Composição, partido e programa: uma revisão crítica de conceitos em mutação
Anna Paula Canez Cairo Albuquerque da Silva Organizadores
Prefácio: Alfonso Corona Martínez
Porto Alegre, 2015
Reitor
Telmo Rudi Frantz Pró-Reitoria de Graduação
Laura Coradini Frantz Pró-Reitora de Pesquisa, Pós-Graduação e Extenção
Marcia Santana Fernandes Coordenadora do Curso de Arquitetura
Maria Fátima Beltrão Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Arquietura e Urbanismo Mestrado Associado Uniritter/Mackenzie
Anna Paula Canez
Campus Zona Sul: Rua Orfanotrófio, 555 Campus Canoas: Rua Santos Dumont, 888 Campus Exclusivo: Av. Wenceslau Escobar, 1040 Campus FAPA: Av. Manoel Elias, 2001 www.uniritter.edu.br
Composição, partido e programa: uma revisão crítica de conceitos em mutação
Anna Paula Canez Cairo Albuquerque da Silva Organizadores
Prefácio: Alfonso Corona Martínez
Porto Alegre, 2015
COLEÇÃO NOVOS CONHECIMENTOS Editor Chefe da Editora UniRitter Marcelo Spalding Projeto Gráfico Rodrigo da Cruz Noronha Editoração Eletrônica Fernando Luiz Bragança Rodrigo da Cruz Noronha Conselho Científico da Editora UniRitter Prof. Dr. Beatriz Daut Fischer (Unisinos), Prof. Dr. Bernardo Subercaseaux (Universidad de Chile), Prof. Dr. Diego Rafael Canabarro (UFRGS), Prof. Dr. Elias Torres Feijó (Universidade de Santiago de Compostela), Prof. Dr. Gilberto Ferreira da Silva (Unilasalle), Prof. Dr. Günther Richter Mros (Universidade Católica de Brasília), Prof. Dr. Jaqueline Moll (MEC), Prof. Dr. Júlio Van der Linden (UFRGS), Prof. Dr. Lucas Kerr de Oliveira (Universidade Federal da Integração Latino-Americana), Prof. Dr. Marizilda Menezes (UNESP Bauru), Prof. Dr. Taisy Weber (UFRGS) Conselho Editorial Anna Paula Canez, Gladimir de Campos Grigoletti, Hericka Zogbi Jorge Dias, Isabel Cristina Siqueira da Silva, Jacqueline Schaurich dos Santos, Josué Emílio Möller, Júlio César Caetano da Silva, Laura Glüer, Laurise Pugues, Luciano Reolon, Marc Antoni Deitos, Maria Luíza de Souza Moreira, Regina da Costa da Silveira, Rejane Pivetta. Capa
Cairo Albuquerque da Silva Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) C736
Composição, partido e programa: uma revisão crítica de conceitos em mutação / Anna Paula Canez, Cairo Albuquerque da Silva (Org.) – Porto Alegre: Editora UniRitter, 2015.
131 p.: il. ; 23 cm. – (Coleção novos conhecimentos ; v. 12) ISBN: 978-85-60100-49-1
1. Arquitetura. 2. Projeto arquitetônico. I. Anna Paula Canez. II. Cairo Albuquerque da Silva. III. Título. VI. Série.
CDU 72
Ficha catalográfica elaborada no Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Dr. Romeu Ritter dos Reis
SUMÁRIO
Nota sobre a Segunda Edição.........................................................................6 Rogério de Castro Oliveira
Prefácio............................................................................................................. 11 Alfonso Corona Martínez
Introdução........................................................................................................17 1 Tomando partido, dando partida: estratégias da invenção arquitetônica..................................................19
Rogério de Castro Oliveira
2 Construção, composição, proposição: o projeto como campo de investigação epistemológica....................37 Rogério de Castro Oliveira. 3 Os quatro tipos de composições em Le Corbusier...............................51
Cairo Albuquerque da Silva
4 “Muita construção, alguma arquitetura e um [...]” milagreiro...........73
Anna Paula Canez e Cairo Albuquerque da Silva
5 Espelho e labirinto.....................................................................................87
Carlos Eduardo Comas
6 Programa e evento em Tschumi: estratégias e conceitos...................95
Miguel Antonio Farina e Rinaldo Ferreira Barbosa
7 Sistema e criação do artefato abstrato................................................115
Maria Isabel Villac
Sobre os autores.............................................................................................129
Nota sobre a segunda edição In memoriam Alfonso Corona Martínez (1935-2013)
A reedição de Composição, partido e programa: uma revisão crítica de conceitos em mutação atesta a permanência e o interesse de uma reflexão sobre os fundamentos operativos do projeto arquitetônico, desde o ponto de vista de uma prática didática que centraliza a formação acadêmica do arquiteto. Esta discussão constitui, hoje, uma área de investigação que chamamos, convencionalmente, de “teoria do projeto”, sem com isso designar, contudo, um campo discursivo unificado e, menos ainda, prescritivo. Há no ensino do projeto de arquitetura uma irredutível multiplicidade de pontos de vista, o que não impede que, nesta dispersão, encontremos cruzamentos e confluências, demarcando percursos que mapeiam trajetórias ora divergentes, ora convergentes, mas igualmente traçadas sobre um mesmo território. Alfonso Corona Martínez, em breve entrevista concedida em 2009, inseria esta pluralidade na própria dimensão educativa da atividade projetual: A ver, ¿de qué estamos hablando? Estamos hablando de qué debieran hacer o recibir los alumnos. Yo creo que los alumnos tienen que esforzarse por adquirir por sus propios medios el conocimiento y las prácticas que les sirvan para dar un primer paso. La Universidad no puede les dar mucho más que eso: independencia de criterios y la capacidad para hacer lo que ellos se han propuesto, o sea, crear parte de un ámbito tridimensional ¬– que es éste en que vivimos todos – para después de eso, en la vida profesional, [hacerlo] en la forma que tome para cada uno de ellos. No creo que pueda, parece, mucho más. Tampoco puede pedirse de la Universidad mucho más.1
1 Alfonso Corona Martínez, entrevistado na Universidad de Mendoza. Transcrição: Rogério de Castro Oliveira. https://www. youtube.com/channel/UCzrP5BS9t0xXiu3gKOhUdDQ, 5/05/2009.
Como, porém, abrir para o aluno o caminho da construção independente de critérios capazes de conferir à prática um caráter reflexivo? Como instaurar nesta prática a busca por uma compreensão mais inclusiva das possibilidades de ação abertas ao arquiteto pelo exercício do projeto, em que pese as vicissitudes que o cercam? Na resposta aparentemente singela de Corona Martínez está implícita, de fato, a tarefa por ele mesmo assumida na dedicação constante e profícua à docência. Uma formação profissional criteriosa exige, ao lado do aluno, a presença do professor que explicita e discute criticamente os fundamentos da prática, compartilhando saberes e fazeres. É o que acontece no Ensayo sobre el proyecto (1990)2 , livro também publicado em português3, e que se incorporou, em nosso País, ao repertório dos cursos de graduação e pós-graduação em arquitetura e urbanismo. Revisado e traduzido pelo próprio autor, o Ensayo ganhou acolhida internacional ao ser publicado nos Estados Unidos como The architectural project (2003)4 . Esta notável contribuição ao estudo da teoria e da prática do projeto recolhe e sintetiza muitos dos temas tratados em frequentes conversações e nos muitos cursos ministrados pelo mestre argentino em nosso meio universitário, marcando, em especial, três décadas de estreita colaboração com a pós-graduação em arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e de intensa participação em muitos eventos promovidos em Porto Alegre pelo Centro Universitário Ritter dos Reis. Por ocasião do IX DOCOMOMO 2011, realizado em Brasília, o professor Corona Martínez pronuncia conferência em que faz calorosa referência ao conjunto de trabalhos agora reeditados. Desde então, a ampla aceitação dos mesmos fez com que logo se esgotasse a primeira edição, animando seus organizadores a repetir sua publicação. As generosas palavras de Alfonso ficaram registradas em artigo publicado na revista Summa+:
2 CORONA MARTÍNEZ, Alfonso. Ensayo sobre el proyecto. Buenos Aires: CP67, 1990. 3 CORONA MARTÍNEZ, Alfonso. Ensaio sobre o projeto. Brasília: UnB, 2000. 4 CORONA MARTÍNEZ, Alfonso. The architectural project. College Station: Texas A&M University, 2003.
¿Podremos incorporar el saber acerca de cómo proyectaron, o cómo proyectan, los arquitectos que nos sirven de ejemplo? Desde luego no se trata de las “imágenes” que se buscan para apoyar o encauzar la inspiración de nuestros educandos. Se trata de documentarse sobre las acciones, los dibujos y los métodos de esos maestros admirados que en general son bastante resistentes para mostrar su juego. Esa reticencia comunicativa nos deja solamente con las versiones de la tradición Beaux-Arts modernizada que hemos usado, con mayor o menor conciencia, a lo largo del siglo XX. Un conjunto de textos que tuve el placer de prologar hace unos meses es, creo, un valioso aporte a esa dimensión del problema. Hablo de Composição, partido e programa: uma revisão crítica de conceitos em mutação, editado [...] en 2010 y organizado por Anna Paula Canez y Cairo Albuquerque da Silva. 5 A coletânea de artigos reunidos neste volume pela Editora UniRitter remete, em muitos momentos, às lições de Alfonso, que comentou em seu Prefácio os percursos traçados nos vários ensaios, adensando-os e desafiando o leitor a novas interpretações e contraposições. Embora conciso, seu texto expressa uma reflexão profundamente enraizada na prática docente por ele desenvolvida nos ateliers de projeto das escolas de arquitetura com que colaborou ao longo de sua carreira. Escrito em tom quase coloquial, pode ser apreendido como uma de suas últimas charlas, um legado intelectual que nos convida a percorrer renovados caminhos rumo a uma compreensão dos princípios que animam a difícil arte de projetar. A Alfonso, nossa gratidão. Junho de 2015 Rogério de Castro Oliveira
5 CORONA MARTÍNEZ, Alfonso. El proyecto, una documentación con valor didáctico. Summa+, Buenos Aires, n. 119, p. 52, enero 2012.
Prefácio Esa incómoda situación del partido… Las palabras del título de esta interesante colección de ensayos aluden simultáneamente a valores, procedimientos, objetos o momentos que son parte del proyecto. Hablamos del partido como una cosa: cada quien tiene el suyo frente a un programa determinado y eso se ve cuando se los compara en un “pin up” de taller. Pero el partido, como todos nos enseñan, es una acción, quizá el acto más significativo del proceso de proyectar. Al menos, ha sido por largo tiempo el momento reservado para la actuación inspirada y artística del diseñador. El subsiguiente desarrollo es casi de rutina, y en las grandes oficinas de arquitectura es delegado en asistentes. Entonces, es sobre la calidad de los partidos que se evalúan los proyectos haciéndose en la escuela de arquitectura, y también sucede así en las historias que se cuentan acerca de los grandes concursos de arquitectura. Profesores y jurados en uno y otro caso, se atribuyen una percepción
Esa incómoda situación del partido...
privilegiada o capacidad de desciframiento para conceder el placet a los mejores partidos de los proyectos en germen. La composición es un procedimiento, descripto muchas veces como el soldar, poner juntos los “elementos de composición” (Guadet) que previamente se ha determinado ( parcialmente, no se nos dice que esa determinación es provisoria, desde que no son “cosas” sino “espacios con uso”) Y esa pre-determinación, la decisión o “toma de partido” responde al programa. Las palabras se siguen empleando en la enseñanza del proyecto, tienen una renovada vitalidad y son útiles para explicar y explicarnos cómo se llega al deseado nuevo proyecto. A la vez, producen cierta incomodidad, que deriva de seguir utilizando las palabras de la despreciada Academia para hablar de lo nuevo; una actitud que el Modernismo rechazaba. ¿Acaso estamos atando al pasado la incesante invención del futuro cuando las empleamos? ¿O quizá hay una esencia del proyectar que exige su continuidad? Seguramente es fácil comprender el disgusto de los arquitectos modernos ante la palabra “composición” si se revisa declaraciones como ésta de Guadet: “El eje es la clave de un diseño y será por eso la clave de la composición…En un diseño arquitectónico es necesario proceder ante todo por medio de ejes”(Elements et Théorie de l’Architecture, tomo 1, p.41) Guadet está exigiendo de esta manera que la planta del edificio empiece por ser estructurada por ejes-por alguna forma de simetría. De poco nos vale reconocer toda clase de ejes parciales en los diseños ejemplares de Wright o de Gropius, ambos negadores de la “composición”. La palabra misma estaba para ellos contaminada y aunque practicaran la composición (como lo ha mostrado magistramente Jean Castex para las casas Prairie de Wright) el término estaba excluido de sus discursos. No es el caso de Le Corbusier, como lo explican varios de los ensayos que siguen. El rechazo de la terminología académica es algo más que una negativa a usar ciertas palabras; parece reflejar también un desdén o indiferencia hacia la transmisión de los mecanismos o procedimientos proyectuales que ellos mismos ejercían. Pero Gropius es reconocidamente un pionero de la enseñanza de la arquitectura moderna ,fundador de la Bauhaus; y Wright mantuvo durante
Alfonso Corona Martínez
años en sus dos Taliesin una combinación de escuela y estudio de arquitectura. A menos que supongamos en los Maestros mencionados un voluntario ocultamiento de los procedimientos que usaban para proyectar, hemos de creer que estaban para ellos tan “naturalizados” que no imaginaban otro modo de empezar a proyectar que este, el de adoptar un partido o esquema general, para desarrollarlo luego en fases sucesivas de la composición. Hace unos años había un tácito pacto de no agresión con los conceptos llamados académicos. Se los empleaba en la enseñanza (con qué palabra sustituir “partido” para designar las decisiones iniciales de disposiciones de masas, de esquemas circulatorios?) Pero ciertamente no se hacían sistema: estaban desgajados de la figura general del proceso de proyectar, y en los tiempos (no tan) felices de la “sistematización del diseño”, allá por los 60 tardíos, el “partido” era sustituido por el “salto creativo” que tenía lugar en la “caja negra” de la mente del diseñador. Los infortunados estudiantes aprendían pronto que para no fracturarse algún hueso en ese salto que les resultaba imposible dar desde los organigramas y matrices de interacción hasta una “preforma”, debían recurrir a precedentes que, afortunadamente, los Idolos del Movimiento Moderno habían provisto con sus ejemplos, que convenientemente reducidos a la imprecisión de un croquis de lápiz 6B, eran los partidos legalizados por el Modernismo. Estos procedimientos eran secretamente (o no tanto) presididos por un principio o axioma tácito :”Primero hagamos que la cosa funcione”. Después, vendría el desarrollo, la selección de los que no se llamaban ya “elementos de Arquitectura”, a saber, las formas estructurales y constructivas tomadas de esos mismos repertorios de ejemplos que permitían a los estudiantes, desde la casi completa ignorancia de materiales y técnicas constructivas, adoptar las formas de lo verosímil- lo que otros certificadamente hábiles ya hicieran. Esta visión puede parecer algo descarnada, pero refleja una prolongada experiencia en observar talleres de proyecto a la vez que intentar dirigirlos; una tarea en la que ingenuamente suponemos que se puede actuar sobre la cultura del proyectar, a la que simultáneamente pertenecemos y transmitimos o intentamos rectificar, Los autores de los ensayos que integran este libro son, en su mayoría, gente de este mismo oficio, el de enseñar a proyectar.
Esa incómoda situación del partido...
Varios de los ensayos giran en torno de las acciones proyectuales de Le Corbusier y de una contrafigura, Lucio Costa. Seguramente hay una preferencia nacional por revalorizar al gran arquitecto carioca, opacado en la consideración internacional por las habilidades de Niemeyer; tampoco es ajena a esta preferencia la historia de Costa, que incluye un pasado “académico” explícito, y uno velado por el rechazo vanguardista en Le Corbusier. Los sucesivos “partidos” ensayados y declarados para el Palacio de los Soviets son una figura ineludible para reconocer una nueva versión del pasado “académico” en el revolucionario suizo. ¿Acaso Costa acepta y continúa la composición clásica pero la traduce con edificios modernos? Habría que revisar el centro monumental de Brasilia y en general, su preferencia por la simetría en la composición urbana. Algunos de los escritos, entonces, se ocupan de las modalidades de la toma de partido, sobre todo en la obra de Le Corbusier. Otros se sumergen en la consideración del significado de estos términos, en especial el de “partido” procurando aportar a la práctica de la enseñanza de proyecto una reflexión más profunda sobre esta etapa, reconocidamente existente en los proyectos escolares hoy como un siglo atrás. El programa es de alguna manera el más postergado de los conceptos. Entre el tiempo en que Guadet afirmaba rotundamente que el arquitecto no debe ser quien redacte el programa y el de Summerson en la segunda posguerra afirmando que el rasgo común en “todas las arquitecturas modernas” es el respeto por el programa hay un lapso que preanuncia que vendrá el tiempo funcionalista de la sistematización del diseño. No hay que olvidar que antes que Guadet, Viollet-le-Duc afirmaba que el arquitecto debía ser fiel a dos cosas: al programa y a la construcción. Uno de los ensayistas procura actualizar esta noción apelando a quien se ha ocupado del programa para reinterpretar el término : Bernard Tschumi. Tschumi tercia en el debate sobre la pertenencia o no del programa al proyecto introduciendo la polémica idea de la contradicción entre las demandas del programa y la configuración de los espacios, como un valor positivo para la arquitectura. Hay que preguntarse, sin embargo, si el proceso de proyectar, o más exactamente, la reiteración de procesos proyectuales orientados a aprender a proyectar que constituye la enseñanza de “atelier”, es hoy susceptible de descripción
Alfonso Corona Martínez
con los términos académicos, o si las mutaciones sufridas en la representación así como en la práctica de la arquitectura no han cambiado mucho estos procesos; en suma, si no estamos enseñando un método fósil, propio de un período de 200 años que hoy estaría descartado en la práctica. Para negar esta posibilidad, los trabajos que componen este libro reafirman desde distintos lugares la importancia del momento creativo o de síntesis que llamamos “partido”; todos advierten contra la existencia de un peligro, el de tomar una decisión caprichosa o irreflexiva, meramente formal, como punto de partida. Esta alternativa, que es personificada por los ensayistas como propia de estudiantes inmaduros, es también la grieta por la que se desliza la arbitrariedad formal, el “todo es posible” que refleja la falta de consistencia teórica, que infortunadamente no está limitada a los estudiantes. Procuran así estos ensayos una puesta al día de los conceptos académicos, o quizá una nueva redención de esas palabras condenadas en la primera mitad del siglo pasado. Nuestra historia generacional incluye un intermezzo “postmoderno” en que se revalorizó, a veces de manera reverencial, esa tradición académica confundiéndola con el revival de las formas estilísticas. Para los más reflexivos, ese pasado ha sido un motor de estudio. Una cierta forma de erudición sobre la arquitectura clásica fue así adquirida durante los años 80. Fueron nuestros lejanos maestros de esos tiempos, Alan Colquhoun y Colin Rowe, quienes hicieron explícita la función de la tradición académica en la arquitectura moderna “clásica”. Colquhoun con su “Desplazamiento de conceptos en la obra de Le Corbusier” produjo un lúcido comentario sobre las composiciones del primer Corbusier. Rowe llevó con su habitual irreverencia la luz del neoclasicismo sobre Mies van der Rohe y sus seguidores. Y esto sucedió antes de la irrupción del “posmodernismo”. Habría que preguntarse si vivimos todavía, la época de Le Corbusier y su tácita definición del partido: definición por ejemplificacion si hemos de prestar atención a los ensayistas. O bien suponer que los ensayos son un ejercicio histórico, que procura justificar las traducciones de Le Corbusier de los conceptos clásicos; si seguimos en esto a Costa que pensaba que Corbu había actualizado o revivido estos conceptos;
Esa incómoda situación del partido...
Sería importante preguntarse entonces si las cosas hoy “no suceden de otro modo”. Puede observarse que la arquitectura moderna se ha tipologizado, (o mejor tipificado, para no usar esa palabra de nuevo sospechosa) Se ha tipificado en parte porque al no ser ya una vanguardia en permanente revolución, la arquitectura moderna es “simplemente la arquitectura” como anunciaba Summerson en los años 40; sus soluciones originales son ahora planteos consabidos que pueden y deben repetirse con variaciones en la arquitectura corriente, como ha sucedido en todas las épocas de la arquitectura. Esto invitaría a una nueva elaboración del concepto de carácter; su rol en el modernismo enseñado en los talleres era transparentar el uso de los edificios, comunicarlo; si la mayoría de las construcciones está “tipificada”, en cambio el carácter se vuelve trivial. O quizá pueda ser eludido como ya lo intentaron Johnson y Hitchcock en “The International Style”…de 1932. Encontrados y aceptados estos nuevos tipos, se desvanece en buena parte la voluntad de encontrar nuevos partidos para cada nueva obra, una voluntad que quizá tuvo su apogeo hacia los años de la década de 1960. Hacia el final del siglo XX han pasado al primer plano la técnica y la construcción; sea por el ascenso en prestigio del “high tech”, sea por las interpretaciones corrientes de la sustentabilidad entendida como un tema de transmisión de calor por las envolventes construidas. Esto lanza al primer plano de la acción proyectual la materialización, tradicionalmente postergada en la Composición tradicional. Los intrusos en la toma de partido se acumulan, retaceando la supuesta independencia de los diseñadores. Mis deshilvanadas observaciones apenas logran reflejar la riqueza y variedad de los textos aquí reunidos. Me atrevo a pronosticar que esta colección de ensayos será indudablemente leída con placer por quienes se ocupan de enseñar a proyectar en este comienzo de siglo que parece traer tantos cambios en la arquitectura. Alfonso Corona Martínez
Buenos Aires, agosto de 2010
Introdução Esse volume aborda questões relativas à revisão de noções normalmente empregadas no ensino, na prática profissional e na crítica da arquitetura. São noções antigas, provindas do século XVII e XVIII, que perpassaram o século XX razoavelmente incólumes e hoje estão sendo colocadas em questão. Não são poucos os arquitetos de renome que colocam objeções teóricas as noções de composição, partido e programa. Muitos, através de uma prática projetual equivocada, vêem no partido uma noção meramente formal e arbitrária, quase sempre a serviço de fazer algo diferente. A publicação tem como objetivo promover uma reflexão crítica sobre o melhor uso dessas noções, principalmente no ambiente acadêmico. No seu conjunto esses artigos constituem um panorama de questões atuais e é destinado a professores e estudantes de arquitetura interessados em dotar o ofício do arquiteto com uma fundamentação teórica mais sólida, superando assim as limitações de um conhecimento estritamente tácito. Organizadores
Tomando partido, dando partida: estratégias da invenção arquitetônica Rogério de Castro Oliveira
Logo após a segunda visita de Le Corbusier ao Brasil, em 1936, Lucio Costa descreve, na Memória de seu estudo para a Cidade Universitária do Rio de Janeiro, um partido oposto àquele concebido por Le Corbusier para o mesmo local (COSTA, 1937). O partido se opõe ao que o antecede por introduzir “o que faltava”, corrigindo um “equívoco inicial” do mestre franco-suíço. Ao invocar explicitamente a mútua oposição das duas proposições e, simultaneamente, ao relacionar figurativamente os elementos de composição adotados em ambas o segundo projeto mantém clara filiação à arquitetura de vertente corbusiana - Costa trabalha, em sua argumentação, questões sutis, para ele bem presentes em sua formação de arquiteto. Maneja à vontade técnicas de composição herdadas de uma rica tradição artística que ele acolhe com espírito transformador, voltado para a construção de uma nova arquitetura. Nessa tradição, a escolha do
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Tomando partido, dando partida: estratégias da invenção arquitetônica
partido - o velho parti da Beaux-Arts - ocupa lugar central nas práticas projetuais. A riqueza de significações implicadas no gesto de tomar partido (prendre parti), contudo, é hoje para nós quase inacessível, a ponto de obscurecer a compreensão da importância atribuída por Costa à descrição do partido adotado, remetendo sua apreciação ao cenário de outro partido - o seu oposto. Para Lucio Costa, portanto, não se trata de propor apenas uma alternativa ao projeto de Le Corbusier, descartando-o em favor de qualquer outra coisa. Para ele (assim como, de certa maneira, para Le Corbusier), a escolha do partido não é um gesto arbitrário, que apanha ao acaso algo colocado à disposição do arquiteto como uma possibilidade indiferenciada, entre outras tantas, movido tão somente por inefável impulso criativo ou assumido desejo de simplesmente optar por algo diferente. Ao contrário, tomar partido implica dar início a um percurso inventivo que se traça sobre um campo de relações em constante formação e renovação, ainda que aos tateios e sujeito a inúmeros e imprevisíveis retornos e desvios. Tais relações - simultaneamente externas e internas ao objeto projetado - implicam a construção de correspondências entre formas e conteúdos, organizando-se progressivamente em esquemas que conectam partes antes separadas. Este dinamismo atribui à construção do partido um sentido eminentemente operativo, antecipador das configurações compositivas que conduzirão à finalização do projeto. A partir deste ponto de vista, entende-se porque Costa nos fala de um partido oposto ao de Le Corbusier, mesmo considerando as evidentes e propositais semelhanças figurativas com aquele ao qual se opõe: não é a aparência que define o partido, mas a disposição de suas partes. Assim, embora ambos os esquemas partam de uma organização axial de base, na concepção corbusiana o eixo mira as montanhas distantes (Fig. 1), enquanto que, em sua contrapartida, o eixo se materializa em um caminho central, na melhor tradição processional (Fig. 2)1.
