evolução das técnicas de reprodução assistida. Entre elas, a discussão quanto ao destino dos embriões obtidos dessa técnica é ponto emblemático de análise, pois a ausência de consenso sobre o tema envolve diversos países e, também, o panorama nacional. No Brasil, não há legislação específica sobre o tema. Tem-se como parâmetro de análise sobre o assunto a Resolução nº 2.121/2015 do Conselho Federal de Medicina, que adota as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida. Para tanto, cabe, inicialmente, verificar aspectos do consentimento informado nesse contexto, por ser o elemento inicial de manifestação de vontade das partes envolvidas no processo de RA. É importante indicar que a pessoa que será submetida a um tratamento ou a uma pesquisa precisa ter dois elementos prévios para esse processo: capacidade para compreender e consentir, e voluntariedade117. A capacidade não está conectada com a idade da pessoa. Estudos revelam que adolescentes e pessoas idosas podem participar ativamente do processo de decisão118. A voluntariedade requer que a pessoa seja capaz de decidir livremente se quer ser tratada em determinada maneira ou se deseja participar de uma pesquisa, não podendo estar sob influência ou intimidações externas119. Esse ponto é fundamental no âmbito da RA. A importância em afastar a coerção enfatiza a autonomia e a dignidade do paciente. Uma interessante imagem Originalmente: “in those legal regulations that have decided so, the interests of the woman patient are more valuable than those of the embryos, even if this entails the risk that they could not be used for the initial reproductive purpose”. ROMEO-CASABONA, Carlos M. Ethical, legal and social issues related to cell therapy. Revista de Derecho y Genoma Humano, Num. 28, January-June 2008, p. 144. 116 De acordo com Muriel Fabre-Magnan, frequentemente nos focalizamos na definição de quem é o embrião ou o que são células-tronco, perguntas que, segundo ela, não possuem uma resposta. Para a autora, “L’interrogation consiste à savoir comment traiter ces personnes potentielles et ces produits d’origine humaine afin de faire en sorte de préserver en l’homme son humanité ou, plus précisément, de la réinventer et de la réinstituer sans cesse, car dans un monde qui bouge en permanence et à une vitesse toujours accélérée, les solutions ne peuvent être celles qui couvenaient au passé”. In LABRUSSE-RIOU, Catherine. Écrits de bioéthique – textes réunis et présentés par Muriel Fabre-Magnan. Paris: Presses Universitaires de France, 2007, p. 8. 117 GOLDIM, José Roberto. O consentimento informado numa perspectiva além da autonomia. In DE SOUZA, Ricardo Timm, (Org) et all. Ciência e Ética: os grandes desafios. EDIPUCRS, 2006, pp. 47 and 48. 118 RAYMUNDO, M. M. and GOLDIM, J.R. Moral-psychological development related to the capacity of adolescents and elderly patients to consent. Journal of Medical Ethics 2008; 34:602-605. 119 KOLLEK, Regine. Article 6: consent. In TEN HAVE, Henk A. M. J. and JEAN, Michèle S (Ed.). The UNESCO Universal Declaration on Bioethics and Human Rights: background, principles and application. Paris: UNESCO, 2009, p. 132. 115


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é feita por Onora O’Neill quando afirma que “O consentimento informado é uma ponta do iceberg ético: os que pensam de outra maneira negligenciam o restante do iceberg”120. Ela acredita que, mais do que unicamente uma questão ética, o consentimento informado oferece a segurança ao paciente de que ele não foi coagido. O termo “coerção” é definido, por alguns autores, como “uma forma extrema de influência por uma outra pessoa que controla, completamente, a decisão de uma pessoa”121. Por outro lado, pode ser usado no sentido de designar uma vantagem injusta ou um inapropriado comprometimento que diz respeito à qualidade de autonomia do consentimento do paciente, mas não necessariamente algo que controle o consentimento. Nesse panorama, o processo de decisão relativo à infertilidade e à doação de embriões é um processo dinâmico, contínuo e complexo com situações e dilemas que podem surgir em períodos, momentos diferentes122. Por exemplo, no cenário legal suíço, os médicos que trabalham com FIV devem informar os casais sobre a possibilidade de serem questionados em relação à doação dos embriões excedentários para pesquisa com células-tronco, no caso deste fato ocorrer num dos ciclos do tratamento. Um estudo indica que o tempo é crucial nessa questão, pois ele atua no processo de tomada de decisão de todos os envolvidos quanto à formação e destino dos embriões originados desse tratamento123. Os autores explicam que os embriões oriundos de um ciclo de FIV podem ser doados para pesquisas com células-tronco ou decidir pela sua destruição. Uma terceira opção não existe por causa da atual proibição suíça em criopreservação de embriões e doação para outras esferas que não a da relativa às células-tronco124. Originalmente: “Informed consent is one tip of the ethical iceberg: those who think otherwise overlook the rest of the iceberg”. O’NEILL, O. Some limits of informed consent. Journal of Medical Ethics, 2003; 29, p. 5. 121 Originalmente: “an extreme form of influence by another person that completely controls a person’s decision”. FADEN, Ruth R., BEAUCHAMP, Tom L. A history and theory of informed consent. New York, Oxford: Oxford University Press, 1986, p. 338-339. 122 HUG, Kristina. Motivation to donate or not donate surplus embryos for stem-cell research: literature review. Fertility and Sterility, Vol. 89, No. 2, February 2008, p. 274. 123 PORZ, Rouven, BÜRKLI, Peter, BARAZZETTI, Gaia, SCULLY, Jackie Leach, REHMANN-SUTTER, Christoph. A challenge choice: donating spare embryos to stem cell research in Switzerland. Swiss Medical Weekly 2008; 138(37-38): 552. 124 De acordo com o “Ethics Committee of the American Society for Reproductive Medicine”, é importante que os pacientes decidam em doar seus embriões para pesquisa apenas depois de decidirem quanto à não continuidade do seu armazenamento: “Making separate decisions about no longer using embryos and donating them for research guards against pressure being placed on patients to donate embryos”. ETHICS COMMITTEE OF THE AMERICAN SOCIETY FOR REPRODUCTIVE MEDICINE. Donating spare embryos for stem cell research. Fertility and Sterility, Vol. 91, No. 3, March 2009, p. 669. 120


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O estudo também oferece uma sugestão sistemática quanto à doação do embrião humano, indicando que seria adequado utilizar a expressão “processo de escolha informado”125 ao invés de “consentimento” que, para os autores, indica aceitação. Segundo eles, o casal precisa entender com qual escolha é confrontado e que deverá livremente decidir seja pela doação (se deseja que seus embriões sejam utilizados para pesquisas com células-tronco) ou pela destruição dos mesmos. Um outro elemento diz respeito à linguagem adotada. Os autores entendem que “doação” é um termo comumente considerado como algo “bom”. É feita a analogia com a doação de sangue, tecidos, órgãos, esperma e óvulos. Contudo, ressaltam que a doação de embriões não pode ser comparada com essas outras formas de doação, porque “o embrião, com sua potencialidade de desenvolvimento, é uma entidade única que não pode ser comparável com outras partes do corpo humano que não possuem essa potencialidade”126. O estudo conclui que a lei suíça sobre o tema poderia ser interpretada no sentido de que “(i) o casal deve ser, pelo menos, informado sobre a possível necessidade de uma futura decisão nos casos excepcionais quando são produzidos embriões crioconservados através do tratamento, mas que (ii) não existe, na lei, uma sistemática previsão de informação do casal sobre as concretas possibilidades de doação para pesquisa com células-tronco”127. Segundo os autores, essa opção “pode ser explicada posteriormente quando já existir um embrião excedentário. Do ponto de vista da atual lei, o concreto pedido de usar o embrião excedentário para pesquisa com células-tronco não pode ser feito antes de se saber, claramente, que o embrião é excedentário”128. Para eles, o atual contexto normativo sobre o tema pressiona o casal que pode querer doar seus embriões à pesquisa a decidir num espaço de tempo muito pequeno. Portanto, entendem que “uma alternativa defensável e que, na nossa visão, é preferível, é proporcionar informação geral sobre a possibilidade de doar embriões antes do início Originalmente: “informed choice process”. PORZ, Rouven, BÜRKLI, Peter, BARAZZETTI, Gaia, SCULLY, Jackie Leach, REHMANN-SUTTER, Christoph. A challenge choice: donating spare embryos to stem cell research in Switzerland. Swiss Medical Weekly 2008;138(37-38): 553. Citações do exemplo suíço obtidas da fonte citada nessa nota. 126 Originalmente: “the embryo with its potential for development is a unique entity and not comparable with other body parts that lack such potential”. 127 Originalmente: “(i) couples should at least be informed about the possible need for a future decision in those exceptional cases when a surplus embryo is produced by their treatment, but that (ii) there is no room within the law for systematically informing the couple about the concrete possibilities of donation to stem cell research”. 128 Originalmente: “can only be explained later when a surplus embryo has actually been produced. From the viewpoint of the current law, the concrete request to use a surplus embryo for hESC research cannot be made before it is clinically clear that the embryo is surplus”. 125


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do tratamento de FIV. Assim, o casal pode refletir quanto a essa eventualidade e estar preparado tanto, caso isso realmente ocorra”129. Observa-se que a linguagem tece importantes delineamentos no decorrer desta obra. A definição ou a contextualização do uso das palavras e de sua interpretação possui força propulsora de posicionamentos e decisões na interface entre a bioética e os direitos humanos, especialmente quando se tem ciência da diversidade cultural e social que, na suas particularidades e relações com o caso concreto, é inspiração e, também, efetiva percepção de singularidade e de multiplicidade associadas. A reflexão quanto ao processo de informação para a realização das práticas de RA e a obtenção do consentimento informado pelas partes envolvidas remete a considerações relativas à análise da qualificação jurídica do embrião humano. Novamente, aqui, refere-se à linguagem e como a redação normativa e sua interpretação posicionam o embrião humano nesse cenário. O Código Civil brasileiro (CC) e a normativa nacional trazem aspectos importantes de análise sobre o tema. O artigo 2º do CC, ao dispor que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”, abre um leque de indagações e ambiguidades atualmente refletidas na doutrina nacional. Vale lembrar que a teoria das pessoas, no ordenamento jurídico brasileiro, passa por vários projetos, iniciados com Teixeira de Freitas através da Consolidação das Leis Civis de 1858, até se chegar ao Código Civil de 1916, com Clóvis Beviláqua. O atual Código também passou por diversas etapas até a sua redação final, sendo instituído pela Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, e entrou em vigor em 11 de janeiro de 2003. A reforma da Lei Civil de 1916 veio como “decorrência das profundas alterações havidas no plano dos fatos e das idéias, tanto em razão do progresso tecnológico como em virtude da nova dimensão adquirida pelos valores da solidariedade social”130. As alterações na redação do artigo 2º (antigo artigo 4º) do Código Civil, ao mesmo tempo que revelam a nova dimensão dos valores sociais, trazem dificuldades na interpretação e, assim, na qualificação do embrião e na extensão de seus direitos. O artigo 4º da Lei Civil de 1916 referia-se à personalidade civil do “homem”. Na redação

Originalmente: “A perfectly defensible alternative, and one which would be preferable in our view, is to provide general information about the possibility of donating any surplus embryo before the IVF treatment starts. Then the couple could think over this eventuality and be prepared for it should it actually occur”. 130 REALE, Miguel. O Projeto do novo código civil: situação após a aprovação pelo Senado Federal. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 44. 129


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final das emendas do Senado ao Projeto, há uma modificação desse termo para “ser humano”. De acordo com o Parecer Final do então senador Josaphat Marinho, a substituição da forma “todo homem” pela expressão “todo ser humano” atualizou “a linguagem em reconhecimento à posição conquistada pela mulher na sociedade de nossos dias”131. A última e definitiva redação do citado artigo foi, contudo, novamente alterada. Passou-se a utilizar o termo “pessoa”132. Na relação entre esses documentos e a normativa civil, Francisco Amaral ressalta que o artigo 4º do Código Civil de 1916 compreende duas ideias aparentemente contraditórias. A primeira, de que o nascituro é titular de direitos (especificados em diversos artigos do próprio Código); a segunda, de que o nascituro não é pessoa, pois a personalidade começa do nascimento com vida. E essa constatação reflete-se não apenas no artigo 2º do atual Código Civil brasileiro, que apresenta a mesma questão, mas, também, nas diversas posições adotadas pela doutrina133. Segundo o autor, a fórmula utilizada retrata a influência da doutrina alemã, “cedendo a concepção concreta e naturalista de Freitas e Beviláqua, que consideravam o nascituro como pessoa, ao conceptualismo abstrato e positivístico da pandectística que, utilizado no plano normativo, alterava essa paridade”134. Essa concessão propicia, de acordo com Francisco Amaral, o aspecto contraditório citado, o qual não resiste, porém,

REALE, Miguel. O Projeto do novo código civil: situação após a aprovação pelo Senado Federal. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 134. 132 O atual Código Civil brasileiro peca, segundo Francesco Busnelli, por não fazer uma referência aos “entes suscetíveis de aquisição de direitos” (Esboço, art. 16, de Teixeira de Freitas), ou seja, a pessoa humana “nel continuum del suo divenire e con l’intangibilità dei suoi diritti fondamentali”. No que se refere ao artigo 2º, afirma o autor que, enquanto “il riferimento all’uomo favoriva senza dubbio un’interpretazione suscettibile di estendere in generale al nascituro i diritti della personalità, il più técnico (ma anche più controverso) riferimento alla persona potrebbe suggerire un’interpretazione restrittiva, tale cioè da escludere una generale estensibilità ai nascituri”. Refere o autor, ainda, que “(...) sarebbe stato più chiaro, e più consono alle tradizioni latinoamericane, un ritorno al Projeto Beviláqua, che – come, del resto, il codice argentino do Vélez Sársfield, - faceva cominciare la personalità dell’uomo dal concepimento. (...) Anche l’embrione in vitro deve infatti considerarsi um nascituro, a meno che non si voglia alludere – ma non sembra questo il caso – alla formazione di embrioni non destinati alla nascita”. BUSNELLI, Francesco Donato. Persona umana e responsabilità civile nel nuovo codice brasiliano. Estratto da “ROMA E AMERICA. DIRITTO ROMANO COMUNE” 16/2003, Mucchi Editore. 133 As três correntes fundamentais identificadas na doutrina brasileira, de acordo com Silmara J. A. Chinelato e Almeida, são a natalista, a da personalidade condicional e a concepcionista. A primeira sustenta que a personalidade começa do nascimento com vida. A segunda afirma que a personalidade começa com a concepção, com a condição do nascimento com vida (doutrina da personalidade condicional ou concepcionista imprópria). A terceira considera que o início da personalidade principia com a concepção, posição esta adotada pela autora. ALMEIDA, Silmara J. A. Chinelato e. Tutela civil do nascituro. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 145. 134 AMARAL, Francisco. O nascituro no direito civil brasileiro – contribuição do Direito Português. Revista Brasileira de Direito Comparado, nº 08. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 88-89. 131


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“a uma interpretação lógico-sistemática da Constituição e do Código Civil”135. Dessa interpretação resulta a convicção de persistir no direito brasileiro, como em outros países sul-americanos, a tradição romano-ibérica136, que considera o nascituro como pessoa e a concepção como termo inicial da personalidade, “sendo o nascimento apenas o fato jurídico que a consolida”137. Para além das diversas posições presentes na doutrina sobre a qualificação jurídica do embrião138, torna-se importante perceber a diferenciação quanto ao tempo e ao espaço. O embrião “intra utero” pode ser sujeito de direito na esfera civil brasileira, como no caso, por exemplo, do artigo 1.779 do CC139. O dilema reside na qualificação do embrião crioconservado. Ainda que a Lei Civil, no artigo 1.597, tenha indicado que se presumem concebidos na constância do casamento os filhos: “III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido”, não existe uma clara indicação normativa quanto ao seu “status” na relação jurídica. Ressalta-se, contudo, a importância de se ter presente o caráter de humanidade que existe na formação do embrião, tanto AMARAL, Francisco. O nascituro no direito civil brasileiro – contribuição do Direito Português. Revista Brasileira de Direito Comparado, nº 08. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 89. 136 A condição jurídica do nascituro é delineada por Pierangelo Catalano, com relação à época contemporânea, através de duas correntes do pensamento jurídico: o primeiro, com forte inspiração justinianeia, que caracteriza grande parte da área ibérica e que defende a “paridade ontológica” entre nascituro e nascido, e o segundo, de origem pandectista germânica, como a “teoria da ficção” de Savigny, que sustenta que a regra nasciturus habetur pro nato seria uma simples ficção, aplicável apenas a algumas limitadas relações jurídicas. “A pandectística e a civilística européias eliminaram conceitualmente a concretitude da relação “naturalística” entre qui in utero est e homo, contribuindo, assim, para a negação, no plano normativo, da paridade ontológica”. CATALANO, Pierangelo. Os nascituros entre o direito romano e o direito latino-americano (a propósito do art. 2.º do Projeto de Código Civil brasileiro). Revista de Direito Civil nº 45, p.09. 137 AMARAL, Francisco. O nascituro no direito civil brasileiro – contribuição do Direito Português. Revista Brasileira de Direito Comparado, nº 08. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 89. 138 Remeto à análise feita em: ALVES, Cristiane Avancini. Embrião humano: proposição de um estatuto jurídico no Direito Privado Brasileiro. In: Mauro Nicolau Júnior. (Org.). Novos Direitos. Curitiba: Juruá Editora, 2007, pp. 81-131. 139 O artigo 1.779 dispõe que “dar-se-á curador ao nascituro, se o pai falecer estando grávida a mulher, e não tendo o poder familiar. Parágrafo único. Se a mulher estiver interdita, seu curador será o do nascituro”. No âmbito alimentar, Caio Mário da Silva Pereira observa que, numa interpretação estrita do então artigo 4º, hoje artigo 2º do CCB, não seria possível conceder direito a alimentos ao nascituro, uma vez que, por este preceito, a personalidade começa com o nascimento com vida. Entretanto, para o autor, tal matéria merece ponderação, ao se considerar que o principal direito do nascituro é o direito à própria vida, que seria comprometida se faltasse, à mãe, os recursos necessários à sobrevivência do ser em gestação. Afirma que o artigo 227 da CF assegura à criança e ao adolescente o direito à vida, e este é um direito que “há de retroceder à existência intra-uterina, como condição essencial à proteção que a criança há de encontrar como sujeito da que o inciso constitucional assegura”. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, vol. V. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1995, p. 289. 135


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intra quanto extra útero, o que afasta qualquer reificação e, assim, instrumentalização embrionária. Existe, sempre, a pertença ao gênero humano, e é a essa condição que se deve atentar ao se tratar desse assunto, especialmente quanto ao aspecto relacional que se estabelece no contexto da reprodução assistida. Para a análise normativa relativa à reprodução assistida, especificamente quanto ao embrião humano, as disposições do Código Civil são associadas às normas deontológicas do CFM, em razão da ausência de legislação específica sobre o tema, conforme acima referido. No histórico das Resoluções sobre esse assunto, registrase que, em 1992, a Resolução nº 1.358 do CFM estabeleceu normas éticas relativas à reprodução assistida e, após 18 anos de vigência, este documento foi substituído pela Resolução 1.957/2010140. Não muito tempo depois, é publicada a Resolução nº 2.013/2013, revogada pela Resolução nº 2.121/2015. Verifica-se que as últimas resoluções tiveram um menor espaço de tempo nas suas alterações. A Exposição de Motivos da Resolução nº 2.013/2013 indicava que “A Resolução CFM nº 1.957/10 mostrouse satisfatória e eficaz, balizando o controle dos processos de fertilização assistida. No entanto, as mudanças sociais e a constante e rápida evolução científica nessa área tornaram necessária a sua revisão”141. Por sua vez, a Resolução nº 2.121/2015 refere que o CFM “age sempre em defesa do aperfeiçoamento das práticas e da obediência aos princípios éticos e bioéticos, que ajudarão a trazer maior segurança e eficácia a tratamentos e procedimentos médicos”142. Entre os elementos abordados nesse documento, o consentimento informado segue com força obrigatória para todos os pacientes submetidos à técnica de reprodução assistida. Contudo, há uma amplitude quanto a sua elaboração, ao indicar que “os aspectos médicos envolvendo a totalidade das circunstâncias da aplicação de uma técnica de RA serão detalhadamente expostos, bem como os resultados obtidos naquela unidade de tratamento com a técnica proposta”. No que se refere ao processo de informação e formalização, registra que “as informações devem também atingir dados de caráter biológico, jurídico, ético e econômico. O documento de consentimento informado será elaborado em formulário especial e estará completo com a concordância, por escrito, das pessoas a serem submetidas às técnicas de reprodução assistida”. BRASIL, Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.957/2010. Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/ resolucoes/CFM/2010/1957_2010.htm. 141 BRASIL, Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.957/2010. Disponível em: http:// www.portalmedico.org. br/resolucoes/CFM/2013/2013_2013.pdf.. 142 BRASIL, Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.121/2015. Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/ resolucoes/CFM/2015/2121_2015.pdf.. 140


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É importante ressaltar que, na área de pesquisa envolvendo seres humanos, a necessidade de consentimento informado é presente no Brasil desde 1988, com a Resolução nº 01/88 do Conselho Nacional de Saúde143. Em 1996, essa norma foi substituída pela Resolução nº 196/96 que, por sua vez, foi também substituída pela Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012, mantendo a redação do caput do item IV ao dispor que “O respeito devido à dignidade humana exige que toda pesquisa se processe após consentimento livre e esclarecido dos sujeitos, indivíduos ou grupos que por si e/ou por seus representantes legais manifestem a sua anuência à participação na pesquisa”144. O mesmo Conselho editou normas relativas ao armazenamento e ao uso de material biológico humano através da Resolução nº 347/05 em janeiro de 2005145. Alguns meses depois, foi editada a chamada Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005)146 pelo Congresso Nacional que, fundamentalmente, estabeleceu normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados (OGM) e seus derivados. Essa Lei suscitou diversas controvérsias, especialmente porque estabeleceu, num mesmo documento, normas sobre o uso de organismos geneticamente modificados (OGM) e embriões humanos para pesquisa, ou seja, temas que “são ontologicamente diversos, participam de natureza diversa”147. O artigo 5º148 permite, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro, seguidas algumas indicações. FERNANDES, Márcia Santana. Células-tronco humanas e as patentes. Rev. HCPA 2008;28(3):168-76. BRASIL, Conselho Nacional de Saude. Resolução nº 196, 10 de outubro de 1996. Disponível em: http://conselho.saude. gov.br/. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Dosponível em: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/ Reso466.pdf. 145 BRASIL, Conselho Nacional de Saude. Resolução nº 347, 13 de janeiro de 2005. Disponível em: http://conselho.saude. gov.br/. 146 BRASIL, Casa Civil, Lei de Biossegurança, Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005. Disponível em: http://www.planalto. gov.br. 147 Originalmente: “son ontológicamente diversos, participan de distinta naturaleza”. SESSAREGO, Carlos Fernández. Hacia una nueva sistematización del daño a la persona. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, nº 75, ano 20, janeiro-março/1996, p. 10. 148 Art. 5o É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições: I – sejam embriões inviáveis; ou II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento. § 1o Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores. § 2o Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa. § 3o É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997 . 143 144


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Salienta-se que a referida lei não deixa clara a posição legal do embrião nesse contexto, bem como suscita dúvidas quando utiliza o termo “viável”, que não foram resolvidas com a posterior edição do Decreto 5.591/05149

. Ainda, tem-se o dilema

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quanto ao aspecto temporal de criopreservação do embrião, pois a lei indica um período de 3 (três) anos, mas não existe um critério científico que fundamente essa delimitação151 152. Outro ponto de controvérsias diz respeito ao fato de que o parágrafo 1º do art. 5º refere-se ao consentimento informado por parte dos pais; contudo, no parágrafo 3º, refere-se a “material biológico”, estabelecendo a proibição de seu comércio. Ainda que válida a proibição, torna-se ambíguo o fato de indicar “pais” que, de acordo com os termos utilizados, possuem “material biológico” como filhos, ou seja, coisas que podem ter pais. Já o Decreto 5.591/05 define “pais” como “usuários finais” do procedimento de FIV153, o que não afastou a incerteza levantada pela lei porque o Decreto não indica como os pais serão identificados nem o que poderá ser feito com os embriões “abandonados”. Nesse sentido, o artigo 69, IV, que indica as infrações administrativas do uso, para pesquisa e terapia, das células-tronco embrionárias obtidas de embriões originados da FIV sem o consentimento dos pais, aumenta a incerteza na medida em que, nesse cenário, “está impedida a utilização dos embriões congelados e abandonados por seus ‘genitores’, mesmo que vencido o prazo estabelecido para a utilização com vistas àquele fim” 154. BRASIL, Decreto nº 5.591, de 22 de Novembro de 2005. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Para uma análise dessa questão, ver: MARTINS-COSTA, Judith; FERNANDES, Márcia Santana and GOLDIM, José Roberto. Lei de Biossegurança – Revisitando a Medusa Legislativa. In: NICOLAU JÚNIOR, Mauro (coord.), Novos Direitos. Curitiba: Juruá Editora; 2007, pp. 205-216. 151 Um estudo ingles afirma que The Human Fertilisation and Embryology Act (1990) “allowed embryos to be used for a couple’s own treatment, donated to the treatment of others or research, or to be cryopreserved for 5 years”. Os autores afirmam que, em 1995, “the law was revised to allow embryo storage to be extended from 5 years to 10 years, with written consent from both gamete providers”.Dizem os autores: “We reviewed the decisions made by these couples at St Mary’s Hospital, Manchester, UK, a National Health Service non-fee-paying centre, and at Manchester Fertility Services (MFS), a fee-paying unit. Between 1988 and 1994, embryo cryopreservation took place in 1731 treatment cycles (45% of the total). The clinical pregnancy rate per replacement of fresh embryos at these units is 19% and per replacement of frozen embryos is 14%”. Eles explicam que, “However, when all the cryopreserved embryos are replaced, the cumulative pregnancy rate per patient increases to 40%. All couples are informed of the positive impact of embryo cryopreservation on cumulative pregnancy rate. Patients with cryopreserved embryos also receive careful counselling and follow-up, with written information sent out yearly at MFS and every 2 years at St. Mary’s”. O estudo revela que 1344 embriões de 359 casais foram crioconservados por mais de 5 anos. Oghoetuoma, J. O; McKeating, C; Horne, G; Brison, D. R. and Lieberman, B.A. “Use of in-vitro fertilisation embryos cryopreserved for 5 years or more”. The Lancet, Vol. 355, April 15, 2000, p. 1336. 152 Um estudo indica que “The length of time an embryo can be frozen and still remain viable is unknown. The longest period an embryo has been frozen with successful pregnancy after transfer is 12 years”. KU, Lowell T.; ELSER, Nanette and NAKAJIMA, Steven T. Frozen embryos: A life-saving option. Fertility and Sterility, Vol. 90, No. 3, September 2008, pp. 849.e15-849.e16. 153 Art. 3º Para os efeitos deste Decreto, considera-se: (...) XV - genitores: usuários finais da fertilização in vitro. 154 MARTINS-COSTA, Judith; FERNANDES, Márcia Santana and GOLDIM, José Roberto. Lei de Biossegurança – Revisitando a 149 150


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O Ministério da Saúde publicou a Portaria nº 2526/05 relativa à informação de dados necessários à identificação de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro155, indicando que as instituições que exercem atividades que envolvam o congelamento e o armazenamento de embriões obtidos por FIV devem informar a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) sobre os dados necessários à identificação dos embriões inviáveis produzidos em seus estabelecimentos e dos embriões congelados disponíveis, para a constituição de um banco de dados sobre embriões humanos. A ANVISA, em fevereiro de 2006, adotou a RDC nº 33 (Resolução da Diretoria Colegiada), que institui procedimentos relativos a bancos de células e tecidos germinativos156. No item E, 11.1, dispõe que: A doação de células, tecidos germinativos e pré-embriões deve respeitar os preceitos legais e éticos sobre o assunto. [...] 11.1.3 A doação de células, tecidos germinativos e pré-embriões deve garantir: [...] d) O Consentimento Livre, Esclarecido, Consciente e Desinteressado - deve ser obtido antes da coleta, por escrito, e assinado pelo(a) doador(a) e pelo médico, conforme legislação vigente.

