As Relações Internacionais em Debate

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Novos Conhecimentos

André Luiz Reis da Silva Diego Trindade d’Ávila Magalhães Edson José Neves Júnior Érico Esteves Duarte Kelly Lissandra Bruch

Raphael Carvalho de Vasconcelos Rosana Pinheiro-Machado Stéphane Rodrigues Dias Thales Augusto Zamberlan Pereira

As relações internacionais em debate Volume 1 Cristine Koehler Zanella e Marc Antoni Deitos Organizadores


As relaçþes internacionais em debate Volume 1

Cristine Koehler Zanella e Marc Antoni Deitos Organizadores

Porto Alegre, 2013


Reitor Telmo Rudi Frantz Pró-Reitora de Ensino Laura Coradini Frantz Pró-Reitora de Pesquisa, Pós-Graduação e Extensão Márcia Santana Fernandes Coordenador do Curso de Relações Internacionais Marc Antoni Deitos

Entidade Mantenedora Sociedade de Educação Ritter dos Reis Ltda. Praça XV de Novembro, 66 conj. 802 Fone/fax: (51) 3228.2200 CEP 90020-080 – Porto Alegre/RS

Sede em Porto Alegre – Rua Orfanotrófio, 555 – Alto Teresópolis Fone: (51) 3230.3333 – Fax: (51) 3230.3317 Unidade em Canoas: Rua Santos Dumont, 888 – Niterói Fone: (51) 3464.2000 – Fax: (51) 3464.2005 www.uniritter.edu.br


As relações internacionais em debate Volume 1

Cristine Koehler Zanella e Marc Antoni Deitos Organizadores

Convidados: Rosana Pinheiro-Machado, Thales Augusto Zamberlan Pereira, Diego Trindade d’Ávila Magalhães, Érico Esteves Duarte, André Luiz Reis da Silva, Raphael Carvalho de Vasconcelos, Stéphane Rodrigues Dias, Edson José Neves Júnior e Kelly Lissandra Bruch.

Porto Alegre, 2013


Conselho Editorial Anna Paula Canez, Cláudia de Souza Libânio, Gladimir de Campos Grigoletti, Hericka Zogbi Jorge Dias, Isabel Cristina Siqueira da Silva, Josué Emílio Möller, Júlio César Caetano da Silva, Leandro Martins Zanitelli, Marc Antoni Deitos, Maria Luíza de Souza Moreira, Regina da Costa da Silveira, Roger Luiz da Cunha Bundt Conselho Científico Prof. Dr. Beatriz Daut Fischer (Unisinos), Prof. Dr. Bernardo Subercaseaux (Universidad de Chile), Prof. Dr. Diego Rafael Canabarro (UFRGS), Prof. Dr. Elias Torres Feijó (Universidade de Santiago de Compostela), Prof. Dr. Gilberto Ferreira da Silva (Unilasalle), Prof. Dr. Günther Richter Mros (Universidade Católica de Brasília), Prof. Dr. Jaqueline Moll (MEC), Prof. Dr. Júlio Van der Linden (UFRGS), Prof. Dr. Lucas Kerr de Oliveira (Universidade Federal da Integração, Latino-Americana), Prof. Dr. Marizilda Menezes (UNESP Bauru), Prof. Dr. Taisy Weber (UFRGS) Editora Chefe da Editora UniRitter Rejane Pivetta de Oliveira Editor Executivo da Editora UniRitter Marcelo Spalding Perez Revisão Linguística Maria Teresa Nunes Cordeiro do Valle Revisão Técnica Raquel Soares da Silva Projeto Gráfico Cláudia Silveira Rodrigues (Estúdio de Design Gráfico - UniRitter) Arte da Capa e Editoração Eletrônica Rogério Grilho Transcrição Inaê Siqueira de Oliveira Parecerista Externo Daiane Moura de Aquiar Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) R382

As relações internacionais em debate / Cristine Koehler Zanella e Marc Antoni Deitos Organizadores. – Porto Alegre : Ed. UniRitter, 2013. 116 p. ; 23 cm. ISBN : 978-85-60100-74-3 1. Migração – Relações internacionais. 2. Globalização – Comércio internacional. 3. Relações internacionais – Entrevista. I. Zanella, Cristine Koehler. II. Deitos, Marc Antoni. III. Título. CDU 327

Ficha catalográfica elaborada no Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Dr. Romeu Ritter dos Reis


Nesta edição André Luiz Reis da Silva. Pós-doutorado em Relações Internacionais pela School of Oriental and African Studies/ University of London. Doutor em Ciência Política, Mestre em História, Bacharel e Licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Possui curso de Especialização em Processos de Integração pela Universidade de Leiden/Holanda. É Professor Adjunto no Curso de Graduação em Relações Internacionais da UFRGS e dos Programas de Pós-Graduação em Ciência Política (UFRGS) e Estudos Estratégicos Internacionais (UFRGS). Foi coordenador do Curso de Graduação em Relações Internacionais da UFRGS e também da Comissão de Extensão da Faculdade de Ciências Econômicas. Editor da Revista Conjuntura Austral. Membro da Comissão Assessora da área de Relações Internacionais do INEP/Ministério da Educação. Coordenador Adjunto do GESPI (Grupo de Pesquisa em Segurança e Política Internacional) da UFRGS e pesquisador do CEGOV (Centro de Estudos Internacionais sobre Governo). Pesquisa Relações Internacionais Contemporâneas, com foco nos países em desenvolvimento, e Política Externa Brasileira. Cristine Koehler Zanella. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Integração Latino-Americana, Bacharel em Direito e


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em Economia, todos pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Coordenadora de Pesquisa e Extensão do Curso de Relações Internacionais da UniRitter - Laureate International Universities, em Porto Alegre, onde também é professora das disciplinas de Relações Internacionais da América Latina, Organizações Internacionais e Direito das Relações Internacionais. Coordenadora do eixo Globalização e Integração Regional do Grupo de Pesquisa em Relações Internacionais (PRISMA) da UFSM. Associada à International Studies Association (ISA) e à Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI). Diego Trindade d’Ávila Magalhães. É doutorando no Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Fez graduação e mestrado em Relações Internacionais na Universidade de Brasília (UnB). Foi professor do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter - Laureate International Universities) nas disciplinas Conflito e Negociações nas Relações Internacionais, Segurança Internacional e Política Internacional. Foi professor e coordenador do Curso de graduação em Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás). Atualmente, pesquisa o papel dos países emergentes na globalização contemporânea, bem como a integração e segurança na América do Sul. Edson José Neves Júnior. Doutorando em Estudos Estratégicos Internacionais, Mestre em Relações Internacionais e Graduado em História, todos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atua como professor de Relações Internacionais na Universidade Vila Velha, no Espírito Santo. Áreas de Interesse: Segurança e Conflitos Internacionais, História Contemporânea da Ásia, África e América do Sul, e Política Externa Brasileira. Tem realizado seus estudos especialmente sobre o contexto de segurança do sul da Ásia, o Terrorismo Internacional e a Política Externa Brasileira. Desenvolve atividades de Extensão e Pesquisa sobre as obras cinematográficas e o ensino das Relações Internacionais. Érico Esteves Duarte. Professor de Estudos Estratégicos e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Membro do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS, Londres). Atualmente ocupa a


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Cátedra Rui Barbosa de Estudos Brasileiros da Universidade de Leiden. Doutor e Mestre em Ciências da Engenharia da Produção pela Universidade do Brasil, Coppe/UFRJ. Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília. Áreas de pesquisa: Teoria da Guerra, Estratégia Marítima, Política de Defesa Brasileira, Epistemologia e Pedagogia das Relações Internacionais. Em 2010 sua tese recebeu o reconhecimento do Ministério da Defesa como “Melhor tese em defesa nacional”. Kelly Lissandra Bruch. Graduada em Direito, Especialista em Direito e Negócios Internacionais (UFSC), Mestre em Agronegócios (UFRGS), Doutora em Direito pela Université Rennes I, em co-tutela com a UFRGS. Atualmente, realiza suas pesquisas no Pós-Doutorado da UFRGS na área de Agronegócios. É consultora do Instituto Brasileiro do Vinho (IBRAVIN) desde 2005, e consultora técnica do Instituto Rio Grandense do Arroz (IRGA) desde 2010. Professora no Programa de Mestrado Profissional em Biotecnologia e Gestão Vitivinícola da UCS, expert indicada pelo Governo Brasileiro junto à Organização Internacional da Uva e do Vinho (OIV). É revisora de vários periódicos e autora de diversos artigos na área de propriedade intelectual e agronegócios. Marc Antoni Deitos. Doutorando em Direito Internacional e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Coordenador do Curso de Relações Internacionais da UniRitter – Rede Laureate International Universities, onde é professor da disciplina de Introdução às Relações Internacionais. Conselheiro de Defesa Comercial da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (FIERGS). Membro da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI). Raphael Carvalho de Vasconcelos. Cumpre atualmente o mandato brasileiro na Secretaria do Tribunal Permanente de Revisão do MERCOSUL (Secretário do Tribunal - Direção Administrativa do Tribunal). É professor assistente da Faculdade de Direito do Instituto Três Rios da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) - afastado para servir a organismo internacional. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF),


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Mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Doutorando em Direito Internacional na USP e Doutorando em Direito internacional na UERJ. Frequentou como estudante visitante as universidades de Passau (Uni-Passau), na Alemanha, e de Buenos Aires (UBA), na Argentina. É professor convidado do Curso de Pós-graduação - Especialização em Direito Internacional - da Escola Paulista de Direito (EPD). Possui diversos artigos e capítulos de livros publicados e se dedica aos estudos de direito internacional e de processos de integração regional, especialmente do MERCOSUL. Raphael Carvalho de Vasconcelos. Cumpre atualmente o mandato brasileiro na Secretaria do Tribunal Permanente de Revisão do MERCOSUL (Secretário do Tribunal - Direção Administrativa do Tribunal). É professor assistente da Faculdade de Direito do Instituto Três Rios da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) - afastado para servir a organismo internacional. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Doutorando em Direito Internacional na USP e Doutorando em Direito internacional na UERJ. Frequentou como estudante visitante as universidades de Passau (Uni-Passau), na Alemanha, e de Buenos Aires (UBA), na Argentina. É professor convidado do Curso de Pós-graduação - Especialização em Direito Internacional - da Escola Paulista de Direito (EPD). Possui diversos artigos e capítulos de livros publicados e se dedica aos estudos de direito internacional e de processos de integração regional, especialmente do MERCOSUL. Rosana Pinheiro-Machado. Professora de Antropologia do Desenvolvimento na University of Oxford, Reino Unido, no Departamento de Desenvolvimento Internacional. Cientista social, doutora e pós-doutora em Antropologia pela UFRGS. Realizou seu estágio doutoral na University College London (UCL), onde foi pesquisadora visitante em 2008. Em 2012/2013, foi pesquisadora visitante do Fairbank Center for Chinese Studies na Universidade de Harvard. Entre 2010 a 2013, lecionou na graduação e pós-graduação da ESPM Sul. Sua tese, baseada em 10 anos de pesquisa, acompanhou


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uma cadeia global de mercadorias na rota China-Paraguai-Brasil, focando no mercado informal e na pirataria. Esse trabalho foi agraciado com os prêmios “1o Lugar Prêmio ABA/FORD de Direitos Humanos”, “Melhor Tese de Ciências Sociais/ANPOCS” e “Grande Prêmio CAPES de Tese Ruth Cardoso”. Dedica-se aos temas de propriedade intelectual e pirataria, informalidade, comércio internacional, produção, consumo e mercado, marcas, periferias urbanas, guanxi e desenvolvimento em economias emergentes. Autora dos livros Made in China (Hucitec, 2011) e China, passado e presente (2013, Artes e Ofícios). Stéphane Rodrigues Dias. Doutoranda em Linguística, Mestre em Letras e Licenciada em Letras Língua Portuguesa/Língua Inglesa e respectivas literaturas, todos pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Integra o Grupo de Pesquisa ‘Lógica e Linguagem Natural’ (PUCRS), no qual desenvolve estudos na interface Comunicação/Cognição/Lógica, centrando-se nos processos inferenciais dialógicos. Em sua pesquisa de doutorado, avalia uma posição metateórica acerca dos estudos intra e interdisciplinares, investiga um modelo de racionalidade dialógica, bem como defende uma proposta de mediação de conflitos a partir de uma perspectiva dialógica biosocial, levando em consideração a importância dos artistas enquanto atores fundamentais no processo de paz. Thales Augusto Zamberlan Pereira. Mestre em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Foi professor do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter). Atualmente é aluno do Doutorado em Economia na Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP). Atua na área de história econômica e pesquisa o desenvolvimento de longo prazo em conjunto com a Universidade da República do Uruguai e a Universidade de Barcelona. Nos últimos anos apresentou trabalhos no Instituto Ronald Coase na Universidade de Chicago, na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), na Universidade do Sul da Califórnia (USC) e na Universidade Carlos III em Madri (U3CM).



[...] podemos assumir que o padrão relevante de objetividade dos princípios éticos está ligado a sua defensabilidade em uma estrutura aberta e livre de argumentação pública Amartya Sen, ‘A ideia de justiça’, São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 230.



Agradecimentos O Mate-Papo – cujas entrevistas compõem esse livro - é, acima de todas as características singulares que o transformam em um projeto único na área das Relações Internacionais no Brasil, o resultado do esforço coletivo. Arrancá-lo do papel e, previamente, de nossas mentes, como se fosse possível criar tal e qual o nosso mundo imaginário no universo das coisas materiais, só foi possível pelo esforço contínuo e pela presença de um grupo inestimável de pessoas que também acreditou na possibilidade de torná-lo realidade. Esse exercício que experimentamos e sentimos, e que imaginamos constituir um movimento pleno de criação, nasceu em nosso intelecto como uma imagem, a imagem de como é possível produzir o conhecimento, exercitar a interdisciplinaridade e compartilhar, no mais alto nível democrático, uma concepção de universidade construída com base no diálogo e na exposição de ideias. O Mate-Papo veio à vida no formato em que foi idealizado. Não há dúvida de que esses agradecimentos são muito modestos para todos aqueles que acreditaram conosco na possibilidade de inscrever esse projeto em nossas histórias.


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Fazer parte do UniRitter-Rede Laureate Universities nos deu a oportunidade de, em primeiro lugar, conceber o Mate-Papo. Ele se fez possível por estar inserido em uma Instituição de Ensino Superior que tem como sua missão “Construir, disseminar e compartilhar conhecimento para formar cidadãos éticos e profissionais qualificados, comprometidos com o desenvolvimento sustentável”. O Mate-Papo, ao colocar essa missão em prática, recebeu o apoio incondicional de nosso Magnífico Reitor, Dr. Telmo Frantz, de nossa Pró-Reitora de Pesquisa, Pós-Graduação e Extensão (ProPex), Profa. Dra. Márcia Santana Fernandes e de nossa Pró-Reitora de Graduação (ProGrad), Profa. Dra. Laura Coradini Frantz. À Editora UniRitter, parte da Propex, devemos especiais agradecimentos, sobretudo, à Profa. Dra. Rejane Pivetta pelo suporte para publicarmos o resultado desse primeiro ano do Mate-Papo, à Raquel Correa por todo o cuidado e atenção dispensado às revisões desse material e ao Rogério Grilho, nosso diagramador, por toda a paciência com os organizadores até que chegássemos à versão final da obra. Durante o ano de 2012, tivemos o imenso prazer de receber para os nossos encontros mensais do Mate-Papo um grupo de profissionais extremamente respeitados pela excelência com que exercem seus ofícios. Esse grupo de pessoas cedeu-nos um tempo de suas disputadas agendas, em um exercício pleno de humanidade e confiança em nosso projeto. Ter recebido o aceite desses profissionais nos brinda com credibilidade e nos avaliza pela seriedade com que o Mate-Papo é conduzido. A presença desses profissionais no Curso de Relações Internacionais do UniRitter o alçou a um nível de respeito e de reconhecimento pela confluência de mentes brilhantes, que tornam o desenvolvimento de um pensamento, de um argumento ou de uma ideia um dos fenômenos mais belos de serem presenciados. Nossos mais sinceros agradecimentos aos convidados que nos prestigiaram e nos privilegiaram com suas presenças no ano de 2012: André Reis, Diego Trindade, Edson Neves Júnior, Érico Duarte, Kelly Bruch, Raphael Vasconcelos, Rosana Pinheiro-Machado, Stéphane Dias e Thales Pereira. Devemos um especial agradecimento à querida amiga Dra. Carolina Beraldo, pela generosidade em nos colocar em contato com o Dr. Raphael Vasconcelos e, dessa forma, viabilizar a entrevista de um convidado internacional.


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Para o Mate-Papo existir, é necessário um esforço sincronizado e atento de um grupo de pessoas muito especiais, espalhadas por vários setores do UniRitter, e sem as quais a concepção desse projeto não seria possível. Por todo o respeito, alegria no olhar, dedicação e crença no Mate-Papo, agradecemos à Eliana Bizzi e à Bruna Bottin Pereira, do Núcleo de Eventos. Somos muito gratos ao Tiago Santos, da Equipe de Auditórios e entusiasta do Mate-papo, pelas filmagens precisas, pela prontidão com que nos atende e por nos receber sempre com um sorriso no rosto e os olhos na câmera. À Netize Ciceri e à Silvia Domingues, do Setor de Extensão, pelo controle de presenças e pela produção dos certificados, salvando-nos dos esquecimentos causados pelo calor da hora. Ao Guilherme Suzin, estagiário do Curso de Relações Internacionais, que é sempre aquele apoio que faz a diferença no momento essencial. E a todo o setor de apoio, formado por Célio Junior, André Dias, Egon Fernandes, Helyson Sá, Luis Felipe Vieira e Kadu Pontes, que transformam os ambientes mais inusitados que escolhemos para sediar o Mate-Papo em um local aprazível, elegante e surpreendente. Durante o ano de 2012, o Mate-Papo contou com uma equipe ativa e engajada de bolsistas. Responsáveis por verificar a confluência indispensável de todas as necessidades requeridas para a execução do Mate-Papo, divulgar os encontros entre os colegas e recepcioná-los, manter os canais virtuais alimentados e atualizados (Facebook e blog), editar as filmagens em vídeos curtos para postagem, produzir as capas dos DVD´s, dentre tantas outras atividades, eles conquistaram o espaço de presenças imprescindíveis para a produção de muitos resultados alcançados pelo Mate-Papo. Com certeza esse singelo registro não tem a função de retribuir toda a dedicação empenhada por essa equipe de bolsistas ao Mate-Papo, mas serve como um agradecimento pelo trabalho realizado pelos alunos Bruna Murmel, Cláudio Sbrissa Júnior, Fiama Mocellin, Yasmin Ornelas e Mateus Albornoz. O Curso de Relações Internacionais do UniRitter conta com um corpo docente que, além de qualificado e competente, foi sensível para perceber as possibilidades latentes que o Mate-Papo proporciona para desenvolver múltiplas atividades pedagógicas, apoiando-nos com a participação pessoal e de suas turmas


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em nossos encontros. Esse time de professores formado, em 2012, por Carla Borges, Cibele Cheron, Clarice Paim, Diego Trindade, Everson Santos, Giovana Freitas, Jorge Vanin, Joséli Gomes, Lucas Kerr, Melina Terres, Sérgio Migowski, Sílvio Machado, Thales Pereira e Thomaz Santos constitui a identidade do Curso de Relações Internacionais do UniRitter. A eles devemos os mais profundos e sinceros agradecimentos pelo vigor e dedicação com que se empenham em fazer do Mate-Papo uma dinâmica que interage com as suas aulas. Por fim, agradecemos à Inaê Oliveira, estudante de Direito profundamente interessada pelo mundo das Relações Internacionais, que abraçou este projeto como se fosse seu. A seriedade profissional, o amor pelo conhecimento e a paciência com que ela colocou no papel as entrevistas resultaram em um conjunto de transcrições que honra as ideias e análises apresentadas em cada um dos nove encontros. Temos convicção de que seu trabalho é um dos principais fatores a contribuir para que possamos hoje entregar, na forma escrita, as ideias, análises e vivências de nossos entrevistados aos internacionalistas e ao público curioso pelos temas de Relações Internacionais no Brasil. Desejamos que o Mate-papo e “As Relações Internacionais em Debate”, juntamente com esse grupo de pessoas e outras que a nós se unirão, tenham muitas entrevistas e volumes impressos! Os Organizadores. Porto Alegre, 11 de março de 2013.