Em Le Corbusier, o traçado axial segue linha ortogonal à via férrea existente, tendo referência uma grande estação, situada nessa intersecção, que uniria, surpreendentemente, a Cidade Universitária com o “interior do País”. Em Lucio Costa, o eixo se origina na bissetriz do ângulo formado pelas duas ruas de acesso, onde se abre monumental pórtico que dá acesso à grande praça cerimonial. O primeiro distribui as barras dos edifícios das faculdades paralelamente ao eixo; o segundo arma traçado ortogonal, gerando percursos secundários que se estendem a partir do caminho central, etc. Figurativamente, as edificações especiais permanecem quase as mesmas, encaixadas, porém, em traçados distintos, o que altera drasticamente seu significado compositivo.
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Rogério de Castro Oliveira
Fig. 1: Le Corbusier, Cité Universitaire Fonte: Le Corbusier, 1939.
Fig. 2: Lucio Costa, Cidade Universitária Fonte: Le Corbusier, 1939.
A oposição, mesmo em panorama impressionista, é nítida. Corbusier organiza suas arquiteturas de dentro para fora, em diagrama abstrato, sustentado por geometrias que não se concretizam diretamente em elementos de arquitetura e que apontam para possibilidades de extensão rumo ao horizonte, tornando indistintos os limites impostos pela cidade existente (sua Cité Universitaire é de
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fato um fragmento da cidade ideal modernista) (LE CORBUSIER e JEANNERET, 1939). Costa leva em consideração os contornos de um sítio bem real - a Quinta da Boa Vista - e arma seu partido de fora para dentro, estabelecendo conexões diretas com o bairro envolvente (sanando “o equívoco inicial”) e introduzindo o único elemento dissonante em relação ao vocabulário corbusiano adotado, o pórtico de acesso, aberto para grande praça, de caráter essencialmente urbano e contextual (“aquilo que faltava”). No primeiro, o sistema de movimentos se desprende da configuração dos edifícios no terreno, colocando-se à margem do acesso direto aos mesmos, intermediados por onipresente parque; no segundo, as circulações se confundem com o traçado geométrico e acompanham, como canais, a distribuição dos acessos (Fig. 3-4).
Fig. 3-4: Le Corbusier, eixo perpendicular à via férrea; Lucio Costa, eixo na diagonal das vias de acesso Fig. 3: Fonte: Le Corbusier, 1937.
Fig. 4: Fonte: Le Corbusier, 1939.
Uma rápida descrição certamente não dá conta da riqueza dos elementos que compõem os dois partidos, mas expõe, na sua exemplaridade, as implicações projetuais daquilo que caracteriza, na prática, a noção de partido arquitetônico a eles subjacente2. Esta noção, impregnada de uma operatividade
Em duas publicações anteriores (CASTRO OLIVEIRA, 2002 e 2007) descrevi detalhadamente os dois estudos para a Cidade Universitária na Quinta da Boa Vista, apresentando estudo crítico sobre os princípios compositivos adotados pelos dois arquitetos, suas inter-relações e seus precedentes. Embora autônomo, o presente artigo focaliza tema complementar ao discutir a noção de partido subjacente aos desenvolvimentos dados por Lucio Costa e remete aos anteriores para uma visão de conjunto deste episódio, relacionado com a importantíssima visita de Le Corbusier ao Rio em 1936.
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própria a experimentações artísticas modernistas que anunciam novos modos de concepção e produção da obra arquitetônica, embora tributária do sistema beaux-arts ao qual se opõe, não é, contudo, uma derivação da composição elementar, estritamente aditiva, preconizada inicialmente por Durand. Nesse sentido, não resulta da aplicação de um método universal, um “caminho a seguir para a composição de qualquer projeto” (marche à suivre dans la composition d’un projet quelconque) (DURAND, 1813, Planche 21). De fato, qualquer caracterização do projeto como simples resultante da aplicação de um conjunto de procedimentos (como, por exemplo, nas suas versões funcionalistas e, hoje, neofuncionalistas) expressa a negação determinista de se conceber, para um mesmo projeto, um leque de possibilidades de partida, isto é, de possíveis partidos. Vê-se inicialmente que a palavra partido expressa uma escolha, um compromisso com uma maneira de pensar e, sobretudo, de fazer arquitetura. Le Corbusier e Lucio Costa olham, ambos, para um mesmo objeto, uma cidade universitária, mas o que vêem são coisas diferentes; mais do que isso, opostas. A escolha entre possíveis partidos, portanto, não é neutra, mas obedece a uma maneira de construir, de configurar uma proposição arquitetônica. No caso da Cidade Universitária, fica evidente que, ao realizar seus respectivos estudos, Le Corbusier e Lucio Costa concebem objetos diferentes, fundados em duas interpretações da realidade que ambos pretendem, cada um a seu modo, transformar. Nesse sentido, operam sobre os requerimentos de sítio, programa e sistema de movimentos, de modo a inventar correspondências que organizem seu objeto - a cidade universitária- a fim de satisfazer finalidades que não estão dadas, mas são construídas laboriosamente na configuração do partido. O partido não surge, portanto, como coisa pronta, ao lado de outros igualmente colocados à nossa disposição, entre os quais caberia ao arquiteto eleger o que mais lhe convém. A construção do partido, ao contrário, insere-se no próprio âmbito das operações projetuais, enquanto para alguns pareceria anteceder à eclosão do projeto propriamente dito. Esta versão redutora é com frequência adotada, antes para justificar uma escolha arbitrária que para oferecer uma explicação sobre a gênese da concepção arquitetônica que sustenta o desenvolvimento de
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um projeto (Fig. 5). Certamente não será este o caso da argumentação de Lucio Costa em favor de seu estudo (e, por extensão, contra aquele realizado um pouco antes por Le Corbusier).
Fig. 5: Oscar Niemeyer: Estudo para a Torre de La Défense, escolha do partido Fonte: L’architecture D’aujourd’hui, N.17, Janvier-Fevrier, P. 63.
Lucio Costa apresenta em sua Memória um conjunto de diagramas cujo sentido é explicitar relações espaciais de caráter dinâmico, isto é, associadas a uma concepção de movimentos que conectam lugares programaticamente caracterizados. O resultado não é uma figura estática, mas uma configuração dinâmica. A sequência de esquemas indica claramente o caráter operatório da composição (Fig. 6-7-8). Não está em jogo a concepção, em um único gesto criador, de uma totalidade, mas a construção de um todo a partir de uma dispersão inicial de elementos que vão sendo postos em relação, mesmo quando inicialmente desconexos. O arquiteto, no partido, descobre relações inerentes à associação de tais elementos, as quais poderiam permanecer despercebidas, e simultaneamente inventa relações (arquitetônicas) onde elas antes não existiam:
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Fig. 6-7-8: Lucio Costa: Cidade Universitária, construção do partido Fonte: Costa, 1937.
As partes (ou elementos de composição) que compõem o partido são, por sua vez, mostradas em diagramas que sintetizam qualidades arquitetônicas que não se referem a um modelo existente, mas a sistemas de relações que unem atributos geométricos e programáticos. Alguns se aplicam à configuração das edificações, outros se referem à coerência urbanística do conjunto (as legendas são as de Lucio Costa):
Fig. 9-10-11-12: “Orientação” - “Isolamento das escolas” - “Localização dos edifícios centrais” - “Independência entre as escolas” Fonte: Costa, 1937.
Fig. 13-14-15: “Circulação entre as escolas” - “Elasticidade de planta” - “Disposição esquemática das escolas” Fonte: Costa, 1937.
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Tomando partido, dando partida: estratégias da invenção arquitetônica
Fig. 16-17-18: “Articulação entre departamento e aula teórica” - “Acessos” – “Independência de circulação” Fonte: Costa, 1937.
Descrevendo e justificando o estudo por ele realizado, Lucio Costa explicita uma concepção de partido arquitetônico simultaneamente conservador, diante das condições objetivas do encargo recebido, e inovador, na proposição de uma nova arquitetura, isto é, de uma nova possibilidade de materialização construtiva e figurativa do edifício e da cidade. Para Costa, o partido, embora ligado por cordão umbilical com a tradição acadêmica na qual se formou (como, diga-se de passagem, a maioria dos arquitetos de sua geração), não é mais o resultado de uma operação distributiva em que elementos extraídos de uma base convencionalmente aceita e tacitamente compartilhada por todos (fundamento do projeto clássico) concorrem para o desenho de uma configuração hierárquica e regular, essencialmente simétrica (cf. LUCAN, 2009). Embora ecos dessa organização, típica dos planos beaux-arts, sejam percebidos no esquema da Cidade Universitária - particularmente na opção pela axialidade processional - a regularidade dá lugar a um sistema aberto, cujo crescimento obedece a uma composição de elementos descontínuos, em oposição às continuidades antes perseguidas como cânone. Nessa superação do partido convencional, no qual o que mais importava era escolher o elemento dominante da composição, passa a valer prioritariamente a construção de uma trama complexa de relações entre elementos que mantêm sua individualidade (os “prismas” de Le Corbusier, mantidos por Costa), mas são, ao mesmo tempo, parte de uma matriz ordenadora que garante sua coesão. A contribuição das experiências modernistas está, portanto, presente e reafirmada, mas matizada por um pragmatismo que reforça, como plano de fundo, as possibilidades reais de existência da arquitetura como parte de um lugar que conserva a marca pregressa de ações humanas mergulhadas em uma tradição cultural e técnica.
Rogério de Castro Oliveira
Podemos dizer que, na perspectiva da “nova arquitetura”, quer na versão do mestre franco-suíço, quer na do brasileiro, um partido é, antes de tudo, um esquema de ação (projetual) transposto para uma base figurativa que pode ser, por sua vez, compartilhada (com transformações) por muitos partidos, os quais guardam entre si relações de correspondência (podem ser opostos, congruentes, inversos, paralelos, etc.). As categorias de comparação não são fixas; variam conforme se interpretam aspectos locais, programáticos e contextuais, dos requerimentos arquitetônicos iniciais. De fato, parafraseando a observação de Thomas Kuhn sobre a natureza de seus “paradigmas”, diferentes partidos não podem ser medidos um pelo outro - são incomensuráveis - mas podem ser comparados de modo a estabelecer sua maior ou menor validade quando aplicados a uma situação específica (KUHN, 1989). O critério comparativo, nesse sentido, é essencialmente um critério de adequação ou, se quisermos adotar o vocabulário dos retóricos, de verossimilhança. Para Lucio Costa, o partido proposto por Le Corbusier não é adequado aos seus propósitos: projetar de fato uma cidade universitária para a então denominada Universidade do Rio de Janeiro (hoje UFRJ), e submetê-lo à aprovação de seus dirigentes. Para as intenções, talvez inconfessadas, de Corbusier, tratava-se de tomar a questão como pretexto para veicular sua visão de cidade ideal modernista. Um e outro convidam à apreciação em seus próprios termos, sujeita às vicissitudes da crítica; a escolha entre as duas possibilidades, contudo, dá-se no confronto com a realidade imediata que demanda e condiciona sua execução. Colin Rowe já chamava a atenção para a atitude de descaso - quando não de aberta rejeição - dos modernistas em relação ao legado da arquitetura acadêmica. Contudo, mostra igualmente que os manuais de composição que tanta influência exerceram sobre a formação das primeiras gerações desses arquitetos nunca deixaram de ocupar algum espaço nas suas bibliotecas, ao lado dos manifestos de uma vanguarda artística que os colocava sob suspeita. Além disso, se a presença, ainda que marginal, dos primeiros não deixou de causar desconforto e incompreensão, sua contrapartida modernista também não encontrou irrestrita aceitação (ROWE, 1978, p. 64). A ambiguidade apontada por Rowe torna-se mais aguda se considerarmos o fato de que os manuais de composição, mantendo-se fiéis a um fazer
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arquitetônico tradicional, nem por isso se mostraram refratários à inclusão de exemplos da produção do movimento moderno (evidentemente destituídos de seu apelo revolucionário e de suas pretensões universais). Já os manifestos modernistas, insurgindo-se até mesmo contra o uso de um vocabulário oriundo de uma prática profissional por eles condenada (como é o caso dos termos “composição”, “caráter” e, por extensão, “partido”), nunca se mostraram suficientemente convincentes para excluir o uso desse mesmo vocabulário da prática corrente da arquitetura. Este último aspecto é particularmente evidente em Le Corbusier, para quem o uso das palavras composição3 e partido faziam parte de seu cotidiano de escritor. É claro que, em sentido estrito, é preciso concordar com Rowe que tanto Corbu como Mies van der Rohe e Gropius se insurgiam contra os princípios de composição adotados como cânone pelos arquitetos beaux-arts. Embora os dois alemães reagissem a eles ignorando-os, o franco-suíço não se afastava simplesmente das já desgastadas concepções de seus predecessores, mas trabalhava no sentido de transformá-las radicalmente em um novo sistema de composição, próprio ao modo de operar da nova arquitetura. O estudo realizado para a cité universitaire é disso um bom exemplo. À sua maneira, Lucio Costa também se movimenta nessa fronteira, adotando, porém, uma atitude muito mais explícita e positiva em relação ao manejo do antigo sistema legado pelo academicismo francês. Em sentido oposto e complementar a Le Corbusier, Costa busca antes reintegrar os princípios de composição que seu colega “vira do avesso” em uma produção arquitetônica moderna, a qual não rompe com a tradição construtiva que a precede, mas a prolonga em novas realizações. Para Le Corbusier o novo subsume o antigo para transmutá-lo em outra coisa, retirando o suporte figurativo e programático que tornava reconhecível a composição beaux-arts. Para Costa, o novo acolhe o antigo de modo a construir um novo sistema de relações arquitetônicas, que aludem abertamente à figuratividade tradicional. Na cidade universitária, ambos adotam como
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Não esqueçamos a fundamental importância por ele atribuída a suas quatro composições, estudadas, neste volume, pelo artigo de Cairo Albuquerque da Silva.
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ponto de partida explícito um traçado axial4; porém, no primeiro caso, o eixo se dissolve em geometria abstrata, a ponto de tornar-se, ao final, quase irreconhecível como elemento gerador do partido; enquanto, no segundo, o eixo se afirma como geratriz no momento em que se associa com o principal elemento de composição do conjunto, o grande caminho central (Fig 3-4)5. A valorização do eixo como ponto de partida é, contudo, igualmente afirmada nos dois estudos, embora assumindo significações distintas, diferenciadas pelo uso que os arquitetos fazem deste recurso compositivo central ao sistema beaux-arts6. Podemos conjecturar que princípios da velha composição ainda ressoam nos ouvidos dos dois arquitetos, quer para deliberadamente invertê-los e deslocá-los de sua função original (Le Corbusier), quer para reafirmá-los e retomá-los em novo contexto de aplicação (Costa). Nos exemplos acima, fica claro que, na arquitetura do Movimento Moderno, a proposição do partido implica a invenção de relações entre partes inicialmente dispersas, podendo daí resultar arquiteturas incongruentes, até mesmo opostas. Mesmo que dois ou mais partidos façam referências a um mesmo conjunto de elementos, eles se diferenciarão na medida em que se alteram as correspondências que tais elementos guardam entre si. A construção do partido, nessas condições, é fundamentalmente um problema abstrato; as escolhas que fazemos dizem respeito a formas de organização que se traduzem em diagramas e esquemas relacionais, mais do que a hierarquias impostas a partes concretas de uma edificação. Na composição beaux-arts, os componentes que interessa levar em conta (os elementos de composição) fazem sempre referência a compartimentos bem delimitados dentro do conjunto, identificados por nomes Le Corbusier afirma explicitamente que seu “trabalho inicial” incluiu “a busca do eixo das edificações no seio da vasta paisagem (através do vale, permitindo assim que as montanhas aparecessem por toda parte)” [La recherche de l’axe des bâtiments aux sein du vaste paysage (en travers de la vallée, permettant ainsi aux montagnes d’apparaître partout) ]. (LE CORBUSIER e JEANNERET, 1939, p. 40) 5 A análise dos dois estudos encontra muitos exemplos desse uso “oposto”, no próprio dizer de Costa, dos elementos geradores do partido. Uma descrição muito mais detalhada e ilustrada da que é aqui apresentada pode ser encontrada em meus artigos anteriores sobre a Cidade Universitária do Rio de Janeiro (CASTRO OLIVEIRA, 2002 e 2007). 6 Lembremos o ensinamento de Guadet aos alunos da Ecole: “A palavra eixo comparecerá seguidamente em vossos estudos: o eixo é a chave do desenho e também será a da composição [...] É preciso, pois, em um projeto (dessin) de arquitetura, proceder antes de tudo pelos eixos”. [“Le mot axe reviendra souvent dans vos études : l’axe est la clef du dessin et sera celle de la composition.” (GUADET, 1901, Tome I, p. 40); “Il faut donc, dans un dessin d’architecture, procéder avant tout par les axes” (Ibidem, p. 41).]
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que lhes são próprios: vestíbulo, sala, dormitório, escadaria, etc. Na composição modernista, dissolve-se a noção de compartimento para valorizar-se a fluidez de movimentos entre diversos setores, cujos limites nem sempre são claramente perceptíveis. A composição volta-se muito mais, portanto, para um sistema de movimentos do que para uma ordenação de compartimentos. Nessas condições, o partido deixa de ser uma configuração estática, composta por um conjunto finito de elementos, figurativamente identificáveis com partes de uma edificação que se associam diretamente a usos previsíveis. Afastando-se de esquemas convencionais de organização que assumem, perante práticas tradicionais, certa permanência, a construção do partido apóia-se, cada vez mais, no pólo contrário da invenção de novas formas de organização. Nelas, compartimentos (ou, no caso das composições urbanas, recintos), cuja reunião se traduz numa figura composta por partes que se estabilizam em equilíbrio estático, “fechado”, são substituídos por relações formais dinâmicas. A coesão dessas formalizações somente pode ser provisoriamente garantida por constante interação entre elementos programáticos e uma configuração “aberta”, isto é, sujeita a se metamorfosear em outros partidos, igualmente possíveis. Isto se dá na medida em que o conjunto não mais se sustenta em uma distribuição de peças, mas na natureza das conexões entre lugares dispersos em um “espaço fluido”, mais ou menos indiferenciado funcionalmente (por isso a noção de uma “arquitetura de partido” é sumariamente rejeitada pelas correntes funcionalistas e neofuncionalistas). A decorrência mais imediata da adesão à noção de partido como reguladora da concepção arquitetônica é o reconhecimento de que o “ponto de partida” não está dado, mas é antecedido por uma tomada de posição frente às relações arquitetônicas (ou urbanísticas, o que dá no mesmo) que manterão entre si elementos programáticos, requerimentos locacionais e sistema de movimentos. O partido, como tenho insistido, é uma construção laboriosa - uma invenção. Esta concepção mostra-se refratária à idéia de que escolher um partido é apontar uma “solução” previamente definida, colocando sumariamente de lado outras possibilidades (Fig. 5). Numa situação como esta, não é possível falar legitimamente de partido, mas tão somente, se quisermos, de uma criação que já nasce completa (ao menos em seus aspectos “essenciais”), pela força de inaces-
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sível impulso criador. Não discuto aqui a possibilidade dessa visão inatista da concepção arquitetônica, mas insisto na absoluta pertinência e recorrência da aceitação, pelo projetista, de que a proposição e configuração do objeto arquitetônico passa por inevitável labor inventivo em que, de uma dispersão inicial, constrói-se, com esforço, uma totalidade que não precede, mas finaliza, o projeto do arquiteto. Viollet-le-Duc, em seus Entretiens, descreveu com notável vigor e acuidade essa maneira construtiva de fazer arquitetura7: [...] é preciso admitir que a composição não seja apenas o resultado de um trabalho da imaginação, mas se submete a regras metodicamente aplicadas, e que ela deve levar em conta os meios de execução, os quais são limitados. [...] Se o arquiteto compõe, antes de mais nada ele deve ter reunido esses elementos diversos que influirão sobre sua obra. (VIOLLET-LE-DUC, 1863, Huitième entretien, p. 321-322)8.
Em outro trecho notável, Viollet-le-Duc sintetiza as idas e vindas que caracterizam a construção do partido, onde incertezas iniciais vão sendo superadas por um pensamento que se torna consistente à medida em que avança o trabalho do arquiteto9. A unidade da obra, nessa perspectiva do fazer, não é dada a priori, mas é conquistada a partir da manipulação esforçada e judiciosa das partes. Desse trabalho dá notável testemunho a Memória escrita por Lucio Costa, apresentando as razões do partido por ele adotado na cidade universitária (op. cit.). A afinidade com a maneira de ver exposta nos Entretiens é evidente, e reforça exemplarmente a descrição dessa elaboração inicial do projeto que encontramos no Sixième entretien e que, embora extensa, merece ser citada integralmente: Consideremos que um arquiteto tenha um edifício a construir; é-lhe entregue um programa confuso (como todos os programas escritos), cabe a ele colocar em ordem essa primeira questão. É
Devo a Jacques Lucan a referência a Viollet-le-Duc, assim como uma visão geral dos progressos e retrocessos da noção de partido ao longo dos séculos dezoito e dezenove (LUCAN, 2009). 8 [... il faut admettre que la composition n’est pas seulement le résultat d’un travail de l’imagination, mais [...] elle est soumise à des règles appliquées avec méthode, qu’elle doit tenir compte des moyens d’exécution, lesquels sont limités. [...] Si l’architecte compose, avant toute chose, il doit avoir réuni ces éléments divers qui influeront sur son oeuvre.]. 9 Donald Schön (op. cit.) falaria, nesse caso, de “reflexão-na-ação”. 7
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preciso satisfazer a requerimentos e serviços diversos; ele os estuda separadamente, ele não deve pensar na arquitetura, isto é, no envelope dos diversos serviços; ele se contenta em colocar ingenuamente cada coisa em seu lugar, em cada uma das partes desse programa, ele percebe um ponto principal, ele o coloca em destaque; seu trabalho complicado, desordenado, se simplifica pouco a pouco (porque as idéias simples são as últimas a chegar). Logo ele busca costurar essas partes estudadas separadamente, ele ainda simplifica; mas este conjunto de estudos, reunidos com poucos meios, não o satisfaz; ele sente que a este corpo falta unidade, que as costuras são visíveis, que elas são desajeitadas. Ele busca ainda, coloca à direita aquilo que estava à esquerda, na frente o que estava atrás, revira cem vezes a disposição dos detalhes de sua planta. Depois (eu suponho que seja um arquiteto consciencioso, que ame sua arte e seja rigoroso consigo mesmo) ele se recolhe, põe de lado as folhas cobertas de traços. De repente ele crê perceber em seu programa uma idéia principal, dominante (observemos que ninguém a colocou ali). A luz se faz: em lugar de encetar seu projeto a partir dos detalhes para chegar à combinação do conjunto, ele reverte sua operação; ele entreviu o edifício, como os diversos serviços devem se submeter a uma ampla disposição, comum a todos. Agora esses detalhes cujo arranjo torturava seu espírito ocupam seu lugar natural. Encontrada a ideia mãe, as idéias secundárias se organizam e chegam no momento em que se fizerem necessárias. O arquiteto é senhor de seu programa, ele o domina, ele o refaz ordenadamente, ele o completa e o aperfeiçoa. (Ibidem, Sixième entretien, p. 192)10.
É fácil perceber na “ideia mãe” a que se refere Viollet-le-Duc o partido, termo que ele não utiliza, provavelmente em razão de seu difícil convívio com a Ecole des Beaux-Arts. De fato, embora sem negar a pertinência da composição como caminho da invenção arquitetônica, Viollet-le-Duc avança em relação aos câno-
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[Qu’un architecte ait un édifice à construire ; on lui a remis un programme confus (comme tous les programmes écrits), c’est à lui à mettre de l’ordre dans cette première matière. Il faut satisfaire à des besoins et des services divers ; il les étudie séparément, il ne doit pas penser à l’architecture, c’est-à-dire à l’enveloppe de ces divers services ; il se contente de mettre naïvement chaque chose à sa place, dans chacune des parties de ce programme, il aperçoit un point principal, il le fait ressortir ; son travail compliqué, enchevêtrè, se simplifie peu à peu (car les idées simples arrivent les dernières). Bientôt il cherche à souder ces parties étudiées séparément, il simplifie encore ; mais cet ensemble d’études, réunis par des petits moyens, ne le satisfait pas ; il sent que ce corps manque d’unité, les soudures se voient, elles sont gauches. Il cherche encore, met à droite ce qui est à gauche, devant ce qui est derrière, retourne cent fois les dispositions de détail de son plan. Puis (je suppose que c’est un architecte consciencieux, aimant son art et sévère pour lui-même) il se recueille, laisse de côté les feuilles couvertes de tracés ; tout à coup, il croit apercevoir dans son programme une idée principale, dominante (observons que personne ne l’y a mise). La lumière se fait : au lieu de prendre son projet par les détails pour arriver à la combinaison de l’ensemble, il retourne son opération ; il a entrevu l’édifice, comme les services divers doivent se soumettre à une disposition large, commune à tous. Alors ces détails dont l’arrangement mettait son esprit à la torture prennent leur place naturelle. L’idée mère trouvée, les idées secondaires se classent et arrivent au moment nécessaire. L’architecte est maître de son programme, il le tient, il le refait avec ordre, il le complète et le perfectionne.]