Analisando-se a Resolução, verifica-se que o termo de consentimento informado é requerido “antes da coleta”, ou seja, antes de se poder visualizar a presença real ou não de embriões excedentários. A RDC nº 33 utiliza o termo “pré-embrião” – também presente num dos pontos da Resolução nº 1.957 do CFM, não mais utilizado nas Resoluções nº 2.013/2013 e nº 2.121/2015 – definido como o “produto da fusão das células germinativas até 14 dias após a fertilização, in vivo ou in vitro, quando do início da formação da estrutura que dará origem ao sistema nervoso”. Essa definição causa mais incertezas, na medida em que um embrião ou pré-embrião (por exemplo, termo utilizado na legislação espanhola para os embriões até o 14º dia após a fecundação) “não é um tecido germinativo, pois não é capaz de gerar células tais como ovócitos ou espermatozóides”157. Medusa Legislativa. In: NICOLAU JÚNIOR, Mauro (coord.), Novos Direitos. Curitiba: Juruá Editora; 2007, pp. 205-216. BRASIL, Ministério da Saúde, Portaria nº 2526, de 21 de dezembro de 2005. Disponível em: http://www.saude.mg.gov. br/atos_normativos/legislacao-sanitaria/estabelecimentos-de-saude/atencao-em-reproducao-humana-assistida-1/ Portaria_2526.pdf. 156 BRASIL, ANVISA, Resolução da Diretoria Colegiada RDC nº 33, de 17 de fevereiro de 2006. Disponível em: www.anvisa. gov.br. 157 MARTINS-COSTA, Judith; FERNANDES, Márcia Santana and GOLDIM, José Roberto. Lei de Biossegurança – Revisitando a Medusa Legislativa. In: NICOLAU JÚNIOR, Mauro (coord.), Novos Direitos. Curitiba: Juruá Editora; 2007, pp. 205-216. 155


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É importante lembrar que, poucos meses após a edição da Lei de Biossegurança, foi ajuizada no Supremo Tribunal Federal (STF) uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3510), pelo então Procurador Geral da República, contra o artigo 5º da referida Lei, ação fundamentada na violação ao direito à vida e ao princípio da dignidade humana. Ele requereu, ainda, a realização de uma audiência pública para a discussão do tema158, fato que aconteceu pela primeira vez na história do STF em 20 de abril de 2007. Os Ministros do STF proclamaram a decisão em maio de 2008, quando seis Ministros (a Corte é composta por 11 membros) indicaram que o artigo 5º da Lei de Biossegurança não poderia ser considerado inconstitucional159 160, não violando os princípios constitucionais do direito à vida e da dignidade humana. A conexão desse tema com aspectos sociais, culturais, políticos e econômicos revelase, também, em reportagem que foi publicada no contexto da decisão do STF. A notícia retrata que o Ministério da Saúde haveria anunciado o investimento de um elevado valor para pesquisas com células-tronco, indicando, ainda, que o governo não seria o único investidor161. Uma empresa norte-americana de biotecnologia teria divulgado Informação disponível em: http://www.stf.gov.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=64924&caixa Busca=N. 159 Decisões disponíveis em: http://www.stf.gov.br. 160 Alguns Ministros do STF adotaram a chamada “inconstitucionalidade parcial” quanto ao art. 5º da Lei de Biossegurança, ou seja, mantiveram a constitucionalidade do artigo utilizando-se da possibilidade de “interpretação conforme à Constituição”. Alguns autores explicam esse processo como um mecanismo de declaração parcial de inconstitucionalidade da norma sem mudar seu texto. “La interpretación de normas infraconstitucionales puede provocar inconstitucionalidad, dependiendo del resultado del proceso de interpretación y aplicación de la norma. Por esta razón determinadas normas infraconstitucionales tienen su validez protegida en virtud de la interpretación que se le confiera, o sea, se trata de la atribución de una interpretación conforme a la Costitución a través de la cual normas, en un principio, inconstitucionales, tienen su validez protegida. [...] Aliada a esta possible libre interpretación conforme a la Constitución se encuentra la declaración de inconstitucionalidad parcial sin reducción del texto, a través de la cual el texto impugnado mantiene su redacción original (sin reducción del texto), pero para mantener su constitucionalidad se excluye algunas interpretaciones, aquellas no conformes con la Cosntitución. A este respecto, Gilmar Ferreira Mendes ha asegurado que con la declaración de inconstitucionalidad parcial ‘se declara, a menudo, la inconstitucionalidad de determinadas posibilidades de interpretación con la eliminación de gran número de casos del ámbito de aplicación de la norma”. FREIRE DE SÁ, Maria de Fátima e MOUREIRA, Diogo Luna. Investigaciones con células troncales embrionarias en Brasil y la (In)constitucionalidad del articulo 5º de la Ley de Bioseguridad (Parte II). Revista de Derecho y Genoma Humano, Num. 29, Julio-Diciembre 2008, p. 162. 161 TRIUNFOL, Márcia. Human embryonic stem-cell research reapproved in Brazil. The Lancet Oncology, Vol. 9, July 2008, p. 616. O artigo traz alguns depoimentos de pesquisadores que entendem que a decisão brasileira poderia influenciar a abertura da pesquisa em outros países da América Latina. Um membro da Universidade do Chile afirma que “Brazilian scientists are now in an excellent position to take advantage of specific governmental programmes targeting stem cells, and hopefully will be able to influence the region. Embryonic stem-cell biology is a relatively inexpensive technology that may allow Latin American scientists to compete on a higher level with developed laboratories worldwide”. Contudo, um membro da Universidade Federal do Rio de Janeiro observa que os pesquisadores brasileiros poderiam ter problemas com a importação de equipamentos, o que incrementaria os custos e poderia trazer atrasos ao trabalho de pesquisa. 158


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um investimento de US$ 300 milhões em “saúde, tecnologia e agricultura no Brasil”, juntamente com a Universidade de Wisconsin (EUA), também envolvida com o fundo privado. De acordo com o artigo, “(...) a aprovação da lei, combinada [com] o recente boom econômico e a crescent experiência com ensaios clínicos com terapias celulares, faz do Brasil um mercado promissor para investimentos privados em pesquisas com células-tronco”162. Torna-se interessante lembrar que a discussão relativa à aprovação da Lei no Brasil foi pautada pela aplicação clínica das células-tronco, enquanto que apenas alguns meses após a decisão do STF uma declaração de James Thomson, da Universidade de Wisconsin, e quem primeiro isolou e conservou células-tronco embrionárias em 1998163, indicou seu pessimismo quanto a sua utilização clínica, declarando que “A importância dessas células não são para transplantação, mas para a compreensão do corpo humano”164. Outras duas Resoluções foram publicadas pouco antes e logo após a decisão do STF. A RDC nº 29/08, atualizada pela RDC nº 23/2011, aprovou o Regulamento técnico para o cadastramento nacional dos Bancos de Células e Tecidos Germinativos (BCTG) e o envio da informação de produção de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento165. A mesma Resolução instituiu o Sistema Nacional de Produção de Embriões, chamado “SisEmbrio”, que tem como objetivo criar um banco de dados sobre o número de embriões armazenados nas clínicas de fertilização in vitro (BCTG). O seu 7º Relatório, que recolheu dados relativos ao período de 2013, registrou que as “agências reguladoras de outros países e associações/sociedades profissionais relacionadas à área de reprodução humana assistida divulgam os indicadores dos seus serviços”. Ressaltou, ainda, que “o Conselho Federal de Medicina também exige, de acordo com a Resolução CFM nº 2.013/2013, que Originalmente: “(…) the approval of the bill, combined [with] the recent economical boom and the growing experience with clinical trials with cell therapies, makes Brazil a promising market for private investments in stem-cell research”. 163 HYUN, Insoo. Stem cells. The Hastings Center Bioethics Briefing Book, p. 159. Indicação feita na Introdução desta obra. 164 “The importance of these cells ‘are not for transplantation, but for the comprehension of human body”, declaração feita numa conferência em Santa Barbara (EUA). Informação obtida através do jornal eletrônico “Gènéthique”, da Jerome Lejeune Foundation. Disponível em: http://www.genethique.org. Em maio de 2008, a revista Norte-Americana Forbes publicou que Thomson deixou a Universidade de Wisconsin para formar a empresa “Cellular Dynamics International”, com foco na realização de testes de drogas experimentais e seus efeitos colaterais na área cardíaca, utilizando para tanto as linhagens de células-tronco embrionárias como instrumentos de pesquisa. “Este cientista afirmou, em outras palavras, que seria pouco provável que as linhagens celulares embrionárias pudessem ser utilizadas em terapias, como o transplante, ou mesmo curar doenças, como Câncer, Parkinson e Alzheimeir, mas sim elas seriam úteis para realização de teste de medicamentos”. Informação e citação em: FERNANDES, Márcia Santana. Células-tronco humanas e as patentes. Rev. HCPA 2008;28(3):168-76. 165 BRASIL, ANVISA, RDC nº 29, de 12 de maio de 2008 e RDC nº 23, de 27 de maio de 2011. Disponível em: http://www. anvisa.gov.br. 162


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os resultados obtidos pelas clínicas sejam expostos no documento de consentimento informado elaborado pelo serviço”166, especificação mantida pela Resolução CFM nº 2.121/2015. Diante desse panorama, pode-se perceber que: a) é ausente uma clara definição do início da vida humana no sistema legal brasileiro, afirmação baseada nas ambiguidades que existem quanto à caracterização do embrião; b) não existe um específico documento legal relativo à reprodução assistida; c) a constitucionalidade do artigo 5º da Lei de Biossegurança e as normas que dela seguiram não diminuiram os debates e os dilemas sobre a doação de embriões humanos originados de FIV, mesmo com a permissão legal. Em razão dessa permissão, e retomando-se as considerações quanto ao uso da linguagem, é interessante traçar o histórico do termo “doação” como instituto civil, e como ocorre sua relação com a expressão da doação embrionária e o seu registro no âmbito do consentimento informado. Nesse sentido, a palavra “doação”, comumente usada na literatura, é empregada quando se faz referência ao uso de embriões humanos para pesquisa167. Na esfera legal, esse conceito é ausente até o século II a.C. Surge com a lex Cincia (204 a.C)168, que descreve a doação com uma linguagem que indica a imediata transferência da res do doador para o receptor. A prevalência da questão econômica na definição de doação possui um papel fundamental na doutrina do século passado e das últimas décadas desse século, permanecendo historicamente justificada também na doutrina Romana169. Na Idade Média, a doação está conectada com a esfera religiosa e, nesse período, a doutrina não se refere à ideia de doação como uma causa de aquisição de direitos170. Com o passar do tempo e com o surgimento da Codificação, a doação passou a De acordo com este Relatório, “dos 38.062 embriões congelados no ano, cerca de 66% estão em BCTGs da região sudeste, 14% na região sul, 12% na região nordeste, 7 % na região centro-oeste e 1% na região norte”. Estas informações registram que até 27/03/2014 o SisEmbrio recebeu dados de 93 (noventa e três) BCTGs referentes à produção de embriões do ano de 2013. 7° Relatório do Sistema Nacional de Produção de Embriões – SisEmbrio. Disponível em: http://portal.anvisa.gov.br/. Acesso em 6 de fevereiro de 2015. 167 A bibliografia indicada neste trabalho atesta essa afirmação. 168 De acordo com Gian G. Archi, “La lex Cincia (plebiscito del 204 a.C) segna il termine iniziale del movimento che condusse i romani al elaborare il concetto di donazione”. ARCHI, Gian Gualdberto. In Enciclopedia del Diritto, XVIII, Dis-Dopp, voce “Donazione (dir.rom)”. Giuffrè Editore, 1964, p. 932. 169 ARCHI, Gian Gualdberto. In Enciclopedia del Diritto, XVIII, Dis-Dopp, voce “Donazione (dir.rom)”. Giuffrè Editore, 1964, p. 936. 170 “(…) il lomgobardo si converta e diventa cristiano, e quando le condizioni della proprietà fondiaria si stabilizzano dopo il turbinoso periodo della prima invasione, l’idea della donazione comincia a farsi strada nell’anima dell’uomo medievale”. BELLOMO, Manlio. In Enciclopedia del Diritto, XVIII, Dis-Dopp, voce “Donazione (dir.interm.)”. Giuffrè Editore, 1964, p. 956. 166


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fazer parte da esfera contratual, requerendo o envolvimento de duas partes: o doador e o receptor. O Código Civil brasileiro indica, no art. 538, que doação é o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra, comportando um elemento subjetivo e outro objetivo. O primeiro é o animus donandi, a intenção do doador de praticar o ato de liberalidade ou de espontânea gratificação; o segundo, é a diminuição havida no patrimônio do doador171. A questão referente à liberalidade pode estabelecer uma conexão com o elemento de coerção citado relativamente ao consentimento informado. O chamado “espírito de liberalidade” presente, por exemplo, também na doutrina italiana, indica que não é suficiente a atribuição material sem o respectivo enriquecimento, que deve ser justificado pela livre vontade, ou seja, da consciência de atribuir a outros uma vantagem patrimonial sem ser constrito a isso172. Quanto à forma, a doação deve ser feita, de acordo com o art. 541 do CC, por escritura pública ou instrumento particular. Os elementos apresentados já podem auxiliar a estabelecer uma linha argumentativa relacionada à palavra “doação” e sua extensão relativa ao embrião humano e à doação deste para pesquisa. As características expostas indicam que a doação: a) possui natureza contratual; b) deve ter animus donandi, a liberalidade de agir; c) consiste em transferir uma coisa ou direito do patrimônio do doador para o receptor; d) a aceitação do receptor. Nesse ponto, é possível afirmar que o consentimento informado, como instrumento que oferece as bases para a construção de uma ponte entre médico, paciente e pesquisador, é parte de uma relação contratual estabelecida durante o tratamento de FIV. Referentemente à esfera legal, o consentimento informado traz diferentes perspectivas na doutrina quanto a sua definição173, mas sua importância como parte de um processo de informação não suscita dúvidas174. O paciente “tem o direito de se autodeterminar e de exprimir um consentimento válido, ainda que a MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. São Paulo: Editora Saraiva, 2003, pp. 135-136. PALAZZO, Antonio. Trattato di Diritto Civile: I singoli contratti 2. Atti gratuiti e donazioni, diretto da Rodolfo Sacco. Torino: UTET, 2000, p. 122. 173 Este trabalho não trata das consequências do consentimento informado em si, pois é um tema que merece uma especial análise. A doutrina (também a internacional), por exemplo, indica lacunas quanto às evoluções legal do documento, “che stentano a delinearsi tra le oscilazioni e le contradizioni degli orientamenti giurisprudenziali”. FERRANDO, Gilda. Consenso informato del paziente e responsabilità del medico, principi, problemi e linee di tendenza. Rivista Critica del Diritto Privato, Anno XVI, 1-2, Giugno 1998, p. 87; PHITAN, Livia H. Tese de Doutorado “Limites do consentimento informado: um olhar orientado pela bioética”, UFRGS, 2009. 174 Por exemplo, o Código de Ética Médica Italiano indica, no art. 32, que o consentimento informado é complementar e não substitui o processo informativo: “Il consenso, espresso in forma scritta nei casi previsti dalla legge e nei casi in 171 172


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relação profissional com o médico não se origine de um contrato”175, e o consentimento para um tratamento não acaba com a aceitação do mesmo, mas continua através da renovação materilizada através da série de atividades ou situações que envolvem a relação médico-paciente nesse contexto. Torna-se interessante trazer uma possível relação entre solidariedade e gratuidade nesse cenário. Stefano Rodotà explica que a sociedade é constantemente confrontada com o mercado, globalização e universalismo: uma dialética constante entre lucro e gratuidade. Assim, a gratuidade pode ser não apenas uma expressão de uma relação gratuita ou onerosa, mas pode estabelecer, também, relações cuja legitimidade jurídica é condicionada à corresponência a sistemas não mercantis176. A ausência de uma essência proprietária voltada ao embrião humano tolhe a possibilidade de considerá-lo como um objeto na esfera civil e, assim, parte da doação de caráter civil. Um exemplo é o caso do art. 5º da Lei de Biossegurança (que proíbe a comercialização de material biológico177), porque o contexto da reprodução assistida afasta a relação patrimonial característica da doação178. As considerações realizadas permitem delinear as seguintes constatações: 1. O termo “doação” não é utilizado, nesse contexto, referindo-se ao instituto civil da doação, pois o embrião humano – neste caso, o embrião humano originado do tratamento de FIV – não é considerado um objeto e, assim, não é uma “coisa” que faça parte de uma relação patrimonial; 2. De qualquer forma, alguns aspectos civis da doação podem ser relacionados à doação do embrião humano: 2.1 O espírito de liberalidade presente na esfera civil pode ser conectado com a ausência de coerção, uma ausência que fornece as bases para um correto processo de cui per la particolarità delle prestazioni diagnostiche e/o terapeutiche o per le possibili conseguenze delle stesse sulla integrità fisica si renda opportuna una manifestazione inequivoca della volontà della persona, è integrativo e non sostitutivo del processo informativo di cui all’art. 30”. 175 Originalmente: “ha diritto di autodeterminarsi e di esprimere un valido consenso, anche laddove il rapporto professionale con il medico non derive da contratto”. TOMMASI, Sara. Consenso informato e disciplina dell’attività medica. Rivista Critica del Diritto Privato, Anno XXI-3, Settembre 2003, p. 557. 176 RODOTÀ, Stefano. La vita e le regole: tra diritto e non diritto. Milano: Feltrinelli Editore, 2006, p. 121. 177 A autora desta obra contesta a palavra “material” presente na redação da citada lei, como referido nas páginas precedentes. 178 Nesse sentido, é importante destacar que “La liberalità unita alla solidarietà diventa in molti casi l’unica forma giuridica dell’accordo che possa coinvolgere in maniera lecita il corpo umano. Si tratta delle ipotesi in cui sono imposti limiti legali al mercato o i confini sono tratti da una considerazione di valore attinta al grado di sviluppo di una cultura socialmente diffusa (il limite potrebbe seguire tracciati non identici all’interno di sistemi ispirati a tradizioni lontane dalla nostra o comunque potrebbe essere in quei contesti piú mobile e piú controverso)”. BRECCIA, Umberto and BUSNELLI, Francesco Donato. Liberalità e obbligazioni naturali, Estratto, p.293.


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obtenção do consentimento; 2.2 Não havendo um receptor específico, a aceitação não é um requisito179; 3. A doação do embrião humano possui finalidade extra-patrimonial, pois não pode ser considerada por lei como um direito submetido ao conceito de patrimônio; 4. A doação do embrião humano é baseada no elemento da gratuidade, pois o doador (o casal) não pode receber qualquer pagamento para efetuar esse ato; 5. O consentimento informado é um instrumento que expressa a “liberalidade” do ato de doação e isso legitima o processo de informação, o que reflete o respeito pela autodeterminação do casal e estabelece uma uniforme relação entre paciente, médico e pesquisador. Esse panorama abre caminho para a percepção de que a diversidade de elementos presentes na decisão do casal que se submete à FIV envolve questões referentes à conexão entre as denominadas “necessidade” e “possibilidade”. Como afirma José Roberto Goldim, o processo de consentimento informado deve ser adequado às circunstâncias associadas à terapia e à pesquisa. Quanto à terapia, o paciente busca o médico numa situação de necessidade, dentro de uma perspectiva de busca pela cura. Nesse sentido, a relação entre eles não é igual, e nesse contexto o consentimento informado é parte de um ato de cuidado (‘care’). Quanto à pesquisa, o pesquisador procura pessoas que possam participar ou contribuir ao seu estudo. O paciente recebe um convite do pesquisador180. Essas duas esferas mostram que necessidade é uma circunstância associada com a busca de cura do paciente que procura o médico, e possibilidade é a circunstância criada pelo convite do pesquisador ao paciente para a participação em determinado estudo. No caso da FIV, o casal submetido ao tratamento procura o médico num contexto de necessidade. Já a decisão de doação do embrião originado da FIV passa à esfera Cosimo Marco Mazzoni afirma que “Il contratto di donazione disciplinato nei codici civili continentali si ferma a metà del processo del dono. L’analisi giuridica non varva la soglia di ciò che avviene nei rapporti morali e solciali tra il donante e il donatario dopo l’accettazione di quest’ultimo. Nella tradizione romanistica la donazione è un contratto, che si perfeziona solamente col consenso del donatario. Questa vicenda, della donazione cioè che deve essere accettata per diventare tale, risulta ancor oggi incomprensibile ad un giurista di common law. Si tratta di un modello che risulta non estendibile per via analogica a pratiche donative diverse. Il dono degli organi o di sangue avviene tra persone distanti, che non si conoscono, che non hanno alcun rapporto diretto. Persone tra le quali non intercorre nessuna proposta e nessuna accettazione, pur necessarie alla conclusione del contratto. Impropria è dunque la qualifica di donazione che tuttavia molte legislazioni europee intitolano: ‘Donazione di sangue, ‘donazione di organi’. Il civilista continentale reagisce a questa violenza lessicale, affermando l’estraneità del modello contrattuale alla pratica del dono di parti del corpo umano”. MAZZONI, Cosimo Marco. Il dono è il dramma. Il dono anonimo e il dono despotico. Rivista Critica del Diritto Privato, Anno XX – 4, Dicembre 2002, pp. 516-517. 180 GOLDIM, José Roberto. O consentimento informado numa perspectiva além da autonomia. In DE SOUZA, Ricardo Timm, (Org) et all. Ciência e Ética: os grandes desafios. EDIPUCRS, 2006, p. 51. 179


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da possibilidade, quando o casal pode ser questionado quanto à doação dos seus embriões para pesquisa. Aqui, ambas as esferas mantêm sua delimitação, mas criam uma nova interface entre terapia e pesquisa, em que o casal ocupa um papel fundamental na construção da ponte entre esses contextos. Nessa relação que envolve o processo de consentimento, a quantidade de informação recebida também é fator que influencia a tomada de decisão. Um estudo revela que alguns casais sentem a ausência de um adequado aconselhamento, enquanto que outros acreditam que tiveram um excesso de informação, ou seja, uma quantidade de dados recebidos maior do que eles podem absorver181. É importante perceber que a informação visa garantir a participação voluntária do paciente, seu entendimento sobre os riscos e os benefícios, sendo tratada de forma confidencial. Por essas razões, “as informações contidas em formulários de consentimento devem ser adequadas aos níveis de desenvolvimento dos pacientes que, por sua vez, dizem respeito à sua capacidade de compreender”182. Uma abertura maior relativa à informação cria um vínculo de confiança entre paciente, médico e pesquisador. Um estudo indica que houve, na Suécia, em 2001, um amplo debate sobre o status dos embriões humanos183, não apenas quanto ao aspecto científico mas, também, social e religioso. Como a doação de embriões para outro casal infértil não é permitida pela legislação sueca, os casais poderiam optar pela doação à pesquisa ou pelo descarte dos mesmos. De acordo com o estudo, muitos casais veem a pesquisa como uma melhor opção. É interessante perceber que os casais que tiveram embriões que não poderão ser transferidos ou crioconservados recebem informação detalhada sobre projetos atuais que utilizam células-tronco e são questionados se doariam seus embriões para projetos específicos. O referido estudo acredita que o fato de apresentar projetos específicos e atuais, ao invés de hipóteses sobre o uso de células-tronco, contribuiu para o desejo de doar embriões por parte dos casais suecos. Esse processo de informação auxilia no entendimento entre a passagem da esfera BANKOWSKI, Brandon J., LYERLY, Anne D., FADEN, Ruth R., and WALLACH, Edward E. The social implications of embryo cryopreservation. Fertility and Sterility, Vol. 84, No. 4, October 2005, p. 825. 182 Originalmente: “information contained on consent forms should be appropriate to patients’ levels of development which, in turn, relate to their ability to comprehend”. RAYMUNDO, M. M. and GOLDIM, J.R. Moral-psychological development related to the capacity of adolescents and elderly patients to consent. Journal of Medical Ethics 2008;34, p. 602. 183 Observações deste parágrafo e estudo citado em: HUG, Kristina. Motivation to donate or not donate surplus embryos for stem-cell research: literature review. Fertility and Sterility, Vol. 89, No. 2, February 2008, p. 268. 181