Sumário Apresentação....................................................................................................19 Um diálogo sobre a China: vidas e universos por trás de um gigante em expansão.............................................................................23 Rosana Pinheiro-Machado

Migrações: mitos nacionais, preconceitos culturais..........................................35 Thales Augusto Zamberlan Pereira

Globalizadores: os novos motores do incremento de fluxos no mundo............45 Diego Trindade d’Ávila Magalhães

Segurança e Defesa em debate: estratégia e poder nas Relações Internacionais....................................................................................55 Érico Esteves Duarte

Política Externa Brasileira: oportunidades e desafios em um mundo em reordenação.............................................................................65 André Luiz Reis da Silva

A Integração Regional em análise: estrutura e movimentos recentes do processo no MERCOSUL..................................................................77 Raphael Carvalho de Vasconcelos

A paz passa pelo discurso: a contribuição da linguística para a mediação de conflitos políticos internacionais.................................................87 Stéphane Rodrigues Dias

O sul da Ásia em pauta: segurança internacional e guerra contra o terror.......99 Edson José Neves Júnior

Medidas de Defesa Comercial: o caso da salvaguarda do vinho brasileiro.....109 Kelly Lissandra Bruch



Apresentação O estudo das Relações Internacionais, uma área relativamente recente enquanto esfera própria do conhecimento, apresenta um duplo desafio: além da inerente missão das ciências sociais e humanas – que é lidar com a escolha dos possíveis e melhores caminhos para os homens, sejam eles econômicos, políticos ou sociais –, as Relações Internacionais foram incumbidas de compreender e se posicionar sobre as dinâmicas e os rumos da humanidade em âmbito global. Uma vez que o foco de seus estudos é voltado para objetos que ultrapassam fronteiras, as Relações Internacionais são inevitavelmente tão complexas quanto diversas são as geografias, as línguas, as culturas, os sistemas políticos e as religiões que coabitam o planeta. Ter a diversidade como presença inafastável e o mundo como campo de estudos e de trabalho é algo tão desafiador que, não raro, provoca o sentimento de que a própria cientificidade das Relações Internacionais pode ser questionada - comportamento semelhante ao de quem nega a existência de uma realidade por não conseguir compreendê-la. O Mate-Papo – cujas entrevistas compõem este livro – nasceu do desafio de estudar e trabalhar as Relações Internacionais na capital do Rio Grande do Sul e do compromisso que assumimos de construir no ambiente universitário


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um espaço permanente de reflexão que auxiliasse na compreensão do mundo. Começamos nos questionando sobre como oferecer aos nossos alunos e aos nossos colegas uma atividade que instigasse a curiosidade e fomentasse o avanço de nossas capacidades de reflexão e percepção crítica. Desenvolvemos o projeto durante incontáveis almoços no Centro Universitário Ritter dos Reis, na forma de um permanente bate-papo, levantando as primeiras ideias sobre o que faríamos. As dúvidas eram muitas: eventos esporádicos ou periódicos? Palestras ou entrevistas? Discussões entre nós, professores da casa, ou com especialistas de fora? Local de realização em auditório ou em ambiente mais descontraído? De forma dialogada, colocando à prova da análise um do outro as nossas propostas, construímos uma dinâmica de trabalho que já era o embrião de como seria a própria estrutura do evento. Em cada reunião, demos às nossas ideias a chance do escrutínio. A partir da exposição à crítica e ao elogio um do outro do que considerávamos ideal, das ponderações mútuas que surgiram exatamente por nos sentirmos à vontade, debatemos abertamente sobre o que queríamos de melhor e decidimos como seria a atividade. Escolhemos realizar um evento periódico, de forma a sempre termos o espaço para - e o compromisso de - discutirmos os temas importantes do momento na nossa área; o formato seria o de entrevista, porque ele permitiria a apresentação e o debate de ideias, o que significa trazer para o nosso curso a pluralidade de vozes que compõem o mundo acadêmico, empresarial, diplomático, político, etc., testando permanentemente as nossas convicções; elegemos convidar como entrevistados, preferencialmente, pessoas que não compunham o nosso quadro docente, de forma a fazer dos corredores do curso de Relações Internacionais do UniRitter o ambiente mais rico e diverso que conseguíssemos proporcionar; escolhemos um espaço menos formal – mas não menos comprometido com a construção do conhecimento - que os auditórios tradicionais; e, por fim, elegemos um elemento local – o chimarrão – para criar o ambiente descontraído e agradável que caracterizaria cada encontro. Com a estrutura em mente, faltava ainda o nome que daríamos a esta atividade. Ele não poderia ter sido adotado de outra forma: um de nós lançou a proposta ‘é bom enfatizarmos o diálogo’, o outro complementou ‘talvez bate-papo’.


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Juntando estes elementos com a vontade de mostrarmos a partir de que ponto estamos observando o mundo e realizando a análise sobre ele, a cuia do chimarrão foi o elemento regional que fechou o nome do projeto. Os gaúchos sabem que beber um chimarrão em companhia significa muito mais do que dividir uma bebida. A roda de mate é um momento de ouvir e falar, de compartilhar histórias e vivências. Segurar a cuia com as mãos, sorver o mate e ouvir, passá-lo adiante e contribuir na conversa são atos intrínsecos ao compartilharmos do chimarrão. Todos esses elementos reunidos resultaram na adoção, por animado consenso, do título da atividade: “Mate-Papo: as Relações Internacionais e o Mundo”. Em 2012 foram nove entrevistas. Ouvimos e questionamos internacionalistas, economistas, antropólogos, juristas, linguistas, historiadores e consultores do mundo empresarial que nos ofereceram diferentes lentes para observarmos o mundo a partir de diversas perspectivas. Cada encontro foi mais do que uma exposição de ideias porque representou também um compartilhamento de experiências de vida (ou alguém que participou dos encontros esqueceria a experiência de Rosana Pinheiro-Machado na China, com sua tradutora Fei-Fei e a vivência de uma sociedade que se articula por meio de redes de confiança? Além disso, seria possível esquecer os relatos de Raphael Vasconcelos, secretário do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul, no dia do afastamento e julgamento do presidente Fernando Lugo? Isso para citar apenas dois exemplos). Tivemos, portanto, além das exposições de ideias, verdadeiros relatos que situam espacial e temporalmente as experiências dos convidados no fio da história e que, ao serem compartilhados, preenchem de significado e compreensão o próprio contexto em que vivemos. A ideia de transcrevermos o registro audiovisual dos encontros do Mate-Papo para compor um livro foi movida pela vontade de oferecer ao público interessado nas Relações Internacionais uma fonte de consulta duradoura, mas dinâmica na forma e no conteúdo, sobre temas contemporâneos que nem sempre encontram espaço nas publicações tradicionais. Esperamos que o clima descontraído e que as informações e análises que nos foram apresentadas em cada uma das entrevistas também lhes acompanhem durante a leitura. Cristine Zanella e Marc Deitos.



Um diรกlogo sobre a China: vidas e universos por trรกs de um gigante em expansรฃo Rosana Pinheiro-Machado Realizada em 29/03/2012


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Um diálogo sobre a China: vidas e universos por trás de um gigante em expansão

Rosana Pinheiro-Machado. Professora de Antropologia do Desenvolvimento na University of Oxford, Reino Unido, no Departamento de Desenvolvimento Internacional. Cientista social, doutora e pós-doutora em Antropologia pela UFRGS. Realizou seu estágio doutoral na University College London (UCL), onde foi pesquisadora visitante em 2008. Em 2012/2013, foi pesquisadora visitante do Fairbank Center for Chinese Studies na Universidade de Harvard. Entre 2010 a 2013, lecionou na graduação e pós-graduação da ESPM Sul. Sua tese, baseada em 10 anos de pesquisa, acompanhou uma cadeia global de mercadorias na rota China-Paraguai-Brasil, focando no mercado informal e na pirataria. Esse trabalho foi agraciado com os prêmios “1o Lugar Prêmio ABA/ FORD de Direitos Humanos”, “Melhor Tese de Ciências Sociais/ANPOCS” e “Grande Prêmio CAPES de Tese Ruth Cardoso”. Dedica-se aos temas de propriedade intelectual e pirataria, informalidade, comércio internacional, produção, consumo e mercado, marcas, periferias urbanas, guanxi e desenvolvimento em economias emergentes. Autora do livro Made in China (Hucitec, 2011) e China, passado e presente (2013, Artes e Ofícios). Marc Antoni Deitos: Rosana, seu currículo revela que o trabalho que realizou sobre a China já mereceu considerável reconhecimento no Brasil. Lendo a apresentação que o professor Ruben George Oliven fez ao seu livro “Made in China” ficamos sabendo que a sua relação com este país remonta à graduação. Poderia nos dizer como se deu a construção do seu percurso de trabalho em torno dos diversos aspectos ligados à China? Rosana Pinheiro-Machado: A minha primeira saída a campo foi em 1999. Era período de Natal, e havia várias bancas de camelô vendendo Papais-Noéis. Eu comecei a olhar aquelas bancas e a perceber o “Made in China” nos produtos. Era tudo “Made in China”! Hoje todos falam em China, mas naquela época ninguém falava – nós éramos rodeados de produtos da China, mas não se discutia isso. Os primeiros a trazer a China para o Brasil foram os camelôs. Foram eles que, em um primeiro momento, aproximaram estes dois países – dito de outra maneira, a China chegou muito antes no nosso cotidiano via globalização popular do que via globalização formal. Neste meu primeiro contato com a pesquisa de campo, eu comecei


Convidada: Rosana Pinheiro-Machado

a fazer etnografia. Etnografia significa conhecer a realidade, então, durante quatro anos, eu fui até as bancas e estudei junto ao camelódromo. Ajudava nas vendas, montava a banca, desmontava a banca, viajava para o Paraguai com os vendedores. Foi o que fiz na China também, lá eu ia até as fábricas e trabalhava nelas. Era preciso conhecer a realidade. Então a minha relação com o tema, de fato, remonta à graduação. Desde a primeira ida a campo, quando olhei aquele “Made in China”, falei: é para lá que eu vou. E comecei a fazer um plano. Estudava e pensava que aquilo era a ponta do iceberg de um fenômeno global muito maior. Entretanto, em 1999, ninguém falava em China - isso começou a acontecer a partir de 2004, após a visita do Presidente Lula em 2003 -, não se sabia nem qual era a capital da China, não havia uma reportagem sobre ela nos jornais. Quando eu explicava que gostaria de ir para a China conhecer a fonte do sistema, as pessoas reagiam com espanto. Eu queria estudar mandarim naquela época (estava pensando no doutorado, imaginem só!), e não existia nenhuma escola que ensinasse o idioma. Foi durante o meu projeto que a China se tornou o assunto da vez; quando aconteceu a aproximação entre Brasil e China, eu já tinha o projeto consolidado para ir até lá, então tudo se combinou bem. O livro [Rosana se refere ao seu livro “Made in China: (in)formalidade, pirataria e redes sociais na rota China-Paraguai-Brasil”] entra em um momento em que se fala muito em China, mas em que há pouca coisa pesquisada e escrita sobre o país. Hoje, apesar de não ter ascendência chinesa ou olhos puxados, me considero quase uma chinesa. Procuro falar mandarim – apesar de ainda apanhar um pouco com o idioma –, estudar filosofia chinesa, entender a alma daquele país. Acredito que não é possível entender a China sem lermos muito sobre a sua história. É um país muito diferente do nosso, que se aproxima à medida que entendemos sua história. Ao contrário de muitos pesquisadores, que ou são acríticos ou excessivamente críticos, procuro ver a China com todos os seus defeitos, que são muitos - há muitos desafios -, mas também tento entender este país culturalmente tão distinto com muito respeito. Cristine Koehler Zanella: O volume comercial que envolve a China faz dela um elemento indispensável no panorama dos empresários que trabalham com co-

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mércio exterior. Por meio de seus estudos, percebemos que as relações que se estabelecem com os chineses são permeadas de sutilezas dificilmente compreensíveis a um estrangeiro - como, por exemplo, o guanxi, que envolve as relações pessoais, e o guanxiwang, como redes mais amplas de confiança. Como compreender as relações interpessoais e sociais chinesas e como levá-las em consideração quando se trata de estabelecer negócios com os chineses? Rosana: Entender a dimensão cultural e humana dos negócios entre Brasil e China é uma questão fundamental hoje. Existem inúmeros livros sobre esta área [comercial], que é, certamente, um dos assuntos mais comentados quando se fala em China. Dada a evidência da China no sistema internacional, muitas pessoas têm começado a estudar o país, e àqueles que estão fazendo isso, sugiro fortemente estudarem a noção de guanxi, que significa relacionamento. Para os chineses o significado do guanxi vai muito além da nossa concepção [ocidental] de relacionamento, ou do que nós chamaríamos de “jeitinho brasileiro”. O guanxi é a necessidade de relacionamento interpessoal entre os agentes do negócio. Entretanto, antes de falarmos mais sobre guanxi, para melhor entendermos a formação da cadeia global de mercadorias, eu gostaria de fazer um breve resumo sobre a sua história. Após estudar os camelôs em Porto Alegre, fiz viagens com eles para ir ao Paraguai, morei um ano lá – antes de chegar à China, estudei os chineses no Paraguai -, e, por fim, cheguei à China. Com isso, fiz o caminho de uma cadeia global de mercadorias no sentido contrário. Quando cheguei à China, percebi que havia encontrado o ponto de saída das mercadorias, a fonte. A questão que todos se colocavam, à época, era “como o mundo foi invadido por mercadorias Made in China?”, mas as respostas eram muito superficiais, até porque não havia pesquisas sobre o tema. Esta pesquisa precisava ser antropológica, e não havia nenhuma. Além disso, havia outras questões, uma das quais é entendida a partir das Relações Internacionais. O Paraguai é um dos únicos países que reconhece Taiwan como um Estado soberano. A imensa quantidade de produtos de R$ 1,99 “Made in China” que invadiu o Brasil se deve a este ato de reconhecimento do Paraguai. Vejam só: Taiwan, antes de a China se abrir para o comércio e implementar as reformas econômicas, já produzia essas


Convidada: Rosana Pinheiro-Machado

mercadorias. Por meio de um contrato de migração, os taiwaneses foram para o Paraguai e começaram a instalar suas fábricas. Quando a China abre sua economia, os cantoneses da Província de Guangdong (Cantão) começaram a se juntar com os taiwaneses, formando uma cadeia global de mercadorias. Entretanto não há registros escritos disso, e até eu compreender o processo levei cerca de sete anos. Este aspecto da formação da cadeia global de mercadorias é o que nós podemos chamar de fenômeno macro - é o que tem maior visibilidade, pois envolve questões históricas e processos econômicos. O que não conseguia entender eram os vínculos humanos. E a dimensão humana não pode ser ignorada, pois se trata de negócios entre pessoas de diferentes culturas. Além de compreender o fenômeno macro, eu precisava entender das relações pessoais estabelecidas entre os agentes do negócio. Por isso a minha tese tem dois grandes eixos: o primeiro envolve as questões macro que viabilizaram, historicamente, a relação China-Paraguai-Brasil; o segundo trata do lado humano, estuda a conexão entre os agentes que constituem essa rede mundializada de milhões de pessoas conectadas sob quase nenhuma proteção estatal, já que boa parte do comércio – da metade para o fim da cadeia, no mínimo – acontece na economia informal. Não havendo proteção do Estado, nem de grandes corporações, era preciso entender como esse comércio se movimentava e como movimentava milhões de pessoas. Isso ocorre pela confiança. Há acordos, que vão desde camaradagem a ajuda mútua – e há corrupção, mas nem tudo é corrupção. É isso o que eu tentei mostrar na minha tese: esta grande cadeia global de mercadorias vista como ilícita tem luzes que se alternam entre legalidade e ilegalidade. E, para pensarmos a dimensão humana dessa cadeia, a noção do guanxi é fundamental. Guanxi se traduz, literalmente, como relacionamento. Guanxiwang é, também em uma tradução literal, “guanxilogia”. É comum escutar os chineses dizerem que são “formados em guanxilogia”. Isto significa dizer que se têm amigos, que se têm acessos à política, a quem controla toda a economia, pois apesar de a economia ser aberta, o controle se dá a partir dos meios oficiais. Para os chineses, utilizar estes acessos não é corrupção. Na concepção chinesa, corrupção é uma troca fria de favores – oferecer dinheiro a alguém desconhecido e pegar algo em

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troca, por exemplo. Na China, usar-se do relacionamento pessoal com quem interessa, geralmente alguém do governo, para obter ajuda, não é corrupção. Hoje o empresariado brasileiro está descobrindo que não consegue negociar com os chineses sem antes cultivar a confiança e a amizade – através de conversas e jantares, por exemplo -, pois o contrato em si, para os chineses, significa pouco. O que importa é o guanxi. Todos os setores, do mais baixo ao mais alto escalão, sabem que na China não se fazem negócios sem ter alguém para indicar os caminhos e sem, com esta pessoa, manter uma relação de reciprocidade. No meu livro eu conto que, quando estava na China, eu não conseguia acessar uma fábrica de produtos piratas. Quem me ajudou a conseguir o acesso foi a minha intérprete e professora de mandarim, pois nós tínhamos uma relação de guanxi – a relação professor-aluno é uma relação de guanxi – e o pai dela era general. Como general, ele havia ajudado muitos policiais que, por sua vez, ajudaram muitos empresários. E assim eu cheguei à fábrica. Cristine: Rosana, em seu livro “Made in China: (in)formalidade, pirataria e redes sociais na rota China-Paraguai-Brasil” você analisa elementos componentes da ‘cadeia global de mercadorias’ que a China contemporânea conseguiu construir. Poderia nos descrever um pouco daquilo que, no seu livro, chama de movimento ‘China-mundo’? Rosana: A antropologia tem uma crítica forte à teoria do sistema mundial, que é a ideia de que a cultura não é subjugada à força pelo centro dominante. Há um renomado antropólogo norte-americano chamado Marshall Sahlins que tentou demonstrar como a China se colocou, historicamente, como a resistência ao imperialismo europeu, impondo seu ritmo às negociações com a Europa. Isso me levou a pensar na expressão ‘China-mundo’, ao invés de ‘Centro-mundo’ ou até mesmo ‘Sistema mundo’. É a concepção de que hoje o centro não é mais hegemônico – na cooperação Sul-Sul isso fica muito claro -, e a China é uma realidade pujante, um país com o qual, de alguma forma, os outros atores do cenário internacional – inclusive EUA, Brasil, Europa – precisam firmar acordos. O que hoje nós vemos é, claramente, um movimento central da China que se coloca para o mundo com diferentes vetores, que são contrabalançados de diversas formas. O fenôme-


Convidada: Rosana Pinheiro-Machado

no China-mundo não pode mais ser ignorado, e ele altera completamente o que se entende por sistema mundial. Hoje se vê a China como um segundo centro com o qual todos os países têm de negociar – com diferentes barreiras, tendo maior ou menor protecionismo. O fato é que ninguém passa desapercebido do fenômeno China-mundo. Mesmo os países europeus, que têm as maiores barreiras – não se veem os produtos de R$ 1,99 pela Europa, por exemplo – não resistem ao aço e à soja chineses. O que a China produz hoje é um fenômeno inacreditável. Onde isso vai parar é uma incógnita. A pergunta que todos se fazem é se a China quer conquistar o mundo ou não. Não há resposta para isso. Particularmente, considero a China um povo muito pacífico e não acredito na dominação no sentido bélico. Entretanto, apesar de sempre ter pretensões muito humildes, a China também sempre foi um país imperialista – basta ver a história de conquista de seus territórios, a própria construção da Muralha da China é uma política imperialista. É uma dialética muito interessante: um país muito humilde, mas com uma grande visão imperialista. Hoje nos vemos diante deste povo que se coloca como um povo extremamente pacífico, que não tem pretensões de invadir outros territórios, e ficamos com o inevitável questionamento “o que a China deseja?”. Cristine: Ao acompanhar o fluxo de mercadorias que liga a China ao Brasil, você acabou por montar um quebra-cabeças revelador do conjunto de pessoas que dá dinâmica a estes fluxos, isto é, que os fazem acontecer. Ao mesmo tempo em que esta cadeia de pessoas foi sendo identificada, você descobriu que a carga (negativa ou positiva) associada à cópia/ao produto copiado é bastante diferente na China e no Brasil. No que consiste essa diferente forma de chineses e brasileiros se relacionarem com a cópia de mercadorias? E qual o impacto disto na forma destes países organizarem o comércio entre eles? Rosana: O meu projeto atual consiste justamente em estudar, comparativamente, os modelos de desenvolvimento brasileiro e chinês com base no valor atribuído à cópia [à ocasião da entrevista, Rosana se preparava para iniciar seu Pós-Doutorado na Universidade de Harvard]. Para mim, isto é uma questão central. Brasil e China são países muito semelhantes em diversos aspectos – as