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nes acadêmicos ao reconhecer o universo estreito em que estes se movimentavam. Em primeiro lugar, o partido não é mais derivado de uma escolha simples, a do elemento dominante da composição, preconizada pela Beaux-Arts, embora, no percurso, o arquiteto com ele se depare sob a forma de uma “ideia principal”. Esta ideia, porém, não está à disposição, codificada em um sistema fechado de composição. Ela resulta de um trabalho prévio de organização. Para Viollet-le-Duc o projetista lida simultaneamente com múltiplas escolhas que se entrecruzam na busca de uma “ampla disposição”, comum aos elementos que participam do projeto. Em segundo lugar, a composição não obedece a uma hierarquia convencional, mas cabe ao arquiteto ordenar cada programa, construindo um sistema de relações cuja consistência interna será buscada na feitura de cada projeto. Se a composição beaux-arts excluía a elaboração do programa das tarefas do arquiteto (o próprio Guadet afirmava que o programa era inteiramente da responsabilidade do cliente), Viollet-le-Duc associa à elaboração do partido tanto o trabalho sobre o programa como o da configuração dos lugares e seus usos (os “serviços”), enlaçados pelas circulações. Estes passos fundamentais anunciam a composição modernista, na qual a ordem fechada de um conjunto de compartimentos interligados dá lugar a um sistema aberto de movimentos, eventos e lugares11. O partido arquitetônico é, nesse sentido, uma construção local, um jogo que, para ser compreendido, precisa ser efetivamente jogado. O resultado não será nunca previsível (podemos, quando muito, arriscar um palpite, até mesmo um bom palpite), mas dependerá de toda uma coordenação de ações que concorrem - em uma ordem que não pode ser previamente demarcada - para uma finalização que terá sempre um caráter algo provisório.
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A correspondência entre lugares, eventos (usos) e caminhos como fundamento do projeto é enfatizada por Bernard Tschumi, um dos poucos arquitetos contemporâneos abertamente interessados em explicar a gênese de seus projetos, ainda que prefira, emulando Eisenstein e o cinema modernista, empregar a palavra montagem para descrever procedimentos de natureza compositiva por ele adotados (TSCHUMI, 1996). Sabemos, porém, que o próprio Eisenstein fazia referência explícita à composição arquitetônica para melhor descrever, por analogia, o que entendia por montagem cinematográfica. Tschumi, ao que tudo indica, limita o uso da palavra “composição” estritamente ao contexto acadêmico, o que faz com que ele radicalmente negue qualquer caráter “compositivo” à sua própria arquitetura. O exame de um projeto como o da Ópera de Tóquio, onde o autor manifesta essa repulsa à composição, revela paradoxalmente a permanência da construção do partido como método de trabalho, se pensarmos na superação do sistema beaux-arts para adotarmos, em lugar da composição elementar, o que poderíamos chamar, quem sabe, de composição dinâmica, ou “relacional”.
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Construção, Composição, Proposição: o projeto como campo de investigação epistemológica Rogério de Castro Oliveira
A investigação epistemológica constitui campo emergente na Teoria do Projeto. Tentativas de delimitação disciplinar propostas há tempo – como a contribuição de Phillipe Boudon em sua “arquiteturologia” (BOUDON, 1971, 1975) – permanecem casos isolados, mantendo-se dentro de limites prescritivos que ilustram a fecundidade do tema sem, porém, responder a certas questões operativas suscitadas por outros horizontes de pesquisa. É o caso da caracterização do projeto arquitetônico como proposição. Desde um ponto de vista cognitivo, projetar implica reconhecer possibilidades de ação que exigem escolhas situadas no interior de uma prática; nesses casos, a decisão não é dirigida por um contexto normativo, metodológico, cuja pretensão seria definir previamente uma seqüência previsível, linear e fixa, de causas e efeitos.
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Este enfoque já foi objeto de amplo escrutínio crítico, e pode ser apreendido exemplarmente no conhecido trabalho de Donald Schön sobre a formação do profissional reflexivo, onde se esboça uma epistemologia da prática (SCHÖN, 1987)1. Ao longo do desenvolvimento de um projeto nos vemos seguidamente diante do dilema de eleger um caminho, embora outros possam parecer, naquele momento, igualmente plausíveis. Poderíamos ser então tentados a abandonar a esperança de compreensão teórica da prática projetual, considerando-a um percurso traçado ao sabor de sequências aleatórias de tentativa e erro, apenas contornáveis pelo exercício subjetivo de um inexplicável “talento projetual”. Ao subjetivismo dessa concepção (que pode ser considerada, por sua própria natureza, anti-didática), é possível contrapor, contudo, a noção de que a concepção do projeto fundamenta-se na laboriosa construção de um objeto de conhecimento, a qual não pode ser determinada por um conjunto fechado de procedimentos, mas pode ser sistematizada em operações abertas a auto-correções. O estatuto epistêmico de tais construções deverá ser buscado, então, em modelos de desenvolvimento cognitivo fundados em princípios que divergem do determinismo da “racionalidade técnica” – rejeitada por Schön – voltando-se para a aceitação de um pensamento que se constitui a partir de incertezas iniciais e define sua validade no grau de consistência interna da proposição nele implicada. A referência ao conteúdo propositivo do projeto assume, portanto, um sentido regulador: sem ela, a um fracasso seguir-se-ia sempre a adoção de um novo ponto de partida. É o que ocorre com certa freqüência nos ateliers de projeto de nossas escolas de arquitetura. O estudante tenta de qualquer maneira “resolver o problema” de projeto, sem inseri-lo em um quadro de referência capaz de enunciar uma proposição arquitetônica. Diante de um insucesso, rejeita sumariamente o que está fazendo e, de maneira igualmente arbitrária, adota outra alternativa que, esperançosamente, poderá levá-lo, ou não, a algum resultado mais ou menos aceitável. Em outras palavras, inexiste um partido que sirva de referência
Este trabalho promissor foi interrompido pela morte prematura do autor, mas abre caminhos que têm se mostrado fecundos tanto para os estudos epistemológicos do que ele caracterizou como reflexão-na-prática (seguida, no plano teórico, de uma reflexão-sobre-a-prática), como para o ensino das práticas profissionais, entre as quais, segundo Schön, a formação do arquiteto ocupa posição central.
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para possíveis correções, de modo que o obstáculo encontrado não implique um retorno à “estaca zero”, mas a uma organização inicial do projeto cujo conteúdo propositivo permita uma reorganização que não anule o trabalho até então realizado, mas o transforme. A simples desistência dissolve a possibilidade de compreensão do que foi feito, reduzindo a prática projetual a um movimento cego em direção ao desconhecido. Assim, a seqüência de tentativas e erros tende a se perpetuar, interrompida apenas pela sorte, ou pela intervenção de uma autoridade externa que assuma o controle da ação e imponha ao projetista decisões que ele deverá seguir, ainda que não entenda as razões que as motivaram. A prática do projeto arquitetônico se dá em um campo de possibilidades de ação, as quais não são determinadas (embora sejam influenciadas, em maior ou menor grau) por fatores externos. Todo projeto de arquitetura constitui um objeto possível, entre outros tantos. Este objeto não é o resultado necessário de uma operação, assim como o resultado da adição 2+2 é necessariamente 4, mas de uma proposição fundada em escolhas do projetista, cuja configuração deriva de uma composição de elementos à qual é possível atribuir diferentes significados na medida em que se constrói um sistema de relações espaciais e programáticas que os englobe. A partir dele, a concepção do objeto é submetida a múltiplos redirecionamentos e reversões, ou seja, pode retornar ao ponto de partida - o partido - para reorganizá-lo, promovendo superações e transformações de forma e conteúdo. Em suma, no projeto de arquitetura, a concepção do partido arquitetônico pressupõe a proposição de configurações que descobrem, ou inventam, relações espaciais e programáticas a partir de uma dispersão inicial, indeterminada, de possibilidades projetuais. A coerência de tais construções deriva, antes, de um progressivo fechamento interno do que de determinação externa. O partido é, por hipótese, uma prefiguração do objeto, que o projetista elege como ponto de partida e fio condutor: cabe à investigação epistemológica construir contextos de explicitação das razões que asseguram pertinência e validade a essas arquiteturas projetadas. Nesse plano, o projeto assume o estatuto de objeto de conhecimento. Como corolário, o caráter incerto das proposições arquitetônicas as distingue daquele raciocínio lógico-matemático que busca certezas. Assim, é pertinente situar a “lógica” do projeto no domínio de uma argumentação que,
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sem deixar de ser rigorosa, configura seus enunciados buscando construir um modelo verossímil, aplicável a uma interpretação local (arquitetônica) da realidade, sem a pretensão redutora de espelhar no projeto uma condição universal de verdade, imposta pela incidência de parâmetros externos ao projetar.
Implicações pedagógicas No projeto, uma proposição enuncia-se como configuração de componentes arquitetônicos organizados em um sistema de relações espaciais, reconhecível e comparável a um universo indeterminado de sistemas compatíveis. Na sua finalização projetual, essas “famílias” de sistemas2 constituem referências arquitetônicas que se traduzem em soluções exemplares, capazes de alimentar a invenção arquitetônica. Construir tais proposições implica, antes de mais nada, selecionar elementos que se conectem, com sentido operativo, ao problema projetual enfrentado, construindo uma trama de correspondências capazes de sustentar a organização de um partido arquitetônico. A formação de um repertório de soluções exemplares para a prática e o ensino do projeto arquitetônico cumpre sempre um papel transformador em relação aos exemplos isolados. Postas em relação, as referências perdem a arbitrariedade da escolha individual para inserir-se em um sistema de significações que estabelece conexões entre o que antes estava disperso. Neste caso, o conjunto é sempre maior do que a soma das partes: o repertório é uma composição, com efeito multiplicador. A formação do repertório, em sentido lato, é por si mesma um projeto, ou seja, uma construção do sujeito que descobre e inventa correspondências entre objetos (analogias, metáforas), inserindo-os em uma totalidade organizada. Em suma, o repertório não é um simples acúmulo de referências: seu caráter essencialmente seletivo exige a adoção de critérios de escolha. Para que se mostrem operativos, isto é, atuem não como causa, mas como catalisadores da prática projetual, tais critérios devem, evidentemente, emergir do do-
Por analogia à concepção de Wittgenstein de “jogos de linguagem” que se agrupam por representarem “modos de vida” que compartilham um mesmo “ar de família” (cf. WITTGENSTEIN, 1952).
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mínio das operações projetuais. Caso contrário, desfaz-se qualquer pretensão didática que a eles se quisesse atribuir. Na concepção didática do repertório, não nos situamos diante de um quadro de inteira liberdade. Seu enraizamento no contexto da produção arquitetônica do atelier recusa, de alguma forma, o uso arbitrário do “precedente”, quando se quer encará-lo como uma questão de “gosto”, independentemente de sua adequação operativa ao projeto. Um desvio no entendimento do que seja o precedente arquitetônico é tomá-lo como imposição de uma figuratividade adotada como norma. O repertório de soluções exemplares, evidentemente, está aberto a transformações, a novas possibilidades. A realização de um projeto não é obrigatória, não ocorre inexoravelmente, movida por uma necessidade externa. Ao contrário, o projeto nasce de uma vontade deliberada de realização. Assim, todo projeto incorpora sempre algo de novidade, na medida em que diferentes situações trazem, forçosamente, uma maior ou menor abertura para uma nova trama de possibilidades. Essa indeterminação tem consequências epistemológicas, as quais se incorporam à própria concepção que se possa ter do que seja o projeto arquitetônico. A epistemologia genética de Jean Piaget, em particular, insiste seguidamente na “resistência” que os objetos opõem a possíveis transformações, quando o sujeito dessas transformações não tem ainda consciência das oportunidades que se abrem. Nessas circunstâncias, uma referência, adotada arbitrariamente, pode assumir o caráter de “pseudonecessidade”, aceita pelo sujeito, não porque ele encontre razões para sua adoção, mas simplesmente porque não é capaz de discernir alternativas válidas. Embora, em um primeiro momento, a fixação de pseudonecessidades figurativas possa ser considerada inerente a toda abordagem de novos problemas, a incapacidade de superá-la acarreta uma apreensão limitada das possibilidades de resolução e conduz a falsas generalizações, independentemente da coerência das formalizações resultantes. Desde o ponto de vista didático, isto significa que tais formalizações permanecem presas a um caso específico, mostrando-se inadequada, ou inoperante, sua transposição para outros projetos, em outro momento e lugar. A compreensão do aluno acerca do próprio resultado de suas ações fica, então, truncada, e a experiência será levada para
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outra situação de forma incompleta, distorcida ou, muitas vezes, equivocada3. A superação da pseudonecessidade, por sua vez, não se dá pela ativação de capacidades inatas, mas requer uma construção laboriosa, que será progressivamente refinada pela prática. Em Psicogénesis e historia de la ciencia, Jean Piaget e Rolando García apresentam um quadro explicativo do desenvolvimento cognitivo que ocorre na construção dos possíveis. Sua relevância para o ensino do projeto arquitetônico torna-se manifesta se considerarmos que o problema da invenção de novas possibilidades de organização e configuração do espaço centraliza e direciona a prática do projeto. Além disso, o reconhecimento de que a abertura para os possíveis segue um percurso vertical, entre patamares de complexidade que devem ser conquistados na aprendizagem, permite dar maior precisão ao que se quer dizer quando se fala, como Schön, em “prática reflexiva”. Nela, o que se pretende é a formação continuada em uma prática que se supera constantemente, não o treinamento do aluno em procedimentos que, uma vez aprendidos, sejam considerados acabados e “adquiridos”. Uma prática transformadora não se adquire como coisa pronta, apenas à espera do estímulo certo e oportuno. Nos momentos iniciais da formação de um repertório, quer no sentido do aprendizado pessoal, quer no do domínio progressivo que se passa a ter das referências a que nos remete um determinado projeto, os possíveis se formam passo a passo, “por sucessões analógicas fundadas nas qualidades dos predecessores”. Há nisso, entretanto, uma limitação epistemológica. Piaget e García atribuem ao possível analógico uma “pobreza de variações entre uma atualização e a seguinte”: chega-se a uma possibilidade, daí a outra, e assim por diante. Não há, na analogia, o domínio de um universo de variações no qual é possível a escolha de uma delas por comparação simultânea com outras. A analogia procede de A a B, então de B a C, de C a D, etc., sem deixar lacunas entre os termos, permanecendo aberta a um novo e único possível subsequente, mas sem um controle direcional do sujeito (PIAGET e GARCÍA, 1982, p. 83 e seguintes).
Os professores de projeto arquitetônico queixam-se com frequência da “amnésia” dos alunos que, a cada novo projeto, “esquecem” o que antes fizeram com aparente sucesso. Sem uma generalização construtiva da experiência, que fica restrita ao que foi realizado, a cada nova situação é preciso começar de novo.
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O encaminhamento das analogias é, pois, imprevisível, na medida em que falta a representação de um “modelo estrutural” (em termos arquitetônicos, um partido) que situe as possíveis variações e permita a recursividade. Sua presença (seu “papel formador”) é importante como “estopim” que desencadeia o movimento em direção aos possíveis, mas permanece presa a uma linearidade ou sequência que se desenrola sem finalidade (PIAGET et al., 1981). Em um segundo patamar de organização do repertório, a partir da exercitação contínua da analogia, a ampliação do conjunto de soluções exemplares e a compreensão estendida de suas qualidades permite estabelecer, entre elas, múltiplas relações, liberando-se da linearidade analógica para compor uma matriz, um sistema de encaixes das partes em um todo. Em tal matriz, a possibilidade do projeto não deriva, por simples analogia, apenas de algo que o precede, mas abre-se em um leque de possibilidades concorrentes - os “copossíveis” - mutuamente relacionadas por correspondências cruzadas. Piaget e García (loc. cit.) enfatizam que “se assiste a uma modificação notável, que consiste em que a partir de então o sujeito antecipa muitos ‘possíveis’ de uma vez, que se tornam copossíveis pelo fato de sustentar entre si relações explícitas”4. Este passo caracteriza amplamente o dilema do lançamento do partido arquitetônico: a decisão sobre que configuração será adotada como base para o desenvolvimento do projeto. A partir da formação de um repertório de soluções exemplares concretas (imagens, projetos, edifícios, etc.) o possível torna-se uma possibilidade “qualquer” entre outras tantas. Em um terceiro patamar de complexidade situa-se, então, a passagem do repertório composto por exemplos concretos, imediatos, para a constituição de um repertório abstrato de tipos5. Nesse caso, não se faz mais referência a projetos, ou edificações, mas a sistemas de relações arquitetônicas (espaciais, programáticas) capazes de servir de suporte a infinitas pos-
[...se asiste a una modificación notable que consiste en que a partir de entonces el sujeto anticipa muchos «posibles» a la vez, que se tornan coposibles por el hecho de sostener entre sí relaciones explícitas.] 5 Devemos a distinção entre modelo e tipo a Quatremère de Quincy (cf. De l’imitation, 1823). A noção de tipo como construção abstrata origina-se em Quatremère de Quincy, e não deve ser confundida com a de tipologia como coleção de características comuns a certos objetos, que são assim agrupados em uma taxonomia. Desenvolvi este tema em: CASTRO OLIVEIRA, Rogério de. Quatremère de Quincy e o Essai sur l’imitation. In: Kiefer, Flávio et al. Crítica na arquitetura. V Encontro de Teoria e História da Arquitetura. Porto Alegre: Editora Ritter do Reis, 2001, p. 73-91. 4
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sibilidades de concretização. É importante notar que a sucessão de níveis de complexidade não se esgota neste terceiro patamar. A partir dele, a organização abstrata dos tipos retroage sobre o repertório de exemplos, produzindo novas soluções que a ele se superpõem. Ao trazer à existência, material ou virtual, algo novo, alteram-se necessariamente as condições do repertório que serviu de referência. Para que faça sentido, desde o ponto de vista cognitivo que interessa ao ensino, o novo precisa ser integrado ao patamar anterior de organização do repertório, reconfigurando-o. Recompõem-se, então, em mais uma sucessão do concreto ao abstrato, as relações de forma e conteúdo que caracterizam, operativamente, os tipos em transformação. É evidente, contudo, que não se pode operar com possibilidades infinitas, e muito menos representá-las. A tomada de consciência de um universo ilimitado de possibilidades se conjuga com o manejo também consciente de um número limitado de tais possibilidades. Seja qual for a escolha, ela deve ajustar-se a uma explicação, que assume o papel de hipótese formadora, capaz de fornecer um critério: “a explicação causal consiste em colocar o real em um sistema de variações copossíveis, unidas entre si através de variações necessárias” (PIAGET et al., 1981, p. 28). A argumentação epistemológica tem como corolário pedagógico o processo formativo que alia aos quadros imaginários da ficção um imperativo de adequação à realidade, sem o qual se dissolve a eficácia profissional. Os graus de adequação, mais próximos ou mais distantes, são estabelecidos por uma organização do pensamento reconhecível como inerente à arte da arquitetura, embora não possa ser objeto de uma definição, já que seus atributos emergem de uma prática em constante modificação. O reconhecimento se dá no plano da ação: há algo generalizável no agir dos arquitetos, capaz de evidenciar, pelo resultado de suas ações, o domínio compartilhado de certas operações e de certas técnicas, voltadas para a construção de artefatos aos quais se atribui, tacitamente, qualidades identificadas como “arquitetônicas”.6
Tais qualidades não correspondem, evidentemente, a um critério absoluto de pertinência, mas podem variar de acordo com tempo, lugar e circunstâncias que envolvem a produção arquitetônica. Poderíamos dizer, como enuncia Kuhn acerca dos paradigmas, que seu reconhecimento decorre da sua aceitação implícita por parte dos praticantes do ofício, independentemente das razões que possam ser explicitadas.
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Embora a reflexão epistemológica sobre o projeto permaneça pouco explorada no estudo da arquitetura, outros campos do saber encontram na especificidade do fazer arquitetônico um sentido que lhe é próprio, nele se apoiando para caracterizar, na teoria do conhecimento, domínios estranhos ao fazer do arquiteto. É bem conhecida a descrição feita por Kant, na Crítica da razão pura, da arquitetônica da razão. O epistemólogo Jean Ladrière distingue as arquiteturas (por oposição aos processos) como uma das formas de ordenação do saber (LADRIÈRE, 1970). Donald Schön (op. cit.) observa como, no atelier de projetos, o professor procura mostrar ao aluno como ele pode “pensar arquitetonicamente”, condição necessária à compreensão do que seja projetar. John Hejduk, de maneira radical, vai além, ao afirmar que “quando um arquiteto pensa, ele está pensando arquitetura, e seu trabalho é sempre arquitetura, seja qual for a forma em que apareça”7. Evidentemente, Hejduk não confunde a condição de arquiteto com a condição humana: o “arquiteto” somente assume de fato essa condição naquele momento particular em que exerce sua arte construindo, em sentido lato, composições espaciais que se materializam em artefatos, os quais podem assumir as mais diversas configurações. É interessante notar ainda que Louis Kahn costumava afirmar que o arquiteto é antes compositor (composer) do que designer (KAHN, 1967). O professor de projeto arquitetônico, ao elaborar seu projeto didático, pensa como arquiteto e, portanto, produz arquitetura. O programa de ensino não deixa de ser um metaprojeto arquitetônico que se prolonga nos projetos realizados no atelier. A reflexão projetual, de fato, começa na própria proposição do problema. O estudante de arquitetura “aprende a pensar como arquiteto” participando, igualmente, da problematização. Sua tarefa inicial é traduzir em problema de arquitetura o problema didático que lhe é proposto, conjuntamente com seus pares e com o professor. Sem essa cooperação, os alunos até poderão dar respostas eficientes às exigências do professor, mas permanecerão presos a uma situação particular, apresentando – presumivelmente – dificuldades para
“When an architect is thinking, he’s thinking architecture and his work is always architecture, whatever form it appears in. No area is more architectural than any other. My books, for instance, are architecture that you can build in your head. When the research succeeds, it can express the ineffable, which is ultimately translated as spirit. Imagine a drawing and a sentence taking shape at the same time.” John Hejduk. Disponível em: <http://cca.qc.ca/New_Site/exhibitions/hejduk.html>. Acesso em 23.03.2000.
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generalizá-la a outras situações. A compreensão do estudante não é obtida por meio do simples cumprimento de tarefas; educar não é treinar. Piaget e García constatam a falta de generalização em sujeitos que, submetidos a exercitações em certos experimentos, seguindo instruções precisas, são capazes de um desempenho satisfatório que não se repetirá, contudo, na sua ausência. Conjecturando sobre as razões desta ocorrência (tão comum no ensino de projeto), arrolam como motivo das limitações encontradas que: 1) somos nós que propusemos os problemas, e não eles; e é a invenção dos problemas que condiciona a aplicação da metodologia; 2) as questões apresentadas se referem a fatos e leis e têm caráter indutivo (a indução consiste precisamente em deduções aplicadas a fatos), enquanto que a busca de “razões”, ou seja, de significações epistêmicas, é o motor principal da constituição de uma ciência; 3) quando esses sujeitos se centram espontaneamente em questões causais podem chegar a modelos válidos, mas isto ao nível das ações e de suas conceptualizações, sem procurar construir um “sistema” geral. (PIAGET e GARCÍA, 1982, p. 86).8. Para “construir um sistema geral” o aluno deve, antes, ser capaz de atribuir qualidades aos objetos arquitetônicos que manipula – seu próprio projeto, mais as suas referências – incluindo-as em um sistema de significações. Caso contrário, ele apenas aplica ao novo objeto predicados isolados, sem coordená-los em uma composição de conjunto. A atribuição é essencialmente transformadora, a aplicação, predominantemente conservadora. A passagem da conservação à transformação, da aplicação à atribuição, em suma, da prática reprodutiva à prática reflexiva, “pareceria fácil”, nos dizem Piaget e García, “mas não é, de modo algum”. No dia-a-dia do atelier fica claro quão difícil é a aprendizagem e a prática do projeto. O projeto, por definição, anuncia sempre o advento de algo novo, de um objeto que
1) somos nosotros quienes hemos propuesto los problemas y no ellos; y es la invención de los problemas la que condiciona la aplicación de la metodología; 2) las cuestiones presentadas se refieren a hechos y leyes y tienen carácter inductivo (la inducción consiste precisamente en deducciones aplicadas a hechos), mientras que la búsqueda de «razones», o sea de significaciones epistémicas, es el motor principal de la constitución de una ciencia; 3) cuando estos sujetos se centran espontáneamente en cuestiones causales pueden llegar a modelos válidos pero esto al nivel de las acciones y de sus conceptualizaciones sin buscar construir un «sistema» general.
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não existia e que, definindo uma nova possibilidade de existência, altera a realidade da qual se desprendeu, quer no plano cognitivo, quer no plano material. O projeto reconstrói a realidade, mesclando-a com o imaginário e, assim, configura novas arquiteturas. O quadro epistemológico em que se insere o ensino de projeto é complexo, e a ele pareceria ter sido dirigida a observação de Piaget e García (loc. cit.) acerca da constituição da ciência, na qual é preciso “ultrapassar o real e imaginar outros possíveis e, por conseguinte, inventar problemas ali onde pareceria que não há nenhum”. Se o projeto pode ser visto, em sua superfície, como a resolução de um problema de arquitetura, é igualmente verdade que o que comumente chamamos de “solução arquitetônica” se refere a uma pergunta que não antecede o projeto, mas está nele contida. O projeto inventa a solução e o problema. Tinha razão Le Corbusier quando dizia que um bom projeto tem início na “questão bem colocada” (la question bien posée). Colocada a questão, as dificuldades encontradas no percurso do projeto encontram um encaixe regulador. Tentativas mais ou menos bem sucedidas de correção de rumo fornecem um início de compreensão intrínseca, alimentando a crença do projetista em um sucesso possível (PIAGET e GARCÍA, 1982, p. 83). Essa crença impulsiona o sujeito a levar adiante o projeto através de hipóteses, que passam a ser testadas, não mais ao acaso, mas como uma indagação dirigida a um fim. Alcançado um sucesso, o que antes era uma possibilidade que não se sabia, ainda, onde levava, agora passa a ser entendida como um “possível realizável”, podendo ser transposta a novas construções.