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privada (tratamento) à esfera pública (pesquisa) no processo de decisão. Dessa forma, o consentimento informado é visto como um tipo de informação que não requer apenas conhecimento científico mas, também, conhecimento comunicacional. Por isso que “O consentimento informado (CI) é um processo dialogal no seio da relação médicopaciente”184. Quando a RDC nº 33/06 dispõe que o consentimento informado deve ser obtido antes da coleta, verifica-se a pressão temporal no processo de decisão do paciente, até mesmo porque “apresentá-lo apenas antes da intervenção não propicia avaliá-lo serenamente e supõe, praticamente, uma coerção”185. Nesse contexto, devese atentar e aprimorar a indicação feita na Resolução nº 2.121/2015, item V, 3, quando dispõe que “no momento da criopreservação, os pacientes devem expressar sua vontade, por escrito, quanto ao destino a ser dado aos embriões criopreservados em caso de divórcio, doenças graves ou falecimento, de um deles ou de ambos, e quando desejam doá-los”. Onora O’Neill acredita que pacientes que possuem acesso ao que ela chama de “extendable information” e que podem utilizar a opção do “rescindable consent” possuem poder de veto nesse procedimento, o que evita que alguém possa ser coagido nesse processo de decisão186. A retirada do consentimento deve fazer parte do processo, especialmente porque os avanços biomédicos podem modificar o entendimento ou as circunstâncias iniciais de determinado tratamento ou situação clínica. O Report of the International Bioethics Committee of UNESCO sobre Consentimento indica que “o consentimento pode ser retirado a qualquer momento até que essa retirada se torne impossível, por exemplo, quando o tecido autorizado para uso em pesquisa já se tornou anônimo. O paciente é autônomo e decide qual lhe parece ser o melhor caminho de ação ou não-ação”187. Originalmente: “El consentimiento informado (CI), es un proceso de dialogo en el seno de la relación médico paciente”. TRÍAS, Octavi Quintana. Bioética y Consentimiento Informado. In CASADO, María (Ed). Materiales de Bioética y Derecho. Barcelona: Cedecs Editorial S.L., 1996, pp. 162 and 164. 185 Originalmente: “presentárselo justo antes de la intervención impide considerarlo serenamente y supone prácticamente una coacción”. TRÍAS, Octavi Quintana. Bioética y Consentimiento Informado. In CASADO, María (Ed). Materiales de Bioética y Derecho. Barcelona: Cedecs Editorial S.L., 1996, p. 169. 186 Diz a autora: “It is true that exercising the veto may come at a price for patient: if I do not consent to surgery I do not get it. But for research subjects the cost of refusal is only exclusion from a study, and for tissue donors only the loss of an opportunity to be generous. This way of looking at informed consent seems to me not only to reduce possibilities of deception and coercion, but to make it plain to patients, research subjects, and tissue donors that they may determine how far they will be informed, and that (when it is technically possible) they remain free to rescind their initial choice. Where these standards are met, there are reasonable assurances that nobody is coerced or deceived”. O’NEILL, O. Some limits of informed consent. Journal of Medical Ethics, 2003;29, p. 6. 187 Originalmente: “consent may be withdrawn at any time until such withdrawal becomes impossible, for example when the tissue one has consented to be used in a study has already been anonymized. The patient is autonomous and decides on what appears to him/her to be the best course of action or non-action”. Report of the International Bioethics Committee of UNESCO (IBC) on Consent. UNESCO 2008, p. 17. 184


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Ele assume, dessa forma, sua responsabilidade. No contexto da FIV, o casal precisa saber que “pode retirar o consentimento para doação a qualquer momento anterior ao efetivo uso dos embriões num projeto de pesquisa”188. Essas afirmações não estão isentas de questionamento judicial. Um exemplo dessa circunstância é o conhecido caso Evans v. United Kingdom. Em 2005, a Corte Europeia de Direitos Humanos foi demandada a se pronunciar sobre legislação inglesa que possibilitava que tanto o homem quanto a mulher que tivessem gametas congelados poderiam retirar seu consentimento a qualquer momento, desde que anterior à implantação dos embriões. Em 12 de julho de 2000, a Sra. Evans e seu companheiro começaram tratamento para infertilidade, mas alguns meses depois foi diagnosticado que a Sra. Evans estava com câncer nos ovários, e que eles teriam de ser removidos. Mesmo assim, seria possível extrair óvulos para posterior fertilização in vitro. O casal estava ciente de que poderiam retirar seu consentimento a qualquer momento antes da implantação de embriões no útero da Sra. Evans, de acordo com o disposto no Human Fertilisation and Embryology Act 1990, que regula as questões reprodutivas no Reino Unido. O casal assinou o documento, embriões foram criopreservados, mas o relacionamento do casal acabou, e o companheiro da Sra. Evans requereu a destruição desses embriões. A partir dessa situação, ela entrou com um pedido na “High Court” inglesa solicitando que seu ex-companheiro refizesse o consentimento, declarando que não mais o alteraria. A “First Instance Decision” rejeitou o pedido da Sra. Evans, bem como a “Court of Appeal”, ao considerar que “a política do Human Fertilisation and Embryology Act 1990 (Reino Unido) consiste em garantir o consentimento contínuo de ambas as partes desde o início do tratamento, até a implantação do embrião”189. Um outro argumento suscitado diz respeito ao entendimento de que embriões não estão sob proteção de acordo com o Art 2190, pois na legislação inglesa entende-se Originalmente: “that they can withdraw their consent for donation at any time before the embryos are actually used in the research study”. PORZ, Rouven; BÜRKLI, Peter; BARAZZETTI, Gaia; SCULLY, Jackie Leach; REHMANN-SUTTER, Christoph. A challenge choice: donating spare embryos to stem cell research in Switzerland. Swiss Medical Weekly 2008;138(37-38), p. 555. 189 Originalmente: “the policy of the Human Fertilisation and Embryology Act 1990 (UK) was to ensure the continuing consent of both parties from the commencement of treatment to the point of implantation of the embryo”. Citações deste parágrafo e descrição do caso em: FRECKELTON, Ian. In vitro fertilization and the limits of consent. Journal of Law and Medicine, Volume 14, Number 3, February 2007, p. 321. The author refers to the “Convention for the Protection of Human Rights and Fundamental Freedoms”, Council of Europe, 4.XI.1950. 190 Article 2 – Right to life. 1. Everyone’s right to life shall be protected by law. No one shall be deprived of his life intentionally save in the execution of a sentence of a court following his conviction of a crime for which this penalty is provided by law. 2. Deprivation of life shall not be regarded as inflicted in contravention of this article when it results 188


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que ele não possui direitos ou interesses independentes. Em 29 de novembro de 2004, a “House of Lords” recusou o pedido de apelo da Sra. Evans contra essa decisão. Ela, então, levou seu caso à Corte Europeia de Direitos Humanos. A referida Corte reexaminou a questão da retirada de consentimento por parte das pessoas envolvidas em tratamento de reprodução assistida no Art 5 da Convention on Human Rights and Biomedicine da Comissão Europeia, ao dispor que “uma intervenção no domínio da saúde só pode ser realizada depois que a pessoa em causa tiver dado o seu consentimento livre e esclarecido para tanto. Essa pessoa deverá receber previamente a informação adequada quanto ao objetivo e natureza da intervenção, bem como sobre as suas consequências e riscos. O interessado pode, livremente, retirar seu consentimento a qualquer momento”191. Foi, ainda, referido o Art 6192 da Declaração Universal de Bioética e de Direitos Humanos e aplicada a decisão Vo v. France (2004) da própria corte, que entendeu que, “na ausência de consenso europeu sobre a definição científica e legal do início da vida, a questão de quando o direito à vida começa vem dentro de uma ‘margem de apreciação’ que os tribunais, de maneira geral, entendem que os Estados devem observar”193. Dessa forma, de acordo com a posição da lei inglesa e decisões judiciais, o embrião não possui interesses e direitos independentes e não pode requerer ou ter quem requeira seu direito à vida, em face da não violação ao Art. 2. No contexto brasileiro, a Resolução nº 2.013/2013 trouxe outros aspectos que merecem análise futura e específica. Deve-se atentar, na relação entre a bioética e os direitos humanos, elementos que preservem o adequado processo de informação das partes e a não instrumentalização dos embriões criopreservados. O item V, 4, do referido documento inovou ao dispor que “Os embriões criopreservados com mais from the use of force which is no more than absolutely necessary: a. in defence of any person from unlawful violence; b. in order to effect a lawful arrest or to prevent the escape of a person lawfully detained; c. in action lawfully taken for the purpose of quelling a riot or insurrection. 191 Originalmente: “an intervention in the health field may only be carried out after the person concerned has given free and informed consent to it. This person shall beforehand be given appropriate information as to the purpose and nature of the intervention as well on its consequences and risks. The person concerned may freely withdraw consent at any time”. 192 Art 6 (1): Any preventive, diagnostic and therapeutic medical intervention is only to be carried out with the prior, free and informed consent of the person concerned, based on adequate information. The consent should, where appropriate, be express and may be withdrawn by the person concerned at any time and for any reason without disadvantage or prejudice. 193 Originalmente: “in the absence of any European consensus on the scientific and legal definition of the beginning of life, the issue of when the right to life begins comes within the ‘margin of appreciation’ which the court generally considers that states should enjoy”. Citações deste parágrafo em: FRECKELTON, Ian. In vitro fertilization and the limits of consent. Journal of Law and Medicine, Volume 14, Number 3, February 2007, p. 322.


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de 5 (cinco) anos poderão ser descartados se esta for a vontade dos pacientes, e não apenas para pesquisas de células-tronco, conforme previsto na Lei de Biossegurança”. Essa redação foi pouco alterada na Resolução nº 2.121/2015 (que revogou a Resolução nº 2.013/2013), indicando, sempre no item V, 4, que “Os embriões criopreservados com mais de cinco anos poderão ser descartados se esta for a vontade dos pacientes. A utilização dos embriões em pesquisas de células-tronco não é obrigatória, conforme previsto na Lei de Biossegurança”. Por ser norma deontológica, não há resposta definitiva quanto a uma possível alegação de violação da Lei de Biossegurança caso seja realizada a prática indicada na Resolução. Há um necessário cuidado na elaboração normativa, para que teoria e prática possam ser associadas adequadamente e realizarem suas devidas funções em prol da nossa sociedade. Nos dizeres de Stefano Rodotà, “(...) é a mudança da regra, em muitos casos, a permitir a remoção do impedimento, do vínculo. O obstáculo pode consistir não na presença do direito, mas em um seu peculiar modo de atuar” 194. Uma outra circunstância presente na Resolução nº 2.121/2015 do CFM refere-se à gestação de substituição, que traz outros elementos e situações que expandem ainda mais a reflexão sobre o tema. Esse assunto será abordado nas próximas linhas, estabelecendo conexões com vários aspectos já descritos e, sobretudo, suscitando a análise crítica na relação entre a bioética e os direitos humanos. 4.2 Gestação de substituição A gestação de substituição é uma técnica que decorre do avanço dos estudos relativos à reprodução assistida. O elemento que diferencia essa prática reside na participação de uma terceira pessoa, especificamente de um “ventre de terceiro”195, que irá compor a relação entre o casal que deseja ter seu filho, mas que não pode, efetivamente, gestar e, assim, participar do desenvolvimento físico da gravidez. A definição dessa técnica é de grande importância, pois tem-se verificado uma certa variedade de expressões que podem levar à ambiguidade ou à interpretação errônea dessa possível prática em relação ao ordenamento jurídico brasileiro. A expressão “gestação de substituição” é utilizada na Resolução CFM nº 2.121/2015, Originalmente: “(…) è il cambiamento della regola, in molti casi, a consentire la rimozione dell’impedimento, del vincolo. L’ostacolo può consistere non nella presenza del diritto, ma in un suo particolare modo di attegiarsi”. RODOTÀ, Stefano. La vita e le regole: tra diritto e non diritto. Milano: Feltrinelli Editore, 2006, p. 23. 195 As técnicas de reprodução assistida “também podem utilizar esperma, óvulo e o ventre de terceiros que não farão parte do crescimento da criança”. ASCH, Adrienne and MARMOR, Rebecca. Assisted reproduction. From Birth to Death and Bench to Clinic: The Hastings Center Bioethics Briefing Book for Journalists, Policymakers, 2008-2009, p. 6. 194


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em seu item VII196. Entre parênteses, ao lado dessa nomenclatura, lê-se “doação temporária do útero”, e se verifica que o item VII não mais se utiliza de “gestação de substituição”, passando a referir, nos demais tópicos do item, “doação temporária do útero”. Não há uma explicação definida, no documento, a respeito dessas duas denominações, o que deixa uma inadequada abertura na interpretação da técnica, em virtude de termos que possuem diferentes significados. Falar em “gestação de substituição” remete à palavra de língua inglesa “surrogacy”, que advém de “surrogate”: um substituto, alguém que irá substituir outra pessoa em alguma específica situação ou tarefa197. Remete-se a origem dessa palavra ao século XVII, do latim “surrogatus”, particípio passado de “surrogare”, que quer dizer “eleito como um substituto”. Há referências bíblicas que remetem a essa percepção, como aquela descrita no Livro do Gênesis, em que Sara pede a Abraão que ele tenha um filho com Agar, serva da casa: “(...) rogo-te que tomes a minha escrava, para ver se, ao menos por ela, eu posso ter filhos”198. Na passagem do tempo e através das transformações sociais, culturais e tecnológicas, os casos que chegaram pela primeira vez a conhecimento do público e dos tribunais ocorreram na década de 1980, na Inglaterra e nos Estados Unidos. O denominado caso “Baby Cotton” retrata o primeiro caso comercial de gestação de substituição na Inglaterra, quando Kim Cotton recebeu £ 6.500,00 para ter um bebê para um casal de estrangeiros, em um acordo intermediado através de uma agência americana. Kim Cotton não conheceu o pai norte-americano que entregou seu material genético para fertilização. O caso ocorreu em 1985, e a criança foi mantida sob a guarda do tribunal depois de seu nascimento e cuidada por enfermeiras até a decisão judicial que determinou que ela deveria ser adotada pelo casal, pois o juiz considerou que Cotton “tinha voluntariamente renunciado dos seus direitos e que não havia ninguém melhor preparado para cuidar da criança do que o pai biológico e sua esposa”199. Resolução CFM nº 2.013/13 - VII - SOBRE A GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO (DOAÇÃO TEMPORÁRIA DO ÚTERO). As clínicas, centros ou serviços de reprodução humana podem usar técnicas de RA para criar a situação identificada como gestação de substituição, desde que exista um problema médico que impeça ou contraindique a gestação na doadora genética ou em caso de união homoafetiva. 197 “Surrogate: a substitute, especially a person deputizing for another in a specific role or office” (Oxford Dictionaries). 198 Bíblia Sagrada. Livro do Gênesis, 16. São Paulo: Editora Ave-Maria Ltda., 1994, p. 61. 199 Originalmente: “had voluntarily relinquished her rights and that no one was better equipped to care for the child than the biological father and his wife”. EDELMANN, Robert J. Psychological assessment in ‘surrogate’ motherhood relationships. In COOK, Rachel, SCLATER, Shaley Day and KAGANAS, Felicity. Surrogate motherhood: international perspectives. Oregon: Hart Publishing, 2003, p. 146. 196


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O caso conhecido como “Baby-M” ocorreu nos Estados Unidos, também em 1985, quando os casais Whitehead e Stern formalizaram um acordo em que a técnica seria utilizada para a formação de uma criança. William e Elizabeth Stern, em virtude de condições médicas adversas da parte de Elizabeth, não puderam ter filhos. Eles possuíam uma estável situação econômica, e o desejo de terem um filho com caracteres genéticos de um deles, especialmente pela origem judia de William, fizeram com que procurassem o “Infertility Center of New York”, um Centro de Infertilidade inaugurado em 1981 pelo advogado Noel Keane. Em contrato estabelecido com Richard e Mary Beth Whitehead, o casal Stern pagou U$ 10.000,00 ao casal Whitehead, com o propósito de realizar inseminação artificial de esperma de William para gestação de Mary Beth, sendo que, em caso de gravidez, a criança seria entregue ao casal Stern ao nascer. O procedimento já era, então, conhecido como “traditional surrogacy”200 (substituição tradicional). O dilema que envolve esse caso reside no fato de que Mary Beth se negou a entregar a criança (uma menina) ao casal Stern após seu nascimento. Houve uma forte repercussão do caso no país, com ingresso de ação judicial e decisão da Suprema Corte de New Jersey, que considerou ilegais os contratos que envolviam a gestação de substituição, mas concedeu a custódia da menina para o casal Stern, com fundamento no denominado “melhor interesse da criança”201. A classificação referente aos procedimentos relacionados à gestação de substituição indica sua composição em dois tipos: a genética (ou tradicional) e a gestacional202. A substituição genética ou tradicional ocorre quando a “mãe substituta” é, também, a mãe genética da criança em formação, e a concepção é realizada com material genético do denominado “pretenso pai” (“intending father”). Nesse caso, pode não haver participação de intervenção médica. Na substituição gestacional, o procedimento ocorre em clínicas que irão transferir o embrião formado pelo material genético dos pretensos pais, ou de material genético do pai e de uma doadora de óvulo. Conforme relatado, o caso Baby-M envolveu a denominada “substituição tradicional”. “Mary Beth agreed to be artificially inseminated with Bill’s sperm and, if she became pregnant, to give the baby to the Sterns to raise as theirs in an arrangement known generally as traditional surrogacy”. SANGER, Carol. Developing markets in baby-making: in the matter of Baby-M. Harvard Journal of Law & Gender, vol. 30, 2007, p. 68. 201 Maiores referências quanto a este caso em: SANGER, Carol. Developing markets in baby-making: in the matter of Baby-M. Harvard Journal of Law & Gender, vol. 30, 2007, p. 69. 202 JADVA, V., BLAKE, L., CASEY, P. and GOLOMBOK, S. Surrogacy families 10 years on: relationship with the surrogate, decisions over disclosure and children’s understanding of their surrogacy origins. Human Reproduction, Vol. 27, No. 10, pp. 3008-3014, 2012. 200


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Nesse sentido, a Resolução do CFM sobre o tema utiliza-se, também, da expressão “doação temporária de útero”. É importante ressaltar, inicialmente, a palavra “doação” e o instituto jurídico a ela relacionado. O art. 538 do Código Civil (CC) considera a doação “o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra”. Portanto, tem-se uma espécie contratual em que há a transferência de bem ou vantagem. A reflexão que deve ser feita, nesse contexto, é a caracterização (ou não) do útero como um bem ou uma vantagem (pois a expressão é clara em falar do útero, e não da criança em gestação). Aqui surge, inicialmente, uma dificuldade de interpretação quanto à transferência do útero, pois ele não será retirado do corpo da mulher que irá se dispor a gestar (e, assim, não será entregue para outra pessoa). Talvez, portanto, a Resolução refira-se, logo após, ao termo “temporária”. Contudo, essa inclusão não esclarece o instituto em si, pois falar em doação temporária remete a uma espécie de cláusula de reversão da doação, que existe no âmbito jurídico, mas que se caraceriza como “uma espécie de doação condicional”203, o que, portanto, se torna de difícil aplicação a esse caso. Pensa-se que, sendo assim, é possível chegar a uma confusão entre os caminhos adequados dessa prática: se a doação temporária é do útero, e se for requerida, em algum momento, a revogação dessa doação, como será ela possível se houver, em processo, uma gestação? Será possível não querer mais a criança que está no ventre doado temporariamente? Esses questionamentos levam a uma certa ambiguidade dos chamados “meios” e “fins”: se o útero não é, nesse caso, fim em si mesmo, mas sim um meio para o fim, que seria a formação e a entrega, ao casal, de uma criança assim desejada, seria realmente possível falar da criança como um fim sem que ela se torne “coisa” ou “bem” passível de negociação? Por isso, nesse contexto, é fundamental a atenção com as palavras, pois também é importante referir a gratuidade do ato de doação, o que constrasta com a errônea e disseminada expressão “barriga de aluguel” quanto à prática da gestação de substituição. Os questionamentos suscitados serão retomados no decorrer desta obra, especialmente porque eles tratam de temas fundamentais inerentes à dignidade da pessoa humana e ao papel da mulher em diversas sociedades e culturas, bem como Espécie de doação referida por Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery em “Código Civil Comentado”, indicando, ainda, o art. 547 neste sentido: “O doador pode estipular que os bens doados voltem ao seu patrimônio, se sobreviver o donatário”. NERY JUNIOR, Nelson Nery e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.

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à formação do ser humano e à impossibilidade de instrumentalização do mesmo no atual contexto mundial, afirmação que deve ser mantida viva e acesa em nossa sociedade. Para tanto, a análise de alguns dos aspectos ético-legais que envolvem o tema pode auxiliar nessa reflexão. No debate acerca da prática da gestação de substituição, é importante referir que os avanços biomédicos e a efetividade da implementação de novas técnicas no âmbito da reprodução assistida modificaram a percepção da formação familiar. A família da antiga Roma possuía, nesse sentido, uma configuração diferente da atual, com a centralidade da figura do “pater familias”; na passagem do tempo, as estruturas familiares e seus membros assumiram novas posturas, e o contexto brasileiro também é palco de diversas transformações. Contudo, “uma coisa se mantém estável: a família permanece sendo o locus fundamental de desenvolvimento do ser humano, apresentando-se como uma constante em todas as culturas, ainda que com certas peculiaridades”204. Neste contexto, há um núcleo de elementos favoráveis à possibilidade de gestação de substituição, como o já citado avanço das tecnologias biomédicas e, assim, o acesso à prática para casais que enfrentam dificuldades no âmbito procreativo e gestacional. Associa-se a esse panorama a percepção do debate dos chamados “direitos reprodutivos” da mulher, no sentido de sua autonomia pela própria redefinicação de questões sociais e culturais que poderiam afetar seu poder decisório quanto à maternidade. Este mesmo aspecto favorável pode, entretanto, se tornar desfavorável. De acordo com o contexto sócio-cultural, a liberdade conquistada na esfera procreativa é revertida e desvirtuada: a comercialização do corpo feminino através do “aluguel” do útero, por exemplo, denota uma possível instrumentalização da prática da gestação de substituição, especialmente em países onde o ressarcimento em dinheiro é proibido, como no Brasil. Tem-se, ainda, um debate importante acerca das “casas das substitutas”, originalmente “house of surrogates”, situação que ocorre na Índia e quem tem sido alvo de necessárias reflexões na interface entre os direitos humanos e a vulnerabilidade humana. Verifica-se que este mesmo acesso às técnicas e inovações na área biomédica pode levar da inclusão à exclusão: registra-se o denominado “turismo procreativo”, ou GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da, e ORLEANS, Helen Cristina Leite de Lima. Responsabilidade civil nas relações familiares. Revista Brasileira de Direito das Família e Sucessões, Ano XIII, nº 24, out-nov 2011, p. 85.