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relações pessoais compõem boa parte dos negócios, são povos afetivos e pacíficos, há desigualdade forte entre classes e a economia informal, a pirataria, é extremamente importante em ambos os países de forma estrutural. Ela preenche uma lacuna muito grande do mercado. Entretanto, o que percebi é que no Brasil a pirataria está contra o Estado e, na China, ela se coloca a favor do Estado. São dois fenômenos iguais, vistos de modo completamente diferentes. Isso explica por que o Brasil é mais desenvolvido? Não, claro que não. Ao estudar a construção da visão econômica do ocidente, percebemos o dualismo atribuído às ações econômicas: o mercado sempre aparece como uma esfera racional e impessoalizada, as relações pessoais não pertencem a ele. A visão brasileira da formação do Estado, modernidade e economia foi muito influenciada por este ideário europeu, especialmente o francês. Os escritos mais clássicos do Brasil, de meados da década de 70, classificavam a economia informal, as vendas realizadas na rua, como resquício do período de escravidão, algo que não tinha lugar na modernidade. Hoje já se tem uma ideia diferente, reconhece-se que a economia informal não é resquício de um período arcaico, ela faz parte da modernidade. Entretanto, o Brasil ainda conserva um discurso que classifica a cópia e o mercado informal como algo extremamente negativo, algo chamado de “mercado negro”. É uma contravenção, ilícito, está à parte da sociedade. A China, por outro lado, apesar de criar uma série de políticas públicas para endossar os princípios dos Acordos de Propriedade Intelectual, considera a cópia industrial como um primeiro meio para crescer, desenvolvendo a indústria com mão-de-obra intensiva – assim como fizeram a Alemanha e o Japão – para depois melhorar e inovar, o que já está acontecendo. Além disso, há uma questão filosófica. A cópia, na China, sempre foi vista como algo positivo. Imaginem só: o ingresso nas academias dos imperadores se dava através de um concurso para ver quem copiava melhor uma obra de arte. É o oposto da nossa ideia de direitos autorais. Há essa visão filosófica confucionista que considera a cópia a melhor forma de aprendizagem, além de ser uma lisonja para quem foi copiado. Na China, a cópia é considerada um reforço da autoridade de quem foi copiado, uma demonstração de respeito e admiração. É uma outra relação cultural com a cópia. A noção de propriedade intelectual, que torna negativa a noção da cópia, é uma criação ocidental. Isso


Convidada: Rosana Pinheiro-Machado

faz com que Brasil e China vivam situações quase idênticas [na economia informal], valorando o mesmo fenômeno de modo praticamente oposto. A solução não é cair em um relativismo extremo e fazer como os chineses, mas é preciso aprender com essa visão diferenciada, ver o que há de positivo. Marc: Por fim, antes de abrirmos para uma pergunta do público, sabemos que você retornou recentemente da China. O que você gostaria de destacar a respeito dessa última experiência no país? Rosana: A última vez que viajei à China foi em 2010, mas não havia ido a Pequim depois das Olimpíadas [que ocorreram em 2008], pois nas minhas últimas viagens fui apenas para o sul da China. Desta vez, estava liderando um grupo de vinte pessoas em uma missão cultural à China. Foi uma experiência incrível e também um desafio pessoal, algo completamente diferente do tudo o que já fiz. Fui lá para ensinar, então também estudei e aprendi muito. Confesso a vocês que Pequim eu não reconheci. Já havia ido a Pequim duas vezes antes, mas não reconheci a cidade. Ela se modificou de tal forma para as Olimpíadas, que fiquei espantada com a transformação, a modernidade cada vez maior, a estrutura cada vez mais impessoal. A juventude também me pareceu muito crítica, mas, curiosamente, mesmo contando com elevado senso crítico, defendem a censura, por exemplo. Há algumas coisas que são sempre iguais, como o cheiro da comida, e outras que são muito novas, como aeroportos e estradas. A mudança de infraestrutura da China me chamou muita atenção. Shenzen, por exemplo, uma cidade que nasceu em 1979, é impressionante. A cidade tem uma das maiores taxas de crescimento do mundo – em cerca de 30 anos tornou-se algo gigantesco, com aproximadamente quinze milhões de habitantes. Mesmo assim, conserva-se muito limpa. Ela consegue ser extremamente chinesa mesmo sendo tão nova. A capacidade que os chineses têm de reinventar sua cultura é impressionante. Além de compartilhar as impressões obtidas nesta viagem recente, gostaria de fazer um comentário final àqueles que estão aqui [Rosana se refere aos alunos do curso de Relações Internacionais do UniRitter presentes no Mate-Papo]. Acredito que muitos de vocês, em algum momento, estudarão a China. Seja em cooperação Sul-Sul – China-Rússia, China-Índia, China-Brasil -, seja na relação China-Brasil envolvendo minério de ferro, ou até mesmo

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em outras áreas. Por causa disso, gostaria de dar um conselho a vocês – e nesse momento falo como alguém que deixou a condição na qual vocês estão agora há pouco tempo. Ao estudar a China, estudem o mandarim, – que não é tão difícil -, e não estudem apenas os acordos de minério de ferro e tratados internacionais que envolvem a China. Para estudar a China – e isso se aplica a outros países, é claro – também é preciso estudar a sua história. Eu demorei a entender que só compreendemos um país estudando profundamente a sua história. Também é necessário estudar a filosofia chinesa para entender o pensamento chinês, por exemplo. Caso contrário, ao negociar com um chinês será impossível entender seu comportamento. Entender a cultura do lugar de onde as pessoas vêm ajuda a entendê-las. Público - Luciana Peters dos Anjos: Em uma resenha do seu livro escrita pelo professor Pedro Fonseca, ele descreve algumas questões polêmicas que você aborda no livro. Uma dessas questões trata sobre o relativismo cultural e manutenção do ‘status quo da China’. Você poderia nos explicar melhor como isso ocorre? Rosana: A questão do relativismo cultural a que o professor Pedro Fonseca, que esteve na banca da minha tese, se referiu na resenha [trata-se da resenha do livro “Made in China” escrita por Pedro Cezar Dutra Fonseca, professor titular do Departamento de Ciências Econômicas da UFRGS, publicada no Jornal Zero Hora em 03 de março de 2012] relaciona-se com um tema que tenho trabalhado muito, os direitos humanos. O relativismo extremo, inevitavelmente, esbarra nos direitos humanos. Há questões que não se consegue relativizar com o ‘relativismo purista’, tendo como argumento a justificativa cultural. Sem banalizar e classificar o trabalho na China como “trabalho escravo”, como fazem algumas reportagens norte-americanas, o que percebi na China, apesar de ser antropóloga – e relativista, evidentemente –, é que um dos grandes problemas do país são as condições de trabalho muito precárias. Por exemplo, cerca de 40 mil dedos por mês são perdidos em máquinas na China e há inúmeros casos de pneumonia em função do trabalho nas minas. O que permite a manutenção destas condições insalubres de trabalho - condições que podem ser melhoradas, mas não o são porque, assim, investe-se menos - é a negociação entre empresários e políticos. Este acordo garante a manutenção do status quo, faz com que


Convidada: Rosana Pinheiro-Machado

o núcleo de autoridades se mantenha através de um pacto que não é escrito, mas que garante a ajuda mútua entre o empresariado e o governo. Dessa forma, os trabalhadores, muitas vezes por uma questão de conveniência, sofrem as consequências dos acordos entre os empresários e o governo local, pois não há interesse de nenhuma parte em melhorar as condições de trabalho. Entretanto, há um discurso que justifica essas condições de trabalho com a ideia de que os chineses sempre trabalharam muito, que os outros países, por não terem as mesmas condições populacionais da China, nem os mesmos desastres naturais, não são capazes de compreender aquela realidade, as especificidades culturais e as condições de trabalho - por isso o relativismo. Alegando que os direitos humanos são um discurso ocidental, o governo chinês invoca o relativismo – que considero forçado – para justificar a exploração dos trabalhadores.

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Migraçþes: mitos nacionais, preconceitos culturais Thales Augusto Zamberlan Pereira

Realizada em 26/04/2012


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Thales Augusto Zamberlan Pereira. Mestre em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Foi professor do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter). Atualmente é aluno de Doutorado em Economia na Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP). Atua na área de história econômica e estuda o desenvolvimento de longo prazo em conjunto com a Universidade da República do Uruguai e a Universidade de Barcelona. Nos últimos anos apresentou trabalhos no Instituto Ronald Coase na Universidade de Chicago, na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), na Universidade do Sul da Califórnia (USC) e na Universidade Carlos III em Madri (U3CM). Marc Antoni Deitos: Thales, notícias sobre as migrações internacionais, com diferentes origens e destinos de migrantes, são correntes. Com exceção dos indígenas, que se mantiveram não miscigenados, a população brasileira é fruto de uma intensa migração, especialmente europeia. Em um passado mais recente, como todos os presentes devem lembrar, partiam do Brasil centenas e mesmo milhares de nossos conterrâneos em direção aos Estados Unidos (tão familiar se tornou essa prática que ela virou tema de novela). Atualmente o Brasil tem se tornado destino de haitianos, bolivianos, palestinos, e outros povos. Podemos ver que o fenômeno migratório acompanha a história da humanidade, mas por que é tão importante para um internacionalista ter conhecimento sobre o tema? Thales Augusto Zamberlan Pereira: Migrações é um tema complexo, que envolve todos os elementos que um estudante de Relações Internacionais deve conhecer. Além do aspecto legal, estudado pelo Direito Internacional stricto sensu, o estudo do fenômeno migratório abrange questões políticas e questões econômicas – que são, a meu ver, as duas grandes áreas que compõem as Relações Internacionais. Especificamente, o estudo das RI focam aspectos macropolíticos – como as relações entre Estados, por exemplo. É preciso ressaltar, entretanto, que não se pode compreender “aspectos macro” sem analisar em conjunto “aspectos micro”; daí a necessidade de um internacionalista aprender história, política e economia para conjugar ambos os aspectos. No que se refere


Convidado: Thales Augusto Zamberlan Pereira

às migrações, por exemplo, apesar de comumente se estudar apenas as relações entre os Estados [que é macropolítica], é preciso ter em mente que a maioria dos problemas que surgem quanto às migrações se explicam por questões micro. Por exemplo: a primeira coisa que o imigrante faz é buscar um lugar para morar. Normalmente o imigrante vai procurar um lugar onde tenha algum conhecido – e a probabilidade de esse conhecido ser da mesma nacionalidade que a sua é muito grande. Os vínculos, sejam eles familiares ou linguísticos, criam incentivos para que os imigrantes se reúnam em aglomerações. Ao se aglomerarem em um mesmo local, os imigrantes também se estabelecem em determinados tipos de mercado. Quem vai para Buenos Aires, por exemplo, percebe que quase todos os mercadinhos da cidade pertencem a chineses. As pessoas que se sentem prejudicadas por determinado tipo de aglomeração – no caso de Buenos Aires, os ex-donos de mercadinhos – serão contra os imigrantes chineses em um primeiro momento, pois são eles que perdem no curto prazo. E isso é micropolítica. É preciso ter ciência de que estudar migrações envolve pensar em como a questão econômica afeta a população local e como as demandas desta população local geram conflitos políticos. No início esses conflitos políticos são micro, pois estão restritos ao aglomerado, mas, conforme eles aumentam, tornam-se macro. Por isso é impossível compreender o aspecto macro sem levar em consideração o aspecto micro. Cristine Koehler Zanella: Thales, uma das questões que mais acompanha o diálogo sobre a questão migratória é a formação dos estereótipos. O sudaca é visto como bagunceiro pelo europeu, o boliviano como sujo pelo brasileiro, o mexicano como desordeiro pelo norte-americano... Há uma série de estereótipos que acompanham os migrantes, sobretudo os migrantes econômicos. Nos seus estudos sobre o fenômeno migratório, sabe-se que os estereótipos dificultam as discussões sobre o tema. Como se formam esses estereótipos e de que maneira eles emperram o avanço de um tratamento adequado do tema das migrações? Thales: Acredito que, no curto prazo, a formação dos estereótipos é o aspecto que mais importa. É preciso deixar claro que estereótipo não é sinônimo de ignorância, todos criam estereótipos. Existem, inclusive, pesquisas que buscam compreender qual é o processo psicológico de formação dos

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estereótipos – e, àqueles que desejarem saber mais sobre o tema, recomendo a leitura de Daniel Kahneman, um psicólogo que ganhou um Premio Nobel em Economia. Basicamente, o estudo de Kahneman aborda a formação [de estereótipos] de viés cognitivo. Ele explica como é que o ser humano, ao ver determinada realidade e tirar conclusões sobre ela, sem ter a necessária base de conhecimento para compreender o fenômeno, forma o estereótipo. Há um exemplo, exposto em um artigo publicado na revista Science [Thales se refere à revista editada semanalmente pela American Association for the Advancement of Science - AAAS, uma das mais prestigiadas publicações científicas do mundo], que é ilustrativo da formação de estereótipos. Trata-se de um teste de lógica, aplicado a estudantes de doutorado que cursavam, no mínimo, três matérias em estatística – e 75% deles erraram o teste. O exemplo é, basicamente, o seguinte: em uma cidade fictícia “A”, há duas companhias de táxi. A companhia “Azul” detém 15% dos táxis da cidade e a companhia “Verde”, 85%. Nesta cidade, durante a noite, chovendo, houve um acidente em que um táxi atropelou uma pessoa e fugiu. Uma testemunha ocular afirma que o táxi envolvido no acidente era azul. Ao ser submetida a testes de visão, a testemunha acertou 80% das vezes a cor do táxi. Calcular a possibilidade de ela estar errada demandaria um cálculo de probabilidade, mas essa não é a questão. Imaginemos uma segunda versão desse mesmo exemplo: desta vez, a companhia Azul detém 50% dos táxis da cidade “A” e a companhia Verde, os outros 50%. A testemunha ocular do acidente afirma que o táxi era azul e, ao ser submetida aos mesmos testes do exemplo anterior, também acerta a cor do veículo 80% das vezes. Há, entretanto, uma informação nova: 85% dos táxis envolvidos em acidentes na cidade “A” são da companhia Verde. A questão é “confia-se menos na informação da testemunha ocular, que afirma ser azul a cor do táxi envolvido no referido acidente, sabendo que 85% dos táxis envolvidos em acidente na cidade são verdes?”. As pessoas, em geral, tendem a pensar que essa informação [dos táxis da companhia Verde envolvidos em acidente] é relevante, mas não é. Se calculássemos a probabilidade de a testemunha ter acertado a cor do táxi nos dois exemplos, veríamos que é absolutamente a mesma em ambos os casos. A tendência natural, entretanto,


Convidado: Thales Augusto Zamberlan Pereira

é duvidar mais da opinião da testemunha no segundo exemplo, devido à informação de que 85% dos táxis envolvidos em acidentes na cidade são verdes. Essa tendência não ocorre apenas com aqueles que não sabem a probabilidade, ocorre com todos nós. Isso é criar um estereótipo – utilizar informações irrelevantes para chegar a uma conclusão. E migrações é a formação de estereótipos por excelência, já que a base de informações disponíveis é muito pequena. A imagem que temos é aquela exibida na televisão, aquela que apresenta as pessoas como diferentes, estranhas. Como não se sabe nada sobre elas, é fácil pegar alguns pontos estereotipados e tirar uma conclusão. Esta conclusão não é logicamente baseada em nada, mas o indivíduo a tem como verdadeira. Aqueles que estudam estereótipos os definem como “a fé em amostras pequenas”. Depois do 11 de setembro, por exemplo, “todo” muçulmano era terrorista. Se pegarmos a quantidade de pessoas envolvida em terrorismo e toda a população muçulmana, veremos que a probabilidade de um muçulmano ser terrorista é a mesma de qualquer outra religião. Entretanto, como o jornal – a fonte de informações da maioria das pessoas – só apresenta aquele determinado grupo como “terrorista”, nosso cérebro, que é uma máquina de tirar conclusões (e de pregar peças), conclui coisas equivocadas, classificando muçulmanos como terroristas. Cristine: É comum vermos, em matérias de jornal e nas opiniões públicas em geral, discursos antimigratórios, que têm como um de seus argumentos mais contundentes a afirmação e o receio de que a chegada de imigrantes “roubaria os postos de trabalho” dos nacionais ou pior, que “destruiria a cultura nacional”. Esses receios têm fundamento em alguma experiência anterior? Como esses argumentos se propagam e obtêm tantos adeptos, a ponto de moldar políticas públicas de países e mesmo de continentes, haja vista a política migratória da União Europeia? Thales: Em geral, o primeiro impacto suscitado pela imigração é o aparecimento de pessoas que querem os imigrantes fora porque eles estariam roubando postos de trabalho. Isso é história econômica pura, um processo contínuo que acontece, documentadamente, há 120 anos. Vejam só: aqueles que migram estão, como todos nós, em busca de melhores condições de vida. É sabido que as pessoas preferem não migrar – isso é algo bem documentado –, que elas

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preferem continuar em suas localidades em razão de vínculos familiares e uma série de outras coisas; geralmente, migrar é uma escolha que envolve um custo muito alto para estas pessoas. A área que primeiro é afetada por esta imigração é o mercado de trabalho não qualificado. Quando há retrações econômicas, o mercado de trabalho é atingido no curto prazo – ou seja, o desemprego aumenta. Entretanto, nesse momento, o discurso político sustenta que há desemprego não porque se está em retração econômica, mas porque os empregos que existem estão sendo roubados pelos imigrantes. É um discurso muito comum, que atribui dificuldades econômicas a fatores externos. Há, porém, um problema nesse discurso. Especialmente no caso dos Estados Unidos, que é onde se realizam mais estudos sobre isso, sabe-se que, caso sejam criadas barreiras para impedir a entrada de imigrantes que trabalham no mercado não qualificado, aquele emprego fica vago. Os americanos, em média, não querem um emprego de colher laranja, por exemplo, já que o salário é por eles considerado muito baixo – ainda que alto, em termos relativos, para o imigrante, e por isso o imigrante deseja trabalhar onde o americano não quer. A pressão política para barrar a entrada de imigrantes vem de uma ideia nacionalista, que classifica “os outros” como potenciais destruidores da cultura nacional. Há um livro do Hobsbawm­ que trata sobre a criação do mito nacionalista [Thales se refere ao livro A Invenção das Tradições, de Terence Ranger e Eric Hobsbawn], que surge a partir do século XVIII, especialmente XIX. Um exemplo clássico de nacionalismo é o kilt – o kilt vem à mente tão logo se pense no estereótipo do escocês, está presente em quase todas as referências à Escócia. Tomemos como exemplo o filme “Coração Valente” [Braveheart, no original, lançado em 1995]. “Coração Valente” se passa na Baixa Idade Média, e àquela época, na Escócia, ao contrário do que aparece no filme, não se usava kilt. A ideia do kilt, na verdade, veio junto à ideia de consolidação nacionalista da Escócia no final no século XIX. Como em todas as culturas, precisava-se estabelecer um vínculo entre os indivíduos, algo que criasse a imagem de que todos eram iguais. Uma das formas utilizadas pela Escócia para fazer isso foi introduzir a ideia de que os clãs se identificavam pela cor do kilt. É um exemplo da criação de uma imagem nacional. Essa criação de mitos nacionais acontece em várias culturas, serve para as pessoas se identifica-


Convidado: Thales Augusto Zamberlan Pereira

rem – e só reforça a ideia do “outro”. Os mitos nacionais dividem os indivíduos entre “a gente” e “os outros” e estão diretamente relacionados ao preconceito contra o imigrante. Cristine: Como historiador econômico e estudioso do tema, você tem conhecimento de como as diversas sociedades trataram o fenômeno migratório em diferentes períodos históricos. O que essas histórias pregressas deveriam nos ensinar sobre como lidar com as migrações, especialmente agora que o Brasil se torna destino de pessoas em busca de trabalho e melhores condições de vida? Thales: O que podemos aprender ao estudar a história de migrações que nos são próximas e que tiveram uma estrutura migratória semelhante – ocorridas no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Espírito Santo... – tem a ver, essencialmente, com preconceito. Volto a enfatizar essa questão porque acredito que, no curto prazo, é o que mais podemos mudar, o preconceito é o que pode ser diminuído. Peguemos o estereótipo do imigrante no Sul, por exemplo. O estereótipo é o indivíduo que veio da Europa sem nada e, por meio do esforço, do seu trabalho, conseguiu melhorar de vida e dar mais educação para os filhos. Tanto que, hoje em dia, descendentes de imigrantes têm, em média, maior renda do que os não descendentes de imigrantes. O que nunca é falado é que os imigrantes receberam, à época, uma estrutura de incentivos completamente diferente da oferecida para o restante da população. Analisemos brevemente a imigração alemã no Rio Grande do Sul. O RS desejava povoar o território – em 1860 havia aproximadamente 210 mil pessoas vivendo no RS. O Japão, que em área é muito menor que o Rio Grande do Sul, tinha, no mesmo período, 32 milhões. O Rio Grande do Sul desejava, então, povoar o território - preferencialmente com agricultores, já que agricultores produzem itens que podem ser exportados. A renda do estado, dessa forma, viria através do “Imposto de Exportação”; em última análise, desejava-se povoar o território com agricultores porque isso aumentaria a renda do que, à época, era a Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Sabia-se, também, que os imigrantes não possuíam condições de se sustentar e produzir se não recebessem incentivos. Este subsídio veio da Província: foi dado a cada imigrante um lote de terras que deveria começar a ser pago em cinco anos. Entretanto, como os imigrantes não conseguiam