Projeto e pesquisa As afinidades entre produção de artefatos arquitetônicos e produção de artefatos culturais não precisam ser sublinhadas. Em qualquer caso, encontramonos imersos em práticas cuja especificidade depende das condições de “fabricação” de objetos de conhecimento cuja existência é indissociável de um marco material. Para o antropólogo Clifford Geertz, estes quadros produtivos circunscrevem “saberes locais”, que constituem “algumas das variedades mais avançadas do pensamento moderno”, portadoras de “uma nova forma de examinar o mun-
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do através do que dele falam — como é retratado, demarcado, representado — e não através do que ele é intrinsecamente”9 (GEERTZ, 1983, p. 11). Nesse sentido, a teoria abdica de toda universalidade normativa. Olhando cada projeto como caso particular, portador de um sistema de significações aberto à interpretação, torna-se, antes, um método de inquirição daquilo que é e permanece incerto, do que uma máquina de fabricar certezas. A ideia de uma “metodologia” genérica, pré-configuradora da pesquisa fica, portanto, deslocada: “a investigação é orientada para casos, ou grupos de casos, e para os traços particulares que os distinguem uns dos outros [...]”, sugerindo um procedimento comparativo, porém sem pretensões legitimadoras de um “processo” traduzido em leis reguladoras da ação no tempo. Trata-se antes de uma disposição para a ação, apoiada na “retórica analítica, nos tropos e no imaginário da explicação”, cuja ordem é essencialmente espacial, configuradora de padrões que situam as ações umas em relação às outras, sem pressupor, contudo, uma sequência preestabelecida de operações (Ibidem, p. 37). Neste ponto nos deparamos com o caráter interpretativo da teoria do projeto: se não podemos submetê-lo a um total controle metodológico, podemos regular o seu desenvolvimento pelo exercício de constante crítica. Cabe aqui enfatizar o enunciado de Wittgenstein: “interpretar é uma forma de pensar” (WITTGENSTEIN, 1966, p. 39). O campo de aplicação dessa forma de pensar corresponde ao campo da ação projetual, pautada pela incerteza e, por isso mesmo, voltada para a criação de novidades (como diria Piaget), capaz de transpor inventivamente as lacunas deixadas em aberto por um conhecimento que se reconstrói em novas, imprevistas – e imprevisíveis – relações de forma e conteúdo.
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Significativamente, Geertz refere-se a esta abordagem como falar “a língua de Wittgenstein”.
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Referências BOUDON, Phillipe. Sur l’espace architectural: essai d’épistémologie de l’architecture. Paris: Dunod éditeur, Bordas, 1971. ________________. Architecture et architecturologie. Paris: Bordas, 1975. GEERTZ, Clifford. O saber local. Petrópolis: Vozes, 1997. Tradução de: Local knowledge. KAHN, Louis. Address by Louis I. Kahn. Boston Society of Architects Journal, n. 1, 1967. LADRIÈRE, Jean. A articulação do sentido. São Paulo: EDUSP, 1977. Tradução de: L’articulation du sens. PIAGET, Jean et al. Le possible et le nécessaire. Paris: P.U.F., 1981. v.1. PIAGET, Jean; GARCÍA, Rolando. Psicogénesis e historia de la ciencia. México: Siglo Veintiuno, 1982. QUATREMÈRE DE QUINCY, Antoine-Chrysostome. De l’imitation. Ed. fac-sim. Bruxelles: Archives de l’Architecture Moderne, 1980. SCHÖN, Donald A. La formación de profesionales reflexivos : hacia un nuevo diseño de la enseñanza y el aprendizaje de las profesiones. Barcelona: Paidós, 1992. Tradução de: Educating the reflective Practitioner. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Petrópolis: Vozes, 1996. Tradução de: Philosophische untersuchungen. ______________________. Sobre la certeza. Barcelona: Gedisa, 2000. Tradução de: Über Gewissheit.
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Figura 1: Os quatro tipos de composição. Diagramas de Le Corbusier. Fonte: Le Corbusier, Precisões, 2004.
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O objetivo desse artigo é interpretar “os quatro tipos de composição”, que é o ponto de culminância de uma sistematização da arquitetura proposta por Le Corbusier, no período denominado de “Casas Brancas”, ou também de “O Espírito Novo”, que vai de 1914, data da proposição do padrão dom-ino, até 1925, data em que publica, em Obra Completa, a sua tipologia compositiva. Falar em sistematização da arquitetura é reconhecer que as realizações de Le Corbusier não aconteceram aleatoriamente. Cada uma delas se articula com as demais, formando um conjunto de elementos, concretos e abstratos, intelectualmente organizado: um sistema. Le Corbusier, ao definir seus elementos e regras de articulação e operação, constrói uma sintaxe; ao demonstrar seus significados potenciais, estabelece uma nova semântica e, ao colocar em uso essa sintaxe e essa semântica, realiza uma pragmática que, progressivamente, a cada experimento, avança no domínio da sua visão de uma nova arquitetura. Com essa tipologia compositiva, Le Corbusier conclui uma etapa importante de seus experimentos arquitetônicos e de suas reflexões teóricas, apresentando didaticamente suas contribuições, que visavam a manter vivo o “Espírito do Classicismo”, liberto dos estilos da academia e do academicismo. Com uma sólida formação não convencional, pois não frequentou nenhuma escola de arquitetura, Le Corbusier, dotado de um pensamento analógico original, demonstrado profusamente na sua produção diagramática e metafórica, enfrentou a academia com uma lógica contundente, presente tanto nas suas obras como nos seus textos. Reler os textos de Le Corbusier, procurando neles lições relevantes para o nosso tempo, tão conturbado, é sempre uma tarefa agradável e frutífera. A luta que ele empreendeu contra os descaminhos da arquitetura do seu tempo nos legou instrumentos poderosos para enfrentarmos as dificuldades com que nos deparamos nos dias de hoje. A leitura de Le Corbusier requer generosidade. Seus textos, principalmente “Por uma arquitetura”, publicado em 1923, marcados por radicalismos, argumentação exagerada e ardor juvenil, nem sempre são examinados em maior profundidade. Afastados os escolhos, podemos vislumbrar neles um quadro pleno de significados, que se enriquece a cada releitura.
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A sistematização da arquitetura concebida por Le Corbusier passa por muitas questões - trataremos aqui apenas daquelas mais relevantes para a interpretação das questões compositivas, no período denominado “Espírito Novo”.
O volume Para Le Corbusier, o volume puro é a base da composição. O volume é a totalidade plástico-ideal que estabelece, a priori, a ordem que conterá os fatores pragmáticos da arquitetura. A legibilidade do volume é o fundamento da arquitetura racional:
A arquitetura é o jogo sábio, correto e magnífico de volumes reunidos sob a luz. Nossos olhos são feitos para ver formas sob a luz; as sombras e os claros revelam as formas; os cubos, os cones, as esferas, os cilindros ou as pirâmides são as grandes formas primárias que a luz revela bem... é por isso que são belas formas, as mais belas formas. (LE CORBUSIER, 2000, p. 13).
A superfície Cabe à superfície apresentar o volume, ressaltar suas qualidades e, através do seu desenho e de suas proporções, discipliná-lo: Um volume é envolvido por uma superfície, uma superfície que é dividida conforme as diretrizes e as geratrizes do volume, marcando a individualidade desse volume. Os arquitetos, hoje, têm medo dos constituintes geométricos das superfícies. (LE CORBUSIER, 2000, p.xxx)
A planta Para Le Corbusier, a planta estabelece a ordem, a totalidade; ela é a geradora do volume - e o volume nasce na planta. Para que isso aconteça, é fundamental que ela pense o volume:
A planta está na base. Sem planta não há grandeza de intenção e de expressão, nem ritmo, nem volume, nem coerência. A planta necessita a mais ativa imaginação. Necessita também a mais severa disciplina. A planta é a determinação do todo. (LE CORBUSIER, 2000, p. 27).
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O traçado regulador O traçado regulador verifica a justeza das proporções da arquitetura. Operando sobre a superfície, ele verifica e fixa as proporções do volume: O traçado regulador é uma satisfação de ordem espiritual que conduz à busca de relações engenhosas e de relações harmoniosas. Ele confere à obra a eurritmia. O traçado regulador traz essa matemática sensível que dá a agradável percepção da ordem. (LE CORBUSIER, 2000, p.47).
O padrão dom-ino
Figura 2: padrão dom-ino. Fonte: Imagem do autor.
O padrão dom-ino, proposto por Le Corbusier em 1914, consiste de uma estrutura de concreto armado que proporciona uma organização livre da planta, pois as paredes já não servem de sustentação, nem se embaraçam com vigas. A possibilidade de modulação e combinação sugeriram o nome dom-ino. A adoção do padrão significou também uma mudança na prática projetual:
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O método Beaux-Arts implicava em postergar a consideração dos meios construtivos em relação ao núcleo da composição, o partido. Se consagrava esta ordem na consideração sucessiva de Elementos de Composição primeiro, elementos de arquitetura depois. No modernismo que o segue, a intenção de veracidade construtiva se eleva à condição de princípio, já antecipado por Viollet-le Duc. (MARTÍNEZ,1998, p.170).
Talvez Le Corbusier tenha sido um dos poucos arquitetos a colocar em prática intenção de veracidade construtiva presente desde a adoção de um partido. Se teve êxito, ele se deve à adoção do padrão dom-ino.
Os cinco pontos São os novos cânones que estabelecem a nova ordem da arquitetura de Corbu - equivalem às Cinco Ordens de Vignola, que regravam a arquitetura clássica: 1) o pilotis: a estrutura independente (padrão dom-ino) possibilita a liberação do solo e tem consequência urbanísticas - um novo tipo de cidade jardim; 2) o teto jardim: o solo liberado pelo pilotis é recuperado na cobertura, com a finalidade de lazer e culto à saúde. É a eliminação do telhado; 3) a planta livre: é a possibilidade de ocupar cada pavimento independentemente dos demais. As paredes já não têm mais função portante, apenas vedam e dividem; 4) a janela em largura (ou parede de cristal): é mais do que uma janela, é uma janela manifesto: vejam! a janela pode rasgar totalmente a parede, pode inclusive eliminá-la, pois a parede nada sustenta - é sustentada. Permite abundante e uniforme iluminação. É o fim dos lugares lúgubres e insalubres. 5) a fachada livre: a liberdade conquistada na planta livre se estende à elevação do edifício, livre também de qualquer função portante.
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Figura 3: Correspondências biunívocas, moderno/clássico. Croquis de Le Corbusier. Fonte: Le Corbusier, Precisões, 2004.
Com os cinco pontos, Corbu realizou as transformações necessárias para preservar as qualidades fundamentais do clássico e, com elas, configurar a nova arquitetura. As transformações estão em correspondência biunívoca. À base rusticada corresponde o pilotis; ao piano nobili compartimentado, a planta livre; à fachada portante, onde predominam os cheios sobre os vazios, a janela em largura ou fachada livre; ao ático, fechamento superior do edifício, o teto jardim. Essa metamorfose, aparentemente antitética, não se contrapõe ao passado nem rompe com a história - ela combate a academia e os pastiches que embaraçam os passos de uma arquitetura afinada com o seu tempo. Essa sistematização se completa com a apresentação dos quatro tipos de composição. Le Corbusier toma o conceito de composição da Beaux Arts, transforma-o e dá-lhe novo sentido, num contexto histórico em que os arquitetos modernistas negavam, e até repudiavam, a ideia de composição. Frank Lloyd Wright se opunha à composição. Os neoplasticistas falavam em contracomposição. Nesse ambiente hostil, Le Corbusier propôs e defendeu a sua concepção de composição, sem nunca defini-la, apenas exemplificando. Le Corbusier, procedendo sistematicamente, chegou àquilo que chamaremos de “Composição modernista de viés clássico”. Ele esclarece a origem dos quatro tipos, propostos em 1925: Examinando nossa própria produção, chego a discernir a intenção geral que determinou a atitude da obra. Recorrendo a métodos semelhantes de classificação, dimensionamento, circulação, composi-
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ção e proporcionamento, trabalhamos até agora com quatro tipos de plantas e cada uma delas exprime preocupações intelectuais características. (LE CORBUSIER, 2004, p.138).
Na figura 4 podemos observar os quatro tipos desenhados por Le Corbusier. O primeiro tipo está colocado em oposição aos demais, ditos prismas puros. Junto ao tipo 1 seguem pequenos comentários - “gênero aproximadamente fácil, pitoresco e movimentado. Podemos, de qualquer maneira, discipliná-lo por classificação e hierarquia. Autoriza composição piramidal”. Composição piramidal é expressão cunhada na pintura do Renascimento. Ora, gênero pitoresco é o gênero do pintor. O clássico se opõe a ele, pitoresco aqui tem um sentido quase pejorativo. Exige disciplina. Por meio da classificação e da hierarquia, Le Corbusier pretende atingir essa disciplina. Por classificação, Le Corbusier entende a separação dos fatores programáticos daqueles plástico-ideais. Hierarquia para Le Corbusier é a organização dos níveis de privacidade e das relações público/privado. Hierarquia poderia também significar a estratificação do corpo do edifício em base, piano nóbili e ático, à semelhança dos palácios renascentistas.
Figura 4: Os quatro tipos de composição, 1925. Diagrama de Le Corbusier. Fonte: Boesiger; Gisberger,1995.
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Le Corbusier, ao comentar o primeiro tipo, esclarece melhor o que entende por composição piramidal: O primeiro tipo mostra cada órgão surgindo ao lado do seu vizinho, de acordo com um motivo orgânico: o “interior alarga seu espaço e empurra o exterior, que forma diversas saliências”. Este princípio leva a uma composição “piramidal”, que pode tornar-se complicada se não tomarmos cuidado. (LE CORBUSIER, 2004, p.138).
Um olhar mais atento ao tipo 1 nos oferece elementos para fazer uma primeira objeção a Le Corbusier - A Maison La Roche não é tão irregular assim, como poderia parecer à primeira vista.
Figura 5: fachada Maison La Roche. Fonte: Imagem do autor.
A figura 5 mostra um corpo principal simétrico, ladeado de dois volumes - um à esquerda, sobre pilotis, e outro à direita, que se insinua em balanço. Na busca de uma melhor compreensão, tanto da composição tipo 1, como da composição piramidal, Alan Colquhoun (2002, p.96) diz que “contrastando, a casa de Mallet Stevens consiste numa agregação piramidal de cubos”. A noção de agregação piramidal, expedida por Colquhoun, apesar de mais próxima da de forma piramidal, é superada pela formulação mais abstrata de Lu-
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can: “piramidar consiste no encadeamento das partes em direção ao elemento principal da composição” (LUCAN, 2009, p.87). É o que parece acontecer na Maison La Roche - os volumes secundários reforçam a centralidade hierarquizada do elemento principal da composição. No entanto, é importante notar que a planta da Maison La Roche pode ser inscrita num retângulo. Isso demonstra que o tipo 1 não passa de uma variante do tipo 4; entretanto, na obra não existem vestígios de operações que possam corroborar essa assertiva. Apenas uma ação diagramática sobre a planta sustenta essa interpretação. Assim sendo, não há elementos secundários que concorram para o destaque do elemento principal de uma composição piramidal. Aceita a demonstração diagramática, chegaríamos à conclusão de que não há oposição entre o tipo 1 e os demais - todos são, originalmente prismas puros.
Figura 6: Inscrição do tipo1(Maison La Roche) num retângulo. Fonte: Imagem do autor.
A composição em Le Corbusier não é elementar. A composição da hipótese se dá num todo, o prisma puro. Num segundo momento, hipotético / dedutivo, são extraídas as consequências necessárias da hipótese adotada. É nesse momento tipicamente operativo que as operações predominantemente
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subtrativas introduzirão as transformações necessárias à forma plástico-ideal. (Ver texto do mesmo autor nesse livro). Conforta essa interpretação, diagramaticamente apresentada, a opinião que encontrei em Pinchon sobre o arquiteto Rob Mallet Estevens: Em 1924 a Rua Mallet-Stevens não havia sido aberta, e tampouco construída a Villa C, e Le Corbusier, vendo a maquete da “Villa de 1924” - cuja foto ele publica no cabeçalho de seu artigo em L’Esprit Nouveau - pensa em uma acumulação de prismas e de planos tal como Rietveld ou Van Doesburg os compunham: em cinco ou dez partes. Podemos, entretanto, pensar que a “Villa de 1924” não é o resultado de uma acumulação de partes, mas ao contrário, o que resta de um único cubo após terem sido desbastados todos os volumes que excediam às necessidades e aos condicionantes do programa. A fachada, na sua parte central, simétrica, é fixa. Em contrapartida, as duas alas e as superestruturas são cortadas seguindo a grade geométrica, em função das necessidades. O cubo-envelope pode ser recortado nas três direções do espaço, conservando suas ligações geométricas. Não se trata mais, então, de uma adição de partes autônomas, mas de um único bloco poliédrico. Podemos assim ser levados a pensar que a “Villa de 1924” é uma maquete experimental polivalente, partindo do cubo e sendo trabalhada em três dimensões segundo as exigências das visuais da rua, do programa, das regulamentações [...] (PINCHON, 1986, p.129).
A estratégia compositiva de Le Corbusier compatibiliza as exigências programáticas com a ordem ideal purista. A disposição ocorre nos limites impostos pela composição. Aqui está claro que as necessidades pragmáticas e utilitárias não enfraquecem, para Le Corbusier, o significado estético, mas o enriquecem e o tornam mais complexo. Vemos, portanto, que as idéias de Le Corbusier relativas tanto à superfície quanto à planta refletem os mesmos princípios: uma lei formal primordial que entra em colisão com a utilidade,de modo que ambas interajam com a complexa totalidade da obra de arquitetura - uma totalidade que inclui tanto a ordem quanto a desordem. (COLQUHOUN, 2004, p. 119).
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Figura 7: Vila Stein, Garches,1927. Fonte: Imagem do autor.
A abordagem do segundo tipo de composição oferece menor dificuldade, pelo menos aparentemente. De todos os tipos é o que está mais próximo de uma configuração clássica. Colin Rowe, comparando a Vila Malcontenta, de Palladio, de 1560, à Vila Stein, e Le Corbusier, de 1927, aponta uma série de semelhanças entre as duas obras:
Figura 8: Vila Malcontenta,1560. Fonte: Palladio,1990.
- a semelhança diagramática: como imagem, os dois edifícios são muito diferentes; mas, como diagramas, as plantas apresentam semelhanças notáveis;
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Figura 9: Diagramas comparativos - Vilas Malcontenta e Stein. Fonte: Imagem do autor.
- estão concebidas como um volume único; - nos dois edifícios, o piano nobili se comunica com o jardim por meio de terraço dotado de escada; - a equivalência compositiva entre a parte superior da fachada principal da Vila Stein com o frontão superior da Malcontenta. O tipo representado pela Vila Stein, de 1927, é o mais clássico de todos os tipos de composição. Simboliza o início de uma caminhada em direção à sonhada Nova Arquitetura. Não é que faltem méritos à Vila de Garches, pelo contrário, ela apenas não apresenta ainda todas as características da sistematização proposta. Falta-lhe, por exemplo, o pilotis, fundamental à concepção urbanística implícita na arquitetura de Le Corbusier - ela poderia comparecer numa morfologia urbana tradicional em que os edifícios configuram o fechamento do quarteirão. Le Corbusier considera o tipo 2 um gênero muito difícil de composição,pois é pouco movimentado e sem nada de pitoresco que cative e distraia a atenção. Depende unicamente de suas proporções e de uma fenestração ajustada por traçados reguladores que acentuem as relações de semelhança entre superfícies, aberturas e volumetria. Trata-se de um tipo de composição minimalista. Le Corbusier comenta:
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O segundo tipo revela a compressão dos órgãos no interior de um envoltório rígido, absolutamente puro. É um problema difícil, talvez deleite do espírito; gasto de energia espiritual, em meio a entreves que nos impomos (LE CORBUSIER, 2004, p.138).
A fachada da Vila Stein apresenta um aspecto curioso: os elementos aditados à fachada configuram uma disposição piramidal. A Vila em Cartago representa o terceiro tipo de composição. Le Corbusier considera-o um gênero fácil, prático e combinável: O terceiro tipo proporciona, com um esqueleto aparente, um envoltório simples, claro, transparente como uma pequena rede; permite que se instalem diversamente, em cada andar, os volumes úteis dos quartos, em forma e quantidade. É um tipo engenhoso, apropriado a certos climas; composição muito fácil, plena de recursos (LE CORBUSIER, 2004, p.138).
O tipo representado pela Maison Baizeau é quase anticlássico, pois decompõe o volume em planos, de uma maneira que evoca o neoplasticismo. Mas a semelhança com o De Stijl não fica por ai - a fachada, contrastando com as elevações laterais, configura-se virtualmente como uma contracomposição à Mondrian. Com o tipo 3, Le Corbusier amplia as possibilidades da sua tipologia, encaixando nela as possibilidades anticlássicas da poética neoplástica, à sua maneira, como não poderia deixar de ser.
Figura 10: Vila Baizeau, em Cartago, 1928 - contraste entre fachadas. Fonte: Boesiger, Gisberger,1995.
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A Vila em Cartago, 1928, como exemplar do tipo 3, difere muito do diagrama apresentado por Le Corbusier. Enquanto no diagrama os “órgãos”, livremente dispostos em cada pavimento, permanecem afastados, o volume é definido pelas bordas das lajes. Na Maison Baizeau os “órgãos” de cada pavimento chegam, em muitas situações, até a superfície do volume, criando uma imagem bastante confusa e irregular, onde se mesclam, numa mesma superfície, horizontalidade e verticalidade, prejudicando a legibilidade do volume.
Figura 11: Espacialização do diagrama do tipo 3. Fonte: Imagem do autor.
Isso faz da Maison Baizeau um exemplo pouco feliz do terceiro tipo de composição. Figura 12: Vila em Cartago,1928. Fonte: Boesiger, Gisberger, 1995.
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Em compensação, a Vila Shodan, Ahmedabad, 1956, é uma realização de Le Corbusier bem mais elaborada, representando melhor o terceiro tipo de composição, pois não apresenta problemas de legibilidade.
Figura 13: Vila Shodan, 1956, Ahmedaba. Fonte: Boesiger, Gisberger,1995.
A Vila Savoy exemplifica o quarto tipo de composição na sistematização concebida por Corbu.
Figura 14: Vila Savoy. Fonte: fonte :imagem do autor .
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A Vila Savoy, construída em Poissy, 1931, é a mais completa exemplificação dos cinco pontos. Ela representa o momento de culminância na pesquisa paciente que Corbu empreendeu na configuração de uma nova arquitetura. No diagrama dos quatro tipos de composição, figura 4, estão anotados comentários sobre o tipo 4: “muito generosa, afirma-se no exterior uma vontade arquitetural: satisfaz no interior a todas as necessidades funcionais, contiguidade, circulação” (LE CORBUSIER, 2004, p.138). Nela estão presentes todos os tipos de composição, numa estratificação de tipos. Em cada camada encontramos um ou mais tipos: na primeira camada, correspondente ao acesso principal e garagem, o terceiro tipo, com seus órgãos à vista, no interior do volume; na segunda camada, mais complexa, comparecem os tipos 1 e 2 – exteriormente, o tipo 2 e, internamente, o tipo 1, aqui inscrito nas quatro fachadas representativas do tipo 2; na terceira camada, aparece novamente o tipo 3, com seus órgãos aparentes, em função da transparência do volume nessa posição.
Figura 15: Visão hipotética do volume. Fonte: Imagem do autor.
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Essa interpretação, que tem o sentido de hipótese explicativa, apoia-se, inclusive, na afirmação de Corbu: “Um simples fato condena tudo; em um edifício vive-se andar por andar (on vit par ètage), horizontalmente, não verticalmente” (LE CORBUSIER, 2000, p.397). Vale lembrar que para Corbu o quarto tipo representa uma composição cúbica, prisma puro. Operações sucessivas transformam o volume na configuração complexa que ele apresenta na Maison Savoy. Le Corbu corrobora a hipótese explicativa: “O quarto tipo atinge, no que se refere ao exterior, aquela forma pura do segundo tipo; no interior comporta as vantagens e qualidades do primeiro e do terceiro.Tipo puro, muito generoso, também repleto de qualidades. (LE CORBUSIER, 2004, p.138). Ficam assim melhor explicadas as razões da hipótese levantada. Nada fiz além de avançar um pouco mais, vendo na Vila Savoy um volume menos puro do que queria Corbu.
Figura 16: Ministério de Educação e Saúde,1936-45. Fonte: Le Corbusier, Ouvre Complète,1934-38.
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Importa destacar a relevância que a sistematização de Corbu teve para a arquitetura moderna Brasileira. Os melhores momentos da arquitetura moderna brasileira são aqueles realizados sob a influência das teses de Le Corbusier. Sua investigação teve repercussão mundial. Lúcio Costa, já em 1930, ressaltava a importância de Le Corbusier: [...] em determinadas épocas certos arquitetos de gênio revelam-se aos contemporâneos, desconcertantemente originais (Brunellesco no começo do Século XV, atualmente, Le Corbusier), isto apenas significa que neles se concentram em um dado instante preciso - cristalizando-se de maneira clara e definitiva em suas obras - as possibilidades, até então sem rumo, de uma nova arquitetura. (COSTA, 1962, p.24).
Lúcio Costa adere às propostas de Corbu, procurando sempre interpretar o seu alcance. Aqui ele discorre sobre o valor da estrutura independente: É este o segredo de toda nova arquitetura. Bem compreendido o que significa essa independência - temos a chave que permite alcançar, em todas as suas particularidades, as intenções do arquiteto moderno; porquanto foi ela o trampolim que, de raciocínio em raciocínio, o trouxe às soluções atuais, e não apenas no que se relaciona à liberdade de planta, mas, no que respeita à fachada, já agora denominada “livre”: pretendendo-se significar com essa expressão a nenhuma dependência ou relação dela com a estrutura. (COSTA, 1962, p.28).