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seja, a possibilidade de casais com elevados recursos financeiros de terem verdadeiro acesso à gestação de substituição em outros países, quando o seu próprio país não autoriza esta prática. Desta forma, o procedimento igualitário e amplo no âmbito da formação social desvirtua-se e, inclusive, pode levar a discussões de nacionalidade que serão vistos a seguir. Vale lembrar, também, outra situação que tem se popularizado com a denominação “fábrica de bebês”: reportagens divulgaram que um empresário japonês se tornou suspeito de utilizar a gestação de substituição para ter vários filhos com mães diferentes e, depois, vendê-los. O fato ocorreu na Tailândia, destino de muitos casais que recorrem à técnica205. O panorama internacional a respeito da gestação de substituição demonstra a diversidade de posições sobre o tema. Um dos problemas que decorre dessa prática é o registro civil da criança nascida desse procedimento, especialmente quando ocorrido em país estrangeiro – novamente, o fenômeno do “turismo procreativo”. Há países que permitem, proíbem ou que se encontram em posição intermediária a respeito dessa prática. Essa constatação demonstra, por exemplo, que o debate referente à gestação de substituição não possui um panorama hegemônico. Um estudo comparativo realizado pelo Parlamento Europeu descreve, em seu “resumo” (“abstract”), que o trabalho fornece uma visão preliminar da ampla gama de preocupações políticas relacionadas com o tema, considerado uma prática que atua em âmbitos nacionais, europeus e globais, e conclui que “é impossível indicar uma tendência legal específica para toda a União Europeia. No entanto, todos os Estados-Membros parecem estar de acordo sobre a necessidade de uma criança ter claramente definidos seus pais legais e estado civil”206. Nesse contexto, alguns países adotam a denominada “substituição altruísta”, ou “altruistic surrogacy”, como a Bélgica e a Dinamarca, em que não há pagamento para que seja realizada essa prática. Contudo, não há uma lei específica sobre o tema, os contratos estabelecidos entre as partes não possuem força vinculante, e a adoção da criança é necessária para que seja feito o adequado trâmite legal sobre a paternidade207. Em alguns estados dos Estados Unidos (como a Califórnia) e na Índia, tem AVANCINI ALVES, Cristiane. Fábrica de bebês. Jornal Zero Hora, 23 de agosto de 2014, p. 22. 206 Originalmente: “The study concludes that it is impossible to indicate a particular legal trend across the EU, however all Member States appear to agree on the need for a child to have clearly defined legal parents and civil status”. Título: A Comparative Study on the Regime of Surrogacy in EU Member States. European Parliament, manuscript completed in May 2013. European Union, 2013. Disponível em: http://www.europarl.europa.eu/studies. Acesso em 30 de janeiro de 2014. 207 A Comparative Study on the Regime of Surrogacy in EU Member States. European Parliament, manuscript completed in May 2013. European Union, 2013. Disponível em: http://www.europarl.europa.eu/studies. Acesso em 30 de janeiro de 2014. 205


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se a denominada “comercial surrogacy”, ou “substituição comercial”, em que há o pagamento do casal que busca essa prática para que possa dar continuidade ao seu desejo de formação familiar. Nos EUA, há organizações que facilitam o contato entre as partes e contratos legais são estabelecidos entre o casal e a mulher que fará o procedimento de gestação208. No caso específico da Índia, é necessário estabelecer outra reflexão, que será dissertada nas próximas linhas, principalmente em virtude do papel da mulher nesse contexto. Nessa perspectiva, o procedimento adotado no Reino Unido suscita amplo debate, pois emprega uma prática que se posiciona entre as duas situações: há proibição de procedimento no âmbito comercial, mas apenas o pagamento das chamadas “reasonable expenses”, ou seja, os gastos razoáveis para que a gestação seja levada adequadamente a termo. O “Surrogacy Arrangements Act 1985”, que trata do tema, passou por ajustes e modificações no decorrer dos anos. O debate acerca do assunto tem suscitado opiniões antagônicas sobre a força vinculante dos contratos e, ao mesmo tempo, sobre a não criminalização das partes, considerando, de um lado, a proteção quanto à vulnerabilidade da mulher e da criança e, do outro, o desencorajar dessa mesma prática209. Na Europa, dentre os países que proíbem a gestação de substituição, estão a Itália, a França, a Espanha e a Alemanha, que possuem dispositivos específicos sobre o tema. Na Itália, a Lei 40/2004, que trata sobre reprodução assistida, dispõe, em seu art. 12, 6, que qualquer pessoa que realizar, organizar ou publicizar, de qualquer forma, a comercialização de gametas ou de embriões ou a gestação de substituição, será punida com a pena de reclusão de três meses a dois anos, e multa de 600.000,00 a um milhão de euros210. A impossibilidade de realizar a gestação de substituição é um dos fatores que estabeleceu uma nova expressão, já referida anteriormente, para o processo de busca de técnicas de reprodução assistida em outros países, que não o de origem do casal que busca determinado procedimento: “turismo procreativo”. Esta expressão suscita JADVA, V., BLAKE, L., CASEY, P. and GOLOMBOK, S. Surrogacy families 10 years on: relationship with the surrogate, decisions over disclosure and children’s understanding of their surrogacy origins. Human Reproduction, Vol. 27, No. 10, pp. 3008-3014, 2012. 209 HORSEY, Kirsty e SHELDON, Sally. Still hazy after all these years: the law regulating surrogacy. Medical Law Review, 20, Winter 2012, pp. 67–89. 210 Originalmente: “Legge 40/2004 - Art. 12, 6. Chiunque, in qualsiasi forma, realizza, organizza o pubblicizza la commercializzazione di gameti o di embrioni o la surrogazione di maternità è punito con la reclusione da tre mesi a due anni e con la multa da 600.000 a un milione di euro”. Disponível em: http://www.camera.it/parlam/leggi/04040l. htm. Acesso em 31 de janeiro de 2015. 208


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diferentes questionamentos, especialmente ligados ao acesso ao serviço buscado e, sobretudo, às consequências que advêm da realização de procedimento proibido no país de origem, mas permitido naquele em que se vai realizar o procedimento. No caso da gestação de substituição, há situações legais que envolveram casais italianos que efetuaram essa prática em países como a Índia e a Ucrânia. O ponto em debate refere-se ao registro civil da criança ao ingressar na Itália. Um exemplo diz respeito a um homem de 48 anos, e a esposa, de 54 anos: ela, por ser paciente em tratamento oncológico, decidiu, juntamente com o marido, realizar o procedimento de fecundação heteróloga e recorrer à gestação de substituição na Índia. O casal foi acusado de “alteração de estado”, em razão dos registros efetuados no Consulado Geral Italiano na Índia e sua transcrição no registro da cidade de Milão. A decisão levou à absolvição do casal, alegando a extrema incerteza jurídica dos contratos realizados na Índia, mas considerando como importante a valoração do momento de formulação do certificado de nascimento: procurou-se, nesse sentido, equilibrar a normativa indiana que possibilita o registro e o âmbito de autonomia privada do casal que recorreu ao procedimento211. Foi ressaltada, ainda, a atenção que se deve ter, na atualidade, com os avanços tecnológicos e a combinação dos mesmos no âmbito da contratualização das formas de procriação. Em semelhante situação, dessa vez ocorrida na Ucrânia, o judiciário italiano absolveu um casal, tendo por fundamento o princípio da responsabilidade procreativa, no sentido de proteção da tutela da prole, seja quando se faz referência à procriação natural quanto à artificial. A decisão considerou que recorrer à fecundação heteróloga em país que emana certificado autêntico de paternidade e maternidade autoriza o reconhecimento do mesmo na Itália para fins de transcrição no Ufficio di Stato Civile. Esse debate suscita um aspecto interessante de análise dos ordenamentos jurídicos e dos princípios constitucionais europeus: por um lado, há o debate a respeito da denominada manutenção da ordem pública através do respeito aos valores e normativas comuns estabelecidos pelas convenções internacionais e, por outro lado, a importância da verificação do melhor interesse da criança associada à livre circulação de pessoas na Comunidade Europeia212. O artigo 16-7 do Código Civil Francês entende que qualquer acordo que verse Redazione Milano online, “Utero in affitto in India, assolta coppia di coniugi milanesi”. Disponível em: http://milano. corriere.it/notizie/cronaca/14_aprile_08/utero-affitto-india-assolta-coppia-coniugi-milanesi-0aa83340-bf17-11e39575-baed47a7b816.shtml. Acesso em 25 de junho de 2014 . 212 BARUFFI, Maria Caterina. Maternita’ surrogata e questioni di status nella giurisprudenza italiana ed europea. Int’l Lis, 2010, 1, 20. 211


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sobre gestação de substituição será nulo213. Um estudo sobre o tema revela que, para contornar essa proibição, há casais que se dirigem a países onde é possível a prática da gestação de substituição214. Contudo, ao retornar ao país de origem, o problema surge no ato da transcrição do registro de nascimento obtido no Exterior para a efetivação do estado civil francês e, assim, para o reconhecimento da filiação da criança nascida desse procedimento. O referido trabalho retrata o caso de um casal francês que realizou fertilização in vitro na Califórnia, e desse procedimento nasceram duas crianças com o auxílio de gestação de substituição. A Corte californiana reconheceu a filiação do casal francês em relação às duas crianças. No retorno à França, o Ministério Público arguiu a anulação da transcrição por entender que o mesmo seria um atentado à ordem pública, mesmo sem ter havido contestação quanto à validade dos atos expedidos na Califórnia. A Corte de Apelação de Paris manteve a decisão de primeira instância, no sentido de que a não transcrição dos atos relacionados ao registro civil das crianças traria consequências contrárias ao bem-estar das mesmas, indo de encontro ao melhor interesse delas e de sua filiação e relação com os pais biológicos. Na mesma linha, a Espanha, no art. 10 da Ley 14/2006, dispõe que será nulo o contrato que envolva a gestação de substituição, com ou sem preço, através de mulher que renuncia à filiação materna a favor do contratante ou de um terceiro215. Assim como na França, há divergências quanto à aplicabilidade da lei. Na Espanha, as instruções da “Dirección General de los Registros y del Notariado” tratam do regime registral da filiação e, no que diz respeito à gestação de substituição, foram estabelecidas, em documento publicado em outubro de 2010, as seguintes diretrizes: 1) necessidade, para a inscrição do menor que tenha nascido no Exterior mediante gestação de substituição, que haja resolução judicial que determine a filiação; 2) para que seja efetuada a inscrição no registro civil espanhol, é necessária a solicitação e o ato judicial que coloque termo ao procedimento de “exequatur”; 3) controle registral de que a decisão estrangeira e demais documentos tenham sido formulados de maneira regular e autêntica e que haja equivalência de direitos e garantias relativos ao ordenamento espanhol, bem como a constatação de não violação do melhor interesse da criança e dos direitos da gestante, devendo-se verificar se ela prestou Code civil l’article 16-7, selon lequel “toute convention portant sur la gestation pour le compte d’autrui est nulle”. Disponível em: http://www.legifrance.gouv.fr/. Acesso em 31 de janeiro de 2015 214 Étude de législation comparée n°182 - janvier 2008 - La gestation pour autrui. Service des études juridiques (janvier 2008). Disponível em: http://www.senat.fr/lc/lc182/lc1820.html. Acesso em 25 de junho 2014. 215 Ley 14/2006, de 26 de mayo, sobre técnicas de reproducción humana assistida. Artículo 10. Gestación por sustitución. 1. Será nulo de pleno derecho el contrato por el que se convenga la gestación, con o sin precio, a cargo de una mujer 213


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livre e voluntário consentimento para a prática da gestação; 4) não bastam, apenas, simples declaração e atestado médico sobre o nascimento sem constar a identidade da gestante. Verifica-se, portanto, que “o conflito surge entre a normativa da Lei 14/2006 e a instrução de 5 de outubro de 2010, já que a primeira indica a nulidade de pleno direito do contrato de gestação de substituição, e a segunda faz referência ao regime registral dos nascidos mediante esse contrato, e a inscrição das crianças quando um dos pais é espanhol”216. A gestação de substituição não possui uma explícita proibição ou punição na Alemanha, mas a interpretação conjunta a respeito de adoção de criança nascida através desse procedimento leva à aplicação de sanções, bem como à ineficácia e não vinculação dos acordos que envolvam essa prática. Ainda, a “Lei de proteção ao embrião” dispõe que nenhum médico deve realizar inseminação artificial ou doação de embriões em uma mulher que esteja disposta a entregar a criança após o nascimento para pais que tenham pago por esse procedimento. Nesse contexto, os tribunais alemães nunca aprovaram pagamentos ou ressarcimentos no que diz respeito à gestação de substituição, por ela não ser autorizada. O ponto que traz maiores questionamentos refere-se à nacionalidade e à filiação. Apesar do quadro legal referente à gestação de substituição, os juízes alemães atuam com discrição em relação às regras de adoção, em particular quanto ao artigo §1741 (1) BGB, que pode servir como uma base legal para as decisões sobre o tema, sob a condição de respeito em relação ao melhor interesse da criança, mesmo nos casos de gestação de substituição. Uma vez que a filiação paterna é estabelecida, a mulher que não gestou a criança poderia vir a requerer a sua adoção, fato que já foi confirmado por vários tribunais do país217. A referência à possibilidade de pagamento quanto à prática de gestação de substituição nos EUA traz outros elementos que demonstram a diversidade de respostas legislativas no país, em virtude das diferentes posições assumidas sobre o tema em alguns estados norte-americanos. Conforme já referido, há agências que auxiliam que renuncia a la filiación materna a favor del contratante o de un tercero. Disponível em: http://www.boe.es. Acesso em 31 de janeiro de 2015. 216 Originalmente: “El conflicto surge entre la normativa de la Ley 14/2006 y la Instrucción de 5 de octubre de 2010, ya que la primera indica la nulidad de pleno de derecho del contrato de gestación por sustitución, y la segunda hace referencia al régimen registral de los nacidos mediante este contrato, y la inscripción de los niños cuando un progenitor es español”. FERNÁNDEZ, Francisca Ramon. La protección del menor en los casos de gestación por sustitución: análisis de diversos supuestos prácticos. Revista sobre la infancia y la adolescencia, 6, 38-50, Marzo 2014. 217 Considerações presentes em: A Comparative Study on the Regime of Surrogacy in EU Member States. European Parliament, manuscript completed in May 2013. European Union, 2013. Disponível em: http://www.europarl.europa. eu/studies. Acesso em 30 de janeiro de 2014.


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nesse procedimento, como no Estado da Califórnia. Anúncios disponíveis na internet expõem, por exemplo, que a Califórnia é um lugar especial para o procedimento de substituição, pois sua legislação autoriza que o nome dos pais que buscam essa prática apareça na certidão de nascimento da criança logo após o nascimento, não sendo necessário o processo de adoção218. Esse cenário pode, contudo, levar às divergências citadas, como no caso Jaycee B vs. Supreme Court of Orange County. Durante a gestação de substituição, o casal que havia contratado o procedimento decidiu se divorciar. Nesse contexto, prévio ao nascimento da criança, o futuro pai entendeu que não era obrigado a pagar pelos custos do procedimento e do posterior sustento da criança, ao alegar que não era geneticamente vinculado ao ser em gestação, que não seria a sua exesposa a dar à luz à criança, e que ele nunca havia, formalmente, adotado o antes considerado futuro filho. A particularidade de cada caso, associada ao rápido desenvolvimento de novas tecnologias nessa área, e a diversidade de posicionamentos a respeito do tema leva ao questionamento da importância de harmonização legislativa no país219. Um elemento que suscita forte debate diz respeito, efetivamente, ao fator financeiro envolvido nesse processo. As diferentes posturas assumidas em diversos países revelam como essa mesma questão econômica está conectada às diferenças sociais e culturais de cada população. Quando o recorte de análise é feito com base em países que possuem visíveis desigualdades sociais, o pagamento para o procedimento de gestação de substituição pode assumir um contorno de reificação, de coisificação da pessoa humana, ou seja, pode-se passar de um saudável e legítimo desejo de formação familiar para a instrumentalização de grupos ou pessoas vulneráveis que assumem a prática desviando-se do seu intuito inicial – muitas vezes, sem que elas mesmas percebam esse desvio e instrumentalização em si mesmas. Há uma expressiva percepção desse contexto na Índia, país que tem sido alvo de diversos debates a respeito da peculiaridade estabelecida na prática da gestação de substituição em seu território. A imprensa tem exercido um importante papel no debate relacionado “California is a unique location for surrogacy, as California law allows the Intended Parents’ names to appear on the birth certificate immediately after birth, along with not requiring an adoption”. Afirmação presente em uma das agências que disponibiliza esse procedimento nos EUA. Disponível em: www. http://surrogateparenting.com/ international/. Acesso em 31 de janeiro de 2015. 219 TIEU, M.M. Altruistic surrogacy: the necessary objectification of surrogate mothers. Journal of Medical Ethics, 2009; 35: 171-175. 218


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às denominadas “India’s baby factories”, ou seja, fábricas de bebês da Índia. Documentários e notícias sobre o tema retratam o cotidiano das chamadas “casas de substituição”, ou “house of surrogates”220, em que mulheres vivem durante o período da gestação e seguem regras estritas de comportamento. Entre essas regras, temse que é compulsório que as mulheres que irão participar do processo vivam nessa casa, sendo proibidas de ter relações maritais durante a gravidez. O único dia em que o marido e os filhos podem visitá-las é o domingo. Além disso, algumas dessas mulheres poderão ser contratadas pelo casal que recorreu ao procedimento para que elas cuidem das crianças logo após o nascimento, durante a espera da preparação da documentação necessária para imigração e passaporte. Em entrevista realizada com a médica responsável por uma das casas de substituição, a reportagem constata que há uma série de razões pelas quais a Índia é considerada “o centro de substituição do mundo”221. Entre esses fatores, está uma boa tecnologia médica, disponível a um custo relativamente baixo, especialmente se comparado a outros países. Um outro fator importante diz respeito à situação legal favorável, pois a mulher que participa da gestação de substituição não possui quaisquer direitos e deveres sobre o bebê que irá nascer, o que facilita o processo especialmente em termos culturais: a reportagem indica que, no mundo ocidental, a mãe biológica é aquela efetivamente considerada como mãe de uma criança, sendo o nome dela que irá constar na certidão de nascimento. Não ter o nome da mulher que efetuou o procedimento de gestação no documento de nascimento pode tornar mais difícil um possível e futuro desejo da criança de querer conhecer a sua origem gestacional. A legislação a respeito da gestação de substituição na Índia envolve questões éticas que ainda precisam de definição. O país iniciou o processo de regulamentação em 2000, mas o Projeto de Lei sobre Reprodução Assistida introduzido pelo Ministério da Saúde e Bem-Estar Familiar indiano, em 2010, trouxe orientações que passaram a ser utilizadas no âmbito judicial. O Projeto reconhece o direito das mulheres que participam da gestação de substituição de serem pagas por essa prática, e ainda que se tenha estabelecido a importância de se oferecer o devido esclarecimento quanto aos procedimentos clínicos (como o consentimento, por exemplo) e o acesso WALLIS, Lucy. Living inside the house of surrogates. Disponível em: http://www.bbc.com/news/magazine-24275373. Acesso em 25 de junho de 2014. 221 WALLIS, Lucy. Living inside the house of surrogates. Disponível em: http://www.bbc.com/news/magazine-24275373. Acesso em 25 de junho de 2014. 220


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de casais inférteis para as técnicas de reprodução assistida, há críticas de que o documento está primordialmente direcionado às clínicas e aos casais que buscam o procedimento sem haver uma efetiva preocupação com o bem-estar das mulheres que irão proceder à gestação de substituição e a claras linhas éticas quanto a esse processo nas clínicas222. É importante referir, nesse panorama, a importância de livre e autônomo consentimento da mulher que vai efetuar o procedimento de gestação de substituição. Maya Unnithan, em seu estudo sobre o tema223, transcreve trecho de depoimento de uma jovem de 27 anos, mãe de dois filhos, que explica que “com a minha primeira gestação de substituição, pude pagar a operação para tratamento do rim do meu marido, matriculei meu filho numa escola de inglês, e comprei um pequeno apartamento”. Essa afirmação retrata, segundo o estudo, uma possível mudança de paradigma: no oeste rural da Índia, onde o papel da mulher na reprodução não é valorado pela sociedade, a chegada de uma possibilidade de prática associada ao pagamento pode levar a uma ressignificação da gravidez. Surgem, nesse contexto, alguns questionamentos: a gestação de substituição pode se tornar um meio de empoderamento econômico que confere maior autonomia reprodutiva e status para a mulher? O que, realmente, significa o consentimento nessas condições? Afirma Unnithan que “Mulheres em pobre situação econômica consideram a gestação de substituição uma tão atrativa opção que as deixam, ironicamente, sem alternativas”224. A possibilidade (ou não) de escolha em realizar a gestação de substituição reflete, assim, um sistema de desigualdades associado à pobreza e à violência social. É nesse sentido que a legislação indiana, segundo a autora, deve ir além dos padrões e dos instrumentos utilizados na análise bioética, para que seja possível verificar a linguagem, a economia, as relações familiares e morais que atuam no âmbito da decisão reprodutiva e do consentimento no país, de forma a, efetivamente, implementar as normativas indianas como defensoras da liberdade humana e como instrumentos de solidificação de direitos. Transpondo-se a reflexão internacional para o cenário brasileiro, tem-se que UNNITHAN, Maya. Thinking through Surrogacy Legislation in India: Reflections on Relational Consent and the Rights of Infertile Women. Journal of Legal Anthropology (2013) Vol. 1. No.3, p. 288. 223 UNNITHAN, Maya. Thinking through Surrogacy Legislation in India: Reflections on Relational Consent and the Rights of Infertile Women. Journal of Legal Anthropology (2013) Vol. 1. No.3:287-313. 224 Originalmente: “Women in poor economic circumstances find surrogacy such an attractive option that they ironically have no choice”. UNNITHAN, Maya. Thinking through Surrogacy Legislation in India: Reflections on Relational Consent and the Rights of Infertile Women. Journal of Legal Anthropology (2013) Vol. 1. No.3, p. 296. 222


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o tema da gestação de substituição possui, como primeira referência, a Lei nº. 11.105/2005, conhecida como Lei de Biossegurança, analisada nas páginas anteriores. Nesse sentido, a possibilidade de utilização de embriões humanos para pesquisa levou à reformulação da Resolução do CFM sobre o tema da reprodução assistida, em razão da ausência de legislação específica sobre este assunto. Indica-se, inicialmente, as duas últimas Resoluções que trataram do tema: nº 1.358/92, nº 1.957/10. Torna-se interessante verificar que as Resoluções nº 1.358/92 e nº 1.957/10 do CFM mantiveram a mesma redação ao tratar de gestação substituição (ou doação temporária do útero, segundo os documentos referidos). Seu primeiro item dispunha que as clínicas, os centros ou os serviços de reprodução humana podem usar técnicas de reprodução assistida para criarem a situação identificada como gestação de substituição, desde que exista um problema médico que impeça ou contraindique a gestação na doadora genética. É importante enfatizar a ausência de caráter lucrativo ou comercial para o procedimento, e o fato de que ele deve ser realizado com pessoas pertencentes à família da doadora genética, num parentesco até o segundo grau, sendo os demais casos sujeitos à autorização do Conselho Regional de Medicina. A Resolução nº 2.013/13 alterou consideráveis situações sobre o assunto, especialmente em virtude das mudanças sociais e judiciais que envolveram essa temática nos últimos anos225. É curioso indicar que, entre os dois primeiros documentos analisados, houve um intervalo de 18 anos de vigência, enquanto que entre os dois últimos (anteriores à Resolução nº 2.121/2015) apenas 3 anos. Entre as modificações ocorridas, está, no primeiro item, a inclusão de outra situação que não trata, unicamente, de problema médico que impeça ou contraindique a gestação na doadora genética: foi incluída a afirmação “ou em caso de união homoafetiva”226. A ausência de caráter lucrativo ou comercial para o procedimento foi mantida, inclusive quanto a sua redação, mas houve nova indicação quanto a dois elementos delicados referentes ao segundo item da Resolução: a inclusão da limitação de idade para o procedimento, definida em 50 anos, e de que o pertencimento à família poderá ser “de um dos parceiros num parentesco consanguíneo até o quarto grau”. Nesse Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2013/2013_2013.pdf. Acesso em 31 de janeiro de 2015. 226 A Resolução refere que essa inclusão ocorreu “CONSIDERANDO que o pleno do Supremo Tribunal Federal, na sessão de julgamento de 5.5.2011, reconheceu e qualificou como entidade familiar a união estável homoafetiva (ADI 4.277 e ADPF 132); (…)”. 225


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ponto, é interessante traçar duas observações: a primeira reside na limitação de idade, pois não há específica explicação a respeito da delimitação nos 50 anos de idade. A Exposição de Motivos da Resolução apenas refere que “Outros fatores motivadores foram a falta de limite de idade para o uso das técnicas e o excessivo número de mulheres com baixa probabilidade de gravidez devido à idade, que necessitam a recepção de óvulos doados”227. A segunda observação relaciona-se ao grau de parentesco e à ampliação do mesmo não apenas para os parentes da mulher mas, também, para o ramo paterno. Essa decisão é favoravelmente acolhida, na medida em que amplia a possibilidade de se efetuar o procedimento no âmbito das relações familiares, fator que diminui o aspecto mercantil (mesmo que proibido) na busca pelo procedimento228. Esse fator, ainda que necessite de importante acompanhamento nas esferas psicológicas e relacionais, mantém a linha de origem da própria criança, o que pode auxiliar na sua formação quanto ao reconhecimento de sua própria identidade pessoal. Entre a Resolução nº 2.013/2013 e a sua revogação pela Resolução nº 2.121/2015, passaram-se apenas 2 anos, e o último documento trouxe, como uma significativa alteração, o limite de idade para a utilização das técnicas de reprodução assistida. Neste sentido, a primeira observação acima referida é novamente atualizada pelo CFM, ao estabelecer que permanece a indicação de idade máxima das candidatas à gestação de RA de 50 anos, mas o item I, 3, expõe que “As exceções ao limite de 50 anos para participação do procedimento serão determinadas, com fundamentos técnicos e científicos, pelo médico responsável e após esclarecimento quanto aos riscos envolvidos” . Portanto, as mulheres acima dos 50 anos que pretendam utilizar as técnicas de RA não necessitam recorrer ao CFM para autorização do procedimento, desde que haja o cumprimento desta nova disposição no compartilhamento da decisão e devida informação entre o médico e a paciente. No âmbito da gestação de substituição, a Resolução nº 2.121/2015 traz, ainda, o elenco de documentos e observações que deverão constar no prontuário do paciente. Em primeiro lugar, cita o termo de consentimento livre e esclarecido, que deverá ser Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2013/2013_2013.pdf. Acesso em 31 de janeiro de 2015. 228 Notícias, reportagens e estudos a respeito da comercialização de óvulos e sêmen, bem como ao acesso à erroneamente denominada “barriga de aluguel”, podem ser encontrados em busca pela rede de computadores e periódicos. Não serão elencados, aqui, exemplos específicos, para não particularizar os mesmos, mas diversos casos já foram alvo de denúncia no Brasil. A ausência de legislação específica sobre o tema limita, de alguma forma, a visibilidade dos casos e seus desfechos e punibilidade. 227


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assinado “pelos pacientes e pela doadora temporária do útero, contemplando aspectos biopsicossociais e riscos envolvidos no ciclo gravídico-puerperal, bem como aspectos legais da filiação”, bem como o relatório médico com o perfil psicológico, atestando adequação clínica e emocional de todos os envolvidos. O documento refere, ainda, aspectos que necessitam de maior aprofundamento quanto a sua realização e execução. Por exemplo, indica, nesse elenco de documentos, que deve haver “Termo de Compromisso entre os pacientes e a doadora temporária do útero (que receberá o embrião em seu útero), estabelecendo claramente a questão da filiação da criança”, bem como a “garantia, por parte dos pacientes contratantes de serviços de RA, de tratamento e acompanhamento médico, inclusive por equipes multidisciplinares, se necessário, à mãe que doará temporariamente o útero, até o puerpério”, e a “garantia do registro civil da criança pelos pacientes (pais genéticos), devendo esta documentação ser providenciada durante a gravidez”. Novamente, a questão registral é elemento que suscita controvérsias também na esfera nacional. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul também enfrentou o tema quanto ao registro de criança gerada pela gestação de substituição. A Vara de Família de Lajeado autorizou o Registro Civil local a proceder ao registro de nascimento de criança nascida de gestação de substituição, ocorrida a partir de fertilização in vitro com material genético retirado do casal autor da ação. Tanto a mulher que emprestou o útero e seu marido, bem como o casal genitor, concordaram com o procedimento. A decisão definiu que o homem e a mulher que forneceram os gametas é que deveriam constar como pais no registro. Na conclusão da sentença, o juiz considerou que a decisão tomada tem como pressuposto o melhor interesse da criança, em razão da ausência de legislação específica sobre o tema e com base na denominada “verdade biológica” do caso em questão, fato que coincidiu com “a verdade socioafetiva, da filiação, demonstrada no exame genético”229. Nesse contexto, verifica-se que ainda há um amplo debate sobre a prática da gestação de substituição no cenário nacional e sua relação com a temática dos direitos humanos. Podem ser elencados os seguintes aspectos: a) a possibilidade do procedimento e sua ausência de lucro ou caráter comercial são fatos que protegem, por um lado, a prática e, assim, a nãoinstrumentalização dos seres humanos envolvidos nesse panorama; contudo, a “Filho gerado em útero de terceira pessoa deve ser registrado por casal que forneceu material genético”. Caso descrito pela página eletrônica do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: http://www.tjrs.jus.br/site/imprensa/ noticias/?idNoticia=138658. Acesso em 21 de junho de 2014.