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acumular renda suficiente para pagar as terras, e persistindo a necessidade de povoar a região, o governo continuou oferecendo incentivos e perdoou a maioria das dívidas. Isso é um fato histórico ignorado. Não estou dizendo, ao ressaltar isso, que a imigração não deveria ter acontecido. Pelo contrário, que bom que ela aconteceu, que as pessoas vieram e melhoraram de vida, que receberam terras e uma infraestrutura que lhes permitiu crescer. Entretanto, como não se tem conhecimento destes fatos, o estereótipo se perpetua, repete-se atualmente com outras pessoas que não têm condições, mas que desejam ter. A pobreza é uma espécie de cadeia, é difícil escapar dela – é preciso dar sustentação ao indivíduo até que ele consiga escapar. Foi isso o que aconteceu com a nossa imigração. A questão dos haitianos, por exemplo, é a mesma coisa. Antes de ter a visão preconceituosa de que as pessoas não têm condições por falta de esforço, precisamos olhar a nossa própria história. Marc: Por fim, antes de abrirmos para as perguntas do público, gostaríamos ainda de saber: o que você apontaria como a política migratória ideal para o Brasil neste início de século? Thales: Acredito que não há uma política migratória que poderíamos classificar como “ideal”. Mas é possível apontar algumas ideias interessantes que podem ser realizadas. Basicamente, o que sabemos é que a migração, no curto prazo, é a melhor forma de reduzir a pobreza. Além disso, é preciso ter claro que quem migra são pessoas que têm condições de sair – pessoas muito pobres não conseguem migrar. Baseado no que nós sabemos, pode-se apontar que, caso o Brasil abrisse suas fronteiras e nenhum outro país fizesse o mesmo, isso seria um problema no curto prazo. É um princípio da Teoria dos Jogos: todos ficam melhores se todos cooperam, mas se A coopera e B não, A é prejudicado no curto prazo. Acredito que, no caso brasileiro, deveria haver incentivos explícitos à imigração qualificada. Incentivos para que pessoas qualificadas venham estudar e trabalhar nas universidades, por exemplo. Em relação à mão de obra não qualificada, peguemos uma realidade que nos está próxima: a migração haitiana. Apesar de termos a imagem do migrante haitiano como alguém sem ter o que comer, há pesquisas indicando que a maioria relativa das pessoas que saem do Haiti tem o ensino terciário completo. Se considerarmos, ainda, que o Brasil


Convidado: Thales Augusto Zamberlan Pereira

lidera a MINUSTAH, é um absurdo impedir que os haitianos venham para cá. Penso que, nesta situação específica, o Brasil deveria, sim, abrir as fronteiras. Nos outros casos – que envolvem migração da Bolívia, Venezuela, por exemplo -, apesar de acreditar que existiria ganho com a entrada de mais migrantes desses países, deveria ser adotado um sistema de incentivos como ocorreu no Mercosul. Dessa forma, abre-se aos poucos, evitando que a opinião pública se volte contra a imigração. A abertura muito rápida possibilita um contragolpe político, o que dificulta o incentivo à migração no longo prazo. Público - Gustavo Vieira Bohn Gass: A primeira imigração do Brasil, nomeadamente a italiana e a alemã, foi feita pelos indivíduos mais pobres daquelas regiões. No caso da imigração haitiana, é a população mais qualificada do Haiti que migra para o Brasil em busca de emprego. Apesar de os imigrantes enviarem dinheiro aos seus familiares que permanecem no Haiti, penso que isso não desenvolve o país, porque quem poderia fazer algo pelo Haiti está saindo de lá. Não seria mais positivo dar subsídios – como foi feito aqui no Rio Grande do Sul - para que eles ficassem no Haiti e desenvolvessem o país? Thales: É preciso esclarecer que não foram os indivíduos mais pobres da Itália e da Alemanha que vieram para o Brasil no século XIX. Os indivíduos mais pobres, paupérrimos, não conseguem sair do país. Se fôssemos estabelecer uma escala de renda, sendo 1 a mais baixa e 10 a mais alta, digamos que aqueles que migraram têm a renda situada entre 3 e 6. Em relação ao Haiti, é preciso ter claro que quem emigra, em termos proporcionais ao restante do país, são pessoas qualificadas - pessoas que têm média de renda “8” na escala de renda relativa ao Haiti. A resposta à pergunta “não é melhor que não os deixemos sair, para que fiquem no Haiti e desenvolvam o país?”, penso eu, é não. A “fuga de cérebros” é um dos assuntos mais estudados quando se trata de migrações. O que acontece é o seguinte: um médico trabalhando no Haiti ganha “10”. Se ele migrar para os Estados Unidos para trabalhar, ele passa a ganhar “200”. Desses 200, em média, 80 são remetidos para o Haiti. No curto prazo, ao invés de permanecer no país e gerar renda “10”, ele migra e gera renda “80” para o país. Isso aconteceu, também, com italianos, portugueses e alemães no século XIX. A quantidade de dinheiro que os imigrantes remeteram aos

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Migrações: mitos nacionais, preconceitos culturais

seus países de origem foi enorme. Em outras palavras, quem migra aumenta a sua própria renda, remete uma parte desta renda aos outros membros da família que permanecem no país de origem aumentando, assim, a renda daquele país – além de aumentar a renda do país para o qual ele migrou. Há um livro, intitulado “Globalization and History” [livro publicado pela MIT University Press, em 2002, da autoria de Jeffrey Williamson e Kevin O’Rourke], no qual está documentada a migração do século XIX para o “Novo Mundo”. Os dados indicam que houve convergência de salários. Não aumentou a desigualdade nos países receptores, e aumentou o salário nos países de onde vieram os migrantes. Além disso, houve grande aumento no comércio. Se analisarmos os dados – e os dados não permitem que o preconceito seja incutido neles – percebemos que, em média, o fenômeno migratório a que nos referimos como “fuga de cérebros” é algo positivo.


Globalizadores: os novos motores do incremento de fluxos no mundo Diego Trindade d窶凖」ila Magalhテ」es

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Globalizadores: os novos motores do incremento de fluxos no mundo

Diego Trindade d’Ávila Magalhães. É doutorando no Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Fez graduação e mestrado em Relações Internacionais na Universidade de Brasília (UnB). Foi professor do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter - Laureate International Universities) nas disciplinas Conflito e Negociações nas Relações Internacionais, Segurança Internacional e Política Internacional. Foi professor e coordenador do Curso de graduação em Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás). Atualmente pesquisa o papel dos países emergentes na globalização contemporânea, bem como a integração e segurança na América do Sul. Marc Antoni Deitos: Prezado Diego, analisando o seu percurso acadêmico, percebemos que você iniciou a caminhada da pós-graduação (o mestrado), estudando a história da integração regional, as relações interestatais, as situações de conflito e a possibilidade de desenvolvimento de uma comunidade sul-americana de segurança. Agora, no doutorado, seu foco voltou-se para os países emergentes e a cooperação sul-sul. Poderia nos explicar esta reorientação de interesses? Diego Trindade d’Ávila Magalhães: Acredito que devemos pesquisar aquilo de que gostamos. No mestrado, desenvolvi a minha pesquisa a partir de um interesse pessoal. Morei durante algum tempo fora do Brasil, e essa minha experiência de vida em outros países da América do Sul, somada à experiência como estagiário do Ministério das Relações Exteriores na Divisão Econômica da América do Sul (DECAS), alimentaram em mim o interesse pelo tema “América do Sul”. Por causa disso, acabei pesquisando a integração econômica, social e, mesmo, do ponto de vista político, a segurança na América do Sul. De lá para cá, enquanto estudava a fim de me preparar para a carreira diplomática – um horizonte que, à época, me era muito claro –, acompanhei muitas notícias, conheci outros temas, e, com isso, percebi coisas interessantes. Chamou-me atenção a atuação do Brasil na América do Sul, sua importância no comércio exterior de cada um dos países vizinhos e sua importância como investidor nesses países. Além disso, havia também a ascensão da China no Oriente. A China, desde o final da década de 90, cumpre, naquela região dos “Tigres Asiáticos”,


Convidado: Diego Trindade d’Ávila Magalhães

alguns papéis antes representados pelo Japão. Antes o Japão investia, comprava produtos, oferecia financiamentos para o desenvolvimento dos países da região; hoje é a China quem está fazendo isso. Este tipo de fenômeno contemporâneo realmente me intrigou. Então, resumidamente, posso dizer que o meu interesse acadêmico pela área de cooperação sul-sul e globalização foi instigado pela curiosidade intelectual. De um lado, o interesse pela emergência de alguns países-chave; de outro, um bom livro, que tive como referência na época da graduação, intitulado “Global Transformations” [da autoria de David Held, Anthony McGrew, David Goldblatt e Jonathan Perraton, editado pela Stanford University Press], e que também colaborou para acentuar o meu interesse pelo tema. De qualquer forma, acredito que o essencial é pesquisar aquilo de que gostamos. Cristine Koehler Zanella: Diego, muito tem se falado, nestas primeiras décadas do século XXI, no fenômeno da globalização. Há quem ressalte seus benefícios, outros, seus efeitos perniciosos e há, ainda, os que se resignaram com ela. Lendo seu artigo sobre o tema é possível reconhecer o papel de destaque da globalização nas suas pesquisas. Gostaríamos de saber como podemos compreender a globalização e qual a importância desse fenômeno para o campo das relações internacionais e para os estudantes de relações internacionais. Diego: O conceito de globalização praticamente já virou um clichê, um chavão. O debate dogmático, que é extremamente subjetivo e político, estabelece apenas “prós” e “contras” e acaba ofuscando a pesquisa. Pesquisa empírica, que permite compreender realmente quais fatores estão por trás da globalização, se é realmente inexorável e irreversível, se é disperso ou generalizado, se atinge o mundo inteiro com a mesma intensidade... Alguns dados empíricos foram ofuscados por esse debate político. A ênfase do meu trabalho não é o debate, não é analisar “prós” e “contras”, e sim, analisar o que é globalização, o que conduz a ela, peculiaridades do conceito. E é um conceito extremamente importante, especialmente para quem deseja pesquisar cooperação sul-sul e construção da ordem internacional pós-guerra fria. No pós-guerra fria, houve tentativas de reforma, mas nenhum processo duradouro e significativo que servisse de marco para a construção do novo ordenamento internacional. O processo de globalização está intimamente ligado ao processo de construção de uma nova ordem

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internacional. Os países-chave da globalização são justamente aqueles que têm maior poder para determinar a agenda, os que têm sua voz ouvida quando há encontros para decidir qual será a ordem do sistema monetário internacional, como será o sistema de comércio internacional, entre outras decisões desse relevo. Em especial, quem estuda globalização, cooperação sul-sul e governança global deve ter grande clareza quanto ao conceito de globalização – até porque é um fenômeno multidimensional. Não se pode considerar a globalização em si, há sempre um adjetivo que a acompanha. Há a globalização econômica, e aí se fala de investimentos, comércio, produção, multinacionais. Há a globalização política, que se refere à institucionalização da agenda internacional, múltiplas agendas, processos políticos debatidos em âmbito multilateral. Há, ainda, a globalização ambiental. Está cada vez mais claro que alguns fenômenos locais têm implicações que vão muito além das fronteiras nacionais, são implicações globais. Volto a enfatizar que é preciso ter uma clareza muito grande no que se refere à globalização, além de associar vários temas a esse processo – porque é um processo multidimensional. Envolve a dimensão política, a econômica, a ambiental e a social. Quem se interessa por assuntos internacionais deve ter conhecimento sobre o que é globalização e o que ela implica. Cristine: Você está desenvolvendo o conceito de “globalizadores”, que está sendo trabalhado como parte de sua pesquisa para a tese de doutorado. Como se caracterizam os globalizadores e quem são os globalizadores da atualidade? Diego: Antes de falarmos especificamente sobre o que é um país globalizador, é preciso definir, ainda que brevemente, o que é globalização. Podemos dizer que globalização é um aumento inédito de fluxos e da constituição de redes. Até os anos 80, nunca se havia visto um aumento tão acentuado dos fluxos como o que hoje presenciamos. Estes fluxos podem ser sociais (migrações, trabalhadores, estudantes e também ideias), políticos (instituições multilaterais), econômicos (investimentos, comércio, multinacionais) e ambientais (os impactos ambientais ocasionados em um lugar se espraiam pelo planeta). As redes constituem um padrão de interação entre atores internacionais estabelecidos em várias partes do mundo. São eles, os atores, que determinam a direção, a velocidade e o volume dos fluxos. Estes fluxos são, predominantemente, trans-


Convidado: Diego Trindade d’Ávila Magalhães

continentais, são globais. Hoje em dia podemos dizer que o processo de globalização predomina sobre o de regionalização, já que a maior parte dos fluxos são globais e não regionais. Essas são, basicamente, as ideias a partir das quais se formula o conceito de globalização. Em outra perspectiva, poderíamos resumir globalização como a diminuição da barreira que separa a dinâmica doméstica das dinâmicas internacionais – fazendo com que, cada vez mais, tenhamos dinâmicas domésticas interdependentes e integradas a dinâmicas internacionais. Só que o aumento do comércio internacional, o aumento do fluxo de investimentos internacionais, o aumento da internacionalização de empresas não acontece de maneira simétrica, com a mesma intensidade em todos os lugares do planeta. Isso se explica pela presença de alguns atores específicos, já que não são todos os países e empresas que participam da mesma forma do processo de globalização. Os atores que determinam o ritmo de avanço da globalização, sem os quais provavelmente existiria um processo de diminuição de fluxos e redes, são os globalizadores. Como não podemos sustentar que a globalização é um processo impessoal do ponto de vista dos atores internacionais, que acontece de modo difuso, os atores que desempenham um papel-chave para determinar o ritmo da globalização têm um status diferente. Se percebermos que no final do século XIX a Grã-Bretanha era responsável por cerca de 45% dos investimentos externos diretos feitos no mundo inteiro àquela época, compreendemos que esse país teve um papel central no avanço da globalização. A Grã-Bretanha foi um dos grandes vetores da globalização. Foi ela quem determinou o direcionamento de fluxos para além do continente europeu. Analogamente, nos anos 60, os Estados Unidos foram responsáveis por cerca de 45% dos fluxos de investimentos internacionais. Ao longo do século XX, especialmente de 1945 em diante, os EUA compartilharam o papel de globalizador com outros países – Alemanha e Japão, por exemplo, ganharam cada vez mais espaço e desenvolveram tecnologias específicas, parques industriais fortes e, depois, internacionalizaram suas empresas e seus processos produtivos, buscando novos mercados e demandando muitos produtos. Dessa forma, inseriram outros países, que eram menos globalizados, na economia mundial. Juntos, Alemanha, Japão, EUA, Reino Unido, França, Canadá, Itália – o grupo conhecido como G7, as maiores economias do mundo

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– passaram a exercer o papel de globalizadores. A partir do final dos anos 90, a categoria das “maiores economias do mundo” não mais equivale ao G7, pois as posições de maiores economias foram ocupadas por outros países. Países, aliás, que nem eram do norte. Surge, assim, a questão: os países do sul (como o Brasil, Rússia, Índia e China) que agora estão no topo da lista das maiores economias do mundo exercem o papel de globalizadores? Essa é uma pergunta essencial para compreender o processo de globalização, mas que até agora não teve espaço porque o debate sobre a globalização tem sido monopolizado pelo dogmatismo. Costuma-se debater a globalização como se fosse um processo abstrato, como se não houvesse atores envolvidos. Ignora-se o fato de que a globalização avança porque há alguns poucos países, os países globalizadores, que desenvolvem novas tecnologias centrais na nova divisão de trabalho. Tecnologias essenciais à criação de parques industriais e empresas multinacionais, por exemplo. Atualmente, das cem maiores multinacionais – em termos de quantidade de ativos no exterior – apenas sete têm matriz nos países do sul. Em 1990 os países do G7 eram responsáveis por quase todos os investimentos externos diretos do mundo – e ainda hoje esses sete países do G7 são responsáveis por cerca de 55% dos investimentos globais. Quando falamos em globalização, precisamos ir além da análise de “prós” e “contras” e compreender quem está por trás desse processo e quais são os possíveis novos globalizadores. Hoje, os países centrais na globalização contemporânea são aqueles que compõem o G7, mas isso está mudando. Provavelmente os novos globalizadores serão justamente os países que estão à frente nos grandes processos de inovação tecnológica – os países responsáveis por setores como nanotecnologia e tecnologia da informação e biotecnologia. Marc: Por fim, uma última pergunta antes de abrirmos espaço aos questionamentos do público. Diego, os conceitos são elaborados para operacionalizar categorias, facilitar análises, sistematizar o pensamento, entre outros. Que destaques você faria da relevância deste conceito de globalizadores no qual você tem trabalhado? Como o conceito auxilia os internacionalistas em sua tarefa de analisar as relações internacionais? Diego: O conceito de globalizadores ajuda a compreender qual é o fundamento que tem a China para postular uma reforma no Fundo Monetário


Convidado: Diego Trindade d’Ávila Magalhães

Internacional, ou por que o Brasil busca reformar as instituições de governança global, por exemplo. Se a China estabelece esse discurso é porque o país participa e, provavelmente, de modo muito significativo, do processo de globalização. A China pode ser considerada uma espécie de globalizador. Além da representatividade no comércio internacional, a China é fonte e origem de muitos investimentos externos diretos. Então, se a China é um global player cujas ações têm impacto significativo em todo o globo, os outros países irão considerar a opinião dela quando se discute uma reforma no FMI. Quanto maior é o impacto de um país na economia global, maior sua voz – e seu poder de barganha – ao discutir as reformas necessárias às instituições internacionais. No que se refere à política externa brasileira, se o Brasil deseja reforçar seu discurso para demonstrar a necessidade de reforma do Conselho de Segurança, ou do Banco Mundial, por exemplo, o país deve procurar saber o que ele representa para o mundo e o que os outros países emergentes representam para, dessa forma, fortalecer a sua demanda. Para ser dito, no âmbito na OMC, que os países em desenvolvimento são importantes, é preciso dizer o porquê. A importância dos países em desenvolvimento não se justifica por sua superioridade numérica, e sim porque são responsáveis por 45% das exportações globais. Se os países desenvolvidos não participam mais como antes – houve uma época em que a participação deles já chegou a 75% do comércio mundial –, é preciso que deem espaço aos países em desenvolvimento, já que o impacto por eles causado na economia global é muito forte. Outrora quase todo o investimento externo direto feito no mundo vinha dos países desenvolvidos, hoje em dia esse número caiu para 70%. Os outros 30% são feitos por países em desenvolvimento. Isso justifica que estes países tenham cada vez mais voz nas instituições globais, já que eles provocam impactos na economia global. Ao estudarmos a inserção dos países emergentes no contexto das instituições internacionais, devemos ter em mente qual a verdadeira importância desses países na agenda. Uma das formas de o conceito de globalizador encontrar aplicação no discurso da política externa é como forma de fundamentar o relevo do papel desempenhado pelo país nesse que é, do ponto de vista econômico, um dos maiores fenômenos a ser considerado. Público – Pietro Gouvea del Corona: No seu trabalho, você se refere às cres-