As possibilidades expressivas da arquitetura preconizada por Le Corbusier também cativam Lúcio Costa, que ressalta o fato de que essa novas qualidades plásticas são compatíveis com as exigências programáticas e técnicas: A nova técnica, no entanto, conferiu a esse jogo imprevista elasticidade, permitindo à arquitetura uma intensidade de expressão até então ignorada: a linha melódica das janelas corridas, a cadência uniforme dos pequenos vãos isolados, a densidade dos espaços fechados, a leveza dos planos de vidro, tudo voluntariamente excluindo qualquer ideia de esforço, que todo se concentre, em intervalos iguais, nos “pilotis” - solto no espaço - o edifício readquiriu, graças à nitidez das suas linhas e à limpidez dos seus volumes de pura geometria - aquela disciplina e “retenue” próprias da grande arquitetura; conseguindo mesmo, um valor plástico nunca dantes alcançado, e que a aproxima - apesar do seu ponto de partida rigorosamente utilitário - da arte pura. (COSTA, 1962, p.30).
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Lúcio Costa comenta a repercussão das proposições de Le Corbusier no Brasil e, consequentemente, no aprofundamento dos estudos que fundamentaram as realizações englobadas naquilo que veio a ser denominado de “Escola Carioca de Arquitetura Moderna Brasileira”: Nesse conjunto de profissionais igualmente interessados na renovação da técnica e expressão arquitetônicas, constituiu-se, porém, de 1931 a 35, pequeno reduto purista consagrado ao estudo apaixonado não somente das realizações de Gropius e de Mies van der Rohe, mas, principalmente, da doutrina e obra de Le Corbusier, encaradas já então, não mais como um exemplo entre tantos outros, mas como o Livro Sagrado da Arquitetura. (COSTA, 1962, p.192).
Uma obra teve importância fundamental para a implantação da arquitetura moderna no Brasil - o edifício do Ministério de Educação e Saúde,1936-45, projeto de uma equipe de arquitetos coordenados por Lúcio Costa, tendo Le Corbusier como consultor. Essa obra mantém uma relação notável, guardadas as devidas proporções, com a Vila Savoy - é uma aplicação dos cinco pontos de Le Corbusier e enquadra-se na sua tipologia compositiva. Mas é importante assinalar uma diferença significativa - enquanto a Vila Savoy se configura como um volume isolado, o MES conforma como uma composição de composições, ou como uma meta-composição. Compostos os volumes, várias combinações são tentadas, até a escolha da melhor alternativa - o partido. Não se trata, pois, de uma composição elementar. O bloco principal foi o ponto de partida da composição. Em função dele, as outras formas se foram fixando, impostas pelas necessidades do programa e pelos princípios fundamentais da composição de arquitetura. Esses princípios inspiraram o partido adotado, desde a forma dos salões destinados a exposições e conferências, no pavimento térreo, até as que envolvem as dependências situadas na cobertura (casas de máquinas, depósitos de água, etc.) e que, integradas na composição, passam a contribuir para o efeito plástico do conjunto. (COSTA, 1962, p.62).
A contribuição de Le Corbusier no domínio da composição em arquitetura é inestimável, especialmente para nós, brasileiros. Com suas obras e suas análises, afastadas de todo convencionalismo, demonstrou didaticamente as possibilidades da Nova Arquitetura.
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Com o auxílio destas concepções, podemos circular sem descontinuidade através dos domínios aparentemente tão distintos do artista e do sábio, da mais poética e até da mais fantástica construção até a que se nos mostra tangível e ponderável. Os problemas da composição são recíprocos da análise; e o abandono de conceitos demasiado simples acerca da constituição da matéria, bem como da sua formação, é uma conquista psicológica do nosso tempo. Os devaneios substancialistas, tal como as explicações dogmáticas, desaparecem, e o saber construir hipóteses, nomes, modelos, liberta-se das teorias preconcebidas e do ídolo da simplicidade. (VALÈRY, 1979, p.52).
Lúcio Costa comparou o gênio de Le Corbusier ao de Brunelleschi; Paul Valéry, ao falar de Leonardo da Vinci, utiliza palavras adequadas a Le Corbusier: A operação total deste grande Leonardo da Vinci é deduzida unicamente do seu grande objeto, como se uma pessoa particular não se relacionasse com isso, o seu pensamento parece mais universal, mais minucioso, mais coerente e isolado na medida em que não pertence a um pensamento individual. O homem muito elevado nunca é original. A sua personalidade é tão insignificante como se exige. Poucas desigualdades; nenhuma superstição do intelecto. Nada de vãos receios. Não teme as análises; condu-las - ou então são elas que o conduzem - até as últimas consequências; regressa ao real sem esforço. Imita, inova; não rejeita o antigo por ser antigo; nem o novo por ser novo; mas descobre em tudo algo eternamente atual. (VALÈRY, 1979, p.72).
Muitos poderiam ver na sistematização de Le Corbusier uma norma, um dogma a ser seguido. Assim como Le Corbusier investigou as possibilidades de uma Nova Arquitetura e se negava a professar os preceitos acadêmicos hegemônicos da sua época, a sua sistemática não diz como a arquitetura deve ser, demonstra possibilidades; não obriga, faculta; não a considera como a única direção a ser seguida, mas como aquela que permite o vislumbre de um novo caminho, pleno de possibilidades, dentro do seu propósito de manter vivo o “Espírito do Classicismo”. Na década de trinta, Le Corbusier vai experimentar outras maneiras de fazer arquitetura, chegando muitas vezes a realizar obras que se contrapõem aos princípios do “Espírito Novo”, indo da arquitetura vernácula mediterrânea ao brutalismo e chegando inclusive a surpreender e chocar os apreciadores da sua fase purista, com a capela Notre-Dame-du-haut em Ronchamp, 1954. Nessa
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obra nada existe que possa lembrar as formas puras, os cinco pontos, nem mesmo os quatro tipos de composição - ela representa, ao mesmo tempo, conservar e superar, transformando o passado, sempre em busca do novo.
Figura 17: Capela em Ronchamp,1954. Fonte: www.GreatBuildings.com,1995.
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Referências BOESIGER, W.; GISBERGER, H. Le Corbusier: 1910-65. Barcelona: Gustavo Gili, 1995. COLQUHOUN, Alan. Modernidade e tradição clássica. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. __________________. Modern architecture. Cambridge: Oxford University Press, 2002. LE CORBUSIER. Por uma arquitetura. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 1977. ______________. Precisões. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. ______________. Ouvre Complète: 1934-38. Zurich: Editions Girsberger,1951. LUCAN, Jacques. Composition - non composition: architecture et théories XIX -XX Siécles. Lausane: Presses Polytechiniques et universitaires Romandes, 2009. MARTÍNEZ, Alfonso Corona. Ensayo sobre el proyecto. Buenos Aires: Libreria Técnica CP67, 1998. PALLADIO, Andrea. I quattro libri dell’architettura. Milano: Ulrico Hoepl, 1990. PINCHON, Jean François. Rob Mallet Stevens: architecture, mobilier, decoration. Paris: Philippe Sers Éditeur, 1986. VALÈRY, Paul. Introdução ao método de Leonardo da Vinci. Lisboa: Arcádia, 1979. XAVIER, Alberto (Org.). Lúcio Costa: sobre arquitetura. Ed. fac-sim. Porto Alegre: Ed. UniRitter, 2007.
“Muita construção, alguma arquitetura e um [...]” milagreiro Anna Paula Canez Cairo Albuquerque da Silva
Tomando por base os escritos de Lucio Costa, especialmente aqueles que tratam de partido, composição, conceito, criação científica, criação artística, pesquisa e, sobretudo, do seu processo reflexivo como modo de fazer arquitetura e cidade, neste trabalho, buscamos pensar a respeito do nosso processo de fazer contemporâneo, que nos parece tão afastado daquele de Lucio Costa. Nos dias de hoje, a imagem pela imagem ganhou força e o senso comum deixou de ser alimentado. Lançamos como hipótese que o seu modo de fazer, ancorado na tríade – ensino, pesquisa e prática – produziu as obras exemplares da arquitetura moderna brasileira que admiramos e que, hoje, na maior parte das vezes, não conseguimos nem de perto alcançar, justamente porque nos desacostumamos, ou melhor, nos afastamos do pensar reflexivo. Como contribuição, e com o auxílio de outros autores, procuramos clarear os caminhos percorridos por Costa, interpretando-os com um sentido de atualidade, à luz da significação científica
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para que, neste sentido, não passem despercebidos. Lúcio vai comparar em 1951 essa arquitetura moderna brasileira a um milagre. E sem dúvida a convergência de fatores e atores que a tornou possível foi inesperada, provavelmente irrepetível. Mas vale a pena lembrar, para uma historiografia demasiado obcecada com a conexão barroca e a curva livre, o vernacular, o telúrico, o original e a brasilidade, que nesse caso raro de santo de casa reconhecido, o santo bem preparado dominava por inteiro o seu missal1.
A formulação colocada aqui não surgiu de um pensar abrupto, daqueles que nos acometem quase por surpresa. Surgiu, isto sim, de um amadurecimento do pensar dos seus autores, embora ainda pouco registrado. O envolvimento mais intenso, embora recente, com a obra e escritos de Lucio Costa da parte de um, aliada aos estudos de longa data, relacionados ao “projeto como investigação”, da parte de outro, deram margem a uma formulação que, à quatro mãos, tomou corpo e mereceu desenvolvimento em forma de comunicação, com a oportunidade da apresentação do trabalho no Seminário Projetar. O impulso veio do espanto e da indignação diante da inevitável constatação, que salta aos olhos mais atentos dos apreciadores da arquitetura, a respeito de parcela da produção contemporânea que toma conta das nossas cidades, tal qual veio a público em recente entrevista concedida ao “O Estado de São Paulo” por Corrêa do Lago. O Diplomata, um apreciador da Arquitetura e autor de livros a respeito, afirma, na entrevista, que o Brasil está fechado ao debate internacional e que, embora tenha havido uma sensível melhora nos projetos residenciais, nossos prédios corporativos continuam lastimáveis e indigna-se contra a construção de um shopping center grudado em condomínios verticais, como hoje se vê na paisagem de São Paulo.
Exasperado, pergunta-se: “Por que teremos de olhar para aquilo pelo resto dos nossos dias?”2. COMAS, Carlos Eduardo. Lucio Costa e a revolução na arquitetura brasileira 30/39 De lenda(s e) Le Corbusier. Arquitextos, São Paulo, n. 022.01, mar. 2002. Disponível em: www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq022/ar022_01.asp. Acesso em: maio 2009. 2 CORRÊA DO LAGO, André. Os gênios jamais jogam a toalha. O Estado de São Paulo, São Paulo, 07 fev., 2009. Suplementos Aliás. Disponível em: Estadao.com.br. Acesso em: fev. 2009. 1
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A obra referida por Corrêa do Lago, não resta dúvida, é o Shopping Cidade Jardim, um centro comercial luxuoso, localizado na Marginal Pinheiros, lado Morumbi, que, além das lojas, conta também com quatro torres residenciais de 25 andares cada. Muitas de nossas construções recentes, erguidas nas principais cidades brasileiras refletem, fielmente, essa completa falta de rumo. Basta, para constatar-se, ver aquelas localizadas em uma importante Avenida de Porto Alegre, a Carlos Gomes, com seus edifícios residenciais no chamado “estilo neoclássico”, a exemplo dos arranha-céus que acompanham o mega-empreendimento paulistano. Consideramos para efeito desta ponderação que boa parte do que foi descrito por Lucio Costa, no passado, aproxima-se do que acontece na atualidade, nas nossas cidades, decorridos mais de setenta anos. Salvaguardadas as diferenças, “fazemos cenografia, estilo, arqueologia, fazemos casas espanholas de terceira mão, miniaturas de castelos medievais, falsos coloniais, tudo, menos arquitetura.”3. Para diversificar os exemplos inconsequentes, incluímos aqui também uma obra da novíssima geração da arquitetura internacional - o estádio nacional de Pequim, apelidado de “Ninho de Pássaro”. Concluído em março de 2008, foi construído para abrigar os Jogos Olímpicos. O projeto do estádio foi escolhido, dentre propostas de arquitetos do mundo todo, em um concurso promovido pela prefeitura de Pequim e pelos organizadores dos Jogos. O concurso foi vencido pelo escritório suíço Herzog & De Meuron, pelos britânicos Arup Sport e pelos chineses China Architecture Design & Research Group. Passado pouco mais de um ano, e depois de ter extrapolado bastante o orçamento, o estádio não conseguiu ser ocupado, muito menos se manter, pois apresenta problemas de toda ordem, como o do gramado removível, que impede jogos de futebol, uma vez que depois de realizada uma partida seria dispendioso demais recolocá-lo. Trata-se de uma obra sem fundamentação programática, que relega a terceiros a extração das consequências necessárias para suas próprias hipóteses de trabalho, a tal ponto que as obras foram paralisadas,
3 COSTA, Lucio. A situação do ensino das Belas-Artes. In: XAVIER, Alberto. (Org.). Depoimento de uma geração: arquitetura moderna brasileira. São Paulo: Cosac e Naify, 2003. p. 57.
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em virtude de problemas não previstos, relacionados à resolução estrutural. Corrêa do Lago, em idéias manifestas na mesma entrevista, diz: Se houvesse debate arquitetônico no Brasil não teríamos o prédio da Daslu. No Japão, na França, na Inglaterra, grandes marcas da moda contrataram arquitetos excepcionais para projetar suas lojas. É um fenômeno que começou nos anos 90 e prossegue. Algumas vezes são arquitetos jovens, talentosos, até revelados por essas marcas. Pois o Brasil está tão fora do mundo que a sua mais fantástica loja de moda é isso que está aí. E todo mundo acha normal.
Na sequência, a entrevistadora pergunta: “Como o senhor definiria a arquitetura do prédio da Daslu?”, a que Corrêa do Lago responde: “Não é arquitetura. Com boa vontade, é arquitetura errada4.” São obras recentemente construídas em nossas cidades que, ao contrário daquelas de Lucio Costa, carecem de virtudes e servem de mau exemplo para outras, que se multiplicam em uma velocidade somente, quem sabe, freada pela crise econômica que se avizinha. Propomos como reflexão que a falta de integração do ensino com a pesquisa e a prática seja a causa do problema e, por conseguinte, a questão principal a ser tratada hoje, da mesma forma como foi tratada por Lucio Costa e, por infelicidade, esquecida pelos arquitetos mais recentes. As respostas de Lucio Costa a esses problemas foram traduzidas em proposições, ora ancoradas, ora impulsionadas pela sua experiência como idealizador da reforma do ensino na Escola Nacional de Belas Artes e, sobretudo, de 1932 a 1935, durante o período que denominou de chômage, quando realizou as chamadas “casas sem dono”, os “projetos esquecidos” e a proposta da Vila Monlevade, “uma arquitetura ainda sob o domínio do racionalismo à Warchavchik e referências a matrizes da modernidade centro-européia e francesa, servindo-se indistintamente de elementos formais derivados de Le Corbusier e Auguste Perret5”, e dedicou-se de modo praticamente integral à pesquisa.
CORRÊA DO LAGO, André. Os gênios jamais jogam a toalha. O Estado de São Paulo, São Paulo, 07 fev., 2009. Suplementos Aliás. Disponível em: Estadao.com.br. Acesso em: fev. 2009. SEGAWA, Hugo. O fio de Lucio Costa. In: NOBRE, Ana Luiza at all (Orgs.). Lucio Costa: um modo de ser moderno. São Paulo: Cosac Nayfy, 2004, p. 41.
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Fig. 1 - Casa sem dono n. 1, Lucio Costa Fonte: Casa de Lucio Costa
Fig. 2 - Casa sem dono n. 2, Lucio Costa Fonte: Casa de Lucio Costa
Fig. 3 - Casa sem dono n. 3, Lucio Costa Fonte: Casa de Lucio Costa
A proposta deste artigo, de “recolocar em questão a atualidade da ação do arquiteto” não é nova. Em 2002, como parte das comemorações do centenário de nascimento de Lucio Costa, como desdobramento do Seminário realizado em razão das comemorações, os organizadores de “Um modo de ser moderno”
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afirmaram que o empreendimento “[...] sustentava-se pela intuição de que, no caso de Lucio Costa, o que está em jogo é justamente um problema de cultura, e que sua obra emerge como um modo de reflexão sobre questões cruciais à nossa problemática modernidade”6. Lucio Costa, apesar de arquiteto afeito à reflexão e à pesquisa, esposava um conceito bastante convencional de criação científica. Ao comparar a criação científica à criação artística, assim se manifesta: Conquanto manifestação natural da vida, e como tal, parte integrante e significativa da obra conjunta elaborada pelo corpo social a que pertence, esse caráter verdadeiramente “sui generis” da criação artística lhe confere, necessariamente, feição diferenciada vis-à-vis às demais manifestações culturais e a torna, por vezes, refratária aos rígidos enquadramentos da sistematização filosófica. É que, enquanto a criação científica é parcela revelada de uma totalidade sempre maior que se furta às balizas da delimitação inteligível, não passando, portanto, o cientista de uma espécie de intermediário credenciado do homem com os demais fenômenos naturais, donde o fundo de humildade, afetada ou verdadeira, peculiar à sua atitude, - a criação artística, ou melhor, o conjunto da obra criada por um determinado artista, constitui um todo auto- suficiente, e ele – o próprio artista – é legítimo criador e único senhor desse mundo à parte e pessoal, pois não existia dantes, e idêntico, não se refará jamais. Daí o egocentrismo e a vaidade inata, aparente ou velada, que constitui o fundo da personalidade de todo artista autentico7.
No entanto, quando trata do seu conceito de arquitetura, Lucio Costa não nos parece contrastar a arquitetura, nas suas dimensões reflexivas e investigativas, com uma visão mais atual da criação científica. Para que seja verdadeiramente arquitetura é preciso que, além de satisfazer rigorosamente – e só assim – a tais imperativos – uma intenção de outra ordem e mais alta acompanhe pari-passu o trabalho de criação em todas as suas fases. Não se trata de sobrepor à precisão de uma obra tecnicamente perfeita a dose julgada conveniente de gosto artístico – aquela intenção deve estar sempre presente desde o início, selecionando, nos menores detalhes, entre duas e três
NOBRE, Ana Luiza at all. (Orgs.). Lucio Costa: um modo de ser moderno. São Paulo: Cosac Nayfy, 2004. Apresentação. XAVIER, Alberto (Org.). Lúcio Costa: sôbre arquitetura. Ed. fac-sim coordenada por Anna Paula Canez. Porto Alegre: UniRitter, 2007, p. 248.
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soluções possíveis e tecnicamente exatas, aquela que não desafine – antes pelo contrário – melhor contribua, com a sua parcela mínima, para a intensidade expressiva da obra total. Enquanto satisfaz apenas às exigências técnicas e funcionais – não é ainda arquitetura; quando se perde em intenções meramente decorativas – tudo não passa de cenografia; mas quando – popular ou erudita – aquele que a ideou, para e hesita, ante simples escolha de um espaçamento de pilar ou da relação entre altura e largura de um vão, e se detém na procura obstinada da justa medida entre cheios e vazios, na fixação dos volumes e subordinação deles a uma lei, e se demora atento ao jogo dos materiais e seu valor expressivo – quando tudo isso se vai pouco a pouco somando, obedecendo aos mais severos preceitos técnicos funcionais, mas, também, àquela intenção superior que seleciona, coordena e orienta em determinado sentido toda essa massa confusa e contraditória de detalhes, transmitindo assim ao conjunto, ritmo, expressão, unidade e clareza – o que confere à obra o seu caráter de permanência: isto sim – é arquitetura.8
Destacamos desse texto três pontos importantes para argumentação: 1) as exigências a que a arquitetura deve satisfazer: aqui se define o problema que a arquitetura deve enfrentar no seu processo investigativo. Sem problema não há o que investigar - é só ligar o piloto automático do senso comum. Para romper com os automatismos, é preciso problematizar o cotidiano e o senso comum que o fundamenta; 2) Lucio Costa chama atenção para a questão da seleção da solução: ela ocorre no campo das soluções possíveis. Não existe, em arquitetura, solução necessária - a escolha do partido, como hipótese geral, abrangente e unitária, dá-se no âmbito de um conjunto aberto de soluções possíveis; 3) o trecho final, em que comparecem os conceitos de composição e de partido, elementos fundamentais da “poiésis” da arquitetura. Lucio Costa, sintetizando, caracteriza o arquiteto como um profissional reflexivo e investigador: Técnico, sociólogo e artista, o arquiteto, pela natureza mesma do ofício e pelo sentido da formação profissional, é o indivíduo capaz de prever e antecipar graficamente, baseado em dados técnicos pre-
XAVIER, Alberto (Org.). Lúcio Costa: sôbre arquitetura. Ed. fac-sim coordenada por Anna Paula Canez. Porto Alegre: UniRitter, 2007, p. 79-80.
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cisos, as soluções desejáveis e plasticamente válidas à vista de fatores físicos e econômico-sociais que se impõem9.
Surpreendentemente, em outro momento, Lucio Costa ressalta a dimensão científica da arquitetura, mesmo que seja para estabelecer novas objeções: Assim, pois, conquanto seja de fato, e cada vez mais, ciência, a arquitetura de distingue, contudo, fundamentalmente das demais atividades politécnicas porque, durante a elaboração do projeto e no próprio transcurso da obra, envolve, conforme se viu, a participação constante do sentimento no exercício continuado do escolher, entre duas ou mais soluções, de partido geral ou pormenor, igualmente válidas do ponto de vista funcional das diferentes técnicas interessadas – mas cujo teor plástico varia –, aquela que melhor se ajuste à intenção original visada. Escolha que é a essência mesma da arquitetura e depende então, exclusivamente, do artista, pois quando se apresenta neste grau derradeiro e isento, é porque já o técnico aprovou indistintamente as soluções aviltadas10.
Lucio Costa não lembra que a matemática, a mais abstrata das ciências, também lida com a criação poiética, com o sentido de harmonia. Henri Poincaré trata especificamente dessa questão: Isto seria esquecer o sentimento de beleza matemática, da harmonia dos números e das formas, da elegância geométrica. Todos os verdadeiros matemáticos conhecem este sentimento estético real. E, certamente, isto pertence à sensibilidade. Ora bem, quais são os entes matemáticos a que atribuímos estas características de beleza e de elegância e que pode estranhar-se o facto de se apelar à sensibilidade a propósito de demonstrações são susceptíveis de desencadear em nós um sentimento de emoção estética? São aqueles cujos elementos estão dispostos harmoniosamente, de forma a que a mente possa sem esforço abraçar todo o conjunto penetrando em todos os seus detalhes. Esta harmonia é simultaneamente uma satisfação para as nossas necessidades estéticas e um auxílio para a mente que a sustenta e guia. E, ao mesmo tempo, ao colocar perante os nossos olhos um conjunto bem ordenado, faz-nos pressentir uma lei matemática... Assim, é esta sensibilidade estética especial que desempe-
XAVIER, Alberto (Org.). Lúcio Costa: sôbre arquitetura. Ed. fac-sim coordenada por Anna Paula Canez. Porto Alegre: UniRitter, 2007, p. 235. XAVIER, Alberto (Org.). Lúcio Costa: sôbre arquitetura. Ed. fac-sim coordenada por Anna Paula Canez. Porto Alegre: UniRitter, 2007, p. 247.
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nha o papel do “crivo” delicado de que falei anteriormente. Isto permite compreender suficientemente porque é que quem não a possui não pode nunca vir a ser um verdadeiro criador11.
Avançando mais uma vez no terreno da matemática, tomada aqui como paradigma suficientemente genérico no estudo da arquitetura enquanto investigação, examinaremos a seguir o pensamento de Charles Sanders Peirce a respeito da criação poiética em matemática. Peirce conceitua a matemática como ”a ciência que tira as conclusões necessárias das hipóteses”. Portanto, a matemática envolveria dois momentos bem distintos: 1) o da criação da hipótese, caracterizado pela descrição geral de um estado de coisas puramente hipotético; 2) o da extração das consequências necessárias, através do raciocínio hipotético-dedutivo. Peirce esclarece o que entende por estado de coisas puramente hipotético: Suponha um estado de coisas de uma descrição geral perfeitamente definida. Ou seja, não deve existir lugar para dúvidas sobre o fato de algo, em si determinado, estar ou não sob essa descrição. E, suponha adiante, que essa descrição não se refira a nada oculto – nada que não possa ser completamente chamada através da imaginação. Admita agora uma amplitude de possibilidades igualmente definidas e sujeitas à imaginação; de tal modo que, na medida em que as descrições dadas de supostos estados de coisas são gerais, as diferentes maneiras pelas quais elas podem se tornar determinadas não deve nunca introduzir aspectos duvidosos ou ocultos. A suposição, por exemplo, não deve se referir a nenhum fato verdadeiro. Isso porque questões sobre fatos não estão dentro do campo de ação da imaginação... Talvez isso tenha que ser restrito a relações puramente espaciais, temporais e lógicas. Seja como for a questão sobre se em tal estado de coisas, um outro estado de coisas similar definido, é igualmente um problema da imaginação, pode ou não, dentro de um leque de possibilidades assumidas, alguma vez ocorrer, seria uma em referência na qual uma das duas respostas, Sim ou Não, seriam verdadeiras, mas nunca as duas. Assim todos os fatos pertinentes estariam à disposição da imaginação; e conseqüentemente nada
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Conferência apresentada na Sociedade de Psicologia de Paris, no início do Século XX, publicada originalmente no Bulletin de I’Institut Géneral de Psycologie, n. 3, 1908. Paris. Republicada em ABRANTES, P.; LEAL, L. C.; PONTE J. P. (Eds.). Investigar para aprender matemática. Lisboa: Projecto MPT e APM, 1996. p. 7-14 (Tradução de Henrique M. Guimarães).