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realidade social atesta que há um mercado paralelo relativo à comercialização de material genético ou do próprio ventre materno. Sendo assim, indaga-se como será possível a efetivação do registro de nascimento de criança gerada, por exemplo, através de procedimento considerado não permitido no país (ou seja, aquelas nascidas de negociação financeira para a gestação), mesmo na ausência de legislação específica sobre o tema; b) a Resolução nº 2.013/2013 do CFM determinava, entre os documentos e as observações relacionados à prática, “a impossibilidade de interrupção da gravidez após iniciado o processo gestacional, salvo em casos previstos em lei ou autorizados judicialmente”. Essa disposição não está presente na Resolução nº 2.121/2015, mas a sua retirada não sanou questões que possam ser suscitadas quanto a outros aspectos conexos à vida familiar e humana: não há previsão quanto a situações de rompimento do vínculo conjugal, ou em caso de doença ou falecimento de uma das partes envolvidas; c) há carência de explicação quanto à relação e prática entre as partes e o sistema hospitalar em si, no âmbito do aspecto registral; d) não há maiores esclarecimentos sobre o vínculo estabelecido entre as partes, inclusive quanto ao aspecto da estruturação do denominado “termo de compromisso”. Não há indicação de como poderá ser feita a construção jurídica de aspectos delicados dessa relação (pois o item 3.4 refere-se a “pacientes contratantes de serviços de RA”), como, por exemplo, se tratar de casal que não queira receber o filho gestado por substituição caso seja constatada alguma má-formação. Nesse contexto, princípios bioéticos e jurídicos possuem forte conexão, especialmente quando se faz, novamente, referência à não-instrumentalização dos seres humanos; e) a Resolução nº 2.121/2015 do CFM, conforme já exposto acima, utiliza a expressão “doação temporária do útero” (e, assim, doadora temporária do útero) durante todo o documento, ao invés de “gestação de substituição”. A explicação quanto ao uso da expressão e seu significado, para diferenciação com o instituto civil da doação, teria sido iniciativa adequada e necessária para a compreensão pacífica dos termos utilizados, pois a linguagem possui um papel fundamental na delimitação dos conceitos e, assim, da efetivação prática e correta dos mesmos. A preocupação primordial que se estabelece na relação entre a gestação de


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substituição e os direitos humanos reside na não-instrumentalização das partes envolvidas nesse procedimento. A ausência de legislação específica sobre o tema e a importância de um maior debate sobre as práticas realizadas impelem à reflexão. Há, nesse sentido, elementos que necessitam ser delineados para uma adequada normatização sobre o tema. A questão da vulnerabilidade que se reflete no aspecto econômico, ou, ainda, no âmbito social, dependendo dos costumes culturais de determinado grupo, é fator importante de análise. Esse panorama leva à verificação da autonomia e da liberdade envolvidas, ou seja, se esses princípios estão realmente presentes na construção normativa e, assim, social desse cenário. Não se deve esquecer dos futuros questionamentos que as crianças nascidas desse procedimento poderão fazer para o reconhecimento de sua identidade genética e gestacional. A preservação dos aspectos éticos e humanos envolvidos na formação de gerações futuras é meta necessária para o equilíbrio entre o uso de novas tecnologias e a formação da própria sociedade. 5. Fim de vida: as diretivas antecipadas de vontade e os cuidados paliativos A trajetória de nossas vidas e de seu fim perpassam pelo seu começo. Os capítulos anteriores traçaram aspectos da nossa formação, da nossa humanidade, e falar em fim de vida reflete a exaltação desse caráter humano ínsito a cada um de nós. As diretivas antecipadas de vontade e os cuidados paliativos possuem fios importantes de conexão, que tecem os mais sensíveis e fortes momentos da nossa própria existência. Este capítulo objetiva situar o surgimento dessas práticas e demonstrar a necessidade do cuidado quanto aos seus delineamentos, para que possam enaltecer a dignidade da pessoa humana em todas as suas fases e vivências. 5.1 Diretivas antecipadas de vontade A linha estabelecida entre a bioética e os direitos humanos tem sua trajetória pautada no respeito à autonomia e na inerência da dignidade presente em cada ser humano. A referência, nesse ponto, ao fim de vida, é de extrema relevância em razão dos diversos documentos internacionais e legislações a respeito das denominadas “diretivas antecipadas de vontade” (DAV), que introduzem um novo olhar sobre a capacidade de decisão do paciente e a manutenção de sua vontade mesmo quando ele não possa se expressar no contexto clínico. No Brasil, esse tema passa por uma fase de verificação da eficácia do documento


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e da necessidade (ou não) de uma legislação específica sobre o assunto. As DAV estão presentes em norma deontológica do Conselho Federal de Medicina (CFM), através da Resolução nº 1.995/2012. Em seu art. 1º, elas são definidas como “o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade”. A publicação da Resolução trouxe amplo debate sobre a implementação do documento, na esteira de casos internacionais que se tornaram emblemáticos para a análise do tema. É importante lembrar que os aspectos sociais, culturais e econômicos participam de maneira decisiva nessa discussão, pois a percepção do fim de vida reúne elementos que nos confrontam com nosso poder decisório. Essa afirmação reside no que denomino de “fator temporalidade”230, ou seja, a postura assumida em determinado momento de nossas vidas pode ser alterada por novas percepções que adquirimos ao longo de nossa existência, ou de novos medicamentos que podem vir a auxiliar na cura de determinada doença, fatores esses que devem ser levados em consideração quanto à elaboração das diretivas antecipadas de vontade. Nesse contexto, percebe-se que o rápido desenvolvimento da tecnologia biomédica traz, ao mesmo tempo, inúmeros benefícios quanto à longevidade humana, e, também, instiga nosso refletir acerca da não mecanização do morrer e do não esquecimento da naturalidade do fim da vida. Para que seja possível situar os reflexos da Resolução nº 1.995/2012 e as diferentes legislações que tratam do tema no âmbito internacional, é importante traçar algumas linhas sobre a origem do documento e analisar as diferentes denominações que o mesmo tem recebido na sua evolução. O artigo “Due Process of Euthanasia: The Living Will, A Proposal”, de Luis Kutner, tornou-se referência quanto ao surgimento da discussão sobre as DAV. Escrito na década de 1960, retrata um caso concreto ocorrido em um hospital dos Estados Unidos, quando o jovem estudante Robert Waskin matou, com três tiros, sua mãe no leito do hospital. Ele explicou que “ela me pediu para fazer isso”231, pois estava em um estágio oncológico avançado. Waskin foi preso, acusado de assassinato em primeira instância pela The Grand Jury of Cook County de Illinois, mas absolvido tempos depois, quando o Juri deliberou, primeiramente, que ele agiu por insanidade e, após, em nova decisão, não foi mais considerado insano. O fato suscitou acirrado debate sobre o tema Assunto que será trabalhado no decorrer deste tópico. “She asked me to do it”. KUTNER, Luis (1969) “Due Process of Euthanasia: The Living Will, a Proposal”, Indiana Law Journal: Vol. 44: Iss. 4, Article 2.

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da eutanásia e sua relação com o denominado “assassinato por compaixão” (“mercy killing”). De acordo com Kutner, a ausência de padrões de conduta que direcionem casos que envolvam esses dois temas impedia um adequado procedimento de qualquer demanda legal que tratasse dessas questões232. O autor discute, ainda, questões fundamentais, como o direito à vida e à privacidade, bem como aspectos relacionados ao próprio corpo, como o direito à recusa do paciente de se submeter ou não a determinado tipo de tratamento. Nessa linha, Kutner denomina “living will” o documento que serviria para o paciente estabelecer os tipos de procedimentos médicos a que desejaria se submeter. É interessante reproduzir suas palavras, quando afirma que: A lei proíbe, claramente, o assassinato por compaixão, mesmo se realizado a pedido do paciente. Assim, o paciente não pode solicitar que outra pessoa acabe com sua vida. Tal ação sujeitaria o autor a processo por homicídio. Mas um indivíduo tem o direito de se recusar a permitir que um médico o trate, mesmo quando esse tratamento possa prolongar a sua vida. Se um médico agir contra a sua vontade, ele pode ser responsabilizado por isso233.

Ele ressalta, portanto, que há fundamental diferença entre pedir que alguém termine com sua própria vida e posicionar-se pela recusa de um tratamento, mesmo que ele prolongue a vida. A expressão “living will” popularizou-se como referência para o debate sobre o tema e ganhou, também, diferentes denominações. Pode-se citar, por exemplo, as expressões “testamento biológico”, “testamento vital”, “diretrizes antecipadas de tratamento”, “declaração antecipada de vontade”, “declaração antecipada de tratamento”, “declaração prévia de vontade do paciente terminal”. Algumas dessas expressões são transpostas ou traduzem termos já utilizados em legislações ou contextos estrangeiros, como é o caso de “living will” e “advance directives” nos “(…) the present state of the law, as it is evolving from judicial practice, may in effect be permitting mercy killing without adequate protection for the victim whose death may be unwarranted and uncanted. Clearly, the lack of definiteness in the present state of the law does not comport with the notions of due process of law”. KUTNER, Luis (1969) “Due Process of Euthanasia: The Living Will, a Proposal”, Indiana Law Journal: Vol. 44: Iss. 4, Article 2, pp. 542-543. 233 Originalmente: ““The law clearly prohibits mercy killing, even if undertaken at the patient’s request. Thus, the patient cannot request another to end his life. Such an action would subject the actor to prosecution for murder. But an individual does have the right to refuse to permit a doctor to treat him, even if such treatment would prolong his live. If a doctor should act contrary to his wishes, he would be subject to liability”. KUTNER, Luis (1969). Due Process of Euthanasia: The Living Will, A Proposal. Indiana Law Journal: Vol. 44: Iss. 4, Article 2, p. 550. 232


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Estados Unidos234, “testamento biológico” na Itália235, “vontades antecipadas” na Espanha236. Após o fato narrado por Kutner, ocorre, na década de 1980, outro caso que irá definir a questão relativa às diretivas antecipadas de vontade nos Estados Unidos. Uma jovem norte-americana, Nancy Cruzan, sofreu acidente automobilístico no estado de Missouri, recebendo o diagnóstico de dano cerebral permanente237. Ela sobreviveu através de procedimentos de nutrição e hidratação assistida por alguns anos, até que os pais e o esposo solicitaram a retirada desse procedimento. Os médicos negaram-se a atender esse pedido sem autorização judicial. Em 1990, o tribunal de Missouri acolheu o pedido da família. Entre os argumentos da decisão, consta que Nancy, quando tinha 20 anos, teria relatado a uma colega de quarto de que não queria ser mantida viva através de aparelhos caso ocorresse algo que a deixasse com menos da metade de suas capacidades normais de vida autônoma. Após o acidente, constatou-se que ela se encontrava em estado de manifesta incapacidade238. Na esteira desse caso, o Congresso dos Estados Unidos aprovou a denominada “The Patient Self-Determination Act (PSDA)”, vigente a partir de 1º de dezembro de 1991239. A PSDA apresenta três formas de efetivar as diretivas antecipadas, definidas, nessa lei, como “Advance Directives”: a) manifestação explícita da própria vontade (living will); b) poder permanente do responsável legal ou curador para o cuidado da saúde (PRCS – durable power of attorney for health care), sendo importante ressaltar que attorney, nesse caso, não quer dizer especificamente “advogado”, mas uma pessoa CLOTET, Joaquim. Reconhecimento e institucionalização da autonomia do paciente: um estudo da ‘The Patient SelfDetermination Act’. Bioética, 1993;1: 157-163. 235 Entre vasta bibliografia sobre o tema, cita-se: SESTA, Michele. Riflessioni sul testamento biologico. Famiglia e Diritto, 2008, 4, 407. BUSNELLI, Francesco Donato. Bioetica e diritto privato: frammenti di un dizionario. Torino: G. Giappichelli Editore, 2001, p. 24. BALLARINO, Tito. Eutanasia e testamento biologico nel conflitto di leggi. Rivista di Diritto Civile, anno LIV, n. 1, gennaio-febbraio, 2008, pp. 69-85. 236 Repercusión e impacto normativo de los documentos del Observatorio de Bioética y Derecho sobre las voluntades anticipadas y sobre la eutanasia. Elaborado por el Grupo de Opinión del Observatori de Bioètica i Dret Parc Científic de Barcelona. Barcelona, enero de 2010. 237 A autora registra que o presente tópico foi também abordado em outros dois textos de sua autoria: AVANCINI ALVES, Cristiane. Linguagem, Diretivas Antecipadas de Vontade e Testamento Vital: uma interface nacional e internacional. Revista Bioethikos. Centro Universitário São Camilo. 2013;7(3) e AVANCINI ALVES, Cristiane. Diretivas antecipadas de vontade e testamento vital: considerações sobre linguagem e fim de vida. Revista Jurídica, ano 61, maio de 2012, nº 427, pp. 89-110. 238 Na lápide de Nancy Cruzan está a seguinte inscrição: “Nascida em 20 de julho de 1957. Partiu em 11 de janeiro de 1983. Em paz em 26 de dezembro de 1990”. TEPEDINO, Gustavo e SCHREIBER, Anderson. O extremo da vida: eutanásia, accanimento terapeutico e dignidade humana. Revista Trimestral de Direito Civil, Ano 10, vol. 39, julho a setembro de 2009, p. 15. 239 CLOTET, Joaquim. Reconhecimento e institucionalização da autonomia do paciente: um estudo da ‘The Patient SelfDetermination Act’. Bioética, 1993;1: 157-163. 234


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investida de poder para representar a outra; c) decisão ou ordem antecipada para o cuidado médico (DACM – advance care medical directive). Deve-se referir que a expressão living will não pode ser literalmente traduzida para a língua portuguesa, pois “will” pode indicar tanto o desejo de algo que se queira que aconteça no futuro240, bem como se constituir no documento em que se declara qual o destino que se deseja dar aos próprios bens241. Esse cuidado é importante porque a linguagem possui uma forte influência na formação do nosso pensar. Um estudo indica que diversas pesquisas “vêm mostrando como a linguagem molda dimensões mais fundamentais da experiência humana: espaço, tempo, causalidade e relacionamentos com os outros”242. Acrescenta-se a essa percepção o fato de que a elaboração de um documento relativo, nesse caso, a disposições de vontade quanto a determinado tratamento, pode gerar interpretações diversas na extensão de sua aplicação. Um exemplo dessa afirmação reside na redação e na tradução de termos relacionados ao tema não apenas no âmbito legislativo (das leis que tratam desse tema em alguns países) mas, também, dos documentos internacionais. O Conselho Europeu, como instituição que define as orientações e as prioridades políticas gerais da União Europeia, busca, paralelamente, o desenvolvimento de normas comuns no âmbito europeu em temas relacionados à bioética. Em 1997, publicou a “Convention on Human Rights and Biomedicine”, também conhecida como “Convenção de Oviedo”243, já referida no decorrer desta obra. No caso específico das DAV, o seu artigo 9 dispõe que: “A vontade anteriormente manifestada quanto a uma intervenção médica por um paciente que, no momento da intervenção, não está em condições de manifestar a sua vontade, deve ser levada em consideração”244. Aqui, a expressão “ser levada em “You use will to indicate that you hope, think, or have evidence that something is going to happen or be the case in the future”, “use will to indicate someone’s intention to do something”, “You use will in order to make promises and threats about what is going to happen or be the case in the future”. Collins COBUILD Dictionary, 2006. 241 “A will is a document in which you declare what you want to happen to your money and property when you die”. Collins COBUILD Dictionary, 2006. 242 Citações deste parágrafo em: BORODITSKY, Lera. Como a linguagem modela o pensamento. Scientific American/Mente Cérebro, Ano XIX, nº 247, Agosto 2013, pp. 30-35. 243 De acordo com Roberto Andorno, “The chief merit of the Council of Europe in this field consists in having obtained the ratification by a large number of European States of the first multilateral binding instrument entirely devoted to biomedical law”. ANDORNO, Roberto. The Oviedo Convention: a European legal framework at the intersection of human rights and health law. JILB, Vol. 02, 2005, p. 134. 244 Originalmente: “Article 9 – Previously expressed wishes. The previously expressed wishes relating to a medical intervention by a patient who is not, at the time of the intervention, in a state to express his or her wishes shall be taken into account”. Disponível em: http://conventions.coe.int/Treaty/en/Treaties/Html/164.htm. Acesso em 1º de setembro de 2013. 240


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consideração” (“take into account”), desperta reflexões. A Convenção de Oviedo, ao trazer a importância relativa a disposições de vontade, pode, por outro lado, suscitar dificuldades na aplicação do documento. Roberto Andorno explica que a expressão acima citada, sem qualquer esclarecimento adicional, torna-se ambígua e pode ser interpretada de diversas formas. Portanto, “Teria sido preferível ter uma orientação mais clara para os médicos sobre até que ponto, ou em quais condições, as vontades dos pacientes expressas antecipadamente devem ser implementadas”245. Nesse sentido, o autor constata que “É óbvio que, se os profissionais de saúde podem decidir arbitrariamente, sem indicar qualquer sério motivo quanto ao não cumprimento das preferências dos pacientes, o esforço de fazer uma diretriz antecipada torna-se inútil para o paciente”. Em 2009, o Conselho Europeu publicou novo documento sobre o tema, em que procura preencher algumas das lacunas elencadas. A Recomendação (2009)11 dispõe sobre os princípios relativos à procuração e às diretivas antecipadas em caso de incapacidade246. É dividida em três partes: a primeira refere-se ao objetivo de sua aplicação, a segunda trata da procuração (“continuing powers of attorney”) e a terceira delimita as diretivas antecipadas (“advance directives”). O documento inicia com a afirmação e a promoção da autodeterminação, indicando-a como elemento base para adultos capazes que, na ocorrência de futura incapacidade, possam ter, como instrumentos dessa mesma autodeterminação, a procuração e as diretivas antecipadas247. Torna-se interessante perceber que, na segunda parte, o conteúdo referente à procuração, no denominado “principle 3”, abrange não apenas questões relacionadas à saúde do outorgante dessa procuração, mas, também, questões econômicas e financeiras248. Na terceira parte, relativa às diretivas antecipadas, Originalmente: “It would have been preferable to have clearer guidance for doctors as to what extent, or under what conditions, patients wishes expressed in advance must be implemented”. Próxima citação: “It is obvious that if health care professionals could arbitrarily decide, without giving any serious reason, not to comply with patients’ preferences, the patient’s effort of making an advance directive becomes useless”. ANDORNO, Roberto. Regulating advance directives at the Council of Europe. In NEGRI, Stefania. Self-Determination, Dignity and End-of-Life Care: regulating advance directives in international and comparative perspective. Leiden-Boston: Martinus Nijhoff Publishers, 2011, p. 77. 246 “Recommendation (2009) 11 on principles concerning continuing powers of attorney and advance directives for incapacity”. Disponível em: https://wcd.coe.int/ViewDoc.jsp?id=1563397&Site=CM. Acesso em 1º de setembro de 2013. 247 Principle 1 − Promotion of self-determination. 1. States should promote self-determination for capable adults in the event of their future incapacity, by means of continuing powers of attorney and advance directives. 2. In accordance with the principles of self-determination and subsidiarity, states should consider giving those methods priority over other measures of protection. 248 Principle 3 – Content. States should consider whether it should be possible for a continuing power of attorney to cover 245


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o “principle 14” dispõe que elas podem ser aplicadas à saúde, bem-estar e outras situações pessoais, a questões econômicas e financeiras, e à possível escolha de um tutor (“guardian”). Caberá a cada Estado definir se as diretivas antecipadas terão efeito vinculante. Afirma o “principle 15” que aquelas que não tiverem efeito vinculante deverão ser tratadas como declarações de vontade que devem receber o devido respeito (“due to respect”). Seguindo-se a análise quanto à linguagem e quanto às consequências do seu uso adequado, percebe-se que enquanto o artigo 9 da Convenção de Oviedo emprega, relativamente à vontade, a expressão de que ela deve “ser levada em consideração” (“take into account”), o “principle 15” da Recomendação refere que ela deve receber o “devido respeito” (“due to respect”). Segundo Roberto Andorno, essa última expressão parece trazer mais força do que a anterior. Nesse sentido, afirma o autor que é interessante notar que alguns países usam o verbo “respeitar” em suas leis nacionais precisamente para tornar vinculantes as diretivas antecipadas. Exemplifica essa questão através do artigo 372.2 do Código Civil suíço, que indica que a diretiva antecipada deve ser respeitada pelo médico, termo que é comumente interpretado como um reconhecimento prima facie do caráter vinculante das diretivas antecipadas (levando-se em consideração o ordenamento jurídico vigente e se elas refletem, efetivamente, a vontade do paciente)249. No panorama internacional, a diversidade de denominações pode levar a uma interpretação diferenciada do tema em cada país, ressaltando-se que essa diversidade pode estar relacionada, também, ao fato de haver (ou não) legislação específica sobre as DAV. Na Espanha, a Lei 41/2002 regula a autonomia do paciente economic and financial matters, as well as health, welfare and other personal matters, and whether some particular matters should be excluded. Principle 14 – Content. Advance directives may apply to health, welfare and other personal matters, to economic and financial matters, and to the choice of a guardian, should one be appointed. Principle 15 – Effect. 1. States should decide to what extent advance directives should have binding effect. Advance directives which do not have binding effect should be treated as statements of wishes to be given due respect. 2. States should address the issue of situations that arise in the event of a substantial change in circumstances. 249 Quanto à utilização da expressão “due respect”, revela o autor que “In this regard, it is interesting to note that some countries employ the verb ‘to respect’ in their domestic laws precisely tin order to make advance directives binding. Was this difference in the wording deliberate or simply an oversight? The latter is more likely since it only appears in the English version of the recommendation, while the French text employs the same verb that is used in Article 9 of the Biomedicine Convention (‘prende en compte’, that is, ‘taken into account’”. Uma análise acurada da Recomendação (2009)11 do Conselho Europeu é feita por Roberto Andorno em: ANDORNO, Roberto. Regulating advance directives at the Council of Europe. In NEGRI, Stefania. Self-Determination, Dignity and End-of-Life Care: regulating advance directives in international and comparative perspective. Leiden-Boston: Martinus Nijhoff Publishers, 2011.


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e os direitos e obrigações em matéria de informação e documentação clínica250. No quadro espanhol, a legislação, em seu artigo 11, refere-se a “instrucciones previas”, que dispõe que uma pessoa maior de idade, capaz e livre, pode manifestar antecipadamente sua vontade, com o objetivo de que essa vontade se cumpra no momento em que a pessoa se encontre em uma situação em que não seja capaz de expressar essa vontade pessoalmente. A Lei dispõe, ainda, sobre a possibilidade de se designar um representante que sirva como interlocutor entre o médico e equipe médica para procurar cumprir as instruções prévias251. Essas instruções deverão fazer parte da “história clínica”252 do paciente e poderão ser revogadas em qualquer momento253. Um passo importante e legítimo realizado pelo governo espanhol diz respeito ao chamado “Registro Nacional de instruções prévias”, criado pelo “Ministerio de Sanidad y Consumo”, para assegurar a eficácia dessas instruções em todo o território nacional. O Real Decreto 124/2007, que regula o Registro Nacional de “instrucciones previas y el correspondiente fichero automatizado de datos de carácter personal”254, dispõe, em seu artigo 2, que “A inscrição no Registro nacional de instruções prévias assegura a eficácia e possibilita o conhecimento em todo o território nacional das instruções prévias outorgadas pelos cidadãos que as tenham formalizado de acordo com o disposto na legislação das comunidades autônomas”255. O documento indica, também, que a unidade encarregada desse Registro será responsável por adotar as medidas necessárias que garantam a confidencialidade, a segurança e a integridade dos dados de caráter pessoal nele contidos. LEY 41/2002, de 14 de noviembre, básica reguladora de la autonomía del paciente y de derechos y obligaciones en materia de información y documentación clínica. A legislação espanhola pode ser encontrada no seguinte endereço eletrônico: http://www.boe.es, “Sede electrónica de la Agencia Estatal Boletín Oficial del Estado”. 251 “1. Por el documento de instrucciones previas, una persona mayor de edad, capaz y libre, manifiesta anticipadamente su voluntad, con objeto de que ésta se cumpla en el momento en que llegue a situaciones en cuyas circunstancias no sea capaz de expresarlos personalmente, sobre los cuidados y el tratamiento de su salud o, una vez llegado el fallecimiento, sobre el destino de su cuerpo o de los órganos del mismo. El otorgante del documento puede designar, además, un representante para que, llegado el caso, sirva como interlocutor suyo con el médico o el equipo sanitario para procurar el cumplimiento de las instrucciones previas”. 252 “3. No serán aplicadas las instrucciones previas contrarias al ordenamiento jurídico, a la ‘lex artis’, ni las que no se correspondan con el supuesto de hecho que el interesado haya previsto en el momento de manifestarlas. En la historia clínica del paciente quedará constancia razonada de las anotaciones relacionadas con estas previsiones”. 253 “4. Las instrucciones previas podrán revocarse libremente en cualquier momento dejando constancia por escrito”. 254 Disponível em: http://www.boe.es/aeboe/consultas/bases_datos/doc.php?id=BOE-A-2007-3160. Acesso em maio de 2011. 255 Originalmente: “La inscripción en el Registro nacional de instrucciones previas asegura la eficacia y posibilita el conocimiento en todo el territorio nacional de las instrucciones previas otorgadas por los ciudadanos que hayan sido formalizadas de acuerdo con lo dispuesto en la legislación de las comunidades autónomas”. 250


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Seguindo-se na Península Ibérica, Portugal também adotou legislação específica sobre o tema. A Lei nº 25/2012 dispõe, em seu artigo 1º, que “A presente lei estabelece o regime das diretivas antecipadas de vontade (DAV) em matéria de cuidados de saúde, designadamente sob a forma de testamento vital (TV), regula a nomeação de procurador de cuidados de saúde e cria o Registo Nacional do Testamento Vital (RENTEV)”256. As pessoas que podem outorgar um documento de diretivas antecipadas necessitam, cumulativamente: ser maior de idade, devem ser pessoas que não se encontrem interditas ou inabilitadas por anomalia psíquica e que sejam capazes de dar o seu consentimento consciente, livre e esclarecido. O artigo 5º especifica os limites do documento, considerando juridicamente inexistentes, não produzindo qualquer efeito, as diretivas antecipadas de vontade: a) que sejam contrárias à lei, à ordem pública ou determinem uma atuação contrária às boas práticas; b) cujo cumprimento possa provocar deliberadamente a morte não natural e evitável, tal como prevista nos artigos 134.º e 135.º do Código Penal; c) em que o outorgante não tenha expressado, clara e inequivocamente, a sua vontade. A lei portuguesa traz disposição específica quanto à possibilidade de indicação do denominado “procurador de cuidados de saúde” em seu Artigo 11, sendo que qualquer pessoa pode nomear “um procurador de cuidados de saúde, atribuindo-lhe poderes representativos para decidir sobre os cuidados de saúde a receber, ou a não receber, pelo outorgante, quando este se encontre incapaz de expressar a sua vontade pessoal e autonomamente”. A legislação portuguesa é clara na delimitação dessa procuração para, apenas, “cuidados de saúde” (não incluindo questões econômicas e financeiras, como possibilidade indicada na Recomendação (2009)11 do Conselho Europeu). É importante indicar que, de maneira semelhante à legislação espanhola, o artigo 15 da lei portuguesa instaurou o denominado Registo Nacional do Testamento Vital (RENTEV), com a finalidade “de rececionar, registar, organizar e manter atualizada, quanto aos cidadãos nacionais, estrangeiros e apátridas residentes em Portugal, a informação e documentação relativas ao documento de diretivas antecipadas de vontade e à procuração de cuidados de saúde”. A organização e funcionamento do RENTEV são regulamentados pelo Governo. Quanto ao registro das diretivas antecipadas de vontade e/ou da procuração dos cuidados da saúde, o outorgante pode apresentar, presencialmente, o respetivo documento no RENTEV, ou enviá-lo por correio registrado, devendo, nesse caso, a assinatura do outorgante ser reconhecida. Legislação disponível em: http://www.portaldasaude.pt/NR/rdonlyres/0B43C2DF-C929-4914-A79A-E52C48D87AC5/0/ TestamentoVital.pdf. Acesso em 1º de setembro de 2013.