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centes relações comerciais entre a China e a África. Qual é a reação dos países desenvolvidos diante dessa demonstração de proatividade chinesa? Diego: Historicamente, a África teve todo o seu comércio internacional com os europeus – que primeiro foram metrópoles e, depois, mesmo sendo ex-metrópoles, mantiveram forte presença econômica no continente. Após a independência, surgiram os Estados Unidos como principal parceiro comercial da África. Hoje em dia a China disputa esse posto com os EUA. Por um lado, devemos considerar que a China compete com os EUA porque, de fato, em alguns pontos, vigora o “jogo de soma zero”. Ou o petróleo vai para os EUA, ou o petróleo vai para a China – o que vai para um lugar, necessariamente, não irá para o outro. Por outro lado, o fato de a China demandar por uma enorme quantidade de matérias primas da África não tem sido vista com grande preocupação por parte dos norte-americanos. Isso porque parte significativa dos recursos que saem da África e vão para a China acabam abastecendo o sistema produtivo dos países do norte estabelecidos na China. Empresas multinacionais que fabricam na China, por exemplo. De lá elas irão exportar para todo o mundo, utilizando os insumos provenientes da África. Do ponto de vista geopolítico, há algum tipo de questionamento, sim, porque a presença da China como grande investidor e comprador, como referência de negócios para os países africanos, tem sido cada vez maior. E a interação que a China estabeleceu com os países africanos é diferente, é uma interação mais voltada para construção de infraestrutura. Os parceiros tradicionais da África – EUA, principalmente – financiavam indiretamente um “governo amigo” em troca do comércio. Ou seja, existe uma competição que ainda é atenuada pela grande disponibilidade de recursos e pelo fato de que os recursos direcionados à China acabam beneficiando setores econômicos dos países do norte. Público – Thomaz de Araujo Santos: A ideia de uma nova ordem vinda do sul, sul econômico e social, existe há aproximadamente 60 anos – remete à Conferência de Bandung. O quanto da ideia de personalidades como Nasser, do Egito, e de outros grandes nomes da época, perdura nas atuais tendências da cooperação sul-sul? O quanto da ideia da cooperação sul-sul globalizada superou a ideia de uma nova ordem econômica da década de 50, em que os países subdesenvolvidos e em


Convidado: Diego Trindade d’Ávila Magalhães

desenvolvimento faziam uma oposição ao centro capitalista? Diego: A construção da nova ordem internacional foi proposta em um contexto no qual os países do norte, os países desenvolvidos, tradicionalmente, exerciam um domínio político – às vezes, indireto, às vezes, direto -, econômico e tecnológico muito forte nos países do sul. Uma das formas encontradas para escapar dessa dependência excessiva foi o estabelecimento de processos de união sul-sul. Isso é especialmente válido para os países da Ásia e da África, que obtiveram suas independências entre 1955 e 1965, basicamente. A demanda para a construção de uma ideia de cooperação sul-sul estava extremamente associada ao desafio do desenvolvimento econômico – algo crucial para que se conquistasse a autonomia política. Essa ideia pensada pelos países do sul resultou em uma estratégia de união, que teria como objetivo superar a dependência econômica e ganhar a autonomia política. Para isso, desejava-se construir a ideia de sul-sul e redefinir a agenda internacional da seguinte forma: não se dialogaria nos grandes fóruns internacionais a partir do cisma capitalismo/comunismo, leste/oeste, EUA/URSS, ou como desejem chamar. Os países do sul estabeleceram que o foco da agenda internacional fosse o desenvolvimento e, em se tratando de economia e desenvolvimento, o mundo é dividido em “norte” e “sul”. O diálogo entre norte e sul foi construído sobre essa perspectiva: países desenvolvidos são norte, países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento são sul. Então, a construção da imagem de sul foi uma parte da estratégia comum dos países do sul para aumentar sua autonomia política via desenvolvimento econômico. Em algum momento, os países do sul perceberam que, em vez de se afastarem da ordem internacional já construída e estabelecer uma nova, o melhor seria tentar reformar a existente. Essa visão, em parte, está associada ao aumento da interdependência entre os países – seja do ponto de vista social, político ou econômico. O aumento da interdependência implica algo relativamente simples de ser dito, mas que torna o mundo mais complexo: a interdependência entre os países do norte e os países do sul chegou a tal ponto que não se pode mais analisar apenas a relação entre dois países do sul – Brasil e China, por exemplo - considerando-os isoladamente. A China integra o sistema produtivo, fluxos financeiros internacionais e fluxos de comércio nos quais os

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países do norte também estão envolvidos. As relações sul-sul acontecem em um ambiente de interdependência muito acentuada entre países do norte e os do sul. Na prática, há espaço, sim, para cooperação do Brasil com Argentina, África do Sul, Índia, China, por exemplo, mas não se pode relegar ao segundo plano países que são tradicionais parceiros comerciais, econômicos, tecnológicos, como EUA, França, Alemanha e Reino Unido. O que percebemos é que as relações sul-sul não são uma alternativa totalmente independente e autônoma de inserção internacional - ela é interdependente, sim. Aparece como uma forma de diversificação dos parceiros, não como exclusão de alguns, os países do norte, em detrimento de outros. Não se pode pensar que estabelecer relações apenas com o sul proporcionaria uma autonomia muito grande em relação ao norte. Muitas das empresas da China que exportam para o Brasil, por exemplo, são empresas estrangeiras estabelecidas na China. A maioria do capital que a China tem, em termos de reservas internacionais, vem dos investimentos externos diretos recebidos, em sua maioria, dos países do norte. Além disso, o processo produtivo da China é marcado por tecnologias que não foram lá desenvolvidas, e sim, difundidas no país por joint-ventures. O mundo é realmente muito integrado e tende a um reequilíbrio de forças, já que as relações sul-sul conquistam cada vez mais importância. Ao analisarmos a globalização, podemos definir três eixos de relacionamento entre os países: há o eixo sul-sul, o norte-sul e o norte-norte. Esses eixos, agora, estão se mostrando mais simétricos.


Segurança e Defesa em debate: estratégia e poder nas Relações Internacionais Érico Esteves Duarte

Realizada em 28/06/2012


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Segurança e Defesa em debate: estratégia e poder nas Relações Internacionais

Érico Esteves Duarte. Professor de Estudos Estratégicos e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Membro do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS, Londres). Atualmente ocupa a Cátedra Rui Barbosa de Estudos Brasileiros da Universidade de Leiden. Doutor e Mestre em Ciências da Engenharia da Produção pela Universidade do Brasil, Coppe/UFRJ. Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília. Áreas de pesquisa: Teoria da Guerra, Estratégia Marítima, Política de Defesa Brasileira, Epistemologia e Pedagogia das Relações Internacionais. Em 2010 sua tese recebeu o reconhecimento do Ministério da Defesa como “Melhor tese em defesa nacional”. Marc Antoni Deitos: Professor Érico, o senhor tem defendido há um bom tempo – desde 2007, quando foi publicado na RBPI o trabalho “Os estudos estratégicos como base reflexiva da defesa nacional” – a importância da universidade como produtora de conhecimento sobre defesa nacional. No artigo, o senhor alerta para os preconceitos e oportunismos midiáticos, entre outros, de que um país pode ser refém caso os estudiosos e professores sejam omissos. Passados cinco anos desde esse trabalho, como o senhor percebe o estado em que se encontram os estudos de defesa no Brasil? A advertência feita no artigo ainda é válida? Érico Esteves Duarte: A minha própria história exemplifica a deficiência que existe no Brasil em relação aos estudos de segurança e defesa: meu contato com o tema se deu na graduação por meio de um grupo de estudos extracurricular. No curso de Relações Internacionais da UnB, onde realizei a graduação, não havia nenhuma cadeira que oferecesse aos alunos uma introdução às questões relacionadas ao uso da força nas Relações Internacionais. E isso é bastante sintomático, pois se pegarmos a história das RI, veremos que a área foi criada por conta da Primeira Guerra Mundial – seu objetivo era identificar as causas da guerra e prover mecanismos para evitar um segundo conflito, que acabou acontecendo. O fato de as universidades não se colocarem como ponto para refletir a defesa nacional é, no meu entender, um problema das democracias e da república, todas elas. No caso do Brasil, essa lacuna está começando a ser tratada – começa-se a ter certa sensibilidade sobre o problema. O que percebo é que no Rio Grande do Sul há uma preocupação um pouco maior em relação às


Convidado: Érico Esteves Duarte

questões de defesa – pela própria posição geográfica do estado e por sua história. No caso do RS, há maior resistência à perspectiva idílica, pacifista das Relações Internacionais. No período pós-estrutura militar, em que houve a abertura aos estudos de defesa nas universidades brasileiras - e que antes era proibido - é notável como os estudos da área se desenvolveram mais no Rio Grande do Sul. Há, em termos relativos a outros lugares do país, um avanço bastante acelerado. Mas no geral a situação no Brasil é bastante deficitária. Cristine Koehler Zanella: O senhor se destacou como um grande estudioso de Clausewitz. Sua tese, intitulada “O conceito de logística de Clausewitz e seu teste pela análise crítica da Campanha de 1777 em Saratoga” chegou a receber premiação do Ministério da Defesa como “Melhor tese em defesa nacional”. Para um país como o Brasil, com dimensões continentais e rico em recursos naturais, mas que não apresenta condições materiais de fazer frente a potências militares reconhecidas, como é o clássico caso dos Estados Unidos, qual a importância de estudar e explicar a guerra e as intervenções militares? Érico: Em primeiro lugar, há os fatos históricos. Em parte o processo de demarcação das fronteiras do Brasil, por exemplo, foi pacífico porque uma série de guerras já tinham sido travadas e vencidas pelo país - as fronteiras já haviam sido impostas por este meio. As questões pendentes, como Bolívia e Acre, foram o final do processo. Ou seja, o Brasil é o maior país do continente, é o que tem a maior fronteira, tem relações com maior número de países – e ainda que não exista um contencioso direto entre um desses países e o Brasil, são vários os contenciosos desses países entre si. E é sabido que, quando há países fronteiriços em algum tipo de conflito, isso tem efeitos sobre os que estão ao redor. Outro problema recorrente na América Latina – que mereceu até um nome: “febre latina” – é um país em crise doméstica buscar um factoide externo como forma de justificar um problema interno. É o caso das Ilhas Malvinas e o da Guerra do Chaco, por exemplo. Em um caso assim, o Brasil precisaria ter capacidade de garantir a sua soberania. Mais recentemente, em razão da própria ascensão política e econômica brasileira, é inevitável que aumente o número de atritos entre o Brasil e outros países. Não há como ser grande sendo harmonioso com todos. A questão do pré-sal, por exemplo, tem grande potencial de causar con-

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flito, já que uma boa parte da plataforma continental marítima, na qual o pré-sal se desdobra, envolve uma parte do Atlântico Sul que não está juridicamente definida pelas Nações Unidas. Seja do ponto de vista jurídico ou do ponto de vista operacional de preservar a soberania marítima, o Brasil está completamente vulnerável nesse sentido. Cristine: A obra de Clausewitz é considerada componente fundamental da teoria clássica da guerra. Nesta, os Estados são os atores fundamentais. Entretanto, após a guerra do Golfo (1991), tem se considerado cada vez mais as “novas guerras”, nas quais diversos novos atores começam a ser vistos como protagonistas (grupos paraestatais, subestatais ou outros, que vão ganhando estatuto de partes, como grupos religiosos e agências nacionais ou transnacionais do crime organizado). Num cenário em transição como este, também as ameaças se alteram. Dentro de um contexto de “novas guerras”, gostaríamos de saber: Que contribuições a teoria clássica da guerra – e especialmente as lições de Clausewitz - poderiam dar? Érico: Algo que destaquei em um artigo que escrevi [Érico refere-se ao artigo “Os Estudos Estratégicos como Base Reflexiva da Defesa Nacional”, publicado na RBPI, v.50, p. 29-46, 2007] é que existe, no campo das Relações Internacionais, especialmente no de Estudos Estratégicos, certa inclinação para a novidade – às vezes de modo até mesmo propagandístico, como forma de vender livros, etc. Daí a importância da universidade que, apesar de ser democrática, mantém certo conservadorismo em relação ao conhecimento já produzido, é mais cautelosa em aceitar novos entendimentos. No caso da discussão sobre Clausewitz, é preciso que exista certa cautela, pois há uma parte da literatura contemporânea que lhe criou o rótulo de alguém que delimitou sua teoria ao Estado. Nem do ponto de vista histórico – sua biografia –, nem do ponto de vista teórico, é possível ter esse tipo de identificação. Primeiro, do ponto de vista histórico, quando Clausewitz assumiu a posição de alferes, foi justamente nas ações de insurgência e contrainssurgência na fronteira com a França, que sucedeu a Revolução Francesa. Após se formar na Academia de Berlim, ele se tornou instrutor de insurgência e contrainsurgência. Depois que a Prússia foi derrotada pela França na batalha de Auerstedt, Clausewitz integrou o grupo prussiano que elaborou a formação de planos – e um dos planos exigidos por ele é o de guerrilha, de con-


Convidado: Érico Esteves Duarte

tinuação da defesa da existência prussiana à França. E, mesmo após a Prússia assinar um Tratado de Paz e se aliar à França para invadir a Rússia, Clausewitz abandonou a sua patente e assumiu uma posição de paramilitar, lutando junto aos russos contra as forças da França e da própria Prússia. Ele passou a atuar na famosa “Legião Prussiana”, um grupo composto por oficiais que não aceitaram a subordinação à França. Com tudo isso, pode-se dizer que as “novas guerras” não eram novas para Clausewitz, pois ele as viveu pessoalmente. Em segundo lugar, no que se refere aos seus estudos, na obra mais importante escrita por ele [“Da Guerra”] há um capítulo inteiro dedicado às formas pelas quais o povo pode se organizar para travar guerras. Em ultima instância, o ponto mais importante para chamar a atenção na guerra não é o Estado, e sim, a identificação e a avaliação da liderança política. Em qualquer situação de uso da força, há uma liderança política que estabelece os objetivos e, de certa forma, consegue agremiar os variados interesses de uma coletividade. Al Qaeda tinha uma liderança política, o Hezbollah tem um colegiado de líderes. A questão se relaciona muito com o estabelecimento de uma meta, um objetivo. E isso pode ser em qualquer tipo de estrutura formal ou institucional. No capítulo 8 do livro “Da Guerra”, Clausewitz faz uma extensa exposição da evolução da guerra, desde Alexandre, o Grande, até as Guerras Napoleônicas. Do ponto de vista histórico ou fenomenológico, ele não se concentra simplesmente no Estado. Por mais que o Estado, do ponto de vista da Sociologia Histórica, seja considerado como a melhor máquina institucional para travar guerras. O fato de hoje em dia termos Estados nacionais, e não, monarquias ou feudos, se explica por que o Estado se impôs sobre as outras formas de organização. O Estado é muito mais um resultado do que uma causa da guerra, digamos assim. Cristine: Voltando-nos agora para um âmbito bastante regional. Professor, em termos de planejamento no setor de Defesa, em 2008, foi criado o Conselho de Defesa Sul-Americano, no âmbito da UNASUL. Desde sua criação, alguns avanços, como a prestação de contas sobre gastos militares por parte de Argentina, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai e Uruguai, no início de 2012, foram conquistados. Qual a importância do Conselho e o que é necessário para que este órgão avance em termos de detecção de ameaças no nível regional e planejamento do emprego dos meios de

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defesa no nível estratégico? Érico: A definição do Conselho de Defesa Sul-Americano indica que ele tem a função de ser um mecanismo de confiança mútua. Ao tornar mais transparente as intenções, planos e gastos militares, reduz-se a suspeita dos países uns sobre os outros. Nesse sentido, talvez um dos principais problemas para a evolução do Conselho seja o próprio Brasil, pois o país não tem um procedimento democrático e transparente do seu orçamento militar e das suas atividades de defesa. O Brasil não tem uma política de defesa clara, e o próprio Livro Branco é muito mais produto do Gabinete Ministerial do último Ministro da Defesa do que um produto institucional do Ministério da Defesa. Além disso, há outra dificuldade que decorre desta primeira: qualquer tipo de organização internacional da qual provenha algum tipo de ordem demanda alguém que pague os custos e sinalize a liderança – ainda que ela seja compartilhada. No caso do Conselho, esse papel cabe ao Brasil, mas, como o país não tem uma postura transparente nos assuntos de defesa, é difícil que os demais membros do grupo confiem plenamente nas intenções brasileiras. Marc: O Paraguai sofreu, na sexta-feira da semana passada (22 de junho de 2012), a deposição do poder do presidente Fernando Lugo. No entorno regional, todos os países da região e suas organizações (tais como Mercosul e UNASUL) emitiram comunicados anunciando o seu repúdio à forma como o processo foi conduzido. Por outro lado, os Estados Unidos reconheceram a destituição e o Departamento de Estado solicitou que a população paraguaia agisse com calma e pacificamente. O que esse episódio revela? Após acontecimentos semelhantes em Honduras, estaria a região vivenciando os marcos iniciais de um novo período de forte influência estadunidense dos rumos das políticas domésticas latino-americanas? Quais as possibilidades do uso de tropas estadunidenses na região? Érico: É preciso analisar duas questões. A primeira se refere ao caso específico do Paraguai e a segunda à presença norte-americana na região. Do ponto de vista teórico, a teoria do realismo ofensivo do Mearsheimer expõe que as Américas vivem em uma condição de hegemonia regional. Os Estados Unidos são uma potência hegemônica na região, pois são os únicos com armamento nuclear e, em termos de capacidade militar convencional, os únicos capazes de projetar


Convidado: Érico Esteves Duarte

poder e derrotar qualquer outro país do continente. Em termos gerais, no que se refere à relação dos EUA para as Américas, percebe-se que qualquer tipo de intervenção americana é passível de ocorrer em dois cenários cujo efeito seria alguma mudança muito drástica na relação de poder – pois os EUA desejam se manter como hegemonia regional. Em uma situação de conflito ou disputa de poder, em que um país se sobrepusesse demais ao outro – contraindo, anexando, conquistando –, certamente, os Estados Unidos interviriam. Uma conquista dessa natureza poderia fazer com que um país do continente acumulasse certa quantidade de poder que, em um estágio mais avançado, poderia incomodar o próprio país interveniente, no caso, os EUA. Já, em uma situação de conflito muito localizado, provavelmente, os EUA não interviriam ou fariam isso por meio de um proxy – delegando a função de estabilização para outro país, como aconteceu recentemente no caso de Equador e Peru, em que a função de estabilizar a região foi delegada ao Brasil. Um outro tipo de cenário mais preocupante – que envolveria uma intervenção americana mais forte – é aquele no qual um país regional estabelece um tipo de parceria estratégica muito forte com alguma potência extra regional, como Rússia ou China, por exemplo. A instalação de uma base russa ou chinesa na região certamente desencadearia uma reação dos EUA – país que, historicamente, sempre foi muito reativo a qualquer ação de uma potência extra regional. No caso particular do Paraguai, a questão é que, apesar de todos os problemas do Paraguai e da interdependência que há entre este país e o Brasil, o Brasil não tem uma política efetiva - técnica, de promoção de políticas públicas, de consolidação da democracia, de promoção da educação, de troca de conhecimentos técnicos, etc. – para o Paraguai. De certa maneira, o Brasil não vem fazendo seu papel de tentar estabelecer algum tipo de ordem democrática regional. Além do efeito direto de não se estabilizar democraticamente no país, a ausência de uma política efetiva ainda faz com que o Brasil não tenha tantas informações sobre o que acontece no interior do Paraguai. No caso da retirada de Lugo, o Brasil foi pego de surpresa porque não há uma convivência permanente com as instituições políticas paraguaias. Cristine: No começo da entrevista, o senhor disse que há grande interesse no Rio Grande do Sul pela área de Estudos Estratégicos. Se olharmos o mapa do Brasil,

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notamos que as dimensões do país na parte sul são muito mais estreitas do que ao norte – uma consequência direta das disputas territoriais que ocorreram aqui. Agora, parece que o interesse, especialmente por parte das Forças Armadas – notadamente, o Exército –, voltou-se para as fronteiras do norte, em especial para os países que fazem fronteira com a Amazônia. Entretanto, sabe-se que a região amazônica é de difícil ocupação terrestre. Quais são as políticas e as ações que estão sendo tomadas por parte do Brasil – se é que estão sendo tomadas – para proteger a soberania brasileira sobre a área amazônica? Érico: No que se refere a políticas de Estado, não há nenhum tipo de orientação em relação à Amazônia. A orientação das Forças Armadas (FFAA) brasileiras, especialmente do Exército e da Marinha, de realocar recursos para o norte, é uma decisão interna das FFAA. Não houve uma decisão presidencial. É mais uma certa redefinição de qual é a missão das Forças Armadas – o que, do ponto de vista democrático e constitucional, é um problema. O que percebemos é que, na ausência de estipulação de tarefas para as FFAA, elas realizam seu próprio julgamento e estabelecem programas administrativos para serem cumpridos. Público – Thomaz de Araujo Santos: A discussão entre a área de segurança e defesa e a área do direito, quanto ao uso da força, é constante – atualmente, uma das grandes questões a ser discutida é o terrorismo. Tradicionalmente, Clausewitz é visto como um teórico sobre a guerra interestatal, assim como o Direito Internacional é visto como um âmbito para conflitos interestatais. Como é que tanto Clausewitz pode ser aplicado à ameaça terrorista, quanto eventualmente o sistema normativo internacional pode ser adaptado para tratar da ameaça terrorista? Érico: Há duas dimensões. Primeiro, do ponto de vista clausewitziano, terrorismo é uma prática, não um Estado. Não há pessoas que nascem, vivem e morrem terroristas – o terrorismo é uma forma de utilizar a força, assim como guerrilhas, campanhas defensivas, ofensivas, etc. Basicamente, terrorismo é a arma do mais fraco. Se o Bin Laden tivesse três divisões de infantaria para fazer o que quisesse e tomar a Arábia Saudita, ele o teria feito. Só que não tinha. Então é preciso criar uma agenda política para agremiar apoio da população e, quem sabe, em um estágio mais avançado, constituir uma força regular para