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além da operação de pensamento seria necessário para conferir a resposta verdadeira. Mesmo supondo que a resposta englobe toda a amplitude de possibilidades assumidas, não se poderia conferi-la a não ser através de um raciocínio que fosse apodíctico, geral e exato. Nenhum conhecimento do que verdadeiramente é, nenhum conhecimento positivo, digamos, poderia resultar12.
É possível notar aqui a convergência entre alguns aspectos do pensamento de Peirce e o de Lucio Costa: 1) a importância da hipótese ou do partido; 2) a consciência de que a hipótese ocorre dentro de um leque de possibilidades ou no campo dos possíveis; 3) a importância atribuída à imaginação (é o indivíduo capaz de prever e antecipar graficamente). A construção da hipótese sempre ocorre em um processo icônico. A hipótese configura-se como totalidade, geral, ordenada, unitária e harmônica, segundo não uma lógica, mas uma analógica, que é a “lógica” das relações de semelhança. Ícone é um signo que possui similaridade hipotética, em algum aspecto, com o objeto. Um ícone pode ser uma imagem, um diagrama ou uma metáfora. Segundo Peirce, um ícone pode ser: uma imagem que estabelece relações de semelhança com seu objeto; um diagrama que estabelece semelhança de relações com seu objeto (o tipo); uma metáfora que inventa relações de semelhança com o seu objeto. Para que um processo icônico complete-se, é necessário que todas as situações de semelhança se cumpram, da imagem ao diagrama e do diagrama à metáfora. Se parar na imagem, temos a cópia; se parar no diagrama, temos o senso comum (o tipo) e, se avançarmos na metáfora, temos a invenção da hipótese, a criação poiética. A esse processo de criação da hipótese, Peirce denomina “composição da hipótese”, reservando ao momento da extração das suas consequências necessárias
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PEIRCE, C. S. (1932). Collected Papers of Charles Sanders Peirce. Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press. Abbreviated as CP, apud CAMPOS, Daniel G. Raciocínio matemático e criação poiética em Peirce. In: ENCONTRO INTERNACIONAL SOBRE PRAGMATISMO, 8, São Paulo. Anais ... São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Tradução do inglês para o português de Clayton Foschiani. Disponível em: www.pucsp.br/pos/filosofia/ Pragmatismo/eventos/8_enc_comun_campos_paper_port.pdf. Acesso em: jun. 2009.
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a denominação de “operação da hipótese”. É plausível que na arquitetura as coisas se passem assim – primeiro compomos o partido e, posteriormente, cuidamos da sua operação. As operações ocorreriam, então, por subtração, adição, rotação, etc., permitindo que todo e parte, dialogicamente, construam o seu objeto, segundo o partido geral e o pormenor: a lógica das partes. Le Corbusier, ao projetar o Museu de Crescimento Ilimitado, passou pelas três etapas do processo icônico de construção da hipótese. Ele mesmo o demonstra através de um desenho no qual mostra a imagem de um caramujo, o diagrama de uma espiral logarítmica e o partido metaforicamente inventado do museu propriamente dito. O Museu tem a forma de uma espiral quadrada.
Fig. 4 - Imagem, diagrama e metáfora em Le Corbusier, Museu de Crescimento Ilimitado Fonte: BOESINGER, W.; GISBERGER, H., 1995, p.238.
É pouco provável que Le Corbusier tivesse, na ocasião, algum conhecimento da semiótica de Peirce; passou, no entanto, por todas as etapas da construção icônica da hipótese. Não parou na imagem, construindo sobre ela o diagrama de novas relações – a lei da forma do crescimento – a espiral logarítmica e, finalmente, metaforicamente inventou o partido do Museu.
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Le Corbusier superou a imagem/cópia dos estilos da academia quando construiu sobre elas o diagrama de um novo paradigma, baseado na invenção de novos padrões, regras, e princípios compositivos, por sua vez baseados em uma nova maneira de construir a cidade e o edifício. Lucio Costa, ao compreender que a imagem/cópia do estilo neo-colonial era um beco sem saída, foi estudar as teses de Le Corbubusier, procurando nelas fundamentos para a superação do impasse. Assim como Le Corbusier realizou a sua metáfora a partir da imagem de uma arquitetura de viés clássico, cujo resultado foram os cinco pontos, subversão daquelas regras inicialmente observadas, passando, logo depois, para a construção de um diagrama; também Lucio Costa realiza sua própria metáfora quando parte das idéias de Le Corbusier, tomadas inicialmente como imagem. O experimento ocorre no período que chamou de chômage, das “casas sem dono”; a seguir, realiza seu próprio diagrama, em que procura incorporar também suas reflexões a respeito da propriedade da arquitetura tradicional brasileira. O resultado maior de todo o processo é traduzido em seguida – na metáfora do Ministério de Educação e Saúde Pública – contribuição amadurecida, resultado de um processo reflexivo do pensar. Isso nos mostra quanto são importantes, na formação do arquiteto, no ensino da arquitetura, as referências filosófica, antropológica e sociológica, suas relações com o programa, a epistemologia – a construção do conhecimento, a investigação. Do mesmo modo, o são as questões tecnológicas e ambientais, maltratadas em nossos currículos, que estão à espera de uma melhora. Hoje, os alunos tendem a produzir desenhos primorosamente elaborados, com o auxílio do computador, sem entender os fundamentos programáticos do projeto nas suas dimensões filosóficas, antropológicas e sociais, os quais não constituem um todo organizado e unitário e apresentam problemas nos seus aspectos mais gerais (a hipótese), na definição de partes (incoerentes e fragmentárias), das quais não extraem as consequências necessárias, inclusive da materialidade.
Rogério de Castro Oliveira
Referências CAMPOS, Daniel G. Raciocínio matemático e criação poiética em Peirce. In: ENCONTRO INTERNACIONAL SOBRE PRAGMATISMO, 8 ano, São Paulo. Anais ... São Paulo: PUCSP. Disponível em: <http://www.pucsp.br/ pos/filosofia/Pragmatismo/eventos/8_enc_comun_campos_paper_port.pdf>. Acesso em: jun. 2009. COMAS, Carlos Eduardo. Lucio Costa e a revolução na arquitetura brasileira 30/39 de lenda(s) e Le Corbusier. Arquitextos, São Paulo, n. 022.01, mar. 2002. Disponível em: <www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq022/ar022_01.asp.> Acesso em: maio 2009. COSTA, Lucio. Lucio Costa: registro de uma vivência. Brasília: Editora Unb, 1995. DIEZ, Fernando. Crisis de autenticidad: cambios em los modos de producción de la arquitectura argentina. Buenos Ares: Donn, 2008. NOBRE, Ana Luiza et al. (Org.). Lucio Costa: um modo de ser moderno. São Paulo: Cosac Naify, 2004. Apresentação.
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PEIRCE, C. S. Collected papers of Charles Sanders Peirce. Cambridge, Harvard University Press, 1932. POINCARÉ, Henri. Apud ABRANTES, P.; LEAL, L. C.; PONTE J. P. (Eds.). Investigar para aprender matemática. Lisboa: Projecto MPT e APM, 1996. p. 7-14 (Tradução de Henrique M. Guimarães). SEGAWA, Hugo. O fio de Lucio Costa. In: NOBRE, Ana Luiza et al. (Orgs.). Lucio Costa: um modo de ser moderno. São Paulo: Cosac Naify, 2004. p. 41-45 WISNIK, Guilherme. Lucio Costa. São Paulo: Cosac Naify, 2001. XAVIER, Alberto. (Org.). Depoimento de uma geração: arquitetura moderna brasileira. São Paulo: Cosac Naify, 2003. ___________________. Lúcio Costa: sôbre arquitetura. Ed. fac-sim. Porto Alegre: Ed. UniRitter, 2007. ZEIN, Ruth Verde. O lugar da crítica: ensaios oportunos de arquitetura. Porto Alegre: Ed. UniRitter, 2001.
Espelho e labirinto Carlos Eduardo Comas
Simetria, do grego “summetria”, significa “com medida ou medida similar”. A simetria desempenha um papel fundamental na compreensão de vários fenômenos físicos, especialmente no domínio das partículas elementares, onde a natureza exata das leis de força ainda é desconhecida. Muitos aspectos importantes como o comportamento do sistema podem ser previstos com base em sua simetria, sem um conhecimento detalhado de seu funcionamento interno. Symmetry (phisics), The New Grolier Multimedia Encyclopedia,1991.
Em geometria, simetria denota um peso igual das partes de uma figura sobre um ponto, linha ou plano central. Uma figura mostra simetria axial quando pode ser dividida por uma linha em duas metades, e uma é a imagem espelhada da outra; uma figura mostra simetria radial quando ela pode coincidir com ela mesma ao girar em torno de um ponto. Em álgebra, é propriedade de uma função que não se altera em uma determinada transformação das suas variáveis. Em física, um sistema tem simetria se não muda a posição dos seus elementos constituintes ao deslocar-se em relação a um ponto, linha ou plano.
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Pode-se pensar que a simetria seja uma condição geométrica emocional e moralmente neutra na arquitetura. Mas a simetria é um conceito associado com equilíbrio e regularidade, com ordem e centralização claramente perceptível, com repetição e redundância, com permanência e rigidez, hierarquia e classicismo. A simetria é um atributo do corpo animal e humano, uma traço da forma viva, uma característica de Deus, se seguirmos Platão. A simetria organiza os cristais e é cúmplice dos espelhos, abomináveis espelhos porque como citava Borges - multiplicam o número dos homens. Não deve surpreender, portanto, que a simetria na arquitetura suscite devota reverência e hostilidade feroz. De todos os princípios possíveis de composição arquitetônica, é aquele que gera as reações mais inflamadas. Ao final do Século XVIII, Boullée proclama em seu “Essai sur l’Art” que qualquer desvio da simetria na arquitetura é intolerável - deixando implícito que arquitetura não é uma construção qualquer. Em “The seven lamps of architecture”, de 1849, Ruskin equipara a simetria com vulgaridade e estreiteza de espírito, com escravidão e maldade; em “Il linguaggio moderno dell’architettura”, de 1973, Zevi assimila a simetria a medo de viver, homossexualidade e tirania. Antiga justificativa para o uso da simetria bilateral, a identificação do edifício com o corpo humano é tema recorrente na tradição arquitetônica – fachada e face têm a mesma raiz. Para Pascal, a noção de simetria é derivada do rosto humano e por isso exigimos simetria na largura e horizontalmente, e não verticalmente, nem em profundidade. Talvez seja um argumento de vaidade, como sugerido por Philip Tabor em “Fearful Symmetry”, de 1982, valoração questionável de uma projeção do
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eu. No entanto, a identificação permanece do Renascimento até o Iluminismo, embora se substitua a ênfase anatômica pela ênfase fisiológica e, como explica Fernando Perez, em “Los Cuerpos del Edificio”, de 1981, a concepção do corpo, como sólido composto de Alberti, se transforme na concepção do corpo como mediador perceptivo de Boullée. Mais circunstanciada é a simetria do quadrilátero das igrejas centralizadas do Renascimento, que corresponde à idéia platônica da esfericidade divina. Tentativa de representação material da perfeição, é homenagem para uns, manifestação de arrogância e blasfêmia para outros. De uma forma mais geral, a simetria é elogiada como declaração deliberada de poder unitário e criticada pela mesma razão. Em uma versão, a simetria do neo-classicismo é adotada por Jefferson e seus amigos por evocar a democracia grega. Em outra, é o emblema de órgãos políticos autoritários, como aqueles que criaram Hitler, Mussolini e Stalin. A esses argumentos de natureza simbólica são adicionados argumentos de natureza pragmática. A simetria de um plano era estruturalmente econômica para Palladio. Dois séculos mais tarde, Durand despreza, por convencional, a idéia de arquitetura como uma representação do corpo humano, mas repete a voz palladiana e sugere que a simetria é um mecanismo automático de controle e integração da composição. Do outro lado, em seu “Entrétiens sur l”Architecture”, de 1858-1872, Viollet-le-Duc condena a banalização do mecanismo e sua tendência a induzir duplicações desnecessárias de elementos funcionais. Mais exagerado, Ruskin disse que a simetria degrada o artesão e o converte em uma máquina imbecil.
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Os argumentos psico-fisiológicos são menos exaltados. A preferência pela simetria é uma questão de empatia para Geoffrey Scott, em “The Architecture of Humanism”, de 1914, reiterando a equação arquitetura-corpo, de um lado, e apontando, de outro, para as correlações entre o eixo de simetria e movimento. Em “The Senses Considered as Perceptual Systems”, de 1966, o psicólogo americano J.J. Gibson descreve o princípio da estimulação simetrizante, pelo qual, quando alguém se depara com uma coisa interessante, tende a virar a cabeça de modo a simetrizar a imagem em ambos os olhos, ou a mover os olhos de maneira a ter a imagem simetricamente centralizada em cada retina. Em “The Ecological Approach to Perception”, de 1979, Gibson disse que nosso movimento em direção a um objeto desejado guia-se, mantendo simetricamente centralizada a perspectiva fluente do mesmo. Certamente, a simetria de um objeto o destaca dentro de um contexto irregular e aumenta a sua memorabilidade. Daí a associação antiga de simetria com monumentalidade. Se o monumento é, por definição, uma máquina de recordar, sua própria memorabilidade é condição essencial. De certo ângulo, a simetria é mais imprevisível do que a assimetria no mundo e na cidade e, portanto, intrinsecamente informativa. De outro, a clareza, a redundância e a unidade repousante da simetria permitem concentrar a atenção no detalhe, sem perder de vista o todo. Obviamente, as mesmas qualidades podem resultar monótonas e simplórias. Em retrospecto, a controvérsia simetria-assimetria em arquitetura é um sintoma da perda de autoridade da tradição clássica no início do Século XIX. A assimetria torna-se um símbolo romântico: emblema de espontaneidade
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contra a regra, liberdade contra a convenção, vitalidade instintiva, individualismo, organicidade pitoresca, subjetividade anti-mecânica e, ao mesmo tempo, objetividade funcional. Em um contexto em que a simetria é lei, a assimetria contenta um anseio por surpresa. Em um extremo, o princípio que se contrapõe à simetria do espelho é o da recriação de uma acumulação aleatória ao longo do tempo. Paradoxalmente, no caso paradigmático dos jardins de Capability Brown, essa rejeição da simetria envolve um artifício considerável para materializar uma paisagem mais natural do que a própria natureza. Em termos mais moderados, o princípio defendido é uma assimetria equilibrada, o balanço de massas desiguais ao redor do ponto ou eixo. Uma variante de interesse é sugerida, no final do século, por Choisy, em sua análise sobre a Acrópole: a simetria de cada edifício contrastada com um plano assimétrico do conjunto. O movimento moderno herda o gosto pela assimetria equilibrada e a integra com esta invenção que Colin Rowe chamou de “composição periférica”, em “The Mathematics of the Ideal Villa and Other Essays”, de 1976. A rejeição de ênfase central caracteriza um espaço horizontalmente estratificado e planificado “de dentro para fora”, cuja complexidade relembra o labirinto. Na versão neo-plástica, o labirinto se exterioriza, a integridade da massa arquitetônica se dissolve na suástica e a morte da fachada se proclama. Nas mãos mais sofisticadas de Le Corbusier e Mies, o labirinto é interior e se conjuga com a seriação da produção industrial. No entanto, são explicitamente simétricos o plano do Palácio dos Sovietes e duas elevações da Villa Savoye; há simetria implícita na Liga das Nações
Figuras: Os desenhos correspondem a projetos de Claude Nicolas Ledoux.
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e alusões faciais na Villa Garches. Le Corbusier propõe uma arquitetura em que coexistem o cristal e a flor, a regra clássica e o acidente pitoresco, já o sugeria Lucio Costa na “Memória da Universidade do Brasil”, de 1937. Ao mesmo tempo, como a tese citada de Pérez demonstra, essa é arquitetura que toma o corpo humano por uma referência constante, embora o compreenda como sujeito ativo, e a ênfase recaia sobre uma quase-simetria que figura ao mesmo tempo pele e vísceras. A simetria reaparece, protagonista, no Mies americano, em Kahn, em Rossi, Graves, Krier, algum Stirling e também em Yamasaki, Johnson e Durrell Stone: evidentemente, não garante a qualidade da obra, mas tampouco a desvaloriza a priori. Em chave mais sutil, informa os exercícios de Venturi, e algum Gehry, as experiências esotéricas de Eisenman e as praças de Piñon e Viaplana. À luz do exame do presente, a polêmica de ontem não tem mais sentido. Arquitetura é artifício, Dédalo é o autor de uma desordem refletidamente programada. Talvez já seja tempo de enterrar querelas do passado e seguir em frente, livre para invocar quando convenha a excitação bestial do labirinto ou a claridade argentina do espelho.
Carlos Eduardo Comas
Referências BOULLÉE, Étienne-Louis. Essai sur l’art. Londres: Alec Tiranti, 1953. COSTA, Lucio. Universidade do Brasil. Revista da Diretoria de Engenharia da Prefeitura do Distrito Federal, vol. 4, n. 111, maio 1937. Republicação, Sobre Arquitetura. Porto Alegre: CEUA, 1962. GIBSON, J.J. The senses considered as perceptual systems. Boston: Houghton Mifflin, 1966. __________. The ecological approach to perception. Hillsdate: Lawrence Erlbaum Associates Publishers, 1979. PEREZ OYARZUN, Fernando. Los cuerpos del edifício: un estúdio de la figuración arquitectónica de Alberti, Boullé y Le Corbusier. Barcelona: Escola Técnica Superior de Arquitetura, 1981. ROWE, Colin. The mathematics of the ideal villa and other essays. Cambridge: MIT Press, 1976. RUSKIN, John. The seven lamps of architecture: 1849. New York: Dover Publications, 1990. SCOTT, Geoffrey. The architecture of humanism. Londres: Constable and Company, 1914. TABOR, Philip. Fearful Symmetry. Architectural Review, n. 935, may 1982. VIOLLET-LE-DUC, Eugène Emmanuel. Entrétiens sur l’architeture: 18581872. Paris: Pierre Mardaga, 1977. ZEVI, Bruno. Il linguaggio moderno dell’architettura. Torino: Einaudi, 1973.
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Programa e evento em Tschumi: estratégias e conceitos Miguel Antonio Farina Rinaldo Ferreira Barbosa
BUSCANDO ESTRATÉGIAS E MECANISMOS DE AÇÃO Arquitetos como Bernard Tshumi, Rem Koolhaas e Peter Eisenman hoje têm sua obra amplamente reconhecida, divulgada e criticada. Apesar disso, no ambiente acadêmico, sua produção teórica segue ainda em segundo plano em relação à obra arquitetônica. De um modo geral é sobre conceitos já estabelecidos e confirmados que se assenta o discurso mais amplo da academia no âmbito da arquitetura. Os questionamentos e novas experimentações que acompanham vertentes da pósmodernidade, alinhadas à desconstrução, normalmente são relegadas a um segundo plano, ou desconsideradas por serem entendidas como puro formalismo. Assim, é comum em nosso meio acadêmico, o confronto da curiosidade dos alunos pela novidade, frente à reticência por parte de alguns professores
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Programa e evento em Tschumi: estratégias e conceitos
em encarar o novo como forma de aprendizado. Os primeiros, curiosos e genuinamente interessados, deixam-se encantar pelas imagens; os segundos reclamam da falta de profundidade desse interesse que não liga para os conceitos por trás das imagens. Boa parte das tendências que compõem o quadro da arquitetura contemporânea e referenciam o ensino de hoje padecem de profundidade e crítica. Reduzem-se ora a simples arquiteturas miméticas de um passado não mais existente, ora a um jogo de formas e composições volumétricas gratuitas, recaindo, invariavelmente, em exercício de projeto no qual o pensar e repensar problemas dá lugar a soluções “prontas-para-uso”. Estas são fundamentadas na exaustiva reprodução de modelos, atuais ou de um passado recente ou remoto. (GUATELLI, 2000). Enquanto a desconstrução em arquitetura continua a ser criticada apenas pelas tentativas de alguns arquitetos de “representá-la” através de geometrias complexas e/ou aleatórias, Tshumi afirma: “não acredito que se possa projetar desconstrução” (TSCHUMI,1996), deixando claro em seus escritos que, para entendê-la de fato, é necessário compreender, o que, segundo Guatelli, trata-se de: [...] uma voz estruturalmente dissonante das demais, com propostas que procuram entender e considerar a complexidade da atualidade (não mais a comodidade da grande síntese, em que as relações de diferença, de oposição, são organizadas de forma a se anularem em prol de um fundamento último, ou a redução dessa complexidade a uma utilização acrítica e nostálgica de formas referenciais do presente e do passado), lançando mão de uma visão poli-ocular, questionadora e crítica que coexista com a diferença e a diversidade. (GUATELLI, 2000).
A interpretação do problema do programa como ponto de partida da ação projetual, coloca-se, assim, como uma das chaves para entender a produção e a argumentação teórica de Tschumi e de outros arquitetos contemporâneos1. Desta forma, analisar as estratégias e mecanismos de projeto na produção de Tshumi, Koolhas e outros arquitetos, com o objetivo de, criticamente, considerar sua pertinência na
1
AGUIAR (2009) aborda o mesmo assunto pela via dos estudos da espacialidade na arquitetura, cuja tradição pode ser remetida aos tratados renascentistas (em especial Palladio) e que ocupam posição central no escopo teórico do Movimento Moderno e consequentemente, nas críticas e revisões ocorridas nas últimas décadas.
Miguel Antonio Farina e Rinaldo Ferreira Barbosa
ação docente e na prática projetual, é um debate necessário no meio acadêmico. Não podemos ignorar a questão midiática da produção e reprodução destas imagens, assim como o interesse dos alunos por essas publicações. Cabe a nós, docentes, olhar para isso com uma visão crítica, mas sem preconceitos determinados pela forma, pelo desconhecimento, ou acomodação de entender a pluralidade arquitetônica contemporânea. Assim, buscamos entender, a partir do discurso do programa, as ações projetuais nesta produção, não esquecendo, obviamente, de que, para o aprofundamento destas questões, é necessário também voltar os olhos ao discurso da filosofia contemporânea de Derrida, Deleuze e Guatari. Infelizmente, nós arquitetos, sempre fomos um pouco avessos ao mundo dos conceitos. Como arquitetura é “Arte”, sempre nos preocupamos mais com o objeto arquitetônico e os possíveis afectos e perceptos de nossas “concepções” estético-formais, deixando para a Filosofia o problema de criar e pensar os “conceptos” [conceitos] de nossas “concepções”. Ainda precisamos descobrir que podemos pensar com conceitos, que o papel do conceito não reside na sua capacidade de explicar as coisas, mas de estimular o nosso pensamento além de representações históricas, e que não é crime construirmos “pontes” com a Filosofia. Não temos a obrigação de inventá-los, o que não deixa de ter repercussão e de ser polêmico quando isto ocorre. Vide, por exemplo, Koolhaas e seus conceitos de Bigness e Cidade Genérica. Creio que esse processo de pensar a arquitetura com conceitos [repare, não estou falando em sujeição aos conceitos] pode nos levar a uma des-limitação do que entendemos como o mais apropriado para a Arquitetura. (GUATELLI, 2008).
Sem entrar numa discussão mais ampla sobre a relação entre arquitetura e Filosofia, procederemos a uma análise das questões que confrontam os conceitos de programa e evento na obra de Tschumi, analisando dois projetos que o próprio arquiteto aponta como as mais exemplares aplicações de seus conceitos com o intento de explicitar suas idéias quanto a espaço, evento e movimento versus programa.
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PROGRAMA, LIMITES E DEFINIÇÃO DO ESPAÇO Um programa arquitetônico é uma lista de requisitos utilitários, indica as suas relações de ações, mas não sugerem nem a combinação nem a proporção entre eles. (GUADET apud TSCHUMI, 1994, p. 483).
Qual a importância de uma definição de programa para a investigação arquitetônica e a prática projetual? Qual a definição contemporânea do programa no ensino de arquitetura e sua aplicação no atelier de projeto? Estas questões, de cunho absolutamente investigativo e interrogativo, colocam-nos frente ao projeto como investigadores e instigadores de novas conceituações sobre o problema do programa na prática projetual. O termo e sua conceituação contemporânea merecem reflexão, devendo ser reavaliada a noção de programa, justapondo-se às noções de evento como forma de se repensar as diretrizes e/ou condicionantes do projeto. A discussão do papel do programa como constante essencial dos problemas arquitetônicos que enfrentamos como arquitetos, e que, como docentes de arquitetura colocamos diante de nossos alunos, é essencial para o entendimento e projetação de espaços qualificados em uma arquitetura de excelência, em que função e programa não podem ser confundidos ou tratados como sinônimos. Compor hoje significa criar programas. Somos capazes de inventar ou propô-los, nós os misturamos, lhes damos suporte, os desnaturalizamos. Programa não é a mesma coisa que a função. É mais do que função porque o programa não é direto e tem mais do que uma voz. (SORIANO, 2003, p. 499).