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Na América Latina, pode-se fazer referência ao Uruguai e às alterações no Código Civil argentino sobre esse assunto. Em 2009, foi publicada, no Uruguai, a “Ley nº 18.473 – Voluntad Anticipada”. Em seu art. 1º, dispõe que tem o direito de se opor à tratamentos e procedimentos médicos (salvo no caso de afetar ou poder afetar a saúde de terceiros) a pessoa maior de idade, psiquicamente apta, de forma voluntária, consciente e livre257. O art. 2º indica que a expressão antecipada da vontade será feita por escrito com a assinatura do titular e das testemunhas, que também poderá manifestar-se na presença de um escrivão público, documentando-se em escritura pública ou ata notarial. Importante ressaltar que, em qualquer das formas em que se realize, ela deverá ser incorporada na “historia clínica” do paciente258. A lei dispõe, ainda, que não poderão ser testemunhas: o médico, funcionários vinculados ao médico ou funcionários da instituição de saúde em que o titular seja paciente (art. 3º); a “voluntad anticipada” poderá ser revogada por escrito ou oralmente, a qualquer momento (art. 4º); no caso de não ter expresso sua vontade, a suspensão de tratamento do paciente será uma decisão feita pelo cônjuge ou “concubino” ou, na sua ausência, dos familiares em primeiro grau e, se houver concorrência entre os familiares referidos, será requerida unanimidade na decisão (art. 7º). Uma diferença interessante em relação a outras leis sobre o tema diz respeito ao fato de que a lei uruguaia estabelece que, em todos os casos de suspensão de tratamento de que trata a lei, o médico terá de comunicar à Comissão de Bioética da instituição (quando essas existam) a questão, e a Comissão deverá se pronunciar num prazo de 48 horas. Se não houver pronunciamento nesse prazo, será considerada tacitamente aprovada a suspensão do tratamento. Do mesmo modo, as instituições de saúde deverão comunicar todos os casos de suspensão de tratamento à “Comisión de Bioética y Calidad Integral de la Atención de la Salud del Ministerio de Salud Pública” (art. 8º). Ainda, tem-se a ressalva de “não discriminação” presente no art. 11, que afirma que as instituições públicas e privadas de prestação de serviços de saúde não podem condicionar a aceitação do usuário com base nele ter ou não ter um documento de “Artículo1º.-Toda persona mayor de edad y psíquicamente apta, en forma voluntaria, consciente y libre, tiene derecho a oponerse a la aplicación de tratamientos y procedimientos médicos salvo que con ello afecte o pueda afectar la salud de terceros. (...)”. A referida lei está disponível em: http://200.40.229.134/leyes/AccesoTextoLey. asp?Ley=18473&Anchor=. Publicada D.O. 21 abr/009 - Nº 27714. 258 “Artículo 2º. La expresión anticipada de la voluntad a que refiere el artículo anterior se realizará por escrito con la firma del titular y dos testigos. En caso de no poder firmar el titular, se hará por firma a ruego por parte de uno de los dos testigos. / También podrá manifestarse ante escribano público documentándose en escritura pública o acta notarial. / Cualquiera de las formas en que se consagre deberá ser incorporada a la historia clínica del paciente”. 257


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vontade antecipada259. Aqui, faz-se uma importante conexão com o princípio da nãodiscriminação e não-estigmatização presente na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (art. 11). Na Argentina, foi promulgado novo Código Civil em outubro de 2014, para entrar em vigor no início de 2016260. Nele, o art. 60 dispõe sobre as “directivas médicas anticipadas” com a seguinte redação: La persona plenamente capaz puede anticipar directivas y conferir mandato respecto de su salud y en previsión de su propia incapacidad. Puede también designar a la persona o personas que han de expresar el consentimiento para los actos médicos y para ejercer su curatela. Las directivas que impliquen desarrollar prácticas eutanásicas se tienen por no escritas. Esta declaración de voluntad puede ser libremente revocada en todo momento por quien la manifestó.

Conforme denota-se da leitura desse dispositivo, há elementos importantes não contemplados na sua redação: por exemplo, se é necessário haver forma específica ou prazo de validade quanto ao documento a ser elaborado. Portanto, pode ser necessária a realização de lei específica sobre o tema, em razão das lacunas presentes no citado artigo. A questão relativa ao fim de vida e sua conexão com os avanços biomédicos trazem novo panorama quanto aos processos de tratamento e cura. Na Itália, país que não possui legislação específica sobre as diretivas antecipadas de vontade, uma iniciativa que começou nas redes sociais261 suscitou amplo debate social e político sobre o tema. Uma associação italiana criou um aplicativo na rede social Facebook para publicizar o chamado “testamento biológico”262, indicado, nesse caso, com o nome “The Last Wish” (o último desejo)263. Por meio desse aplicativo, o usuário da rede pode indicar “Artículo 11. Las instituciones públicas y privadas de prestación de servicios de salud no condicionarán la aceptación del usuario ni lo discriminarán basándose en si éstos han documentado o no su voluntad anticipada”. 260 Nuevo Código Civil y Comercial de la Nación. Disponível em: http://www.infojus.gob.ar/nuevo-codigo-civil-y-comercialde-la-nacion. Acesso em 5 de fevereiro de 2015. 261 De acordo com Raquel Recuero, “Uma rede social é definida como um conjunto de dois elementos: atores (pessoas, instituições ou grupos) e suas conexões (Wasserman e Faust, 1994, Degenne e Forsé, 1999). Trata-se, assim, de uma abordagem focada na estrutura social, na qual ‘individuals cannot be studied independently of their relations to others, nor can dyads be isolated from their affiliated structures’ (Degenne e Forsé, 1999, p. 3)”. RECUERO, Raquel da Cunha. Um estudo do capital social gerado a partir de redes sociais no Orkut e nos Weblogs. Revista FAMECOS, Porto Alegre, nº 28, dezembro 2005, p. 88. 262 Termo comumente utilizado na Itália para referimento às diretivas antecipadas de vontade. 263 Notícia publicada no jornal “Corriere della Sera” de 08 de março de 2011, disponível em: www.corriere.it. Outras 259


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dois “executores testamentários”, que irão ativar, no caso de morte desse usuário, a publicação de mensagem previamente escolhida por ele para ser publicada no seu perfil. O serviço permite, ainda, enviar mensagens privadas aos amigos do Facebook, bem como um último adeus aos familiares, e o testamento biológico poderá ser visualizado por todos os membros da rede. Os idealizadores do serviço entendem que a rede social pode ser um meio de publicizar e, assim, respeitar a escolha da pessoa quanto ao tratamento médico que quer receber no seu final de vida. Essa escolha deve ser realizada em estado de consciência. A iniciativa levanta, ainda, duas questões: a criação da chamada “identidade digital post mortem” na internet e, também, traz o alerta para casos de preenchimento de formulários que não tragam os dados corretos do usuário, o que pode espalhar notícias falsas sobre a morte de determinada pessoa264. Percebe-se, nesse sentido, uma delicada interface entre as esferas pública e privada no tratamento de dados pessoais e decisionais, e a rápida inovação das práticas virtuais, que nos instiga a refletir sobre a validade desse tipo de publicização de vontade. A iniciativa de desenvolver o aplicativo “The Last Wish” surge na esteira dos contornos midiáticos que o debate relativo ao fim de vida suscitou na Itália. Um caso em especial trouxe essa discussão: a italiana Eluana Englaro sofreu grave acidente de carro aos 21 anos de idade, ficando em estado vegetativo por 17 anos, até a interrupção de sua alimentação artificial. O caso passou por diversas instâncias judiciais, pois o pai de Eluana afirmava que a filha havia manifestado sua contrariedade quanto à manutenção artificial da vida em diversos momentos. O recolhimento de testemunhos de pessoas próximas a Eluana não foi suficiente para a efetiva retirada de tratatamento, juntamente com o fato de que o caso ganhou as páginas dos jornais e inflamou o debate político do país265. Durante a votação de um projeto de lei relativo à alimentação e à informações, ainda, em: ALVES, Cristiane Avancini. Biotestamento? O Facebook te ajuda. Jornal Correio do Povo, 23 e março de 2011, ano 116, nº 174, p. 02, e Jornal Zero Hora, 02 de abril de 2011, ano 47, nº 16.645, p. 18. 264 A discussão sobre a possibilidade de “trivialização” de quem é incluído como “amigo” em redes sociais é trazida por Alex Primo, que afirma que “apesar de poder-se acessar informações sobre quem eu registra como ‘amigo’ nesses sistemas, um observador externo não pode ter certeza que tais pessoas são de fato vós sem que acompanhe as interações entre esses sujeitos no tempo e os entreviste”. O autor relata casos em que o registro no sistema e a própria apresentação pública do outro como “amigo” não comprova “um relacionamento íntimo real entre eu e outros”. PRIMO, Alex. O aspecto relacional das interações na Web 2.0. E- Compós (Brasília), v. 9, p. 1-21, 2007, p. 09. 265 É possível buscar diversas notícias sobre o tema nas versões online dos jornais italianos “Corriere della Sera” e “La Repubblica”, que realizaram ampla cobertura a respeito. Ainda, é vasta a doutrina italiana que trata sobre esse delicado tema, conforme já indicado na nota 5, podendo-se acrescentar, entre outras, as seguintes indicações: PATTI, Salvatore. La fine della vita e la dignità della morte. Fam. Pers. Succ., 2006, 5, 390. SCALISI, Antonio. Il diritto a morire: profili problematici. Famiglia e Diritto, 2009, 11, 1069. TRIPODINA, Chiara. Il risvolto negativo del diritto alla salute: il diritto di rifiutare le cure. Studio in prospettiva comparata di due recenti casi italiani: il caso Welby e il caso Englaro. In BALDUZZI, Renato. Sistemi costituzionali, diritto alla salute e organizzazione sanitaria: spunti e materiali per l’analisi


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hidratação artificial no Senado italiano, em 09 de fevereiro de 2009, Eluana faleceu. Os parlamentares decidiram retirar de pauta o texto e tranferir o debate para o documento relativo ao “testamento biologico” e os casos de fim de vida. Atualmente, tramita na Câmara italiana projeto de lei sobre o chamado “testamento biologico”, pois, conforme já referido, não existe texto legal que regulamente as decisões relativas ao fim de vida no país. A base jurídica relativa a essa questão tem sido a Constituição italiana que, em seu art. 32, dispõe que ninguém pode ser obrigado a um determinado tratamento sanitário, a não ser por disposição de lei266. É interessante citar o fato de que muitas prefeituras, em virtude dessa insegurança jurídica e à contraposição de ideologias em relação ao caso, começaram a recolher manifestações escritas de vontade de cidadãos que assim decidissem proceder. Por exemplo, o “Comune de Massa”, na Toscana, elaborou formulário de declaração substitutiva de ato notarial para a entrega de testamento biológico perante um funcionário do “Comune”267. Contudo, esses registros foram considerados sem qualquer eficácia jurídica pelos Ministros da Saúde, do Bem-Estar e do Interior italianos. Entendeu-se que o recolhimento de diretivas antecipadas de vontade268 por parte das Prefeituras era ilegítima, por se tratar de matéria de competência legislativa do Estado269. Traçados alguns aspectos internacionais sobre as DAV, volta-se para o cenário brasileiro, especificamente quanto à análise da aplicabilidade da Resolução nº 1.995/2012 do CFM. Para tanto, faz-se, inicialmente, uma breve delimitação jurídica do instituto civil “testamento”, pois é a partir da ideia de testamento civil que se tem utilizado a expressão “testamento vital”. O testamento civil é regulado pelo Código Civil brasileiro, que data de 2002, mas é interessante registrar que, no Brasil colonial, comparata. Il Mulino, 2009. “Art. 32. La Repubblica tutela la salute come fondamentale diritto dell’individuo e interesse della collettività, e garantisce cure gratuite agli indigenti. Nessuno può essere obbligato a un determinato trattamento sanitario se non per disposizione di legge. La legge non può in nessun caso violare i limiti imposti dal rispetto della persona umana”. 267 Notícia disponível em: http://www.lucacoscioni.it/rassegnastampa/testamento-biologico-massa. Em outro exemplo, os residentes no município de Pisa poderiam entregar a própria declaração de testamento biológico de acordo com as modalidades definidas em documento específico previsto pelo município. Instruções disponíveis em: http://www. comune.pisa.it/urp/testamentobiologicopdf.pdf. 268 A expressão “testamento biologico” tem sido a comumente adotada, atualmente, na questão de disposições de tratamento quanto ao final de vida, mas é importante indicar que as expressões “dichiarazioni anticipate di volontà”, “dichiarazione anticipata di trattamento”, a denominada DAT, ou, ainda, “biotestamento”, são outras formas de indicar o mesmo instituto no país. 269 Notícia publicada no Jornal “La Repubblica” em 19 de novembro de 2010, sob o título “Il governo blocca il biotestamento - non validi i registri dei Comuni”, disponível em: http://www.repubblica.it/cronaca/2010/11/19/news/ biotestamento_circolari-9290090/. 266


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por volta do século XVIII, o testamento era sempre redigido como meio de garantia da vontade em questões patrimoniais e não patrimoniais. Homens e mulheres, temendo uma morte inesperada, tomavam as suas precauções antecipadamente, e procuravam um tabelião para registrar as suas decisões “quanto à recompensa daqueles que os tinham ajudado nas suas enfermidade e velhice”270. Na época, era ainda precário o sistema de organização judiciária, seja pela ausência de cartórios na vastidão do território nacional, seja pela dificuldade de acesso aos recursos formais estabelecidos pela metrópole. Por isso, as pessoas recorriam aos tabeliães. Era prática comum chamar o tabelião para redigir “as últimas vontades daqueles que se achavam acamados e temendo-se da morte”271. É importante ressaltar que o testamento não era apenas privilégio das elites da terra: segmentos sociais menos favorecidos (mulheres, escravos) também se utilizavam do testamento, porque ele era relevante não apenas para a instituição de herdeiros e distribuição de bens, mas, também, “para as disposições quanto ao funeral e cuidados com a alma mediante a celebração de missas”. O testamento não se referia apenas às questões patrimoniais mas, também e igualmente, a disposições de caráter não-patrimonial. Nas disposições testamentárias, encontramos duas classes de preocupações: em primeiro lugar, “a expressão de uma religiosidade forte que coloca acima de tudo os cuidados com a alma, não só da testadora, mas de todos aqueles a quem ela estava ligada, inclusive os próprios escravos; em segundo lugar, o desejo de proteger os elementos mais desprotegidos da família, ou seja, os membros do sexo feminino, filhas, netas e sobrinhas”272. Essas indicações demonstram a importância referente à possibilidade que cada pessoa física tem de dispor livremente de seu patrimônio ou de tomar decisões de ordem não-patrimonial, que vão produzir efeitos depois da morte. Aqui, temos o princípio da autonomia como norteador dessas questões, especialmente porque a autonomia reconhece e garante a existência de um âmbito particular de atuação do sujeito, com eficácia normativa273. Ela torna-se, portanto, fator importante na análise Estudo sobre a percepção histórica do testamento civil: Maria Beatriz Nizza da Silva, citada por Eduardo de Oliveira Leite. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Vida privada e quotidiana no Brasil. Apud LEITE, Eduardo de Oliveira. Comentários ao novo Código Civil. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004, p. 300. 271 Citações deste parágrafo em: SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Vida privada e quotidiana no Brasil. Apud LEITE, Eduardo de Oliveira. Comentários ao novo Código Civil. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004, pp. 300-301. 272 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Vida privada e quotidiana no Brasil. Apud LEITE, Eduardo de Oliveira. Comentários ao novo Código Civil. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004, p. 301. 273 AMARAL NETO, Francisco dos Santos. Autonomia privada. Revista do CEJ: Centro de Estudos Judiciários, Brasília, n. 9, dezembro/99, p. 26. 270


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da elaboração de uma diretiva antecipada de vontade e na sua repercussão fática. No contexto atual, o art. 1.857 do Código Civil registra que “Toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte”. O parágrafo segundo do mesmo artigo indica que “São válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o testador somente a elas se tenha limitado”. Nesse ponto, é importante ressaltar que o testamento tem a característica mortis causa, ou seja, ele vai produzir efeitos apenas depois da morte do testador. Portanto, antes, ele não produz nenhum efeito, não vincula o testador ao negócio, porque ele, o testador, pode revogá-lo livremente, conforme dispõe o art. 1.858 do CC: “O testamento é ato personalíssimo, podendo ser mudado a qualquer tempo”. Embasando-se historicamente o instituto, já existiam, no direito romano, definições de testamento que se assemelham à percepção atual. Por exemplo, o jurista Modestino dizia: “testamento é a justa manifestação de nossa vontade sobre aquilo que queremos que se faça depois da morte”. Para Ulpiano, também jurista: “testamento é a manifestação de última vontade feita de forma solene, para valer depois da morte”. Ainda, etimologicamente, testamento deriva de testatio mentis, isto é, “atestação da vontade”274. As caracterísiticas essenciais do testamento também podem auxiliar nessa reflexão. Tem-se que o testamento é um negócio jurídico, porque estamos diante de um fato praticado pelo de cujus, ou seja, por aquele que faleceu, cujos efeitos jurídicos são os que previu e quis, de acordo com a lei; é um negócio jurídico personalíssimo, porque é o próprio disponente quem emite a declaração de vontade; é ato unilateral, porque tem-se uma vontade solitária e independente do próprio testador; é negócio formal e solene, porque visa oferecer maiores garantias, autenticidade e segurança à manifestação de vontade do testador; é um negócio jurídico revogável porque, sendo ato de disposição de última vontade, ele está, até o fim, na dependência da vontade do testador; é, por fim e como exposto acima, um negócio jurídico mortis causa, porque só produz efeitos depois da morte do testador. Repete-se e ressalta-se este ponto: se no testamento civil temos disposições que irão valer para depois da morte, nas “diretivas antecipadas de vontade” temos disposições referentes a atos anteriores à morte. A pessoa que decide documentar, por escrito, sua vontade quanto ao tratamento que quer receber em estado Informações e citações deste parágrafo em: LEITE, Eduardo de Oliveira. Comentários ao novo Código Civil. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004, p. 306.

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de inconsciência, expressa essa mesma vontade em vida. Portanto, e logicamente, não após a sua morte. Essa percepção revela-se na elaboração de leis que regulamentam a atuação dos profissionais da saúde quanto à aplicabilidade de documento que ateste essa vontade. A discussão relativa à possibilidade de se legislar sobre a elaboração de um documento que expresse a vontade do paciente quanto ao tratamento ao qual ele quer ser submetido em caso de manifesta incapacidade de decisão é parte do cenário brasileiro, que não possui lei sobre o assunto. Anteriormente ao debate sobre as diretivas antecipadas de vontade, tem-se a discussão acerca da chamada ortotanásia, que possui importante conexão com o tema ora em análise. O Projeto de Lei nº 6.715, de 2009, em tramitação no Congresso Nacional, prevê a alteração do Código Penal (CP) para excluir de ilicitude a ortotanásia275, ou seja, o Relatório do referido projeto requer a permissão da “interrupção de medidas terapêuticas desproporcionais e extraordinárias para a manutenção artificial da vida de pacientes em situação de morte iminente e inevitável atestada por dois médicos”. Exige o consentimento do paciente ou de seu responsável e define ortotanásia “como morte correta e em seu devido tempo, sem prolongação irracional e cruel para o doente”. O Código de Ética Médica também denota a ausência de ilicitude na prática da ortotanásia. Em seu artigo 41, dispõe que É vedado ao médico: (...) Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal. Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal276.

Em São Paulo, foi promulgada a lei estadual nº 10.241/1999, que permite ao paciente recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida. Contudo, questiona-se a validade dessa norma à luz da “competência privativa COMISSÃO DE SEGURIDADE SOCIAL E FAMÍLIA. Projeto de Lei No 6.715, DE 2009 (Apensos os PLs 3002/2008, 5008/2009 e 6544/2009). Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para excluir de ilicitude a ortotanásia. Autor: Senado Federal. Relator: Deputado José Linhares. Disponível em: www.camara.gov.br. 276 Disponível em: www.cfm.org.br. Acesso em 30 de abril de 2013. 275


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reservada pela Constituição à União para legislar em matéria criminal”277. O debate a respeito da ortotanásia ganhou mais contornos após a publicação da Resolução nº 1.805/2006 do CFM, que, em seu art. 1º, dispõe: “É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal”. A citada Resolução passou por questionamento judicial através de ação civil pública promovida pelo Ministério Público Federal (MPF) do Distrito Federal (DF), que foi julgada improcedente pela Justiça Federal do DF sob os argumentos de que: a) o CFM tem competência para editar a Resolução nº 1805/2006, que não versa sobre direito penal e, sim, sobre ética médica e consequências disciplinares; b) a ortotanásia não constitui crime de homicídio, interpretando-se o Código Penal à luz da Constituição Federal; c) a edição da Resolução não determinou modificação significativa no dia a dia dos médicos que lidam com pacientes terminais, além de que os incentiva a descrever exatamente os procedimentos que adotam e os que deixam de adotar, em relação a pacientes terminais, permitindo maior transparência e possibilitando maior controle da atividade médica. Semelhantes questões foram suscitadas com a edição da Resolução nº 1.995/2012 do CFM, que dispõe a respeito das Diretivas Antecipadas de Vontade. O Ministério Público Federal de Goiás ingressou com ação civil pública em janeiro de 2013 propondo a declaração de inconstitucionalidade e ilegalidade da referida Resolução, por entender que ela: a) extravasou os limites do poder regulamentar; b) impôs riscos à segurança jurídica, com base no art. 5º, caput e inciso XXXVI da Constituição Federal (CF); c) alijou a família de decisões que lhe são de direito, com base no art. 226, caput, da CF; d) estabeleceu instrumento inidôneo para o registro de “diretivas antecipadas de pacientes”, ao entender ser inacessível a todos o conteúdo do prontuário e, assim, levar à ausência de mecanismo de controle quanto à atuação do médico. A Justiça Federal de Goiás, por sua vez, indeferiu o pedido liminar feito pelo MPF278, por entender que: a) o CFM não extrapolou os poderes normativos outorgados pela Lei nº 3.268/57279, tendo a Resolução apenas regulamentado a conduta médica ética TEPEDINO, Gustavo e SCHREIBER, Anderson. O extremo da vida: eutanásia, accanimento terapeutico e dignidade humana. Revista Trimestral de Direito Civil, Ano 10, vol. 39, julho a setembro de 2009, p. 12. 278 Decisão da Justiça Federal datada em março de 2013, disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/liminar-cfm-pacienteterminal.pdf. Acesso em 30 de abril de 2013. 279 “Dispõe sobre os Conselhos de Medicina, e dá outras providências”. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/Leis/L3268.htm. Acesso em 30 de abril de 2013. 277


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diante da situação fática de o paciente externar a sua vontade quanto aos cuidados e aos tratamentos médicos que deseja ou não receber; b) a Resolução é constitucional, e se coaduna com o princípio da dignidadade da pessoa humana, uma vez que assegura ao paciente em estado terminal o recebimento de cuidados paliativos e não o submete, contra sua vontade, a tratamentos que prolonguem o seu sofrimento e não tragam mais qualquer benefício; c) a manifestação de vontade do paciente é livre, com base no art. 107 do CC280; d) para a validade das diretivas antecipadas de vontade, observase o art. 104 CC281, portanto, não é necessário que a Resolução reitere a previsão legal. Há, também, o debate que pode ser estabelecido entre as esferas civil e penal relativo à aplicação dos artigos 15 do CC e 146, parágrafo 3º, inciso I, do CP. O art. 15 do CC dispõe que “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”. Contudo, a redação desse dispositivo pode levar à interpretação de que haveria obrigação de se aceitar tratamento ou cirurgia sem risco de vida282, contrariando-se o panorama ético e jurídico exposto. O art. 146, parágrafo 3º, I, do CP, assim dispõe: Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa. (...) § 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo: I - a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida.