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dar encaminhamento estratégico mais institucional para a bandeira política defendida – no caso em questão, recuperar o califado no Oriente Médio. Deve-se entender a questão para além da questão mais midiática, momentânea, da propaganda de guerra. Não existe “guerra ao terrorismo”; faz-se guerra aos grupos que se utilizam do terrorismo. Do ponto de vista jurídico, a teoria da guerra ajuda a entender que se pode estabelecer uma norma contra a prática do terrorismo, não contra os grupos que se utilizam do terrorismo – porque isso é essencialmente uma questão política. O discurso criado pelos Estados Unidos, de rastrear certos grupos como sempre terroristas e de combatê-los como eixo do mal, criou esse tipo de pensamento. No caso do Brasil, há um problema porque o país não tem nenhum tipo de posição: o terrorismo não é considerado nem como crime, nem como guerra, nada. É uma lacuna que, inclusive, cria vários problemas de ordem doméstica. Com toda a preparação para as Olimpíadas de 2016, há uma importante discussão no Congresso sobre a alocação de recursos. É preciso criar “unidades contra o terror”, digamos assim, mas pergunta-se: “para combater quem?”, “qual o tipo de prática?”. Público - Victor Eduardo Rodrigues Linderg: O Chile está tendo um acentuado desenvolvimento bélico devido ao seu envolvimento em conflitos na região. A Venezuela também está comprando muitos armamentos – especialmente da Rússia. O Brasil, em contrapartida, está com armamento obsoleto. De que forma isso pode oferecer risco ao país? Érico: Chile e Venezuela são países com realidades bastante diferentes. Tratando-se de América do Sul, o país que tem uma política de defesa mais avançada e responsiva é o Chile – em parte pela própria herança da ditadura, o Chile foi muito rápido ao democratizar sua defesa. E uma das razões pelas quais o Chile aparece tão mais forte é porque ele está preparado, seja do ponto de vista orçamentário, do Livro Branco da Defesa, do debate com as universidades e com a sociedade, etc. Enfim, o Chile é muito sinergético na relação entre Forças Armadas, sociedade e governo. Algo muito interessante no Chile é a própria estrutura jurídica para defesa, que é muito clara e consolidada. Um conflito hipotético entre Brasil e Chile é muito difícil, já que há um problema geográfico: a Cordilheira dos Andes está entre eles. No caso de um conflito, ele ocorreria

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sobre o território de um terceiro país – os dois seriam “expedicionários”, sem que nenhum tivesse uma grande vantagem sobre o outro. No caso da Venezuela, existiu até pouco tempo atrás essa trajetória de compra de armamentos – de certa maneira promovida pela Rússia, em uma forma que chamamos de “soft balance”, armando aqueles que têm algum tipo de contencioso com os Estados Unidos –, mas percebe-se que é um tipo de compra desorganizada. A capacidade combatente não se define apenas pela quantidade de equipamento, pois quem conduz a guerra são as pessoas. A qualidade do treinamento, da doutrina, da condução de armas combinadas, da manutenção dos equipamentos é tão importante quanto a quantidade. No caso da Venezuela, percebemos que esse aspecto mais qualitativo, organizacional e humano é bastante mal qualificado. Além disso, o Chavez [Hugo Chavez, atual presidente da Venezuela] não tem demonstrado pretensões beligerantes na região.


Política Externa Brasileira: oportunidades e desafios em um mundo em reordenação André Luiz Reis da Silva

Realizada em16/08/2012


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André Luiz Reis da Silva. Pós-doutorado em Relações Internacionais pela School of Oriental and African Studies/ University of London. Doutor em Ciência Política, Mestre em História, Bacharel e Licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Possui curso de Especialização em Processos de Integração pela Universidade de Leiden/Holanda. É Professor Adjunto no Curso de Graduação em Relações Internacionais da UFRGS e dos Programas de Pós-Graduação em Ciência Política (UFRGS) e Estudos Estratégicos Internacionais (UFRGS). Foi coordenador do Curso de Graduação em Relações Internacionais da UFRGS e também da Comissão de Extensão da Faculdade de Ciências Econômicas. Editor da Revista Conjuntura Austral. Membro da Comissão Assessora da área de Relações Internacionais do INEP/Ministério da Educação. Coordenador Adjunto do GESPI (Grupo de Pesquisa em Segurança e Política Internacional) da UFRGS e pesquisador do CEGOV (Centro de Estudos Internacionais sobre Governo). Pesquisa Relações Internacionais Contemporâneas, com foco nos países em desenvolvimento, e Política Externa Brasileira. Marc Antoni Deitos: Professor, o senhor tem como uma de suas áreas de interesse a Política Externa Brasileira (PEB). Dentre seus trabalhos, podemos mencionar análises específicas sobre a política externa dos governos Castelo Branco (em livro publicado pela Editora da UFRGS, em 2004), Fernando Henrique Cardoso (FHC) (em livro publicado em 2009 pela Editora Juruá) e Luiz Inácio Lula da Silva (Lula) (em análise sobre os 10 primeiros anos de PEB no século XXI, em artigo publicado pela RBPI). Em se tratando dos últimos governos, o senhor acredita que houve uma alteração significativa na PEB do governo FHC para o governo Lula? E na transição do governo Lula para o governo Dilma? Há elementos que poderíamos elencar como de continuidade na PEB mesmo entre estes governos? André Luiz Reis da Silva: O estudo da Política Externa Brasileira (PEB) nos traz mais problemas do que respostas – às vezes algumas certezas são relativizadas com o distanciamento temporal. Uma coisa é pesquisar a política externa do FHC durante o governo, outra é pesquisá-la dez anos depois, com certo distanciamento. O tempo faz com que as coisas se assentem e nós consigamos ter uma visão retrospectiva das ações – por esse motivo a importância


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da História para as Relações Internacionais é enorme. Na área de relações internacionais (RI), as continuidades são muito fortes – e elas têm relação com as mudanças e rupturas conjunturais e estruturais. Compreender isso é essencial para compreender a Política Externa Brasileira. Podem-se identificar na PEB traços de continuidade muito fortes por vários motivos. Um deles é a própria estabilidade burocrática do Itamaraty: o Itamaraty é conhecido como um órgão que não improvisa, ele segue uma orientação. Outro motivo é a localização do Brasil, que está zoneado na América do Sul, uma região de relativa paz há mais de cem anos. Além disso, a diplomacia brasileira é muito voltada ao tema do desenvolvimento econômico, o que construiu o perfil dela tal como conhecemos hoje. Entretanto, a PEB sofre alterações, é claro, pois não é oriunda apenas do corpo diplomático – ela também é oriunda de quem está no poder em certo momento. Depende do Presidente, do Congresso, da conjuntura política. Cada presidente dá o seu perfil à PEB de acordo com seu modelo de desenvolvimento, sua percepção de mundo, de ameaças e assim por diante. Se analisarmos a PEB, de 1930 até 1990, há algumas características básicas que perduram. Há, por exemplo, a permanência da ideia de que se deve buscar no exterior recursos para a construção do desenvolvimento. Buscam-se, no exterior, mercados, parcerias, recursos que permitam romper os entraves do processo de desenvolvimento. Entretanto, mesmo esse projeto, que perdurou de 1930 até 1990, passou também por nuances. A relação com os Estados Unidos sempre foi marcada por altos e baixos, por exemplo. Ora havia governos mais alinhados, ora, menos alinhados. Houve governos que buscaram mais autonomia em relação à grande potência da época e procuraram novos espaços de inserção. Em outros momentos, associou-se aos interesses norte-americanos. Há esse, quase contínuo, de 1930 a 1990, e em 1990 há uma grande ruptura. Com a crise do Leste Europeu, a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria, houve uma remodelação na política externa de vários países. Em verdade, o sistema internacional, como um todo, se reorganizou e provocou a mudança. Para as elites latino-americanas e brasileiras, isso significava que não havia uma alternativa à grande potência, os EUA. Por isso, essa década que vai dos anos 1990 aos anos 2000, foi um período no qual o Brasil sentiu uma série de fragilidades. Houve crise econômica

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interna (quem não se lembra da hiperinflação?), dificuldades para exportação, retraimento diplomático, marginalização política. A solução para alguns governantes, como Collor, foi o alinhamento com os norte-americanos, já que não havia muito poder de barganha. Nesse sentido, uma espécie de patrimônio diplomático construído ao longo de décadas foi deixado de lado, quase jogado fora. O esforço de aproximação com o continente africano, por exemplo, que foi muito intenso durante os anos 1980, retraiu nos anos 1990. A aproximação com o Oriente Médio, que remonta aos anos 1970, também retraiu nos anos 1990. Uma inovação dos anos 1990 foi o MERCOSUL. O MERCOSUL é considerado um espaço de ação realista do Brasil, uma reserva do país para se “aventurar na globalização”. De certa forma, a política externa do Collor, do Itamar Franco e do FHC era bastante tímida, considerando-se as potencialidades do Brasil. Era muito otimista, pois acreditava em um mundo melhor pós-Guerra Fria, acreditava que a OMC resolveria os problemas comerciais, que a globalização traria mais benefícios do que prejuízos e, por outro lado, era bastante pessimista em relação à capacidade do Brasil de enfrentar as grandes potências e construir de forma autônoma seu projeto de desenvolvimento. Quando chega o final dos anos 1990, há uma série de críticas internas sobre essa postura internacional do Brasil e, sobretudo, sobre essa passividade do Brasil em relação a uma série de novas ameaças que apareciam. Se analisarmos os anos 1990, percebemos que a postura brasileira era a de quem acreditava em um mundo sem armas pós-Guerra Fria. Reduziu-se a capacidade de defesa do Brasil nos anos 1990, acreditando-se em uma possível defesa coletiva ou na ausência de novos conflitos. Como o Brasil estava relativamente protegido, parecia desnecessário gastar em armas. Dessa forma, o país reduziu a capacidade militar e aderiu a vários regimes multilaterais de controle de armas estratégicas e, no final de década, ao analisar como os demais países estavam, viu que todos estavam armados até os dentes. O mesmo vale para o sistema multilateral de comércio. O Brasil abriu sua economia, realizou uma série de privatizações e, ao ver o mundo desenvolvido, deparou-se com Estados protecionistas que não tinham aberto sua economia aos produtos brasileiros. O Brasil cumpriu a agenda, os países ricos, não. Esse gosto amargo, sentido tanto pela sociedade brasileira quanto pelo corpo


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diplomático, fez com que surgisse, no final do governo FHC, uma reorientação. Identificamos a política externa do governo Lula como extremamente inovadora. Pode-se resumi-la, dizendo que foi uma política mais pessimista em relação à ordem internacional e mais otimista em relação às potencialidades brasileiras. Há uma grande mudança na passagem do FHC para o Lula – entretanto, não foi apenas mudança de governo. Foi também mudança de momento histórico, pois já se poderia identificar no próprio FHC alguns elementos dessa mudança. A diferença entre o Lula e a Dilma já não é muito grande. Ela fez algumas pequenas correções de rumo, pois a política externa também é influenciada pelo estilo de gestão do presidente. Como o estilo dela é mais discreto, ela aparou algumas arestas, mas a orientação é praticamente a mesma. Cristine Koehler Zanella: Na última década, vimos o surgimento de diversos grupos que contam com o Brasil em sua formação. É o caso do Grupo BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China), do Fórum IBAS (Índia, Brasil e África do Sul), do G-20 (articulado para reação em conjunto dentro da OMC), entre outros. A participação nesses grupos de países reunidos por interesses específicos são uma característica tradicional da PEB ou uma forma recente de estratégia brasileira para inserção internacional? Qual a importância de participação nestes fóruns? Essa participação diversificada não enfraquece os interesses brasileiros que poderiam ser melhor defendidos se as atenções fossem voltadas a poucos grupos de articulação política internacional? André: O Brasil é um país grande, diversificado e com múltiplos interesses. O otimismo em relação às potencialidades brasileiras demanda uma política de acordo com seu tamanho e suas capacidades. Uma política externa aquém das capacidades seria pobre, e uma política externa além causaria um tropeço. A PEB nos últimos dez anos tem buscado esse ajuste. Por causa disso, o Brasil acabou se envolvendo em uma série de temas internacionais – desde o Oriente Médio, passando por África, América do Sul e até América Central. A defesa dos interesses brasileiros ocorre não só no nível bilateral, que são as parcerias estratégicas e articulações regionais, mas também nos foros multilaterais. Multilateralismo, na velha diplomacia, é o local onde todos dizem aquilo que querem e vão para casa tranquilos, sem declarar guerra. A velha escola Realista das RI trabalhava com negociação direta, no máximo, pequenos grupos. Entretanto,

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após a Guerra Fria, os foros multilaterais ganharam muita importância – especialmente os econômicos, como a OMC. A OMC se empoderou bastante nos anos 1990, apesar de ter enfraquecido recentemente. Na época, imaginava-se que muitos dos problemas das nações se resolveriam ali, pois a OMC gerava a regulação que internalizava normas aos demais países. O Brasil, ao defender seus interesses na OMC, percebeu que eles eram semelhantes aos interesses de outros países. Havia, entretanto, um problema: como país em desenvolvimento, “o Brasil é um país com muitos países dentro de si”; dito de outra forma, é um país com múltiplos interesses. Então, dependendo do tema a ser tratado, ele poderia ter um conjunto de aliados – ou não. Isso gerou uma diplomacia extremamente sensível para cada tema. Resumidamente: para cada tema e cada problema, o Brasil tem um conjunto de aliados. Uma das grandes perguntas que se faz em relação a isso, é se esse sistema de convergências e divergências não pode gerar curto-circuito em algum momento, já que a agenda de interesses é tão complexa para cada tema. A parceria natural que se imagina entre Brasil e os países africanos, por exemplo, não existe dentro da OMC, pois os africanos têm outros caminhos para alcançar o mercado europeu. Para fazê-los aliados, é necessária uma série de mediações. Do ponto de vista de interesses, o país mais próximo ao Brasil é África do Sul. Há também a Índia, mas a Índia é um caso complicado. E, na América do Sul, ainda é a Argentina. Cristine: O Oriente Médio é, hoje, uma região central para o debate em relações internacionais. Tanto os levantes da Primavera Árabe quanto as diferenças envolvendo a sociedade internacional (como a crise com o Irã em função de seu programa nuclear, por exemplo) somado ao potencial energético ali concentrado fazem da região um fator indispensável dentro de qualquer avaliação de Política Internacional. O Brasil parece ter aprofundado suas relações com o Oriente Médio no governo Lula (mediação de conflitos, etc.). Qual a importância da região para a PEB? Há uma política clara do Brasil para a região? De que forma a participação brasileira nos acontecimentos da região interfere em sua relação com outros atores do cenário internacional, tais como os Estados Unidos? André: Quando o Lula realizou uma visita ao Oriente Médio em 2003, no final do primeiro semestre de governo, fazia praticamente 120 anos que um


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dirigente brasileiro não visitava a região. O último chefe de Estado brasileiro a ter pisado no Oriente Médio fora Dom Pedro II. Isso serve para nos dar uma ideia do quão grande era o distanciamento entre o Brasil e essa região. A ideia do governo Lula era retomar uma aproximação que ocorreu nos anos 1970, e que foi extremamente profícua tanto para o Brasil quanto para vários países do Oriente Médio. Por mais estranho que possa parecer, o Iraque, por exemplo, foi uma parceria estratégica do governo brasileiro. Essa parceria não vingou porque o Iraque afundou nas guerras a que foi submetido e se submeteu. Nos anos 1990, com o recuo do Brasil e com o embargo todo em relação ao Iraque, os países acabaram se afastando. Entretanto, há muito a ganhar no Oriente Médio, seja econômica, política ou diplomaticamente. Do ponto de vista econômico, pode-se falar em um conceito chamado “tecnologia tropicalizada”, que vale tanto para o Brasil quanto para o Oriente Médio – e vale para outros lugares também, claro. É fácil compreender o que é tecnologia tropicalizada a partir de alguns exemplos: um carro popular brasileiro custa aproximadamente U$ 12.000. Com esse valor, não se compra um carro europeu porque, de acordo com a legislação europeia, o carro precisa vir equipado com uma série de elementos, o nível de exigência de conforto dos europeus é mais alto, etc. O Brasil descobriu isso nos anos 1970. Descobriu que seus produtos não só eram adaptados a mercados consumidores do Terceiro Mundo, já que tinham um preço mais baixo e, portanto, uma capacidade de venda maior, como também eram de fácil manutenção. Nos anos 1970, o Brasil se encontrava na condição de um país industrializado que necessitava de um mercado externo para vender seus produtos. Ele passou a vender seus produtos em mercados africanos, por exemplo, concorrendo diretamente com os países desenvolvidos naquilo que eles melhor sabem fazer. Um grande exemplo é a venda de veículos blindados de combate. Do ponto de vista tecnológico, é obvio que um blindado brasileiro não é capaz de enfrentar um blindado norte-americano, mas a vantagem dele é o preço. A grande vantagem é que ele é incrivelmente mais barato, já que a tecnologia empregada é bem menor. Como praticamente não há guerra entre países africanos (conta-se aproximadamente meia dúzia de 1960 até agora), e sim conflitos internos, com repressão civil, social, conflitos étnicos dos mais di-

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versos, não era necessário tanta tecnologia. Assim, para o tipo de conflito na África, o blindado produzido pelo Brasil se tornou muito mais competitivo que o norte-americano. Isso começou a perturbar o mercado norte-americano de produção de blindados, que é praticamente a raiz da economia deles. Esse é um exemplo, mas situações assim também se aplicam às mais diversas áreas, nas quais o Brasil consegue vender um produto, um serviço mais adequado ao tipo de mercado consumidor, que é semelhante ao nosso. Do ponto de vista comercial, há realmente um grande apelo aos nossos produtos nesses mercados. Por isso, se analisarmos o comércio do Brasil com o Oriente Médio nos últimos dez anos, ele se multiplicou várias vezes. Do ponto de vista político, são países que podem apoiar várias frentes brasileiras, porque eles praticamente não concorrem com o Brasil: a economia deles é complementar a nossa. Sendo assim, podem apoiar pleitos brasileiros na OMC, por exemplo, ou para uma vaga permanente no Conselho de Segurança. Aí surge uma ideia nova, que é a figura do Brasil como mediador de conflitos no Oriente Médio. Em 2008, três chefes de Estado do Oriente Médio visitaram o Brasil em uma mesma época. Isso deixou os norte-americanos e as grandes potências europeias, acostumadas à sua suserania na região, enciumados. Antes disso, o Brasil realizara a Cúpula América Latina-Países Árabes, trazendo à mesa outros países da América Latina à discussão. Ainda nesse aspecto político, é preciso lembrar que, quando um país atua como mediador, podem surgir respingos. A questão nuclear é um exemplo disso que merece destaque. Apesar de a questão ser muito longa, tentarei resumi-la. O Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP) se divide em várias partes, mas as duas ideias principais são as seguintes: a não proliferação nuclear, isto é, quem não tem a bomba não fará pesquisa para tê-la; e, por outro lado, o desarmamento nuclear. As grandes potências só falam da não-proliferação e o desarmamento nuclear é deixado de lado. Essa contradição ficou tão aparente, o Brasil enfatizou tanto isso, que finalmente o governo norte-americano revelou quantas ogivas nucleares têm: são 5.000 ogivas. Com isso, a gente se pergunta: mas desde quando os Estados Unidos têm cinco mil ogivas? E a resposta é: desde a Guerra Fria (!). Isso significa que os EUA não desmontaram nenhuma ogiva, ainda que a URSS tenha desmontado algumas.