Teóricos como Bernard Tschumi têm abordado a questão do programa no centro de suas argumentações, defendendo a idéia de trabalhar com a noção de evento. Contrapõem o programa, entendido como rol de atividades, relações funcionais, fluxos e dimensões a uma noção de programa interpretado e gerador de conceito de espaço, com a ambição de liberar o fluxo das ações humanas e não de contê-las e limitá-las. Para Tschumi, a arquitetura pode ser definida como “a confrontação prazerosa e, às vezes, violenta entre espaços e atividades” (TSCHUMI, 1998, p.4), colocando as atividades, entendidas como possibilidades variadas de eventos,
Miguel Antonio Farina e Rinaldo Ferreira Barbosa
como fatores determinantes na projetação do espaço. A confrontação entre espaço e usos/atividades/eventos, a disjunção entre os termos, destina-se a caracterizar a instabilidade da arquitetura numa sociedade em que os programas são mutáveis a todo instante. O evento, segundo Morales, “nos permite uma visão do projeto como uma continuidade, entendendo-se para uma realidade que pouco diferencia temporalidades e valoriza homogeneamente arquiteturas existentes quase como se fossem texturas. Paisagens.” (MORALES, 2003, p. 203). O espaço do evento é mais que o espaço do programa. O evento é o constante movimento aleatório que se dá no espaço habitado e, colocá-lo como questão central do projeto, equivale a afirmar que a finalidade primordial da arquitetura é o abrigo interior do qual o edifício é a casca. Esta afirmação, no entanto, não se refere à antiga dicotomia entre orgânico e racional; função e forma. Mas conduz a uma concepção do projeto em que se pretende mediar as relações desconexas entre os processos envolvidos no pensamento projetual e a realidade do espaço em uso. Discutir hoje em dia a idéia de programa não implica de maneira nenhuma voltar às idéias de função versus forma, originar e produzir relações entre programa e tipo ou introduzir uma nova versão de positivismo utópico. Ao contrário, abre um campo de investigação onde os espaços se confrontam em última instância ao que acontece com eles. (TSCHUMI, 1994, p. 483).
Não se trata, portanto de excluir as pressões do programa, mas questionar sobre a real natureza e papel dessas pressões no pensamento projetual e, ao fazê-lo, também colocar em cheque, necessariamente, as noções relativas à notação de projeto, de lugar e contexto bem como de significado da arquitetura. Há muito tempo que o programa é parte integrante do processo arquitetural e suas exigências, aparentemente objetivas, sempre refletiram largamente culturas, costumes e valores particulares quanto ao meio social e à época, mas que não necessariamente traduziamse em formas precisas ou tipos ideais; como exemplo, poderíamos citar as gares ferroviárias, os grandes magazines, museus e galerias de arte do século XIX, que abrigavam um programa complexo, mas que não se vinculava, necessariamente, a uma forma precisa e ideal. (GUATELLI, 2008).
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Quando desenhamos no papel um retângulo para representar uma compartimentação estamos “criando” ou “delimitando” espaço? Em que medida, ao traçarmos linhas (limites) sobre o papel, nós somos capazes de conceber, de fato, um espaço cheio de vida e movimento? Que outros instrumentos podem ser incorporados como procedimentos de projeto? Em suma, o que é o espaço? A discussão proposta por Tschumi, em Architecture and Disjunction questiona a noção de espaço delimitado e físico, determinador de formas ou ações, mas seguindo Bernard Tschumi e seus questionamentos acerca da arquitetura, em sua obra Architecture and disjunction (12), é possível dizer que existe uma linguagem do espaço ou da forma? A forma determinada para um uso pode ser a representação apriorística, inteligível, de uma idéia, como muitos arquitetos querem crer, ou ela adquiriria significados e sentidos a partir das mais diversas e diferentes apropriações, como no caso do Viaduto do Café. De forma contrária, é possível pensar em uma arquitetura composta apenas por espaços in processo, ou seja, espaços não determinados por seus possíveis usos? Seria possível uma arquitetura apenas de entres, de espaços residuais e intersticiais? Sem a pretensão de se buscar uma resposta para cada uma dessas perguntas, utilizaremos as mesmas perguntas como balizadoras de nossas indagações, leituras e questionamentos acerca do espaço em arquitetura. (GUATELLI, 2008).
Para esclarecer sinteticamente as questões expostas acima, vejamos o que Tschumi apresenta em “Event-Cities 2”: uma síntese entre seu pensamento teórico e sua obra projetual com o objetivo de demonstrar a materialização de seus conceitos.
S.E.M. (Space, Event & Movement) Ao contrário da obra da maioria dos arquitetos, nenhum dos projetos descritos nestas páginas começa com uma imagem ou forma, nem mesmo com uma estratégia formal. Os projetos sempre começam a partir de uma condição urbana ou um programa. Eles então tentam revelar potencialidades escondidas no programa, sítio, ou circunstancias, sejam econômicas, sociais ou culturais.[...] Arquitetura é vista como materialização de conceitos, em oposição à materialização da forma. (TSCHUMI, 2001, p.11).
Miguel Antonio Farina e Rinaldo Ferreira Barbosa
Partindo de uma classificação que visa a identificar “Estratégias e Mecanismos” (TSCHUMI, 2001) de projeto, apresenta suas obras de maneira intencionalmente crua, em preto, branco e vermelho. Utilizando, ao invés de fotos e desenhos maravilhosamente impressos, como seria de se esperar, imagens tratadas com a qualidade de fotocópias de maneira a reforçar seu argumento. As “estratégias e mecanismos” utilizados na abordagem destes problemas arquitetônicos a partir de sua condição urbana e/ou programa são cinco, segundo Tschumi: S.E.M.; Vetores; Ocos e Sólidos; Ativação dos Vazios; Envelope. Mas, para efeito de nossa análise, apenas a primeira nos interessa, já que o próprio autor afirma ser a mais completa. É a que contém todas as outras e é também objeto de um dos textos compilados em “Architecture and Disjunction” (TSCHUMI, 1996). As obras que a exemplificam melhor, para Tschumi, são “Rituals”, projeto teórico e experimental de uma habitação e o “Parc de La Villette”, projeto do parque parisiense de 550.000 m² e muitos milhões de dólares. [...] o espaço não é simplesmente a projeção tridimensional de uma representação mental, mas é algo que se ouve e no qual se age. E é o olho que enquadra – a janela, a porta, o ritual efêmero da passagem [...] Espaços de movimento – corredores, escadas, rampas, passagens, soleiras; é aí que começa a articulação entre o espaço dos sentidos e o espaço da sociedade, as danças e os gestos que combinam a representação do espaço e o espaço da representação. Os corpos não somente se movem para seu interior, mas produzem espaços por meio e através de seus movimentos. Movimentos – de dança, esporte, guerra – são a intromissão dos eventos nos espaços arquitetônicos. No limite, esses eventos se transformam em cenários ou programas, esvaziados de implicações morais ou funcionais, independentes, porém inseparáveis dos espaços que os encerram. (TSCHUMI, 2006, p.181).
Rituals Trata-se de um exercício projetual puramente especulativo para uma habitação. Não uma casa qualquer, mas uma casa para o ator Boris Karloff que interpretou o personagem Frankenstein no filme clássico de 1932, que deu
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início e garantiu o sucesso de sua carreira. Numa dupla referência ao livro e ao filme, o programa de uma residência é abordado a partir das descrições e climas criados por Mary Shelley e transformados em imagens cinematográficas por James Whale. Assim, três cenas cruciais da estória são analisadas com relação aos espaços onde acontecem; os eventos que se sucedem; os movimentos dos personagens. São três cenas e três rituais.
Ritual 1: A dança Na masmorra, a angústia do monstro e suas tentativas de fuga transformadas em uma espécie de coreografia em que os movimentos são gerados pela interação do espaço claustrofóbico e da circunstância do enclausuramento.
Figura: Ritual 1: A Dança Fonte: Tschumi, 2001, p. 21e 22.
Ritual 2: A perseguição Nos corredores do castelo, o doutor Frankenstein e seus auxiliares procuram pelo monstro correndo, movendo-se, buscando vencer o espaço, entrando nos espaços adjacentes, seguindo em frente.
Miguel Antonio Farina e Rinaldo Ferreira Barbosa
Figura: Ritual 2: A Perseguição Fonte: Tschumi, 2001, p. 25.
Ritual 3: A luta Finalmente o monstro é encontrado e luta com Frankenstein e um auxiliar. Os movimentos, agora bruscos, são vetorizados em seus ângulos dramáticos e movimentos interrompidos.
Figura: Ritual 3: A Luta Fonte: Tschumi, 2001, p. 34 e 37.
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A casa Por fim, o resultado de todas as análises, organizado como projeto para uma casa, numa apresentação gráfica em que tudo é abstração. No entanto, é possível imaginarem-se as possibilidades de uso de cada parte como dormitório, estar, entradas, circulações e outras dependências, por força do hábito. A casa não é um objeto, é uma escavação num espaço. Mas que espaço? Todos sabem o que é uma casa. Esta, no entanto, é carregada de idiossincrasias e Tschumi não procura esclarecer ou amenizar a reação de estranhamento que provoca; conta com a curiosidade que possa ser despertada e com as questões que surgem quando se analisa o projeto. Em seus escritos, Tschumi insiste em que um programa arquitetônico é peça fundamental no sistema projetual. Mas é perda de tempo dos arquitetos pretenderem que um espaço possa ser concebido para abrigar eternamente uma mesma função. Igrejas viram discotecas; matadouros viram museus; pode-se colocar a cama na sala; pode-se fazer sexo na cozinha... pode-se lutar nos corredores... ou correr... As transgressões às regras imaginadas pelos arquitetos são inerentes ao habitar a arquitetura. Aliás, a própria noção de que o arquiteto possa criar regras deve ser desconstruída. Na verdade, não temos tal poder, mas mantemos a ilusão e não dispomos de meios - “mecanismos ou estratégias” - para incorporar a aleatoriedade dos eventos e dos movimentos humanos em nosso sistema projetual, mas deveríamos. Segundo o senso comum, todos sabem o que é uma casa. Mas o que é realmente uma casa? Por que temos salas, banheiros, cozinhas? Por que na sala ficam os sofás e por que o banheiro deve ser composto de chuveiro, pia e bacia; ou por que temos fogões nas cozinhas? E, no entanto, ao examinarmos os desenhos de Tschumi percebemos os vestígios de uma casa, porque determinados signos colocados no papel nos indicam que isto é uma circulação e isto pode ser uma sala e aquilo um quarto. Mas o que define tais símbolos como espaços de uma casa? O que “define” um espaço? Seus limites? Se, nos limites, justamente o espaço não está mais. Acaba2.
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Contrariamente à noção dos arquitetos modernos - especial Le Corbusier – que investem a planta do poder de revelar a estrutura completa de uma obra arquitetônica, Tschumi acredita que plantas, cortes e elevações não são suficientes,
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Ao projetar, o arquiteto tende a traçar esses limites como parte de seu trabalho. Mas, ao traçar um retângulo (ou uma forma qualquer) num papel, não se pode esperar que aquele símbolo abstrato possa responder a toda a complexidade e riqueza que a vida humana requer para habitar um espaço. Assim, os componentes e meios tradicionais de geração de projeto - desenho, maquete, referência a antecedentes, programa, etc. – são colocados em cheque, pois eles não dão conta, sozinhos, da narrativa que o habitar introduz. Os
Figura: A Casa Fonte: Tschumi, 2001, p. 38.
meios tradicionais de representação arquitetônica são os meios da racionalidade geométrica, da precisão matemática, sejam as geometrias utilizadas euclidianas ou não. No entanto, quem, ao percorrer um espaço qualquer se pergunta que forma ele possui? A percepção não depende dessa racionalidade, e os atos humanos que possam acontecer neste espaço também não. O próprio projeto não é uma narrativa? Como na criação científica, a despeito de todos os esforços em se criarem padrões de procedimento, a criação não se submete a ordens e regras. Idéias diversas e complexas são manipuladas simultaneamente, gerando fragmentos de pensamento que, num processo de metáfora, convertem-se numa narrativa ou num projeto. “O desdobramento de eventos em um contexto literário inevitavelmente sugerido compara-se
sendo apenas alguns dos meios a utilizar.
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ao desdobramento de eventos em arquitetura”. (TSCHUMI, 2006, p.169). Existem estratégias e mecanismos que podem ser ativados durante o projeto. Existem também processos dentro do projeto que têm a ver com as diversas técnicas à disposição do arquiteto para ordenar seu pensamento projetual. Mas não existe ordem causal possível entre estes processos. Quando pesquisar antecedentes e referências? Quando estabelecer conceitos? Quando desenhar? Quando fazer maquete? Quando escolher uma linguagem adequada? Quando determinar a materialidade – “colocar a estrutura”? Quando o projeto do objeto está pronto? Todos sabem o que é uma casa. Uma casa é um objeto arquitetônico. Mas a casa que Tschumi nos apresenta não. Ela nos é apresentada como um vazio num espaço qualquer que não tem forma ou casca, mas contém corpos e movimentos. O programa da casa, em Rituals, origina-se da interpretação de uma interpretação. O filme que dá imagem à narrativa serve de ponto de partida para que o arquiteto analise os espaços e movimentos durante os eventos cruciais da história. Dois dos rituais acontecem em espaços concentrados – a dança e a luta. Em ambos, os movimentos são de rotação mais suave ou mais angular e brusca. O outro ritual – a perseguição – acontece num espaço vetorizado, direcional. Espaços de estar, de circular e espaços anexos surgem na imagem da “casa” para responder às necessidades que toda casa possui. Os personagens são três e um deles, o monstro – o ator Boris Karloff – será o habitante da nova casa.
La Villette Todos sabem o que é um parque. Trata-se de um espaço aberto para o lazer em contato com a natureza. Não é uma casa. O salto de escalas entre Rituals e o Parc de La Villete só é concebível porque seu autor aborda ambas as experiências projetuais a partir de um mesmo conjunto de estratégias e mecanismos de projeto que ele denomina de S.E.M. (space, event, movement). Resultados absolutamente diversos e aparentemente impossíveis de compa-
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rar, mas que fazem parte de um mesmo jogo. Só que jogado em condições diversas. Para quem projeta, pouco importa a escala do objeto a ser projetado; importa a complexidade do problema arquitetônico proposto, é o que Tschumi parece querer dizer. Pensar a casa ou pensar o parque são desafios de igual magnitude, sob certo ponto de vista. O programa do parque, assim como o da casa, não é convencional. O edital do concurso, intitulado “Parque Urbano para o Século 21” propõe um complexo programa de equipamentos culturais e de entretenimento, tais como teatros ao ar livre; restaurantes; bares; galerias de arte; oficinas de pintura e escultura; além de playgrounds e jardins onde, ao invés do lazer tradicional, se estimulassem atividades de invenção cultural. Os personagens desta vez são, portanto, anônimos cidadãos metropolitanos contemporâneos e seus hábitos de lazer e necessidades particulares. Além disso, o desafio de trabalhar em escala urbana numa área de 550.000 m², medindo aproximadamente 1 quilometro em seu lado maior, por 700 m no menor. Para dominar tamanho e complexidade, estares e circulações foram trabalhados em camadas separadas e autônomas. Além disso, uma terceira camada foi introduzida, de maneira a ordenar e unificar dimensionalmente a percepção espacial. Tschumi chamou estas três camadas de: Pontos, Linhas e Superfícies. Os pontos geram a grade dimensional de 120 X 120m que contém em seus nós as “folies”, concebidas como variações volumétricas a partir de um cubo vir-
Figura: La Villette Fonte: Tschumi, 2001, p. 56.
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tual de 10 X 10m.
É de longe o mais simples sistema para estabelecer uma identidade territorial e o de mais fácil implementação. [...] A estrutura oferece uma imagem clara a um território, caso contrário, indefinido. A regularidade de caminhos e posicionamentos tornam simples a orientação para que não esteja familiarizado com a área. (TSCHUMI, 2001, p.57).
As linhas que se constituem num sistema ortogonal de duas vias de alto fluxo de pedestres era um dos condicionantes pré-existentes, ambas conectando importantes estações de metrô que permitem acesso a qualquer parte da cidade. São seus “corredores” mais importantes e recebem uma estrutura de cobertura em toda sua extensão. Também fornecem as coordenadas inicias para a disposição das folies. Mas não estão sós. Outra linha de movimento é criada pelas demandas de projeto e incorpora-se ao sistema, um caminho de jardins temáticos, depois denominado “Promenade Cinematique”. Um caminho para passear, curvilíneo. As superfícies são espaços que oferecem condições para jogos, esportes, exercícios físicos, entretenimento de massa, feiras. As superfícies têm seu programa específico e seus equipamentos, mas algumas simplesmente oferecem espaços livres para qualquer atividade. O “objeto” parque é composto pela superposição desses três sistemas. Superposição, porque cada camada é deferente entre si. Mas também justaposição, porque objetos e percursos pré-existentes são preservados na solução final com os novos elementos a eles se associando por justaposição. Por fim, nos pontos críticos, onde um sistema interfere com o outro de maneira mais marcante, surgem os espaços de permutações de sistemas e programas: caminha-se pelos jardins, então surge um nó que permite mudar e passar para uma área onde um evento esteja acontecendo, que, por sua vez dá aceso a uma folie, onde se possa entrar e tomar uma bebida gelada numa tarde de verão. As estratégias para o parque emulam as estratégias para a casa. Se, antes o arquiteto buscou na imagem, em filme, o sentido do espaço, usos, experiências e movimentos de seus habitantes, agora vai buscar as mesmas coisas nos vestígios da passagem e da ocupação de seres humanos sobre o território da cidade. Em sua maioria, as superfícies e linhas estavam lá, na forma de ruínas e vestígios,
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oferecendo uma narrativa do que havia sido aquele pedaço de cidade entes de ficar obsoleto e abandonado por longo tempo. O arquiteto as busca, compreende, transforma. Desconstrói. Superposições, justaposições e permutações são estratégias projetuais que admitem o conflito, a confusão dos personagens habitando o espaço e seus movimentos imprevisíveis. Segundo o senso comum, todos sabem o que é um parque. É espaço aberto. Mas segundo Tschumi não este. O parque pode ser concebido como um dos maiores edifícios já construídos, um edifício descontínuo, mas, no entanto, uma única estrutura que se entrelaça em certas partes com a cidade e seus subúrbios. Da forma a um modelo embrionário do que os programas para o século 21 virão a ser. (TSCHUMI, 2001, p.55).
Mais uma vez nos vemos confrontados com a idéia de um espaço sem dimensão, cósmico, ao qual o arquiteto é incapaz de acrescentar algo. Apenas subtrair, excluir, segregar, conferir limites. O parque é, então, um oco, algo subtraído de algo, como a casa de Rituals. Os vestígios do edifício descontínuo são as superfícies, as linhas e algo mais. As folies são concebidas como marcos visuais dos nós da grade territorial de 120x120m e que cumprem o papel de abrigar partes do programa que exigem recintos fechados. Porém têm a missão de criar uma sensação de unidade através da imagem que se repete regularmente com variações de forma, mas mantendo cor e materialidade. De uma certa maneira, as folies são uma brincadeira irônica ao gosto do pós-modernismo vigente nos anos 80. Uma “ressurreição do imaginário construtivista” (DUCATEZ, 2005). Mas de uma ironia consequente cujo intento é criar imagens memoráveis, marcos referenciais, lugares de onde se pode ir para fazer algo ou para fazer nada. Lugares que contêm programas ou que oferecem a oportunidade de inventar “programas”. O evento do programa, o programa do evento. “A arquitetura do prazer está onde o conceito e experiência do espaço coincidem abruptamente, onde os fragmentos da arquitetura colidem e se fundem em deleite, onde a cultura da arquitetura é eternamente desconstruída e as regras são transgredidas.” (TSCHUMI, 1996, p.93).
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Além das folies, outros elementos, tais como o conjunto de passarelas cobertas e a “Promenade Cinematique”, encarregam-se também de conduzir e conectar os diversos sistemas do parque e suas áreas ou superfícies. No conjunto, são invenções sugeridas pelo programa, mas não itens do programa. São elementos que não nascem de necessidades funcionais, e nos remetem à análise de GUATELLI (2006) acerca da marquise do Ibirapuera, em São Paulo. Não se trata [...] de suprimir a articulação entre espaços, ou mesmo da defesa de uma completa desfuncionalização da linguagem arquitetônica, mas de liberar a arquitetura, em determinados momentos dessas pré-condições “enrijecedoras”, condicionadoras e organizadoras do movimento e da mobilidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Vivemos a era do barateamento das imagens, em que tudo é exposto o tempo todo em filmes, TVs, revistas, internet e telas de celular. Só as imagens que chocam alcançam alguma permanência na memória. Este fator [...] é característico de nossa condição contemporânea e dos perigos da vida na metrópole moderna. Estes perigos resultam em ansiedade constante quanto a viver em um mundo no qual tudo é insignificante e gratuito. A experiência de tal ansiedade é uma experiência de des-familiarização [...]. (TSCHUMI, 1996, p.247).
Assim,
[...] nós habitamos um espaço fraturado feito de acidentes onde são desintegradas as figuras, des-integrado. De uma sensibilidade desenvolvida durante séculos, a “aparência de uma imagem” estável (“proporção”, “equilíbrio”, “harmonia”), hoje nós tendemos a uma sensibilidade do desaparecimento de imagens instáveis: primeiro filmes (vinte e quatro imagens por segundo), então televisão, então imagens geradas por computador, e recentemente (entre alguns arquitetos) disjunção, deslocamentos, desconstruções. (TSCHUMI, 1996, p.217).
Os arquitetos não deveriam colaborar produzindo mais informação, mais imagens chocantes e espetaculares. Por outro lado, também deveriam deixar de lado a ilusão de que os objetos que projetam, por suas qualidades formais e compositivas intrínsecas, possam consertar de alguma forma o que está quebrado.
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Tschumi não pretende estar vinculado a qualquer corrente, linguagem ou viés compositivo. Pretende, num contexto de crise disciplinar, em que se necessitam urgentemente rever as bases que sustentam o ofício do arquiteto, oferecer sua teoria à discussão. E essa teoria aponta para o poder do projeto como ferramenta do conhecimento, afirmando que é no domínio desta ferramenta que os arquitetos e a arquitetura encontram seu significado atual. “A arquitetura vai além da construção para tornar-se conhecimento.” (NES BITT, 2006, p.173). O programa, para Tschumi, é ponto de partida de uma interpretação que gera um conceito que, por sua vez, gera estratégias e métodos de ação para cada projeto. A interpretação é individual e depende do repertório de quem interpreta. O Frankenstein de 1932 faz sentido para Tschumi em sua relação afetiva com o filme. Mas o conteúdo investigativo do exercício de Rituals vai além, quando interpretado à luz da produção teórica do arquiteto. Na máxima abstração do resultado e em sua mínima representação, abre-se um caminho para compreender evento e programa como conceitos teóricos. Permite também contextualizá-los, enquanto relação entre a elaboração formal de espaços e a invenção de programas, entre a abstração do pensamento arquitetônico e a representação dos eventos. O parque é mais palpável (palatável) e objetivo. Nele as estratégias e mecanismos de projeto que operam na transformação de conceito em espacialidade arquitetônica são mais explicitadas como “operações compostas de repetições, distorção, superposições, e assim sucessivamente” (TSCHUMI, 1996, p.181). Também fica claro em seu discurso sobre o parque o rompimento, seja com a abordagem funcionalista do programa que vê a arquitetura como resultante de necessidades e funções, seja na substituição efetuada pelo historicismo pós-moderno que simplesmente troca função por história como base empírica do projeto. “A arquitetura não é vista aqui como o resultado de composição, uma síntese de preocupações formais e condicionantes funcionais, mas como parte de um processo complexo de relações transformationais”. (TSCHUMI, 1996, p.181). Assim, quando Tschumi afirma ser necessário abandonar o legado humanista que herdamos do Renascimento por uma arquitetura pós-humanista, capaz de acentuar a dispersão do sujeito e a força de regulamento social, mas também o efeito de tal dês-centramento na noção inteira de forma arquitetôni-
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ca coerente e unitária (TSCHUMI, 1996), refere-se a um câmbio de visão em que o edifício passa de objeto que contém algo, para outra, em que o espaço vem antes, só então vem sua casca (constitui-se em objeto). O espaço do evento é mais que o espaço do programa. É o espaço que admite o aleatório do movimento e da presença. O evento do programa dá a pista de que o programa do evento possibilita, ao projetar, uma nova conceituação de espaço, fundamental para a arquitetura.
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Miguel Antonio Farina e Rinaldo Ferreira Barbosa
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Programa e evento em Tschumi: estratégias e conceitos
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Sistema e criação do artefato abstrato Maria Isabel Villac
A Teoria Geral de Sistemas e a Situação Contemporânea Para uma sociedade desprovida de projeto, a noção de “sistema” pode agregar outras abordagens ao raciocínio da arquitetura e do urbanismo e propor, de forma eficiente, novas questões para fazer frente aos desafios e à complexidade do mundo atual. A Teoria Geral de Sistemas tem sido amplamente aplicada às análises urbanas, nos estudos e no planejamento das cidades, desde o final da década de 1960, com os trabalhos de Berry e Marble (apud BEAUJEU-GARNIER, 1980). A análise urbana que se fundamenta no conceito de sistema circunscreve a estrutura física, a dinâmica ambiental, a relação espaço-tempo, as interações entre as variáveis que participam do sistema urbano e sua tendência evolutiva. Fortemente influenciada por uma aproximação sociológica, a cidade compre-
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endida como sistema pelo planejamento urbano focaliza principalmente quatro componentes fundamentais: trabalho, capital, política e comportamento, e menos a estrutura física do território urbano (BEAUJEU-GARNIER, 1980). Para a nova demanda relativa ao projeto da arquitetura e do urbanismo, cujo foco é a construção da estrutura física, a concepção sistêmica é propícia à realização da cidade compacta como opção inteligente e sustentável. O século XX assistiu às obras da cidade moderna do edifício no parque. A cidade compacta que perdura até o advento da máquina foi substituída pelo espalhamento da área urbana, principalmente no continente americano. Este modelo que privilegiou a pouca densidade, as áreas monofuncionais, os sistemas motorizados de transporte e toda a infratestrutura, sobretudo rodoviarista, que amparou o movimento nas áreas urbanas, chega ao século XXI totalmente desacreditado, seja pela anorexia de espaços de lazer e vida pública, seja pela deseconomia que o modelo acarreta. Hoje, com a necessidade de se pensar a área urbana segundo um preceito ecologicamente sustentável, se assiste ao redesenho de territórios deteriorados, com a proposta, por exemplo, de demolição e ou reconversão da brutalidade de algumas destas infraestruturas rodoviaristas e a criação de mais e mais parques e áreas livres pedestrianizadas. O projeto para a reutilização de trechos remanescentes da ferrovia elevada High Line, localizada do lado oeste de Manhattan, como espaço aberto ao público, proposto por Field Operations e Diller Scofidio + Renfro (2004), tem como estratégia pensar o espaço como um sistema que permanece aberto ao crescimento da vegetação e à possibilidade de acomodar mudanças programáticas. Outro projeto exemplar nasceu do entendimento de que qualidade de vida, segurança, sustentabilidade e patrimônio podem conformar um sistema integrado. A proposta de demolição do elevado que cortava o centro histórico de Seul e a recuperação do córrego Cheong Gye (2002), que antes estava coberto por uma avenida de concreto, transformou a área em parque integrada à vida da cidade, beneficiou a redução da temperatura ambiente, a queda da emissão de poluentes, a valorização dos imóveis do entorno e o aumento do uso de transporte coletivo.