No panorama ora analisado, encontra-se a indicação de que deve prevalecer a autonomia privada do paciente, sob o entendimento de que “ao impor pela força a aplicação de medida curativa expressamente não autorizada por pessoa adulta e suficientemente informada, então, estará ele médico praticando crime de constrangimento ilegal”283. Art. 107. A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir. 281 Art. 104. A validade do negócio jurídico requer: I – agente capaz; II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III - forma prescrita ou não defesa em lei. 282 Observação de: RIBEIRO, Diaulas Costa. Autonomia: viver a própria vida e morrer a própria morte. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 22 (8): 1749-1754, ago, 2006. 283 REALE JÚNIOR, Miguel. Direito penal: jurisprudência em debate, crimes contra a pessoa, volume 1. Miguel Reale Júnior, Janaína Conceição Paschoal; coordenador Miguel Reale Júnior. Rio de Janeiro: GZ Ed., 2011, p. 188. Importante indicar, ainda, a observação do autor de que “Outra consequência está na não tipificação da omissão do médico, ao 280


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É importante ressaltar a diferenciação de termos: a ortotanásia caracteriza-se pelo respeito à decisão do paciente em fase terminal de enfermidade grave e incurável de limitar ou suspender procedimento e tratamento que prolonguem sua vida, sendo garantidos os cuidados necessários quanto a uma assistência integral. Por sua vez, as diretivas antecipadas de vontade tratam de decisão realizada em estado anterior de enfermidade, no caso em que, verificada ou ocorrida essa enfermidade, o paciente se encontre em estado de inconsciência, não podendo manifestar sua vontade de forma livre e autônoma. Ainda, é fundamental não confundir ambas as situações, que enaltecem e efetivam a autonomia e a beneficência de tratamento, bem como a ética médica, com a prática de eutanásia, que se constitui em indução, com intenção, a óbito, com a autorização consciente da pessoa que passa por determinado tipo de sofrimento, não necessariamente em estado terminal. No Brasil, essa prática não é permitida284. Nesse contexto, a elaboração de uma lei específica que regulamente as diretivas antecipadas de vontade suscita duas reflexões: se, por um lado, a lei tornaria legalmente protegidos médicos e funcionários quanto à adoção da declaração antecipada de vontade do paciente, por outro lado tem-se a importância de uma lei bem redigida, atenta e sensível ao contexto clínico, para que possa ser efetiva diretriz de ação jurídica e social. O tema requer uma acurada verificação do uso da linguagem e de sua efetiva aplicação no caso concreto, para que uma possível lei traga elementos agregadores no processo decisional, e não o engessamento da prática num momento de necessária clareza na interpretação e aplicação do documento. Em linhas conclusivas sobre o tema, mas que não se esgotam nestas páginas, sustenta-se que a reflexão que envolve o fim de vida nos confronta, de forma contundente, com a nossa humanidade. O jurista italiano Stefano Rodotà afirma que os contornos do sofrimento ou da dor não são apenas físicos mas, também, socioculturais; por isso, a dor não se deixa entrapolar nas formais categorias jurídicas, mas o Direito não deixa de a seguir porque, se a tecnologia médica pode levar ao chamado “accanimento terapeutico”, ou seja, a uma obstinação terapêutica na manutenção da vida a todo e qualquer custo, a esfera jurídica tem buscado entender e vislumbrar se é possível falar em um “direito de morrer com dignidade”285. Trata-se, segundo ele, de um olhar a ser lançado sobre a cura paliativa, que busca estabelecer o deixar de impor o tratamento não autorizado pelo paciente, apesar de necessário, como crime de omissão de socorro”. ALVES, Cristiane Avancini. Eutanásia em discussão. Jornal Zero Hora, 06 de março de 2013, p. 15. 285 RODOTÀ, Stefano. La vita e le regole: tra diritto e non diritto. Milano: Feltrinelli Editore, 2006, p. 212. 284


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balanço entre a redução da dor e a redução (e não interrupção) da vida286. O referido olhar é extendido ao âmbito das diretivas antecipadas de vontade. A sua efetivação vai ao encontro do reconhecimento da autonomia do paciente. Essa autonomia, em nenhum momento, vem a destituir a autonomia do médico. O contexto europeu ressalta a audodeterminação como elemento fundante na disposição das diretivas, fator que se conecta ao cenário brasileiro na medida em que a Resolução 1.995/2012 do CFM busca “reconhecer a alteridade presente nesta relação, onde as decisões devem ser compartilhadas. Da responsabilidade inividual, nesta perspectiva de compartilhamento, surge a noção de corresponsabilidade. Não há uma submissão, mas sim o mútuo reconhecimento de uma co-presença ética na relação médicopaciente”287. É importante, sempre e constantemente, associar e lembrar do caráter de continuidade da nossa existência, na medida em que a expressão de nossa vontade anteriormente manifestada não pode ser, simplesmente, excluída de nossa história ou, na expressão de Giovanni Maria Flick, de nossa “vontade historicizada”. Segundo esse jurista italiano, não é possível “aceitar a ideia de que um sujeito, privado de sua capacidade de autodeterminação, se torne um ‘objeto’; que a ele não se reconheça mais a possibilidade de continuar a fazer valer – nos limites da nova situação – a autodeterminação expressa em precedência”288. Esse cenário perfectibiliza uma visão integral ao tratamento do paciente e traz a reflexão quanto ao que denomino “fator temporalidade” (já citado no início deste tópico), ou seja, à possibilidade de mudança, a qualquer momento, das diretivas, em virtude de novo posicionamento pessoal diante de determinado tratamento ou circunstância que altere nossa percepção frente ao fim de vida; e, em caso de manifesta incapacidade do paciente, seu representante poderá lançar esse olhar no sentido de verificar, por exemplo, a descoberta de novo tratamento durante o processo de tomada de decisão que possa trazer benefícios efetivos ao paciente. Através desse Segundo Rodotà, “O direito de morrer com dignidade converte-se não apenas em negar a obstinação terapêutica, mas, também, na busca de toda a cura que possa aliviar a dor, ainda que essa busca venha a diminuir o tempo de vida”. Originalmente: “Il diritto di morire con dignità si converte non solo nel rifiuto dell’accanimento terapeutico, ma pure nella richiesta di tutte le cure in grado di alleviare il dolore, anche se da ciò può derivare un accorciarsi della vita”. RODOTÀ, Stefano. La vita e le regole: tra diritto e non diritto. Milano: Feltrinelli Editore, 2006, p. 213. 287 ALVES, Cristiane Avancini, FERNANDES, Márcia Santana e GOLDIM, José Roberto. Diretivas antecipadas de vontade: um novo desafio para a relação médico-paciente. Revista HCPA. 2012;32(3):358-362. 288 Expressão original: “volontà storicizzata”. Originalmente, trecho: “Non riesco cioè ad accettare l’idea che un soggetto, privato della capacità di autodeterminazione, diventi ‘oggetto’; che non gli si riconosca più la possibilità di continuare a far valere – nei limiti della nuova situazione – l’autodeterminazione espressa in precedenza”. FLICK, Giovanni Maria. A proposito di testamento biologico: spunti per una discussione. Politica del Diritto, anno XL, n. 4, dicembre 2009, p. 526. 286


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balanceamento entre autonomia e beneficência, busca-se o compartilhamento e o adequado tratamento que deve ser dado ao paciente de acordo com seu quadro clínico, compartilhando-se e conectando-se elementos bioéticos e jurídicos na análise do caso concreto. Utilizar, portanto, o termo “testamento vital” no âmbito brasileiro, requer uma adequada contextualização, na medida em que testamento indica disposições a serem efetivadas após a morte, e vital refere-se à vida, sua conservação e essencialidade: se a denominação for, simplesmente, exposta sem qualquer reflexão, ela poderá não ser adequadamente identificada como manifestação autônoma, livre, e, sobretudo, para tratamento ou tomadas de decisão a serem realizados em e para a vida. Isso porque “A investigação sobre como o idioma que falamos molda nossa maneira de pensar tem ajudado a desvendar o modo como criamos o conhecimento, construímos a realidade e usamos nossa inteligência – o que nos ajuda a compreender exatamente a essência daquilo que nos faz humanos”289. A conjugação entre o princípio bioético da beneficência, o princípio da autonomia e o princípio da dignidade da pessoa humana cria o laço comum entre ordenamentos jurídicos que afirmam a pessoa humana como “valor-fonte”290 de sua formação social, em sua totalidade e complexidade. 5.2 Cuidados paliativos Há uma delicada e não menos profunda percepção quanto à importância dos denominados “cuidados paliativos” no atual debate sobre o fim de vida. Esse tema foi roteiro de um interessante filme italiano ambientado, inicialmente, na década de 1970 numa praia da Toscana, quando uma bela jovem ganha o concurso de “mãe mais bonita” daquele verão291. Os anos passam, e a agora senhora luta contra um câncer que não a desanima; pelo contrário, sempre com um sorriso nos lábios, ela procura unir, novamente, sua família, e reestabelecer laços que tinham se perdido com o tempo. Esse panorama dos cuidados paliativos ultrapassa as telas do cinema e se torna tema legislativo em diversos países. Inicialmente, deve-se traçar o caminho que antecede conceitos e percepções quanto ao fim de vida e, assim, sobre a concepção de morte no tempo. Nesse sentido, registra BORODITSKY, Lera. Como a linguagem modela o pensamento. Scientific American/Mente Cérebro, Ano XIX, nº 247, Agosto 2013, p. 35. 290 Expressão de Miguel Reale: REALE, Miguel. Pluralismo e liberdade. São Paulo: Edição Saraiva, 1963, p. 74. 291 A história do filme e sua relação específica com os cuidados paliativos foram analisados em: AVANCINI ALVES, Cristiane. “La prima cosa bella”: uno sguardo alle cure palliative. Revista de Bioética y Derecho, núm. 22, mayo 2011, p. 48-55. 289


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se que a morte, na Idade Média, tinha uma característica essencial: ela dava tempo, ao ser humano, de ser avisado sobre a sua chegada. Escritos literários demonstram que a morte era anunciada por sinais naturais ou premonições sobrenaturais, e esse anúncio possuía uma conotação positiva, porque era parte da vida cotidiana. Por exemplo, um documento do ano de 1.151, conservado no Museu dos Agostinhos (também conhecido como Museu das Belas Artes de Toulouse, na França), descreve como o sacristão de São Paulo de Narbona viu que estava para morrer: “Mortem sibi instare cernerat tanquam obitus sui prescius (Viu a morte ao seu lado como se assim tivesse pressentido). Fez seu testamento entre os monges, confessou-se e foi para a igreja receber o corpus domini e lá morreu”292. Na passagem do tempo, entre a metade dos Oitocentos e o primeiro período dos Novecentos, começa a se impor a especialização científica e, gradualmente, diminui a perspectiva filosófica-científica, em que a morte não é mais um evento que se insere em um contesto “cósmico natural”. A manifestação da morte é compreendida pelo médico através das percepções antropológicas e meios culturais válidos para o grupo social em que ele atua diretamente, pois esses meios culturais, próximo ao leito do paciente e do drama da morte domiciliar, o farão partícipe de uma vivência comunitária, como um ritual que é capaz, em parte, de compensar a ainda necessária compreensão dessa realidade filosófico-científica293. O médico que atua no período dos Novecentos entra nesse contexto com a “capacidade de conjugar à progressiva tecnologia que se desenvolve, destinada a aumentar a quantidade da vida e a melhorar a sua qualidade, a insubstituível presença de uma antropologia relacional, que possui, entre suas tarefas principais, aquela de tornar melhor a qualidade de morrer”294. Essa mesma tecnologia levou ao desenvolvimento da biomedicina, que se reflete ARIÈS, Philippe. L’uomo e la morte dal Medioevo a oggi. Título da edição original “L’homme devant la mort”, tradução de Maria Garin. Roma-Bari: Editori Laterza, 1989, p. 7. 293 Considerações de: MONDELLA, Felice, In DI MOLA, Giorgio (org). Cure palliative: approccio multidisciplinare alle malattie inguaribili. Milano: Masson, 1994, p. 7. 294 Originalmente: “capacità di associare all’apporto progressivo della tecnologia in divenire, destinata ad aumentare la quantità di vita e a migliorarne la qualità, l’insostituibile portato di un’antropologia relazionale che ha tra i suoi compiti primari anche quello di rendere migliore la qualità del morire”. COSMACINI, Giorgio. Testamento biologico: idee ed esperienze per una morte giusta. Bologna: Il Mulino, 2010, p. 43. O autor transcreve como a morte era descrita nas páginas do jornal “A Itália sanitária”, de 1909. Ele narra que a solidão daquele que está para morrer é contraposta em um contexto de participação emotiva dos familiares, que solicita a presença do médico e, assim, ameniza a frustração do mesmo pela morte do paciente: “La vecchieta moriva. Il male onde era tormentata nei suoi ultimi giorni non consentiva illusioni. Moriva. Tuttavia l’inferma aveva detto al medico condotto con un filo di voce: ‘Torna ancora a vedermi nella notte?’, e il medico aveva promesso di tornare. Anche i parenti, tutti raccolti intorno al letto della morente, avevano ripetuto la preghiera: ‘Torni, dottore’. Ed egli, chinando la fronte, aveva replicata la promessa: ‘Tornerò’”. 292


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na busca de cuidados de saúde, tratamento e cura. Os hospitais tornaram-se lugares onde a técnica e a ciência podem ser aplicadas em benefício do paciente, usando as ferramentas adequadas com profissionais que objetivam a sua recuperação. Contudo, a cura, se percebida como objetivo absoluto no tratamento clínico, afasta a naturalidade da morte. Isso pode acontecer porque o desenvolvimento das tecnologias dirigidas à area médica leva seus profissionais a buscar a manutenção da vida, mas o limite entre o uso dessa mesma tecnologia como um intrumento, e não como o fim último para o bem do paciente, torna-se extremamente tênue. A percepção da denominada “obstinação terapêutica”295, nesse contexto, demonstra a dificuldade de equilibrar a vida e a morte quando elas se aproximam. Uma espécie de medo sobre a própria pronúncia e expressão da palavra morte é refletido no desafio da ciência em manter vivo o paciente, especialmente quando o hospital se torna o lugar onde a morte não está prevista porque “a medicina, que foi fundada como um baluarte para a defesa da vida, é forçada a assumir o encargo da morte. Ao assumir esse peso, encontra-se, muitas vezes, desconfortável, tendo de alterar sua referência e transferir sua meta de cuidar para curar”296. Nesse contexto, os cuidados paliativos têm um papel importante: olhar para o paciente na sua totalidade, aproximando o processo da morte à sua naturalidade e àquilo que cada pessoa entende ou se posiciona com relação ao fim de sua própria vida. Esse tema possui importante debate no cenário internacional. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), os cuidados paliativos consistem na abordagem ou atuação que melhora a qualidade de Na Itália, a expressão “accanimento terapeutico” (ou “obstinação terapêutica” em português), constitui um reflexo não apenas do desenvolvimento biotecnológico, mas é, também, constituído de uma singular maneira de olhar a morte, que, por vezes, se configura como uma negação da própria finitude humana. Nesse sentido, o Comitè Nacional para a Bioética italiano (CNB) elaborou um parecer que sugere a denominação “obstinação clínica” para caracterizar a situação referida. Diz o parecer Rifiuto e rinuncia consapevole al trattamento sanitario nella relazione paziente-medico, publicado em 24 de outubro de 2008: “Un ulteriore profilo che occorre considerare consiste nella distinzione fra rifiuto/rinuncia a cure proporzionate e a cure sproporzionate (che rientrano nella nozione di ‘accanimento terapeutico’). L’espressione ‘accanimento terapeutico’, pur se largamente usata, appare generica e di per sé contraddittoria se riferita ai casi in cui i mezzi impiegati non esplichino più, di fatto, alcun effetto terapeutico. Per questo motivo il CNB ritiene preferibile utilizzare l’espressione ‘accanimento clinico’, riferendosi con essa ad una sproporzione fra l’efficacia e la gravosità delle cure praticate e i benefici ottenibili nelle circostanze cliniche concrete (si parla, a tale riguardo, di ‘cure futili’), fermo restando che ogni trattamento va valutato bilanciandone i potenziali apporti positivi (beneficialità) o negativi (neminem laedere)”. O artigo 16 do Codice di Deontologia Medica (2006), da Federação Nacional da Ordem dos Médicos e Dentistas, assim dispõe: “Art. 16 - Accanimento diagnostico-terapeutico – Il medico, anche tenendo conto delle volontà del paziente laddove espresse, deve astenersi dall’ostinazione in trattamenti diagnostici e terapeutici da cui non si possa fondatamente attendere un beneficio per la salute del malato e/o un miglioramento della qualità della vita”. 296 COSMACINI, Giorgio. Testamento biologico: idee ed esperienze per una morte giusta. Bologna: Il Mulino, 2010, p. 43. 295


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vida dos pacientes e de suas famílias que enfrentam o problema associado a doenças que ameaçam a vida, através da prevenção e alívio do sofrimento por meio de uma identificação precoce e avaliação e tratamento impecáveis da dor e de outros problemas físicos, psicossociais e espirituais297.

Nesse contexto e na relação com os cuidados paliativos, a OMS afirma a vida e vê a morte como um processo normal, sem qualquer intenção de acelerar ou retardar esse processo298. A origem da palavra “paliativo” advém do latim pallium (manto, pálio, um termo que hoje caracteriza o pálio papal, uma estola de lã de carneiro que simboliza a ovelha perdida que o bom pastor carrega em seus ombros). Com essa imagem, o termo “cuidado paliativo” refere-se ao atendimento a pacientes com doenças terminais com o objetivo de melhorar sua qualidade de vida, ao invés de prolongar a sobrevida, oferecendo aos pacientes e a suas famílias um cuidado contínuo e abrangente no que diz respeito tanto aos aspectos médicos e de saúde quanto aos psicossociais, existenciais e espirituais, em um único modelo holístico299. Nesse ponto, a percepção do sofrimento entendido num aspecto mais amplo, que inclui não apenas a dor física, torna-se elemento de reflexão conjugado à própria evolução das tecnologias e das práticas biomédicas. Sendo assim, se o aparato técnico em relação ao tratamento de doenças está em constante desenvolvimento, “o que permanece, porém, inalterada, é a natureza intrínseca do homem, com suas necessidades básicas”300. Nesse cenário, a formação de estruturas de acolhimento de pacientes que possuem diagnóstico de poucos meses de vida é demonstração do quanto esse tema também está em processo de desenvolvimento e aprimoramento no cenário mundial. O estudo da formação dessas estruturas é ponto importante para a compreensão da abrangência dos cuidados paliativos. Elas surgem com a denominação “hospice”, que traduz o termo em latim hospitium e retoma a imagem de um lugar de Originalmente: “Palliative care is an approach that improves the quality of life of patients and their families facing the problem associated with life-threatening illness, through the prevention and relief of suffering by means of early identification and impeccable assessment and treatment of pain and other problems, physical, psychosocial and spiritual”. Disponível em: http://www.who.int/cancer/palliative/definition/en/. Acesso em 6 de fevereiro de 2015. 298 Indicação da OMS: “affirms life and regards dying as a normal process; intends neither to hasten or postpone death”. Disponível em: http://www.who.int/cancer/palliative/definition/en/. Acesso em 6 de fevereiro de 2015. 299 Definição em: CETTO, Gian Luigi. La funzione delle cure palliative nel garantire la dignità della persona e il raggiungimento di una “buona morte”. Il Sole 24 Ore – Sanità, marzo 2010, p. 23. 300 MITSCHERLICH, Alexander. Malattia come conflitto. Milano: Giangiacomo Feltrinelli Editore, 1977, pp. 8-9. 297


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acolhimento301. O simbolismo que circunda o hospice remete a um lugar onde os viajantes, os peregrinos, os doentes, os feridos e, até mesmo, aqueles que estavam por morrer podiam parar e encontrar repouso e conforto no período que abrange a Idade Média. Essa abordagem, ainda que com as mudanças decorrentes da evolução dos tratamentos médicos, permanece até hoje através da “importância que o hospice oferece aos cuidados paliativos do que aos curativos, à qualidade da vida ao invés da quantidade da vida, ao alívio físico e espiritual do paciente ao invés da aplicação dos regimes terapêuticos e preordenados que seriam, de qualquer forma, não mais decisivos”302. O hospice, por isso, não se identifica com um lugar em que são oferecidos benefícios assistenciais específicos, mas é um conceito de atendimento destinado a uma categoria específica de pacientes, aqueles cuja expectativa de vida pode ser medida em semanas ou meses. A intervenção daquele que trabalha com os cuidados paliativos não acontece só nos últimos dias de vida do paciente, mas muito antes da fase avançada da doença303. Os cuidados paliativos preocupam-se, em primeiro lugar, em combater a dor e os outros sintomas relacionados com a doença, e de prestar serviços de ordem social, espiritual e psicológico para o paciente e sua família, especialmente na casa do paciente, mas também em clínicas ou enfermarias especializadas. Neste sentido, o hospice é também definido como um “centro de cuidados paliativos”, um conceito que pode ser aplicado para diferentes lugares, mas que permanece conceitualmente igual em seus fundamentos304. Registra-se que a primeira experiência que pode se aproximar de uma estrutura semelhante a de um hospice moderno remonta à época do Imperador Juliano o Apóstata, no século V d.C., quando uma nobre romana que deixou a vida civil para entrar na vida religiosa, Fabíola, seguidora de São Jerônimo, fundou um hospitium para viajantes, doentes e para aqueles que estavam por morrer. O termo hospice, que originou o sentido da expressão “cuidados paliativos”, foi introduzido pela primeira CUNIETTI, Ettore; VIGANÒ, Antonio; MONTI, Massimo; CRUCIATTI, Flavio, In DI MOLA, Giorgio (a cura di). Cure palliative: approccio multidisciplinare alle malattie inguaribili. Milano: Masson, 1994, p. 184. 302 Originalmente: “nel privilegio che l’hospice dà ai trattamenti palliativi piuttosto che curativi, alla qualità della vita piuttosto che alla quantità della vita, al sollievo fisico e spirituale del paziente piuttosto che all’applicazione di schemi terapeutici preordinati e, comunque, non risolutivi”. CIRILLO, Mario. In GIORGETTI, Raffaella. Legislazione e organizzazione del servizio sanitario. Maggioli Editore, 2002, pp. 90-91. 303 VALENTI, Danila. Curare quando non si può guarire. In La Professione: medicina, scienza, etica e società. Trimestrale della Federazione nazionale degli Ordini dei medici chirurghi e degli odontoiatri. Convegno Nazionale “Dichiarazioni anticipate di volontà”, Terni, XII Giugno MMIX, p. 135. 304 CIRILLO, Mario. In GIORGETTI, Raffaella. Legislazione e organizzazione del servizio sanitario. Maggioli Editore, 2002, pp. 93-94. 301


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vez na língua francesa no século XIX, por Madame Jeanne Garnier: ela abriu o primeiro hospice na cidade de Lyon, na França, em 1843. O mesmo termo foi posteriormente adotado em Dublin, pelas Irish sisters of charity, quando inauguraram, em 1879, o denominado Our Lady’s Hospice. Outras sucessivas estruturas foram criadas no St. Luke’s Hospital (Home for dying poor, 1893) e, posteriormente, foi criado o St Joseph’s Hospice, Hackney (1905), na Inglaterra305. O primeiro hospice com as características de envolvimento dos cuidados paliativos semelhantes aos atuais foi idealizado por Dame Cicely Saunders, em 1967, na Inglaterra. O St. Christopher’s Hospice, localizado em um subúrbio de Londres, criou o protótipo do hospice moderno, formado por uma equipe multidisciplinar e que se apresentava como uma alternativa para a casa do paciente, uma vez que possibilitou um atendimento de saúde específico sem interrupção (24h), em um ambiente confortável e como alternativa para o hospital. Promoveu, também, a personalização do tratamento e possibiliou a presença contínua de familiares e amigos próximos ao paciente306. Os custos de gestão e o acesso a uma estrutura hospitalar para exames de diagnóstico e laboratoriais foram as principais limitações do hospice, pois, conceitualmente e operacionalmente, os cuidados paliativos ocupavam uma postura diversa daquela do hospital e, assim, não eram próximos à medicina convencional. Esse cenário mudou com a transformação de um departamento do hospital Royal Victoria de Montreal (Canadá), em um hospice, criando as condições para a integração da medicina tradicional e os cuidados paliativos, o que permitiu “não apenas uma melhor integração das possibilidades técnico-científicas oferecidas por um hospital moderno (= high-tech), com os objetivos reais dos cuidados paliativos (= high touch), mas, também, uma formação prática na assistência aos que estavam por morrer, que vinha inserida na formação de todos os profissionais de saúde”307. Aspectos históricos deste parágrafo em: Hospice in Italia. Prima rilevazione ufficiale. Pubblicazione realizzata nell’ambito del progetto “Rete degli Hospice Italiani”, in partnership tra la Società Italiana di Cure Palliative (SICP), Fondazione Isabella Seràgnoli e Fondazione Floriani e con il patrocinio del Ministero della Salute. Disponível em: www.salute.gov.it. 306 CUNIETTI, Ettore; VIGANÒ, Antonio; MONTI, Massimo; CRUCIATTI, Flavio, In DI MOLA, Giorgio (a cura di). Cure palliative: approccio multidisciplinare alle malattie inguaribili. Milano: Masson, 1994, pp. 184-185. 307 Originalmente: “non soltanto un migliore confronto delle possibilità tecnico-scientifiche offerte da un moderno ospedale (= high-tech) con i reali obiettivi delle cure palliative (= high touch), ma anche una formazione pratica nell’assistenza al morente che veniva inserita nel tirocinio di ogni operatore sanitario”. CUNIETTI, Ettore; VIGANÒ, Antonio; MONTI, Massimo; CRUCIATTI, Flavio, In DI MOLA, Giorgio (a cura di). Cure palliative: approccio multidisciplinare alle malattie inguaribili. Milano: Masson, 1994, p. 185. 305


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No âmbito jurídico, há países que introduziram legislativamente o tema em seu panorama legal. Por exemplo, a Lei 2/2010 Ley de Derechos y Garantías de la Dignidad de la Persona en el Proceso de la Muerte da Andalusia, na Espanha, afirma em seu preâmbulo que “O direito a uma vida humana digna não pode ser obstaculizado com uma morte indigna. O ordenamento jurídico está, portanto, chamado também a concretizar e proteger este ideal da morte digna”308. O Conselho Geral Médico espanhol, em uma declaração sobre La atención médica al final de la vida, de janeiro de 2009, indicou que O progressivo aumento do número de pessoas que precisam de cuidados paliativos constitui, atualmente, um paradigma que já não pode mais ser considerado como uma situação marginal no ensino das Faculdades de Medicina. A demanda social da medicina paliativa é um bom exemplo para entender a urgência das reformas nos planos de estudo, mais adapatados às necessidades da sociedade309.