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Contra quem, afinal de contas, os EUA detêm cinco mil ogivas nucleares? Basicamente, os EUA se colocam como defensores do mundo, mas não querem que ninguém mais tenha tecnologia nuclear. Essa é uma questão na qual o Brasil tem se posicionado, defendendo o uso da energia nuclear para fins pacíficos. Como vocês bem sabem, tecnologia nuclear não serve só para fazer bomba. Em níveis mais baixos, ela serve também para fins pacíficos. É claro que, elevando o nível de radioatividade, pode-se fazer uma bomba. E esse é o grande problema. Como a tecnologia para elaborar a bomba nuclear é da Segunda Guerra Mundial, o verdadeiro obstáculo à criação de uma bomba é a obtenção de material radioativo. Essa obtenção é extremamente controlada. O Brasil, por exemplo, é um comprador de materiais radioativos, já que eles são necessários para fins medicinais. Só que o Brasil, por incrível que pareça, tem um projeto de desenvolvimento nuclear muito semelhante ao do Irã. A diferença é que o Irã está no “Eixo do Mal” – então isso não é aceito. O Brasil articulou o famoso Acordo de Teerã, por meio do qual o Irã concordou que uma parte de seu material radioativo seria enriquecido por outros países, e a Turquia seria o local neutro para fazer a troca do Urânio menos enriquecido pelo mais enriquecido. O Brasil conseguiu costurar o acordo, mas os norte-americanos não gostaram, afinal, a iniciativa tinha sido brasileira. Há muita coisa por trás disso, é claro, mas a questão é que o Brasil tem tido muitas iniciativas em relação ao Oriente Médio e, pode-se, sim, apontá-lo como um possível novo mediador. O Brasil não tem armas, é fato, mas talvez o Oriente Médio esteja precisando menos de armas e mais de negociação diplomática, e isso o Brasil faz bem. Cristine: Voltando-nos, agora, para a América Latina, região sobre a qual o senhor publicou um livro em parceria com Luiz Moreira e Marcela Quinteros (“As Relações Internacionais da América Latina”, Editora Vozes, 2010). No Paraguai, a energia tem sido mobilizada como instrumento político. Com Lugo, a renegociação com o Brasil do preço pela venda da energia de Itaipu foi um dos principais argumentos da campanha que levou à sua eleição; com Federico Franco (que passou a ocupar a presidência paraguaia com a deposição de Lugo) o discurso assumiu tons mais graves, chegando a ser divulgada nota no site da presidência, em 8 de agosto deste ano, no sentido de que “O Paraguai não está disposto a seguir cedendo sua

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Política Externa Brasileira: oportunidades e desafios em um mundo em reordenação

energia para o Brasil e a Argentina”. Deste cenário surgem alguns questionamentos, como: a. Estaria o Paraguai – e, melhor falando, a cúpula que derrubou Lugo - contando com apoio internacional para sustentar um discurso tão duro contra Brasil e Argentina? b. Como se altera/desenha a geopolítica da energia na América do Sul com estes acontecimentos? Quais os riscos que podem advir para o Brasil? André: Há uma série de injunções no que se refere ao Paraguai. Em primeiro lugar, acredito que realmente houve um golpe de Estado, apesar de as alegações de que “a Constituição permite”. A Constituição que permite a destituição do presidente em um dia, sem direito à ampla defesa, demonstra a fragilidade institucional do país. Mas isso é outra história. Há muita coisa que chama a atenção na questão do Paraguai, e a primeira delas é rapidez com que Lugo aceitou a destituição. Ele poderia ter se valido da parte das Forças Armadas leais a ele para retardar o processo tempo o suficiente para que os mecanismos do MERCOSUL e da UNASUL entrassem em ação. Particularmente, para mim isso até hoje não ficou muito claro. Agora, falemos sobre a questão energética. A energia da Hidrelétrica de Itaipu, todos sabem, é dividida meio a meio em função dos acordos de Itaipu. A área pertencia ao Brasil, mas, em 1965, os paraguaios invadiram o Brasil reivindicando a posse da terra alegando que ela fora apropriada pelos brasileiros durante a Guerra do Paraguai. Esse incidente, chamado “Incidente de Porto Coronel Renato”, é pouquíssimo conhecido. Como era uma área em disputa e os paraguaios sabiam que o Brasil pretendia construir uma hidrelétrica na região (só que menor e mais espalhada), o resultado da negociação entre Brasil e Paraguai foi o seguinte: construir uma hidrelétrica na região e fazê-la binacional. Entretanto, os paraguaios não tinham dinheiro. Como forma de compensação, eles pagariam com a sua metade da energia produzida: da metade paraguaia, 90% seria vendida para o Brasil. O Lugo [Fernando Lugo, presidente paraguaio eleito em 2008] elegeu-se, tendo como uma de suas bandeiras, a renegociação da dívida externa do Paraguai e do preço da energia, calculando-a sobre o valor de mercado e não sobre o custo de produção – o que foi obtido por ele em 2009. Isso foi uma operação contábil, que, de fato, aumentou de 120 milhões para 360 milhões de dólares a transferência do Brasil para o Paraguai como pagamento por essa energia que o Paraguai não consome.


Convidado: André Luiz Reis da Silva

Só que esse acordo deixou insatisfeita tanto a oposição brasileira, que criticou o Brasil por ter cedido ante o Paraguai, quanto a oposição paraguaia. Passou a existir essa tensão permanente. No que se refere ao pós-golpe, o Federico Franco está falando grosso porque essa é uma postura comum na América Latina. Há instituições que fazem o contraponto a isso, que impedem que um conflito entre Estados vá para “as vias de fato”. Para os próximos seis meses, penso que o Paraguai tomou a lição, que foi a entrada da Venezuela no MERCOSUL, algo que vinha sendo impedido pelo Senado desde 2006. Então, ele fica suspenso do MERCOSUL até as próximas eleições democráticas, que ocorrem em cerca de seis meses. Um caso interessante, já que na situação do Paraguai conseguiu-se a aplicação de sanção política sem sanção econômica. Marc: Ainda sobre o contexto latino-americano, a suspensão paraguaia do MERCOSUL (em função do descumprimento da cláusula democrática) foi acompanhada da entrada da Venezuela no bloco. Quais as consequências mais visíveis destes movimentos para a dinâmica inter-regional e as relações internacionais da América Latina? André: Foram movimentos importantes na história da América Latina, já que a suspensão de um país é algo que nunca havia acontecido no MERCOSUL. O MERCOSUL foi construído em meio a um processo de democratização, que é um valor extremamente importante para os países do bloco - a própria Venezuela deve seguir esse caminho. Querendo ou não, o que ocorreu com o Paraguai deve deixar um trauma, mas não uma cicatriz profunda, já que vai ser algo rápido. Se não fosse um governo no final de mandato, aí seria mais complicado, mas uma suspensão de seis meses, que não é sequer uma suspensão econômica, não causa tantas cicatrizes. Especialmente porque o Paraguai depende do Brasil do ponto de vista econômico. Se analisarmos a economia paraguaia, ela sobrevive com a exportação de soja e a venda de energia elétrica para o Brasil, o que causa uma dependência muito grande. Crises no MERCOSUL existem há vinte anos, mas isso faz parte do jogo. Como ele funciona por consenso, todos devem ceder um pouco para chegar à decisão.

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A Integração Regional em análise: estrutura e movimentos recentes do processo no MERCOSUL Raphael Carvalho de Vasconcelos

Realizada em 31/08/2012


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Raphael Carvalho de Vasconcelos. Cumpre atualmente o mandato brasileiro na Secretaria do Tribunal Permanente de Revisão do MERCOSUL (Secretário do Tribunal - Direção Administrativa do Tribunal). É professor assistente da Faculdade de Direito do Instituto Três Rios da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) - afastado para servir a organismo internacional. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Doutorando em Direito Internacional na USP e Doutorando em Direito internacional na UERJ. Frequentou como estudante visitante as universidades de Passau (Uni-Passau), na Alemanha, e de Buenos Aires (UBA), na Argentina. É professor convidado do Curso de Pós-graduação - Especialização em Direito Internacional - da Escola Paulista de Direito (EPD). Possui diversos artigos e capítulos de livros publicados e se dedica aos estudos de direito internacional e de processos de integração regional, especialmente do MERCOSUL. Marc Antoni Deitos: Raphael, alguns dos seus trabalhos discutem a regulação das relações internacionais e refletem sobre a unidade e fragmentação do ordenamento jurídico global. Desde o nascimento do Estado Moderno, assistimos ao surgimento de novos atores no cenário internacional, como, por exemplo, as organizações internacionais que, por sua vez, também criam direitos e deveres internacionais. Entre as ordens de regras criadas por Estados, organizações internacionais, e eventualmente outros sujeitos, o senhor defende que existe uma unidade do direito internacional. Como o estudante de relações internacionais pode entender essa unidade? E qual a importância de reconhecer a unidade do ordenamento internacional para as relações internacionais? Raphael Carvalho de Vasconcelos: São frequentes as acusações de que o direito internacional está fragmentado, já que existem sistemas jurídicos com racionalidades específicas que se sobrepõem na ordem internacional: há o sistema do MERCOSUL, que está inserido no sistema da ALADI; ambos [sempre sem que exista uma relação hierárquica] estão inseridos no sistema da OMC, que cuida das questões econômicas. O sistema da ONU, por sua vez, se relaciona com questões de cunho mais político. Há, ainda, o Sistema Interamericano


Convidado: Raphael Carvalho de Vasconcelos

de Direitos Humanos, o Sistema Europeu de Direitos Humanos, entre tantos outros. Em outras palavras, cada organização internacional (OI) que surge cria um sistema jurídico distinto – em alguns casos, não é necessário nem mesmo a existência de uma OI, apenas a de um tratado que preveja algum tipo de sistema de solução de controvérsias, criando um sistema internacional distinto. As pessoas observam essa conformação atual da ordem internacional e tiram uma espécie de fotografia do momento, passando a descrevê-lo como se fosse um dado, uma questão definitiva, uma nova forma de estruturação do direito internacional. As pessoas desconsideram que o direito internacional está em processo evolutivo e que - à medida que caminhamos no processo de construção do direito internacional - esses sistemas tendem a se comunicar e a se estruturar de forma a preservar a unidade. Costumo dizer que as pessoas tiram a fotografia de um momento e, a partir dessa fotografia, que é um recorte estático de determinada situação, teorizam como se estivessem diante de um panorama – o que não é verdade, pois estamos diante de um ponto de um processo em evolução. Para falarmos de unidade e fragmentação, é necessário, primeiramente, estabelecermos o que é unidade e por que a unidade do direito internacional é tão discutida. No Direito, quando observamos a ordem interna de um país como, por exemplo, o Brasil, o funcionamento do sistema jurídico é facilmente identificável. É possível definir de modo claro o que é o Poder Legislativo, bem como a sua função, que é de criar a norma. O Legislativo observa a sociedade e extrai dela determinados ditames, que são cristalizados nas leis. O Poder Judiciário, por outro lado, interpreta a normatividade, extraindo das leis o seu significado. É tudo muito claro. Espera-se que não exista no plano interno a antinomia, que seria o conflito entre as leis. Caso exista esse conflito, há uma série de regras e órgãos para solucioná-lo. Ou seja, existe no plano interno uma unidade sistêmica. Transportemos, agora, esse problema para a ordem internacional. Existe, de forma clara, um marco legal que estabeleça o que é competência do MERCOSUL legislar e o que é competência da UNASUL? Não existe uma “Constituição Mundial” que estabeleça a competência de órgãos regionais econômicos sobre temas A, B, C e D. Existe um Poder Judiciário estruturado na ordem internacional para solucionar os conflitos que existam entre uma norma criada

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no MERCOSUL e outra na UNASUL? Não há a norma que estabelece o que é competência de quem, tampouco um órgão hábil a solucionar esse conflito de normas que pode existir entre as organizações internacionais. Isso leva muitos a afirmar que o direito internacional é fragmentado. O contexto atual do direito internacional carrega, é verdade, características de fragmentação. Entretanto, cada um dos sistemas que integram o direito internacional têm contidos em sua normativa, em regra, algo que vislumbre um outro sistema de normas ou um outro sistema de solução de controvérsias. Esse é o caso do MERCOSUL, que faz clara alusão à OMC em seu tratado que regulamenta a solução de conflitos. Além disso, cada vez mais nas decisões emanadas nos tribunais internacionais, não são feitas referências apenas ao seu marco legal. Tem-se observado o que o marco legal de outro sistema determina - uma atitude própria do Direito, que busca a coerência. Resumidamente, defendo a unidade do direito internacional porque, em um plano lógico-jurídico estabelecido, o próprio sistema internacional está buscando formas de manter a sua unidade, seja no momento da produção da norma, seja na solução de uma controvérsia. De modo bastante prático, essa é a forma como o direito internacional está buscando a manutenção da sua unidade. Pode ser que ainda exista uma aparente fragmentação, mas, se existe, é passageira e está caminhando, aos poucos, para a sedimentação da sua unidade. Em um segundo plano, ainda há um núcleo principiológico, um núcleo duro de direitos, comumente denominados “direitos humanos”, que pode vir a garantir a unidade do direito internacional. Os direitos humanos já embasam o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, já pautam as intervenções humanitárias das Nações Unidas e, até mesmo, já influenciaram decisões da Organização Mundial do Comércio que, em tese, possui uma racionalidade puramente econômica. Se a unidade não é feita de forma expressa no momento da elaboração do tratado ou da solução da controvérsia, ela pode vir pela consolidação dos direitos humanos como um princípio que orienta toda a ordem jurídica internacional. Cristine Koehler Zanella: Raphael, vamos ingressar agora na questão da integração regional. A América do Sul e, mesmo a América Latina – se ampliarmos o espaço geográfico - possuem uma boa experiência nestes processos de estreitamento


Convidado: Raphael Carvalho de Vasconcelos

de laços políticos e econômicos entre Estados. No caso brasileiro, entre as diversas iniciativas das quais o país participa, podemos citar a ALADI, a UNASUL, a CELAC e o MERCOSUL, organismo no qual o senhor trabalha como Secretário do Tribunal Permanente de Revisão. Essa profusão de processos de integração não faz com que seus objetivos acabem se sobrepondo e se confundindo? Não seria mais interessante que os países focassem suas atenções para o reforço de apenas um processo de integração? Raphael: As organizações precisam ser analisadas dentro das suas limitações. É comum nos questionarmos sobre os processos de multilateralização e globalização. O Brasil, por exemplo, faz parte de um processo multilateral, como a OMC, e faz parte também do MERCOSUL. Diante da participação brasileira na UNASUL e no MERCOSUL, alguns se perguntam se não seria melhor reunir os membros de ambas para formar uma única nova organização. Acredito que não, isso não seria lógico. Um processo regional ou multilateral não elimina o outro. Quando uma organização como a UNASUL é criada, é visível que suas características são eminentemente políticas. É uma organização que busca, no seu estágio atual, trazer um tipo de discurso político unificado entre os países da América do Sul. Nos últimos meses, diante da crise no Paraguai, isso deu certo – o que fortaleceu a região. No âmbito do MERCOSUL, há uma organização que, diferentemente da UNASUL, tem uma razão de ser eminentemente econômica. É muito difícil convencer o Chile, por exemplo, a ingressar como membro-pleno do MERCOSUL. Imaginem o Brasil se concentrando na eliminação do MERCOSUL e na centralização de sua política externa na UNASUL! O país dificilmente conseguiria criar uma organização regional com as características econômicas aprofundadas, como as que existem no MERCOSUL. Por outro lado, se ele buscasse trazer os Estados que compõem a UNASUL para o MERCOSUL, ele teria o mesmo tipo de limitação. É como se fosse uma repartição de competências. No âmbito multilateral, há a Organização das Nações Unidas, que, com todos os seus problemas e disparidades, é o possível de ser feito quando se reúnem cerca de duzentos Estados-membros. Em um âmbito reduzido, como o da UNASUL, consegue-se ter um discurso mais coeso, um pouco mais de harmonia. Por outro lado, o nível

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de integração que se consegue no MERCOSUL é muito maior do que o obtido na OMC. Falei tudo isso para poder chegar à questão da finalidade de cada um desses processos de regionalização e multilateralização. O MERCOSUL, ainda que se possa observar em sua gênese o objetivo de evitar um embate político entre o Brasil e a Argentina, é, claramente, uma organização de características econômicas. Apesar de o preâmbulo do Tratado de Assunção, que é o tratado constitutivo do MERCOSUL, tratar também de outros temas, não se pode negar que o objetivo central era reduzir barreiras econômicas, abrir mercados entre os países-membros e produzir alternativas para uma negociação em “bloco” no âmbito internacional. A perspectiva de conceder facilidades à circulação de pessoas e serviços foi algo posterior, que acabou não acontecendo por uma série de idiossincrasias dos Estados e até mesmo por limitações de direito interno. Essas limitações atrapalham a livre circulação de pessoas e, por que não dizer, de bens – passados 20 anos, ainda não se conseguiu a criação do mercado comum de fato. Apesar de tudo isso, o MERCOSUL não trata apenas de questões econômicas. A organização conseguiu avançar significativamente em outros temas. O Instituto Social do MERCOSUL - que assim como o Tribunal, é sediado em Assunção – é um órgão criado para articular políticas sociais entre os Estados, facilitando o intercâmbio de informações entre eles para que possam compartilhar e, quiçá, criar uma política social comum. Outra iniciativa é o Fundo de Convergência Estrutural do MERCOSUL (FOCEM). Por meio do FOCEM, por exemplo, o Brasil, que é o mais rico dos países integrantes do MERCOSUL, contribui com o desenvolvimento dos demais membros, especialmente Paraguai e Uruguai. Essas ações, que se intensificaram nos últimos anos com a ascensão dos governos mais à esquerda nos países-membros, fazem com que o MERCOSUL, apesar de ter o foco econômico, consiga avançar também em outras áreas. Cristine: Um dos patrimônios que a integração regional pode legar aos países que dela fazem parte é a consolidação de processos e princípios, tais como o democrático. Esse patrimônio, apesar de imaterial, contribui para a estabilidade das regiões e para assegurar mínimas condições de respeito aos direitos políticos dos cidadãos dos países-membros. Recentemente o senhor pode acompanhar, diretamente da capital


Convidado: Raphael Carvalho de Vasconcelos

paraguaia, a destituição do presidente Fernando Lugo. Como alguém que acompanhou de muito perto estes acontecimentos, tanto por estar em Assunção quanto por ser Secretário do TPR, o que o senhor tem a nos contar sobre o desenrolar dos fatos que levaram à destituição? Raphael: O Paraguai é um país muito peculiar. Brinca-se que, se houvesse a modalidade “impeachment” nas Olimpíadas, eles ganhariam medalha de ouro por conseguir fazer um em 24h. Acredito que há uma dificuldade muito grande da parte de Brasil, Argentina e Uruguai em compreender a República do Paraguai. Algo que me chamou muita atenção quando cheguei ao Paraguai, em janeiro de 2012, para assumir o cargo na secretaria do TPR, foram as manchetes dos jornais paraguaios. Não foi após a suspensão do Paraguai do MERCOSUL que começou a se falar mal da organização, a se criar conflitos com o MERCOSUL e a se tratar o Brasil como império – pude visualizar isso desde as minhas primeiras semanas no país, quando Lugo ainda estava no poder e o Paraguai participava ativamente do MERCOSUL. Era algo que me intrigava muito, o que me levou a conversar com os colegas paraguaios para tentar entender o que se passava. Resumidamente, há um grupo que detém o poder no Paraguai e esse grupo se utiliza do estímulo à xenofobia do povo paraguaio para se manter no poder. No Paraguai existe um fomento constante da ideia de que todas as mazelas e todos os problemas do Paraguai se devem ao estrangeiro, àquele que é de fora. A “culpa central” é que a pobreza do país se deve à Guerra do Paraguai. Fala-se da Guerra, conhecem-se seus eventos, como se ela tivesse ocorrido na década de 1990. Há certos termos pejorativos para se referir a argentinos e brasileiros e, não raro, trata-se o Brasil como império – não porque o Brasil é imperialista, mas como uma herança da guerra, quando o Brasil era, de fato, Império. Esses valores xenófobos que são largamente disseminados e fomentados por essa estrutura de poder que comanda o país há tantos anos, faz com que Brasil e Argentina não sejam vistos como países-irmãos, interessados em ajudar. Pelo contrário, tem-se a imagem de que Brasil e Argentina são dois países “maus”, que buscam usurpar do Paraguai suas riquezas. Hoje em dia, a grande riqueza usurpada do Paraguai seria a riqueza energética. A pauta dos jornais constantemente fala sobre