Maria Isabel Villac
Projeto e sistema A adoção do “enfoque sistêmico” no projeto se assemelha ao próprio processo de projetação que se orienta por um desígnio ativo e produtivo e onde há grande número de variáveis que devem ser articuladas como mutuamente dependentes e com alto grau de influência mútua. Projetar é um processo orgânico que mantém um caráter aproximativo e ensaístico durante sua formação, mas que tem no horizonte uma finalidade intrínseca que orienta a eleição e seleção de distintas possibilidades. No projeto, como nos sistemas, a finalidade é um complexo de elementos em interação, que deve possuir unicidade e não ser um aglomerado de partes, tal que “o todo é maior do que a soma das partes”. O projeto é fruto do florescimento da relação que surge entre uma planificação programada e uma anarquia organizativa na qual a finalidade intrínseca é a lei de configuração conhecida quando a condensa em sua acabada totalidade. O entendimento da arquitetura como sistema foi amplamente discutido por Josep María-Montaner (2008). Abordando a escala que vai da arquitetura às morfologias urbanas e discutindo a crise do sistema compositivo clássico pontua que, uma vez superados os cânones do academicismo, a arquitetura contemporânea tem buscado «alternativas para [...] conseguir, com formas abstratas, uma maior complexidade e diversidade, aspirando a uma nova monumentalidade» (MONTANER, 2008, p. 15). Interessa pontuar, neste artigo, uma vertente de projeto na qual a arquitetura e a cidade compartem um princípio solidário. O olhar crítico que se propõe é o da busca de estratégias viáveis para um pensar de uma nova práxis ética, tanto no campo do conhecimento acadêmico como no da práxis social. A proposta que aqui se quer analisar redefine a prática do projeto. Seu motivo não é a “animação urbana” do Planejamento Estratégico cujo foco é a dimensão cultural (ARANTES, 2009, p. 13). Questões como imagem, ícone e conceito são deslocadas do discurso. Não há qualquer concessão à ornamentação e, no entanto,
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não se propõe como obra minimalista, desligada e indiferente a um discurso1. O empenho da discussão é alertar que a opção pela visão sistêmica realiza a crítica ao exibicionismo, à banalidade e à acomodação simplista das últimas décadas; renova a proposição teórica, por sua vez, não personalista, mas formulada a partir do valor que se atribui à organização e sinergia do arranjo abstrato de entidades complexas. O discurso volta a privilegiar as noções de função, materialidade, contexto e atualiza a noção de sistema construído como opção útil frente aos inúmeros sistemas burocráticos, peritos e abstratos – econômico, social, legislativo, político, comportamental, etc.2 (GIDDENS, 1994 apud LOOTSMA, 2003, p. 29) - a que estamos submetidos.
O terceiro termo A visão sistêmica aparece como uma alternativa tanto à crise do objeto e da cidade fragmentada, como à falência da ideologia do plano. O projeto que reúne arquitetura e cidade rompe com ambos, propõe um terceiro termo e responde com uma radical hipótese de equilíbrio cuja estratégia é ser uma estrutura mínima e com alto grau de organização capaz de incorporar a complexidade inerente à superposição de inúmeros programas. É parte inerente de sua concepção os conceitos de adaptação e finalidade, interação, totalidade, organização e complexidade. O terceiro termo ou terceira margem do rio, como escreveu João Guimarães Rosa (1962)3, é o lugar de travessia entre duas bordas qualitativas. Da posição do lugar-entre, no meio do rio, as duas margens podem ser entendidas em distanciamento e proximidade. Isso leva a uma constante reversibilidade, que une os dois lados e nega oposições nítidas, na medida em que propicia um outro
Cf. Josep Quetglas, Federación de textos de distinta longitud, hostiles a la ‘esencia vacía del arte moderno’ (o L’essence du vide: Le vide d’essence), Barcelona: Departament de Composició Arquitetònica, Secció d’Historia, ETSAB, Universitat Politécnica de Catalunya, s/d de publicação. 2 Anthony Giddens fala em “expert systems” e “abstract systems”. 3 “A terceira margem do rio” é um conto publicado em 1962 e republicado em 1988. O conceito “A terceira margem do rio” foi apresentado como metáfora do Projeto Curatorial da 6ª. Bienal do MERCOSUL, realizada em Porto Alegre, no ano de 2007. http://www.bienalmercosul.com.br/novo/index.php?option=com_content&id=1255&task=view&Itemid=184 Acessado em 20 de jul. 2010. 1
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arranjo nem antagonista e nem dualista, mas transverso. Nem lá nem cá não é, entretanto, um não-lugar, mas uma região de trânsito entre duas bordas que permite uma perspectiva diferenciada que evade o raciocínio binário. A busca e o admitir do espaço do meio autoriza a abertura e a integração da alteridade. A terceira margem possibilita a hospitalidade do outro que pode ser integrado e transformado. O projeto que amalgama arquitetura e cidade permite escapar da arquitetura de “representação” e do autoritarismo do plano e se apresentar como um facilitador de outros sistemas, processos, dinâmicas. O terceiro bordo é um lugar-entre que é uma posição mediadora. Ponto de fronteira, união e separação; a proposta é um lar híbrido entre arquitetura e cidade. Como alternativa entre o pensamento redutor, que não vê mais que elementos, e o pensamento globalista, que só vê o todo, essa opção de projeto responde com a responsabilidade que implica pensar e construir o sentido da habitabilidade contemporânea, abrigando a idéia de que a arquitetura e o urbanismo exigem a aspiração a uma totalidade estruturada e organizada de elementos díspares e de vários campos de conhecimento e o amparo às contradições.
A integração edifício-cidade O Artefato A proposta da arquitetura e do urbanismo que integra edifício e cidade aposta na criação de um sistema viável e provedor de um futuro como projeto: um artefato. O projeto é anti-humanista e o artefato é único e de ascendência moderna. Diferentemente das arquiteturas cenográficas que buscam a diferenciação pelo espetáculo, sua forma é lógica e matemática, atendendo a uma exigência mais sóbria, mais necessária, mais geral de uma célula reprodutível apenas no valor de sistema que agrega. Sua escala é da ordem do Bigness: organiza território, paisagem e arquitetura. Repropõe, para a arquitetura e o urbanismo, uma outra escala de dimen-
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são e valor e inaugura uma nova fase de organização do território da cidade que atende, não pela repetição e homogeneidade como preconizava Hilberseimer, mas pela excepcionalidade de um desenho abstrato, às premissas da «arquitetura da grande cidade que depende essencialmente da solução dada a dois fatores: a célula elementar e o conjunto do organismo urbano» (HILBERSEIMER, apud TAFURI, 1985, p. 71).
Princípio Regulador / Estrategia No projeto do artefato, o raciocínio sistêmico não é um fundamento, senão um princípio regulador. A inter-relação entre arquitetura e cidade está determinada por leis inerentes a esta relação: é eco-sistêmica. De tal maneira que nada sucede a uma parte do todo que não dependa das relações que estabelece com a totalidade; nada sucede a um dos elementos que não dependa das relações que estabelece com o outro elemento. Para esta opção de projeto, o sistema é “decisão construtiva”, atividade constitutiva do espaço ou do ambiente concreto da vida. No projeto do artefato-sistema arquitetura e cidade se apóiam mutuamente e a distinção entre construção e postulado teórico não faz sentido, uma vez que a proposta é resultante e promotora de princípios comuns entre variáveis e a relação entre eles. As coordenadas de projeto são, portanto, abstratas. Por um lado exige objetividade e racionalização do programa. Por outro, a configuração escolhe sua inserção em uma perspectiva real de gestão alternativa da cidade e uma arquitetura que se realiza com o objetivo de não somente realizar a tarefa pretendida, mas a realizar com o máximo de eficiência e menor custo possível. O sistema é um conjunto unificado, constituído de partes solidárias, articuladas entre si e não reunidas por acaso. Para o projeto de arquitetura e cidade que adota a concepção de sistema volta a estar na agenda «a tarefa de construir uma nova ordem e melhor para substituir a velha ordem defeituosa» (BAUMAN, 2001, p. 12). A interferência busca uma nova totalidade e a capacidade de alterar a noção de ordem ou desordem é inalienável à sua concepção projetual. O sistema é uma disposição intelectual e, no projeto de arquitetura e cidade, o artefato é um diagrama neutro, proposto como acomodação entre engrena-
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gem mecânica, tecnológica e informacional, necessariamente aberto à interação com outros sistemas e à dinâmica da vida. Se na modernidade líquida «a mudança em questão é a nova irrelevância do espaço, disfarçada de aniquilação do tempo» (BAUMAN, 2001, p. 136), a neutralidade atenta que: «nenhuma parte do espaço é privilegiada, nenhuma tem um “valor especial”» (BAUMAN, 2001, p. 137), não porque não diferencie as atividades, mas porque almeja uma interação mais que um produto. O projeto do artefato apóia um raciocínio que não suscita a subjetividade ou a História inerentes ao procedimento artístico. A relação objetividade/racionalidade que orienta a equação do sistema não se dispõe a responder por significado e sentido cultural. A questão do projeto não é de linguagem, mas de articulação e organização e o compromisso do artefato não é a forma. Tanto que sua aparência mostra o grau zero da comunicação visual e não pertence a nenhum código lingüístico: é neutra, indiferente aos gestos compositivos. A desistência da forma em pró da articulação faz do artefato puro artifício concebido como engenho; do desenho uma forma simplificada, precisa e eficiente, cuja lógica abstrata responde a condições concretas e está enriquecida pela realidade.
Função Apesar de sua radical e decisiva abstração, e do quanto se distancia das formas da vida, o artefato se insere no território de maneira oposta a um ready made «inservível» (PAZ, 1991, p. 37), mas se assemelha a outras obras de Marcel Duchamp por agregar uma inteligência poética e maquínica: o artefato é uma “geringonça” programática. É uma aproximação inevitável e apropriada ao “mundo real”, que aceita que «a técnica é a natureza do homem moderno, nosso ambiente e nosso horizonte» (PAZ, 1991, p. 36). O artefato é uma opção técnica e estéril que funciona como máquina. Mas não é consumível, senão útil, porque aceita a imprevisibilidade e está aberto à organicidade da vida. Há astúcia e oportunismo em arranjos funcionais que podem ser transitórios e disponíveis à reversibilidade.
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A título de exemplo: Projetos e Obras A interpretação arquitetônica de um determinado atributo presente no que se entende como intervenção em grande escala na realidade tem seu precedente em Le Corbusier, nas propostas que desenhou para a América Latina e, principalmente, para Argel, nos anos 1920. Nestes croquis está enunciado o projeto compreendido como raciocínio apto a organizar o território a partir de um único objeto, cuja megaescala e configuração, indiferentes à preocupação estética, fazem frente às vicissitudes de uma situação geomorfológica de uma parcela do território. É na senda de um Le Corbusier que já havia projetado a Unité d’Habitation de Marselha que a explicitação de uma condição extrema de urbanização derivada da superdensificação e a artificialidade do princípio da arquitetura reduzido a uma superfície neutra encontra seu precedente na proposta de Rino Levi para o concurso de Brasília, em 1957. As premissas deste projeto, aliadas a uma condição de articulação do território da Brasília metropolitana, as cidades-satélites e a parcela do cerrado ainda não urbanizada, foram retomadas pelo Instituto Berlage, em sua presença na VII Bienal de Arquitetura de São Paulo, em 2007. A multiplicidade de conhecimentos articulados segundo uma idéia de totalidade pode ser ainda apontada nos mega projetos das “Utopias” dos anos 1960. Tem ainda sua exemplaridade, com especial atenção à qualidade viril e enérgica de uma megaestrutura, aliada à eliminação de um princípio estilístico para a arquitetura, em projetos do grupo Archizoom, nas décadas de 1960 e 1970. No momento contemporâneo, é importante assinalar as intervenções de Rem Koolhaas, na escala do Bigness, e o grupo MVRDV, por suas idéias sobre densidade, o agrupamento de programas e o conceito de natureza artificial. No caso do Brasil, pode-se apontar, a título de exemplo, duas propostas de articulação da arquitetura e da cidade: o Projeto de Reurbanização da Universidade de Vigo, do arquiteto Paulo Mendes da Rocha, em 2005, e o Projeto para o Concurso Internacional “Building a sustainable world”, promovido pela RIBA, Califórnia, EUA, da dupla Andrade Morettin Arquitetos, em 2007.
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Reurbanização da Universidade de Vigo, arquiteto Paulo Mendes da Rocha. A Universidade de Vigo assume esse papel de lugar de primordial importância nos estudos da condição de preservação da natureza e futuro do planeta. Suas próprias instalações deveriam contrapor-se ao lugar extremamente caprichoso na topografia e geomorfologia. Uma condição de indagação aos recursos da técnica – engenharia, arquitetura e conceitos urbanísticos – para a disposição espacial das suas áreas de trabalho; bastante diversificadas e submetidas a constante atualização; com um sentido de estruturação do espaço e desenho autônomo se possível não perturbando a ingrata conformação natural original. Não se trata de convocar metáfora mas propor um desejável êxito da técnica. Paulo Mendes da Rocha, memória do projeto, 2005.
O projeto do arquiteto é uma engrenagem organizativa, cuja interferência é romper com a forma desagregada. No caso desta proposta, a abordagem sistêmica privilegia uma estrutura que aporta organização e ordem unificadora enquanto suporte da interação dinâmica de variáveis físicas e comportamentais. O mecanismo é uma rede de conexão e está pensado para animar a vida do campus. Sua forma é um diagrama que explicita uma lógica de ação e intencionalidade do sistema: ser mapa e trajetória da conectividade e organização do território. O sistema-artefato é um genérico possível e a ordem é inerente à inteligência da proposta que busca encontrar um padrão no que é desconexo e compreendido como aleatório. Interage com a realidade para alterar a inércia e a entropia da miscelânia e do acúmulo de diferenças de edifícios já construídos, mudos uns para os outros pelo excesso de individualismo de suas arquiteturas, para gerar movimento, interação, acordos de convivência. Um território antes invertebrado ganha estrutura. O sistema proposto é operativo e está pensado para ativar o funcionamento de uma situação urbana antes desconectada, sem interferir na natureza difícil que, a partir de uma cota privilegiada das passarelas, se torna paisagem aberta à contemplação. A autonomia de cada edifício perde importância para dar lugar à organização de um conjunto significativo. Promove mobilidade, comunicação, proximidade na escala do pedestre. O artefato em si não é um padrão, mas propõe a espacialização necessária e
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intransitiva a uma noção de ordem que encontra no aparente acaso, resultante de uma natureza caprichosa e um acúmulo de expressões arquitetônicas: uma ordem intrínseca determinada por leis precisas. A aproximação ao raciocínio das telas de Cézanne em Aix-en-Provence, que viu a geometria inerente à geomorfologia do Monte Saint-Victoire, é a lição primeira acerca deste raciocínio, ou melhor, deste novo olhar. Uma configuração que descobre uma lei na dissonância. Uma disposição que não tem regras a priori, mas olha, se associa e descobre uma razão inerente ao foco de seu olhar.
Figura 1: Reurbanização da Universidade de Vigo - Vista geral - maquete eletrônica. Fonte: Arquivo do arquiteto.
Figura 2: Reurbanização da Universidade de Vigo - Corte geral – maquete eletrônica. Fonte: Arquivo do arquiteto.
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Figura 3: Reurbanização da Universidade de Vigo - Detalhe da passarela – maquete eletrônica. Fonte: Arquivo do arquiteto.
Concurso Internacional “Building a sustainable world”, Andrade Morettin Arquitetos. Entendendo que a crise ambiental global tem as mesmas causas sociais que a atual crise do espaço público nas nossas cidades, nós concebemos uma cidade que tem por objetivo de restabelecer a relação entre o indivíduo e o domínio público. O espaço público é o protagonista desta estrutura, criando um ambiente urbano intenso e diversificado. Andrade Morettin Arquitetos, memória do projeto, 2007
A decisão de projeto da dupla de arquitetos Vinícius Andrade e Marcelo Morettin para este concurso começa com a escolha de uma situação urbana precária, frente a uma natureza frágil, localizada na área da Baía de Paranaguá, estado do Paraná. A ineficiência do planejamento urbano e regional neste território está agravada pela presença do antigo porto incrustado em uma região de laguna. Esta condição urbana e ambiental é o marco e a premissa para a decisão projetual por uma arquitetura que investiga novas possibilidades do viver. Seu propósito é gerar novos comportamentos a partir da proposta de construir nichos habitáveis para 50.000 habitantes - “Algae city” - que se diferencie e se oponha aos modelos de cidade existentes e definir uma relação não hierárquica, mas produtiva, com o ambiente.
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Composição, partido e programa: uma revisão crítica de conceitos em mutação
A limitação de recursos desta geografia induz a conceber quatro edifícioscidade, de 1 km2 cada, sobrepostos logitudinalmente à geomorfologia do território da costa lagunar, que esgota em sua própria estrutura todas as questões de sustentabilidade, que reutiliza recursos e recicla resíduos. O sistema induz ao desenho de um artefato cuja volumetria está delimitada por uma estratégia de implantação, pela geometria precisa de seus limites e pelo cálculo de uma população possível que ocupa uma cidade compacta. Seu funcionamento está determinado pela complexidade de vários sistemas acoplados. Forma e função são tratadas de maneira associada; o volume é uma geografia suscetível de acolher novos usos, concebido a partir de uma hipótese de futuro para o desenvolvimento urbano e um argumento sobre a possibilidade de convivência em uma cidade compacta e sustentável. O interior é um espaço fluido, de superfícies contínuas, que agregam cheios e vazios ambivalentes, que acoplam dobras, fluxos, lugares e não-lugares em sucessão para acolher movimentos e superposição de programas reversíveis e cumulativos. O artefato é um invólucro aberto, sem fachadas, sem paredes; uma estrutura mínima, um mecanismo entre escalas e paisagem operativa e não estabelece nenhuma relação com a cidade existente. Inventa um território, uma topografia própria. É uma ilha artificial. Sua imagem resulta tanto da relação forma ou funcionamento, como da estrutura e infraestrutura que se combinam para sugerir e antecipar uma possibilidade de vida separada da natureza. O artefato-sistema é o outro da natureza e sua presença é de contraponto. Seu postulado é ser abstrato e puro desterro, se a ausência de identidade figurativa for o exílio. Sua presença é desconcertante para a organicidade da vida. Sua configuração se relaciona com uma determinada geometria reconhecível na natureza do lugar. Natureza entendida como contexto, introjetada como configuração expectante e latente a ser complementada e reorganizada ou deixada intacta em sua própria beleza. A inserção do artefato é estratégica, por sua utilidade enquanto suporte para a vida, e compositiva, no sentido de uma relação unívoca e apropriada com aquilo que se interpreta como “realidade”. É uma estratégia de colonização.
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Figura 4:“Building a sustainable world” – Vista aérea – maquete eletrônica. Fonte: Arquivo do arquiteto.
Figura 5:“Building a sustainable world” – Vista do edifício-cidade – maquete eletrônica. Fonte: Arquivo do arquiteto.
Figura 6:“Building a sustainable world” – Vista do edifício-cidade – maquete eletrônica. Fonte: Arquivo do arquiteto.
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Sobre os autores Anna Paula Canez Graduada em Arquitetura - UFRGS (1988). Realizou mestrado (1996) e doutorado (2006) em Teoria, História e Crítica da Arquitetura - PROPAR/ UFRGS. É Professora Titular do UniRitter, onde atua desde 1990, Coordenadora de Pesquisa e Líder do Grupo de Pesquisa “Lucio Costa: Obra Completa”. É autora dos livros; Fernando Corona e os caminhos da arquitetura moderna em Porto Alegre e Arnaldo Gladosch: o edifício e a metrópole e co-autora de; Acervos Azevedo Moura e Gertum e João Alberto: imagem e construção da modernidade em Porto Alegre e Arquiteturas Cisplatinas: Roman Fresnedo Siri e Eladio Dieste em Porto Alegre. Em 2007 coordenou a edição fac-similar do livro Lúcio Costa: sôbre arquitetura, organizado por Alberto Xavier.
Cairo Albuquerque da Silva Graduado em Arquitetura – UFRGS (1971). É Professor Titular do UniRitter onde atuou como Coordenador da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo no período 1987-1998. Assessor da Coordenação do Curso de Arquitetura e Urbanismo. Participa do grupo de pesquisa (CNPq/UFRGS) em Teoria e Prática do Projeto, liderado pelo professor Rogério de Castro Oliveira. Atua na prática e no ensino do Projeto de Arquitetura e Urbanismo. Co-autor do edifício da FAU IniRitter entre outros projetos.
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Carlos Eduardo Comas Graduado em Arquitetura – UFRGS (1966). É mestre em Planejamento Urbano e mestre em Arquitetura pela University of Pennsylvania (1977) e doutor em Projet Architectural et Urbain -pela Université de Paris VIII (2002). É Professor Titular da UFRGS, onde atua em projeto e em teoria, história e crítica de arquitetura. Foi coordenador de 2005 a 2008 do Programa de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, PROPAR-UFRGS, assim como do DOCOMOMO Núcleo-RS. É coordenador geral do DOCOMOMO Brasil desde 2008 e coordenador editorial do PROPAR-UFRGS desde 2009. Membro do comité assessor da área no CNPq em duas ocasiões. Representante adjunto da área na CAPES no triênio 20052007. Integra o conselho editorial das revistas Arqtexto (UFRGS), Arcos (ESDI/ UERJ) e Arquitextos- Vitruvius. Membro do CICA (Comité Internacional dos Críticos de Arquitetura) da União Internacional de Arquitetos. Tem publicado extensamente sobre a arquitetura e o urbanismo modernos brasileiros e elaborado um número significativo de projetos de arquitetura e urbanismo.
Maria Isabel Villac Graduada em Arquitetura e Urbanismo (1977), especialização em Didática do Ensino Superior (1991) pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Doutorado em Teoria História e Crítica pela Universitat Politecnica de Catalunya (2002). Pesquisadora e professora dos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Experiência profissional na área de Arquitetura e Urbanismo, com ênfase em Arquitetura e Desenho Urbano. Como pesquisadora atua principalmente nos seguintes temas: arquitetura e cidade, arquitetura e cultura, arquitetura e cidadania.
Miguel Antonio Farina Graduado em Arquitetura – UFRGS (1987), especialização em Ensino e Pesquisa em Arquitetura pelo UniRitter (1995), mestrado em Teoria, História e Crítica da Arquitetura - PROPAR/UFRGS (2003). É Professor Titular do UniRitter. Dedica-se aos seguintes temas: estudo tipomorfológico, arquitetu-
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ra moderna de Porto Alegre, tipologias habitacionais, Plano Diretor de Porto Alegre 1959, assimilação da linguagem do modernismo e legislação restritiva x legislação propositiva.
Rogério de Castro Oliveira Graduado em Arquitetura – UFRGS (1975), mestrado (1992) e doutorado (2000) em Educação pela UFRGS. É Professor Titular do Departamento de Arquitetura da UFRGS, docente e orientador do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura da UFRGS, assessor ad hoc da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, assessor ad hoc da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas e bolsista de produtividade em pesquisa nível 2 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. É líder do grupo de pesquisa (CNPq/UFRGS) em Teoria e Prática do Projeto. Tem experiência na área de Arquitetura e Urbanismo, com ênfase na prática e no ensino do Projeto de Arquitetura e Urbanismo.
Rinaldo Ferreira Barbosa Graduado em Arquitetura – UFRGS (1987), especialização em Arquitetura de Interiores pelo UniRitter (2001) e mestrado em Teoria, História e Crítica da Arquitetura - PROPAR/UFRGS (2005), junto ao qual desenvolve atualmente tese de doutorado e mantém atividades de pesquisa vinculadas ao Grupo de Pesquisa Classicismo e Arquitetura. Foi professor substituto na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul no biênio 2005/2006 na área de Teoria e História da Arquitetura e Técnicas Retrospectivas. Desde 2007, exerce a docência junto ao Curso de Arquitetura e Urbanismo da Feevale onde exerce a atividade de extensão no projeto Arquitetura e Comunidade e coordena o Laboratório de Teoria e História da Arquitetura. No campo profissional, tem atuado na área de projetos arquitetônicos, residenciais e comerciais, e de arquitetura de Interiores desde 1987.