Na França, os cuidados paliativos foram oficialmente introduzidos no sistema nacional através da circulaire Laroque de 1986, relativa “à organização e acompanhamento dos doentes em fase terminal”. Após a proposta do deputado Jean Leonetti sobre “o acompanhamento do fim de vida”, realizada em 2002, foi promulgada a Loi relative aux droits des malades et à la fin de vie em 2005, e em fevereiro de 2010 o governo francês inaugurou um “Observatório nacional do fim de vida”310. O Observatório tem como objetivo divulgar informações sobre os aspectos da lei relativa ao fim da vida311. Originalmente: “El derecho a una vida humana digna no se puede truncar con una muerte indigna. El ordenamiento jurídico está, por tanto, llamado también a concretar y proteger este ideal de la muerte digna”. Indica o preâmbulo, ainda, que “La dimensión concreta de este ideal y los derechos que generan han sido motivo de debate en los últimos años, no solo en nuestro país, en nuestra Comunidad Autónoma, sino en el mundo entero. Sin embargo, hoy en día puede afirmarse que existe un consenso ético y jurídico bastante consolidado en torno a algunos de los contenidos y derechos del ideal de la buena muerte, sobre los que inciden los artículos de la presente Ley”. Disponível em: http://www. parlamentodeandalucia.es/webdinamica/portal-web-parlamento/pdf.do?tipodoc=coleccion&id=47573&cley=2. 309 Originalmente: “El progresivo incremento de personas que precisan cuidados paliativos constituye actualmente un paradigma que ya no se puede considerar como cuestión marginal en la enseñanza de las Facultades de Medicina. La demanda social de medicina paliativa es un buen ejemplo para entender la urgencia de reformas en los planes de estudio más adaptadas a las necesidades de la sociedad”. Disponível em: http://www.cgcom.org/documentacion/2009. 310 JORF n°0092 du 20 avril 2010 page 7331 – texte n° 60 – Arrêté du 12 avril 2010 fixant la composition du comité de pilotage de l’Observatoire national de la fin de vie, http://www.legifrance.gouv.fr. 311 “L’observatoire national de la fin de vie, issu des préconisations de la mission Leonetti sur la fin de vie, a été inauguré lundi par la ministre de la Santé Roselyne Bachelot dans les locaux de la fondation Oeuvre de la Croix Saint-Simon, à l’hôpital des Diaconesses à Paris. La création de cet ‘Observatoire national des conditions de la fin de vie et des pratiques d’accompagnement’ intervient quelques jours après l’adoption par le Parlement d’un congé d’accompagnement de la fin de vie, une des mesures phare de la mission d’évaluation de la loi Leonetti. ‘Probablement on meurt encore mal 308


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No cenário italiano, o então Ministro da Saúde autorizou, em outubro de 1998, a implementação de 2.900 leitos para o âmbito dos cuidados paliativos. O decreto ministerial de 28 de outubro de 1999, relativo à Lei n. 39, de 26 de fevereiro de 1999312, determinou a realização do programa de cuidados paliativos previsto no Plano Sanitário Nacional de 1998-2000, e introduziu linhas de atuação para a estruturação de centros de cuidados paliativos e dos critérios de integração desses centros com outras atividades assistenciais313. Nesse campo, são indicadas duas leis fundamentais sobre o tema: a primeira teve como objetivo principal o financiamento do hospice para auxiliar seu nascimento e desenvolvimento, o que ocorreu em 1999314; a segunda, em 2010, buscou o entrelaçamento da rede de cuidados paliativos, ou seja, a integração entre hospice e assistência domiciliar315. Especialistas nesse assunto afirmam que, normalmente, o hospice recebe pacientes com capacidade de discernimento e decisão, que assim permanecem até seus últimos dias de vida, estando habilitados a se manifestar e relacionar como todos aqueles que os circundam316. O contexto dos cuidados paliativos relaciona-se a um processo de cura, que envolve tanto o paciente quanto sua família. Os funcionários e en France’, a observé le député Jean Leonetti au cours d’un point presse à l’issue de la visite par la ministre du service des soins palliatifs de l’hôpital des Diaconesses. ‘Il y a lieu d’observer l’évolution de la société, les conditions de la fin de vie, l’évolution des pratiques autour de ces notions de fin de vie”, a pour sa part expliqué le président du comité de pilotage de l’observatoire, le Dr Régis Aubry, par ailleurs président du comité national de suivi du développement des soins palliatifs et de l’accompagnement. L’observatoire aura aussi pour mission de diffuser l’information sur la loi sur la fin de vie’, notícia publicada no site do jornal Le Figaro: http://www.lefigaro.fr/flash-actu/2010/02/22/0101120100222FILWWW00758-un-observatoire-national-de-la-fin-de-vie.php. 312 Legge 26 febbraio 1999, n. 39, “Conversione in legge, con modificazioni, del decreto-legge 28 dicembre 1998, n. 450, recante disposizioni per assicurare interventi urgenti di attuazione del Piano sanitario nazionale 1998-2000”, pubblicata nella Gazzetta Ufficiale n. 48 del 27 febbraio 1999. 313 CIRILLO, Mario, In GIORGETTI, Raffaella. Legislazione e organizzazione del servizio sanitario. Maggioli Editore, 2002, p. 100. 314 Legge 26 febbraio 1999, n. 39, “Conversione in legge, con modificazioni, del decreto-legge 28 dicembre 1998, n. 450, recante disposizioni per assicurare interventi urgenti di attuazione del Piano sanitario nazionale 1998-2000”, pubblicata nella Gazzetta Ufficiale n. 48 del 27 febbraio 1999. 315 Legge 15 marzo 2010, n. 38, “Disposizioni per garantire l’accesso alle cure palliative e alla terapia del dolore”, pubblicata nella Gazzetta Ufficiale n. 65 del 19 marzo 2010. 316 In questo contesto, l’importanza del rispetto alla volontà del malato è coinvolto e valorizzato tramite il rapporto medicopaziente. “È chiaro che i nostri pazienti si riferiscono e si relazionano con noi quotidianamente e quotidianamente possono, e devono poter, modificare le indicazioni, le direttive, già espresse. Sempre nell’ambito di una forte relazione paziente-medico. È quando il malato non riesce più ad esprimersi che noi dobbiamo tenere, non in massimo conto, ma assolutamente in conto delle indicazioni che questi aveva dato quando era in stato di lucidità. (...) Per curarlo e assisterlo al meglio, non per abbandonarlo. Sulla base del suo concetto di qualità di vita, non sulla base del concetto di qualità di vita di un medico che, come può essere un medico del Pronto Soccorso, pur nella sua massima competenza di medico, non ha mai conosciuto il paziente, non ha mai parlato con il malato, con il quale non ha mai avuto la possibilità di portare avanti una profonda relazione paziente-medico”. VALENTI, Danila. Curare quando non si può guarire. In La Professione: medicina, scienza, etica e società. Trimestrale della Federazione nazionale degli Ordini dei medici chirurghi e degli odontoiatri. Convegno Nazionale “Dichiarazioni anticipate di volontà”, Terni, XII Giugno MMIX, p. 136.


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a equipe médica auxiliam ambas as partes, pois os familiares sofrem indiretamente da mesma doença do paciente, tornando-se parte de todo o processo. É por isso que “se passa da unidade de cura ‘individual’ para uma unidade de cura ‘social’”317. Nesse ponto, o princípio da autonomia possui força fundamental, associado ao art. 6º da Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos, quando se faz referência ao consentimento. Cita-se, ainda, o art. 8º desse documento, por se tratar da preservação da integridade da pessoa humana, bem como o art. 11, ao indicar a não discriminação e a não estigmatização de cada indivíduo. Esse mesmo princípio é trazido, também, nas palavras de Stefano Rodotà, que alerta para uma espécie de “direito à doença”, ou seja, para além do direito à cura “se percebe a necessidade de aceitação social do doente, da não discriminação de quem sofre anomalias físicas ou psíquicas, como indispensável requisito da sua decisão de perceber a vida para além dos sofrimentos e dos meios que possam a alivar materialmente”318. Para o autor, apenas quando a dor não for considerada um mecanismo de exclusão – da família, do trabalho, da vida em comum – que irão crescer as possibilidades de não se ver (a dor) como um atentado à dignidade e, assim, aceitá-la e com ela conviver. É, propriamente, o equilíbrio entre essas considerações e a dignidade da pessoa319 expressa, também, pela sua autonomia, que sedimenta a implementação dos cuidados paliativos. No cenário brasileiro, o Código de Ética Médica (CEM) refere-se à terminalidade da vida e entre seus princípios fundamentais assim dispõe: “XXII - Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados”320. No art. 36, parágrafo 2º, tem-se como vedado ao médico “Abandonar paciente sob seus cuidados. (...) § 2° Salvo por motivo justo, CIRILLO, Mario, In GIORGETTI, Raffaella. Legislazione e organizzazione del servizio sanitario. Maggioli Editore, 2002, p. 90. 318 Originalmente: “si scorge la necessità dell’accettazione sociale del malato, della non discriminazione di chi soffre anomalie fisiche o psichiche, come indispensabile premessa della sua decisione di considerare la vita al di là delle sofferenze e dei mezzi che possano materialmente alleviarle”. RODOTÀ, Stefano. La vita e le regole: tra diritto e non diritto. Milano: Feltrinelli Editore, 2006, p. 214. 319 ANDORNO, Roberto. La notion de dignité humaine est-elle superflue en bioéthique? Revue Générale de Droit Médical, n° 16, 2005, pp. 95-102. O autor afirma que não se deve confundir o respeito pela pessoa com a sua dignidade: “Ce serait comme confondre la cloche et le son qu’elle produit, la cause et l’effet. Autrement dit, l’idée de dignité est préalable à celle de respect et vise à répondre à la question ‘pourquoi doit-on respecter les personnes ?’. La notion de dignité n’est pas non plus synonyme d’autonomie. Certes, le respect de l’autonomie des personnes fait partie de ce que réclame leur dignité. Mais ces deux notions ne s’identifient pas. Autrement, les individus qui ne sont pas encore moralement autonomes, comme les nouveaux-nés, ou ceux qui ont déjà perdu de façon irréversible leur autonomie morale, comme certains individus atteints de maladies mentales, n’auraient aucune dignité, ce qui n’est pas le cas”. 320 Código de Ética Médica. Disponível em: http://portal.cfm.org.br/. 317


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comunicado ao paciente ou aos seus familiares, o médico não abandonará o paciente por ser este portador de moléstia crônica ou incurável e continuará a assisti-lo ainda que para cuidados paliativos”. Entende-se que, dessa forma, o Código “preconiza o surgimento da identidade do médico como orientador e parceiro do paciente, a partir de uma visão não só biológica, mas fundamentalmente humanista”321. Novamente, ressalta-se a percepção da totalidade da pessoa humana e, mesmo que não haja legislação específica sobre o tema no Brasil, é necessário o delineamento de diretrizes que possam garantir a prática dos cuidados paliativos no país. Deve-se atentar, portanto, à percepção de como as políticas públicas devem atuar e assumir responsabilidades quanto à implementação dos cuidados paliativos como tratamento partícipe do panorama sanitário. Nesse sentido, o não oferecimento do acesso a esse cuidado poderia ser alvo de efetiva discussão também no âmbito jurídico. De acordo com John Keown, “a lei, tanto civil como penal, pode ter um papel importante a desempenhar, não apenas para reivindicar os direitos das pessoas para quem foi negado o alívio da dor e do sofrimento, mas, também, como um estímulo para promover a prática adequada”322. O diretor do filme “La prima cosa bella”, citado no início deste tópico, disse, numa conferência à imprensa, que os atores que participaram das filmagens viveram essa experiência através da mistura de “morfina e alegria”323. Ele referiu que a intenção da obra foi passar ao público um olhar sobre a morte que não fosse necessariamente trágico, mas que pudesse ser um contexto capaz de ainda atribuir alegria para a vida até seu último momento. A conexão entre a ficção e a realidade reside na permanente garantia à dignidade da pessoa humana em todas as suas fases, especialmente percebendo-se que seu começo e fim são percursos naturais da nossa existência.

CHAVES, José Humberto Belmino, MENDONÇA Vera Lúcia Gama de, PESSINI Leo, REGO, Guilhermina, NUNES, Rui. Cuidados paliativos na prática médica: contexto bioético. Rev Dor. São Paulo, 2011 jul-set;12(3):250-5. 322 Originalmente: “the law, both civil and criminal, may have a significant role to play not only in vindicating the rights of those denied reasonable relief from pain and suffering, but also as a fillip to promote reasonable practice”. KEOWN, John. The law and ethics of medicine: essays on the inviolability of human life. Oxford University Press, 2012, p. 326. 323 Entrevista: “E per il regista Virzì anche la morte diventa una ‘cosa bella’”. Il Sole 24 Ore – Sanità, 16-22 marzo 2010, Primo Piano, p. 3. 321


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CONCLUSÃO

– Posso te dizer tudo? – Pode. – Você compreenderia? – Compreenderia. Eu sei de muito pouco. Mas tenho a meu favor tudo o que não sei e, por ser um campo virgem, está livre de preconceitos. Tudo o que não sei é minha parte maior e melhor, é a minha largueza. É com ela que eu compreenderia tudo. Tudo o que não sei é que é a minha verdade324.

Ter a nosso favor tudo o que não se sabe revela a imensidão do mundo e, nele, a quantidade de assuntos, conteúdos, elementos que podem entrar nessa vastidão do tempo e do espaço. Contudo, na verdade, esse não saber é saber: é abertura para o novo e para a constante atualização das levezas e das seriedades da vida. O “Diálogo” que Clarice Lispector estabelece com seu leitor extende-se à temática tratada nessa obra e, assim, à percepção de que início e fim de vida, alicerçados na bioética e nos direitos humanos, requerem essa permanente abertura para novos dados e conhecimentos que, ao serem compreendidos e apreendidos, já revelam, por si, novos caminhos. Os caminhos traçados nas páginas anteriores procuraram direcionar e oferecer alguns passos para a compreensão de temas que têm pautado tanto o debate nacional quanto internacional a respeito dos direitos humanos e da bioética, aqui conjugados. Inicialmente, o percurso traçado sobre a formação dos direitos humanos fundou-se na construção da ideia de personalidade ao longo dos séculos, pois durante alguns períodos históricos há forte associação entre “ser humano” e “objeto”, ou seja, a reificação da pessoa humana e o tolhimento de sua participação em sociedade. No contexto de formação das primeiras Constituições e Códigos, situados após as Revoluções Norte-Americana e Francesa, tem-se a razão como fator determinante na atribuição de poder decisório a cada indivíduo que, assim, passa a questionar o status quo em que vive. Essa conquista possibilita a abertura acima referida, na medida em que esse questionar reflete a não aceitação passiva das decisões políticas da época e, assim, leva à transformação social e jurídica que marcou não apenas aquele LISPECTOR, Clarice. “Diálogo”. Clarice na cabeceira: jornalismo. Rio de Janeiro: Rocco, 2012, p. 149.

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período, mas que serviu de base às posteriores elaborações de documentos referentes à proteção da pessoa humana. Um interessante livro de Bertold Brecht sobre Galileu Galilei descreve essa percepção quanto à importância da razão no período de transição entre o Renascimento e o Iluminismo. A obra é construída em formato de peça teatral e, assim, outro diálogo (na esteira das trocas estabelecidas também com a autora da abertura desta conclusão) revela as aspirações de Galileu quanto às novas possibilidades advindas da racionalidade humana: Eu não estou falando da esperteza. Eu sei que na hora de vender o povo chama o burro de cavalo, e chama o cavalo de burro na hora de comprar. Essa é a sua esperteza. A velhinha sabida, que dá mais capim à sua mula porque na manhã seguinte vão viajar; o navegador que provê seu barco pensando na tempestade e na calmaria; a criança que bota um boné se lhe provaram que pode chover, são esses a minha esperança. Eles usam a cabeça.

E, aqui, segue Brecht com um trecho importante: Sim senhor, eu acredito na força suave da razão. A longo prazo, os homens não lhe resistem, não agüentam. Ninguém se cala indefinidamente – Galileu deixa cair uma pedra de sua mão –, se eu disser que a pedra que caiu não caiu. Não há homem capaz disso. A sedução do argumento é grande demais. Ela vence a maioria, todos, a longo prazo. Pensar é um dos maiores prazeres da raça humana325.

A posterior proclamação dos direitos do homem vem a indicar que a fonte da lei passa a ser o homem e não mais o comando divino ou os costumes326. A convicção percebida nas palavras de Galileu foi confirmada com o constitucionalimo e a codificação (conforme acima exposto) no âmbito de uma primeira sistematização normativa. Entretanto, o advento da Segunda Guerra Mundial estremeceu as bases construídas nesse sentido, que se acreditava serem firmes o

Citações em: BRECHT, Bertold. Vida de Galileu. Teatro completo, em 12 volumes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 81. LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos – um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 123.

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suficiente para seguirem seu percurso quanto à formação social e política das nações. O crescimento do movimento totalitário naquele contexto e a presença dos campos de concentração rompem com a trajetória estabelecida, e mais, surpreendem, pois ocorrem no âmbito de uma sociedade de elevado desenvolvimento em diversas áreas sociais e políticas327. Essa constatação reafirma a importância de se manter acesa a memória das novas gerações quanto aos atos praticados nos campos de concentração e o que eles significaram para a humanidade. Conforme já referido nas páginas anteriores, esse processo de despersonalização atingiu intrinsecamente a população de diversos países europeus que, após o fim da guerra, se uniram para a elaboração de documentos que viessem a garantir o que já deveria ser inquestionável: a dignidade da pessoa humana e sua proteção. Une-se a essa garantia a reflexão bioética, que emerge efetivamente no cenário mundial com a análise de casos que, semelhantemente aos campos de concentração, instrumentalizaram o ser humano em práticas que visavam aprimorar experimentos biomédicos. A ausência de consentimento na realização desses procedimentos é um dos elementos marcantes desse contexto; por isso, a aplicação dos princípios jurídicos e bioéticos torna-se de extrema importância, na medida em que estabelecem elementos conectivos de aplicabilidade. Nesse sentido, os princípios da autonomia e da liberdade estão intrinsecamente relacionados ao processo de tomada de decisão. Um fator determinante na conjugação entre a bioética e os direitos humanos advém da publicação do conceito de saúde pela Organização Mundial de Saúde em 1948, após o fim da Segunda Guerra Mundial, quando a experiência nazista demonstrou ao mundo que o ser humano não se limita à corporeidade: os reflexos morais, culturais, psicológicos e afetivos compõem o “ser pessoa”, e a caracterização da saúde irá, então, abranger a totalidade do ser humano. A promulgação da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos reflete a ampliação do debate sobre os temas biomédicos associados ao âmbito jurídico, na medida em que o direito passa a ser chamado na resolução de casos que envolvem o cuidado médico. Um dos fatores responsáveis por essa conjugação é o avanço das novas tecnologias na área da saúde que, ao promoverem melhorias e descobertas

Uma interessante análise desse panorama encontra-se em: WYNIA, Matthew K. and WELLS, Alan L. Light from the flames of hell: remembrance and lessons of the Holocaust for today’s medical profession. IMAJ, Vol. 9, March 2007.

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importantes nesse campo, suscitaram a reflexão quanto aos limites de práticas relacionadas, especialmente quanto ao início e quanto ao fim de vida. Entre os elementos precursores dessa reflexão está o desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida. Verificou-se que não há hegemonia normativa quanto à definição do início da vida humana no cenário mundial e, assim, não há delimitação do status do embrião originado dessa técnica. Contudo, a ausência legislativa ou divergentes posições sobre o tema não devem impedir o estabelecimento de procedimentos adequados relativamente ao tratamento pelo qual passam diversos casais no âmbito da formação familiar. Pelo contrário, é necessária, cada vez mais, a devida informação para que o processo de tomada de decisão se perfectibilize, envolvendo todas as perspectivas associadas a esse processo. No âmbito da reprodução assistida, a análise sobre a gestação de substituição mostrou que há um intenso e amplo debate que ainda deve ser aprimorado na relação com os direitos humanos. O exemplo indiano citado nesta obra deve levar a um olhar mais apurado sobre o tema, para que as pessoas envolvidas nessa prática não rompam, novamente, o limite entre a saúde e a instrumentalização do ser humano. O aspecto comercial envolvido nessa prática, em alguns países, também deve ficar sob atenção, pois o passo para a transformação de “ser” em “objeto” pode se tornar muito pequeno – percepção que se solidifica pela necessidade de se manter acesa a memória histórica quanto à proteção do ser humano. É nesse trajeto que, do início, chega-se ao fim de vida e, nele, nas manifestações de vontade quanto aos tratamentos relacionados a esse momento da existência. Verificou-se o quanto a linguagem ocupa um papel importante na delimitação das diretivas antecipadas de vontade, especialmente por se tratar de iniciativa ainda recente, particularmente quando nos referimos ao cenário brasileiro. Aqui, também, os limites são tênues: fala-se em preservação da dignidade do viver e do morrer, e não da antecipação da morte. O âmbito dos cuidados paliativos é exemplo fundante dessa delimitação; ou melhor, dessa expansão da vida no seu fim. Há países que possuem estruturas adequadas de tratamento nesse sentido, e o olhar lançado sobre o cuidado paliativo nesta obra teve como objetivo demonstrar que há um caminho importante a ser trilhado no âmbito nacional que, com o devido comprometimento público, poderia auxiliar inúmeras famílias nesse contexto. Uma das questões relevantes relacionadas tanto ao início quanto ao fim de vida diz respeito à necessidade (ou não) de legislação específica sobre esses assuntos. Verificou-


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se que a esfera da reprodução assistida, aqui incluída a gestação de substituição, bem como as diretivas antecipadas de vontade e os cuidados paliativos, são regulados por normas deontológicas, que não possuem força vinculante no âmbito judicial. Evidentemente, a interpretação das mesmas possui grande relevância, mas o fato e o contexto atuais demonstram essa situação. Nesse panorama, são provocadoras as palavras de José de Oliveira Ascensão ao afirmar que “a inércia é também um mal, e o vazio legislativo favorece a introdução de práticas condenáveis contra as quais será amanhã muito mais difícil combater”328. Contudo, paralelamente a essa consideração, é necessário que seja mantido aceso o cuidado quanto à possível elaboração de leis que, ao invés de auxiliarem no processo decisório, levem ao engessamento da aplicabilidade dos institutos ou suscitem ambiguidades interpretativas que venham de encontro à sua adequada eficácia. Este é um ponto de grande importância, pois ele exige, além do possível desejo de regulação, o comprometimento da sociedade no engajamento quanto à formação desse processo e na fiscalização dos corretos trâmites e debates para efetivo esclarecimento da população. Conforme foi referido nos itens relativos ao início e fim de vida, a linguagem ocupa um papel essencial, pois a alteração de uma única palavra ou a criação de uma expressão que se popularize de maneira mais fácil e rápida (mas sem correção) pode levar a diferentes interpretações que, por vezes, não condizem com a real intenção da prática buscada ou implementada. Nos dizeres de Carlos María Romeo Casabona, Sem dúvida, deve-se evitar cair na falsa tentação do determinismo e reducionismo científicos, através dos quais se poderia pretender legitimar quaisquer decisões, ao menos discriminatórias. Com efeito, a lógica fascinação que provocam os constantes descobrimentos e avanços das chamadas ciências empíricas não deve nos fazer esquecer duas considerações: que a personalidade – a individualidade – não é exclusivamente fruto dos componentes biológicos do ser humano, e que a Filosofia, a Ética e o Direito giram ao redor do núcleo essencial do mundo conceitual de valores, dos ideais humanos e da racionalidade que estes necessitam como suporte irrenunciável. Depois do que foi assinalado, não faz falta insistir na justificação da intervenção do Direito, ASCENSÃO, José de Oliveira. Problemas jurídicos da procriação assistida. Revista Forense, volume 328, ano 90, out./ nov./dez. de 1994, p. 69.

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se assumimos que a este corresponde, entre suas funções, permitir e garantir a convivência e a paz social, resolver os conflitos onde quer que surjam e proteger os valores individuais e coletivos mais importantes para aquela convivência, já reconhecidos (bens jurídicos) ou novos, que necessitam de identificação e merecedores de proteção, se, como é lógico neste caso, precisam dela329.

As presentes linhas buscaram saber muito pouco para saber muito, retomandose o diálogo com Clarice Lispector. Essa percepção nos leva à constatação de que aceitar o não saber para saber requer a mesma abertura para os novos desafios expostos no decorrer destas páginas relativos à vida e ao viver e, assim, ao morrer. É por isso que, “ao assumir que a incerteza e a mudança são componentes sempre presentes, assume-se, igualmente, que os resultados das reflexões são sempre passíveis de discussão. A humildade permite reconhecer que não são definitivos nem imutáveis”330. Que a compreensão sobre a temática abordada possa instigar novos questionamentos e auxiliar nas decisões da atualidade. Eis que está lançado o desafio, iniciado na introdução desta obra: ao nos reconhecermos, reconhecemos o outro, e estabelecemos, assim, a intrínseca relação entre a bioética e os direitos humanos nas suas mais profundas e sensíveis indagações.

Originalmente: “Es indudable que debe evitarse caer en la fácil tentación del determinismo y reduccionismo científicos, a través de los cuales se podría pretender legitimar cualesquiera decisiones, cuando menos discriminatorias. En efecto, la lógica fascinación que provocan los constantes descubrimientos y avances de las llamadas ciencias empíricas no debe hacernos olvidar dos consideraciones: que la personalidad – la individualidad – no es exclusivamente fruto de los componentes biológicos del ser humano, y que la Filosofía, la Ética y el Derecho giran en torno al núcleo esencial del mundo conceptual de los valores, de los ideales humanos y de la racionalidad que éstos necesitan como soporte irrenunciable. Después de lo señalado, no haría falta insitir en la justificación de la intervención del Derecho, si asumimos que a éste corresponde, entre sus funciones, permitir y garantizar la convivencia y la paz social, resolver los conflictos allá donde surjan y proteger los valores individuales y colectivos más importantes para aquella convivencia, ya reconocidos (bienes jurídicos) o nuevos necesitados de identificación y merecedores de protección, si, como es lógico en este caso, carecen de ella”. ROMEO-CASABONA, Carlos María. Genética y derecho. In: ROMEO-CASABONA, Carlos María (Ed.). Biotecnología y Derecho. Perspectivas en Derecho Comparado. Cátedra de Derecho y Genoma Humano – Editorial Comares, S.L: Bilbao-Granada, 1998, p. 19-20. 330 GOLDIM, José Roberto. Bioética e complexidade. In MARTINS-COSTA, Judith; MÖLLER, Letícia Ludwig (orgs). Bioética e Responsabilidade. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 59. 329


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