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a Usina de Itaipu, dividida com o Brasil, e sobre a Usina de Yaciretá, dividida com a Argentina, como se a energia das usinas hidrelétricas estivesse sendo roubada. O presidente que quebrou essa rotina foi o presidente Lugo. A perspectiva dele era diferente: buscava o diálogo com os países do MERCOSUL e acreditava na organização como forma de fortalecer o Paraguai. Isso aparecia em suas manifestações, fazendo assim um discurso oposto ao do Congresso paraguaio. Nesse embate, há anos havia a ameaça de que Lugo cairia do poder. Em todo esse contexto, na véspera do golpe – que ocorreu entre os dias 21 e 22 de junho de 2012 – reinava a normalidade no país. Não havia indícios de nada. Na quinta-feira, dia 21, quando cheguei à recepção do TPR pela manhã, a recepcionista, uma paraguaia, me recebeu com os olhos arregalados e disse que a Câmara estava preparando a denúncia do presidente para o juízo político. Eu ri. Na hora do almoço, todos os funcionários brasileiros, argentinos e uruguaios do Tribunal ainda estavam tranquilos: imaginava-se que aquilo era algo que se resolveria naturalmente. Os paraguaios, em contrapartida, estavam muito tensos. No fim da tarde, nós éramos os estressados. A denúncia havia sido feita e enviada ao Senado para que fosse votada no dia seguinte. À noite, começaram a chegar as notícias de que os chanceleres da UNASUL - que estavam todos no Rio, reunidos em função da Rio+20 - tendo consultado suas capitais e se reunido para deliberar, iriam ao Paraguai. No dia seguinte, todos os funcionários do TPR estavam reunidos para observar a defesa do Lugo, que seria transmitida pela televisão. Foi extraordinário. O advogado de defesa mostrou para as câmeras que a sentença não só estava pronta, como assinada pelo presidente do Senado. Lugo havia sido condenado antes de apresentar sua defesa. Decidimos sair do Tribunal e ir para a praça, onde encontramos funcionários de outros órgãos do MERCOSUL e da embaixada do Brasil. Resumidamente, quando saiu a condenação, olhamos ao redor e percebemos que os paraguaios ao nosso entorno estavam chorando. Todos muito emocionados. Menos de quinze minutos depois, a multidão começou a se movimentar: eram os policiais atirando gás lacrimogêneo. Uma decisão totalmente arbitrária da polícia paraguaia. Ninguém estava fazendo nada de errado, era uma manifestação pacífica. Naquela mesma noite, Lugo


Convidado: Raphael Carvalho de Vasconcelos

aceitou a renúncia. Quanto à acusação, não havia provas. A acusação alegava que não eram necessárias provas, pois se tratavam de “fatos notórios”. Na semana seguinte, ocorreu a Cúpula dos Presidentes do MERCOSUL em Mendoza – já com o Paraguai suspenso. Em Mendoza decidiu-se pela suspensão do Paraguai dos órgãos do MERCOSUL com base na Cláusula Democrática e o ingresso da Venezuela. O ingresso da Venezuela foi muito surpreendente, inclusive para embaixadores do primeiro escalão do Itamaraty. Quando houve o anúncio da presidente Cristina Kirchner, o som que se ouvia era “oooh”. Foi uma surpresa para muita gente, muita gente mesmo. No dia 9 de julho, o Paraguai entrou com uma demanda no Tribunal Permanente de Revisão – uma “medida de urgência”. Por tratado, a medida de urgência deve ser resolvida em poucos dias: os Estados, após a notificação, têm três dias para se manifestar, e os árbitros têm 6 dias para tomar uma decisão. O Tribunal decidiu basicamente sobre dois aspectos. Primeiramente, observou-se que a medida de urgência não era cabível para a questão da cláusula democrática em razão dos requisitos econômicos (produtos perecíveis) claramente estabelecidos em sua regulamentação. No que se refere à competência originária do TPR, como o próprio nome já sugere, o TPR seria uma segunda instância no sistema de solução de controvérsias do MERCOSUL. Antes de recorrer ao TPR, os Estados devem recorrer aos tribunais ad hoc. O acesso direto ao TPR só pode ocorrer se os Estados envolvidos na controvérsia estiverem de acordo com isso – e Brasil, Argentina e Uruguai em nenhum momento haviam se manifestado sobre esta possibilidade. Em resumo: era a ação errada, na instância errada. Foi isso que o TPR decidiu no laudo arbitral. Ele não chegou a analisar as questões de fundo. Nem a suspensão, nem o ingresso da Venezuela. Por outro lado, deixou-se muito claro que o sistema de solução de controvérsias do MERCOSUL estava aberto ao Paraguai, mesmo estando o país suspenso. Essa decisão do TPR foi extremamente mal recebida, tanto pela imprensa paraguaia – o que já era esperado – quanto pela chancelaria do país. A decisão foi recebida como se o Paraguai tivesse “que se rebaixar aos tribunais ad hoc”. Os árbitros do tribunal, entretanto, simplesmente implementaram os tratados assinados pelos países-membros do MERCOSUL.

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Dentro das limitações, foi uma decisão extremamente coerente, que resultou em muito respeito ao Tribunal Permanente de Revisão – não por ter “favorecido” a postura de Brasil, Argentina e Uruguai, mas por ter interpretado o direito de forma muito responsável, afirmando-se como o órgão mais importante – e mais independente, já que as chancelarias não controlam as decisões do TPR – do MERCOSUL.


A paz passa pelo discurso: a contribuição da linguística para a mediação de conflitos políticos internacionais Stéphane Rodrigues Dias

Realizada em 28/09/2012


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Stéphane Rodrigues Dias. Doutoranda em Linguística, Mestre em Letras e Licenciada em Letras Língua Portuguesa/Língua Inglesa e respectivas literaturas, todos pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Integra o Grupo de Pesquisa ‘Lógica e Linguagem Natural’ (PUCRS), no qual desenvolve estudos na interface Comunicação/Cognição/Lógica, centrando-se nos processos inferenciais dialógicos. Em sua pesquisa de doutorado, avalia uma posição metateórica acerca dos estudos intra e interdisciplinares, investiga um modelo de racionalidade dialógica, bem como defende uma proposta de mediação de conflitos a partir de uma perspectiva dialógica biosocial, levando em consideração a importância dos artistas enquanto atores fundamentais no processo de paz. Marc Antoni Deitos: Stéphane, como o seu currículo nos revela, você tem centrado suas pesquisas nos “processos inferenciais dialógicos”. Como estamos entre acadêmicos de relações internacionais e, portanto, não estamos habituados com essas expressões próprias da sua área, você poderia nos explicar o que significam estes “processos inferenciais dialógicos” e qual a importância de compreendermos, nas relações internacionais, os seus mecanismos de funcionamento? Stéphane Rodrigues Dias: A Linguística pode ser definida como a(s) ciência(s) da linguagem. É uma área interdisciplinar que trata de fenômenos linguísticos, quer seja na sua relação formal, ligada à lógica e à computação, quer seja na sua interface natural, como é o processamento da linguagem no cérebro. Há também a parte da comunicação, que é aquela sobre a qual irei falar hoje. A linguagem é utilizada para socializar experiências, para modificar crenças, para conectar pessoas no tempo e no espaço. A inferência enquanto objeto de estudos remonta ao trabalho de Aristóteles, que desenvolveu um estudo detalhado acerca da racionalidade humana e que nos legou um sistema lógico extremamente frutífero, tendo em vista que ainda é a base para muitos modelos atuais, embora tenha se mostrado limitado em muitos aspectos. Inferir, uma habilidade que se tem como universal, a partir da análise de dados a respeito do comportamento humano ao longo de sua evolução, nos permite extrair conclusões de um conjunto de premissas. Esse é um mecanismo essencial ao nosso aprendizado (ao nos valermos dele para conhecermos e pensarmos, ao selecionarmos, relacionar-


Convidado: Stéphane Rodrigues Dias

mos e gerarmos novas informações a partir de certos conteúdos), para representarmos informações para nós mesmos e modificarmos o universo de representações dos outros. Ou seja, a fim de nos comunicarmos, de modo a expressarmos indícios daquilo que desejamos compartilhar, já que é inviável explicitarmos todas as premissas de nossos cálculos inferenciais, por questões de economia. Dessa forma, nos conectamos uns aos outros todo o tempo, dizendo e inferindo uma série de conteúdos, embora não pensemos muito como fazemos isso, nem na Escola, nem na Universidade, infelizmente. A inferência, assim, faz parte de uma habilidade central do aparato cognitivo humano que nos permite estabelecer relações com objetos e com outras cognições, e que os gregos já sinalizavam como fundamental às três dimensões humanas em relação ao uso da linguagem: conhecer, pensar e comunicar; além de sentir, como argumenta o Prof. Jorge Campos. No tocante às inferências dialógicas, faço menção ao processo inferencial desencadeado por meio de diálogos, isto é, ao processo que está na interface comunicativa da linguagem. Nesse processo, pessoas manipulam formas linguísticas e não linguísticas (como movimentos corporais, expressões faciais, sons, imagens, vestimentas, objetos) com a intenção de se aproximar e interagir. Isso significa que querem estabelecer relações psicofísicas (Teoria da Conectividade Não Trivial, JORGE CAMPOS DA COSTA 2004) e de alterar seu próprio conjunto de crenças e o de outras pessoas, ou seja, com intenções comunicativas (Teoria da Relevância, DAN SPERBER e DEIDRE WILSON 1995). A alteração do conteúdo do que pensamos e cremos é de extrema importância para tomadas-de-decisão. E essa é a questão mais interessante no campo de Relações Internacionais: observar que as decisões diplomático-políticas se manifestam por meio de diálogos, uma vez que representam a forma mais sofisticada de comunicação e que, no fim, visam a tomadas de decisão justificadas. Por que discutir posições e comunicar decisões, afinal? Uma das razões essenciais é a de ter a garantia de que as decisões tomadas estão justificadas em crenças compartilhadas. O diálogo é, assim, o ambiente democrático por excelência. Isso, é claro, se dá em condições ideais, diferentemente do que presenciamos todos os dias no ambiente político, em que complexidades de diferentes ordens atuam. A questão central aqui é compreendermos a sofisticação da engrenagem comu-

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nicativa humana, para que nossos comunicadores sejam mais bem preparados para interpretá-la e para manipulá-la. Assim, sabendo-se que qualquer diálogo assume um conjunto de informações manifestas aos comunicadores (crenças que os dialogadores possuem), que há intenções (nem sempre explicitadas), que há ditos e implicados (e que buscamos justamente decifrarmos os últimos), que as gramáticas das línguas atuam, que as crenças dos dialogadores influenciam, que emoções são elementos centrais no processo, que as pessoas têm intuições; ou seja, quando tomamos ciência de toda a complexidade envolvida em um diálogo humano, tendemos a nos preparar melhor em situações em que o diálogo é crucial – como no caso da área de RI. Cristine Koehler Zanella: Vamos explorar, então, o diálogo. Partindo da ideia de que o diálogo não é um dado, mas um construto (isto é, ele é construído conforme crenças, intenções, etc.), conhecer a forma pela qual se constrói o diálogo é fundamental para que o resultado de um processo de negociação seja melhor conduzido. Formulado assim abstratamente, isso é fácil de compreender. Você está desenvolvendo a sua tese de doutorado enfatizando essa ideia aplicada a situações internacionais bastante conflituosas, como é o caso da questão Israel-Palestina. Em situações de posições tão polarizadas, como esta Israel-Palestina, você pode nos dar exemplos que auxiliem a compreender como a estrutura do diálogo entre as partes contribui para a mediação do conflito? Quais as ferramentas linguísticas que estão à disposição dos interlocutores políticos internacionais para a mediação de questões como esta? Stéphane: Há algo paradoxal envolvendo as habilidades linguísticas e dialógicas: a aptidão para a linguagem é tida como universal. As pessoas, independentemente de sua cultura, são aptas ao uso da linguagem, à comunicação. Isso se revela intrigante quando pensamos que o diálogo é, também, um problema universal. Há uma aptidão universal para o contato dialógico e ele, ainda assim, é problemático. O caso de Israel e Palestina é emblemático para refletirmos sobre isso. Já não tomamos o conflito no Oriente Médio como um caso isolado no espaço, pois ele possui uma história dialógica que ultrapassa as fronteiras dos países diretamente envolvidos e afeta diretamente a vida das pessoas ao redor do mundo. Em primeiro lugar, a duração desse conflito é um elemento relevan-


Convidado: Stéphane Rodrigues Dias

te; em segundo lugar, a quantidade de tentativas de diálogo frustradas durante esse tempo é outro elemento considerável. Isso, então, nos levaria a crer que o diálogo, embora condição necessária, não é condição suficiente para a resolução de conflitos desse tipo – posição amplamente aceita. Defende-se aqui, no entanto, que a resolução dos conflitos se daria por atos dialógicos, tendo em vista a conexão entre as partes, o pedido para o fim do conflito e o encaminhamento da resolução, que seriam muito mais eficazes. Mas analisemos mais de perto o mecanismo dialógico e sua utilização na interação humana. Pensemos que lidamos, nesse campo, com entidades como pessoas e grupos político-religiosos, o que exige um tratamento compatível por parte dos profissionais que atuam na área. No universo teórico, Noam Chomsky é um dos defensores do diálogo. É um tanto inusitado que Chomsky, um teórico notável na área política, seja também um linguista notável, mas que seu trabalho, considerado um dos mais importantes já desenvolvidos, não faça interface entre as duas áreas de investigação. Isso porque Chomsky não pesquisa a interface comunicativa da linguagem, justamente a que me proponho discutir aqui: as relações de influência mútua obtidas por meio de atos de linguagem. No caso específico Israel-Palestina, temos muitos elementos de diferentes ordens envolvidos, o que torna o problema complexo. Como eu assumo, seguindo Jorge Campos da Costa, que a contribuição teórica é o tratamento do fenômeno genérico e não do caso específico, tomo o caso Israel-Palestina como ilustração de uma questão tratável por um modelo dialógico. Assim posto, temos, sobretudo, elementos como crenças, sejam elas religiosas ou não, bem como questões emocionais, sejam elas tratáveis no escopo de uma racionalidade ou não, envolvidas. Assim, o conteúdo de certas proposições vai afetar determinados grupos diferentemente, sabendo-se que há tipos de conteúdos e formas de expressão mais impactantes para (grupos de) alguns indivíduos do que para outros. Isso não está distante do comportamento de outras espécies do reino animal, em que certos animais baixam a cabeça em posição de não enfrentamento. Conhecendo a mente dialógica de um grupo, então, é fácil prever reações - assim como nós prevemos reações ao falarmos com o namorado ou com a mãe, pois conhecemos como aquela pessoa tende a operar, a partir do conhecimento sobre suas crenças e tomadas de decisão. Pois bem, o modo de

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expressão e o conteúdo são elementos fundamentais nas mediações, pois são o principal meio de contato entre as partes. Em casos de conflito já estabelecido, estamos cientes de que há uma indisposição prévia entre as partes, de forma que o diálogo será conduzido de modo condicionado – intuitivamente sabemos disso, por isso evitamos falar com determinadas pessoas ou tratamos elas diferentemente, tendo em vista indisposições dialógicas. Para além, é inevitável mencionarmos relações de poder, pois dialogar implica relações nem sempre simétricas, ou seja, uma das partes possui condições de força (tanto externas ao diálogo, quanto força persuasiva) que podem não ser aceitáveis pela outra parte – seja ela imposta pelo dialogador ou socialmente aceita. Assim, colocar dois grupos antagônicos em diálogo em situações não ideais parece não ser uma boa estratégia. Ademais, é fácil julgarmos o que não conhecemos, e nem sempre os argumentos e crenças são claros para todos os dialogadores. Desse modo, quando nos distanciamos das pessoas e das crenças envolvidas, tendemos a fazer as nossas próprias regularem nossas posições e tomadas de decisão. Temos, assim, que buscar: primeiro: um ambiente dialógico não polarizado, isto é, sem indisposição; segundo: condições de diálogo que facilitem um curso de negociação mais positivo, e, para isso, podemos acrescentar elementos no diálogo: como mediadores neutros. Logo, como tratar com o Oriente? Buscando compreender a mente oriental, essencialmente no que se refere às crenças político-religiosas, centrais para a boa condução de um verdadeiro diálogo, em que se busca compreensão e em que o respeito é a base. Ao mesmo tempo, buscar compreender as crenças do outro nos permite verificar o status de nossas próprias crenças e operar por pontos de convergência. Isso implica, no entanto, uma consciência, e parece que esse caminho é difícil. O caminho mais rápido tende a ser o emocional, e, assim, a Arte mostra-se um elemento central. Sobre a questão, há um autor chamado Paulo Soares, que defende a importância dos artistas como líderes no processo de paz. Nesse sentido, estou buscando explicações dialógicas para essa posição, a fim de fazê-la compreensível para pessoas interessadas na relevância desse tipo de proposta. Cristine: Você também trabalha especialmente com o diálogo artístico como ferramenta de mediação de conflitos. No trabalho “From assumptions to actions and


Convidado: Stéphane Rodrigues Dias

vice-versa: the dialogical rationality and the Expressive Dialogue as a form of mediation” você afirma que “sempre que vemos um discurso artístico do qual gostamos, ele ultrapassa fronteiras religiosas e políticas, estabelecendo um contato dialógico entre um grande grupo de ‘dialogadores’, isto é, pessoas agrupadas por e em função de um determinado discurso” (2012). Gostaríamos de saber: i) você se refere a uma arte que se proponha a desempenhar este papel de meio para mediação de conflitos? Quer dizer, ao defender esse potencial papel para a arte, você está se referindo ao potencial de algumas expressões artísticas já existentes ou a uma arte que deveria ser fomentada justamente para esse fim (de mediar conflitos)? Se for em relação à arte que tenha como fim esse objetivo de mediar conflitos, quais os critérios para considerá-la como tal? Quem irá definir que determinada arte é potencialmente apta a solucionar conflitos? Stéphane: Eu me refiro às artes existentes. Os artistas, com sua arte, têm um apelo fascinante sobre grandes grupos. Entender o mecanismo desse tipo de diálogo (já que se trata de um processo de contato comunicativo entre pessoas) torna o processo bastante claro. O diálogo artístico ou expressivo, como eu o denomino em meu trabalho, é um tipo de diálogo assimétrico – isto é, de muito poucos (os artistas) para muitos (seus fãs ou apreciadores). A sua linguagem é a arte. Ou seja, o artista não entra em contato direto com seu público, senão por intermédio da sua arte. É a arte a linguagem comum, e a arte é uma linguagem com grandes vantagens. Em princípio, ela é universal (assume-se), pois trabalha com imagens, sons, movimentos corporais, etc., que são elementos essencialmente não simbólicos (a relação entre formas e conteúdos não é convencional) e não composicionais (a compreensão do todo não depende da compreensão das partes, de sua ordem e regra de combinação); assim, a arte não age sobre a parte mais racionalizadora do nosso sistema, age diretamente no emocional. Isto é, quando a linguagem é atraente e bem comunicada, nós nos emocionamos e nos desarmamos, como resultado de nosso sistema emocional sofisticado. Os artistas, consequentemente, como falantes dessa linguagem, têm papel central em situações que pedem mais emoção e menos racionalidade estrita. No entanto, a arte em si não resolve conflitos. A arte é meio. Ela tem a capacidade de criar um ambiente de contato entre dialogadores que antes jamais se encontrariam

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para uma interação de paz. Os artistas são, desse modo, os grandes agentes de diálogo. São neutros e únicos no que se refere à conexão entre seres humanos. A partir de um diálogo nesse nível, conseguimos chegar à consciência dos envolvidos, eu acredito. Cristine: Se for em relação à arte em geral, toda a expressão artística trabalha no sentido de potencialmente mediar conflitos? Ou existem expressões artísticas que contribuem para o aumento da incompreensão entre as partes? Stéphane: É importante termos em mente que estamos falando de pessoas – e o que sensibilizar pessoas por intermédio da ação de outras é considerado uma arte potencialmente eficaz enquanto instrumento de conexão. Repito: a arte em si não soluciona conflitos. A arte tem papel de conexão entre as partes, conexão de outra forma inimaginável. Uma vez estabelecida a conexão, aqueles que a obtiveram têm seu público sob controle, isto é, possuem pessoas que os estão ouvindo e que estão conectadas a eles. O que se seguir daí depende da condução do diálogo. Assim como Ayrton Senna, Michael Jackson, Bono Vox, Shakira, o artista pode erguer bandeiras positivas para a sociedade, outros podem apenas querer a conexão pura, sem maiores intenções. A incompreensão entre as partes, nesse contexto, é dependente do conteúdo e da condução do diálogo. As expressões artísticas, assim, são meios – e dos mais poderosos. Marc: Stéphane, é difícil fazermos um debate com uma pessoa que trabalha com as engrenagens do processo de comunicação e não perguntar sobre o trailer do filme “A inocência dos muçulmanos”, de um diretor supostamente chamado Sam Bacile. Mesmo se tratando de produção de baixíssima qualidade, o impacto do trailer foi muito grande no mundo árabe, tendo resultado até em ataques a embaixadas norte-americanas, com a morte de funcionários e um embaixador. De quais ferramentas linguísticas poderia o ocidente se valer para trabalhar em prol da desconstrução dessa visão intolerante veiculada pelo filme? Qual o papel destes meios digitais, como redes sociais, youtube, etc., para a construção (ou desconstrução) da mediação para a paz no âmbito internacional? Stéphane: Essa pergunta é fundamental, pois ela encerra elementos centrais da nossa conversa. Como bem pontuado, o filme que foi o estopim para


Convidado: Stéphane Rodrigues Dias

o conflito é duvidoso em termos de possuir um objetivo artístico. No entanto, essa produção foi uma manipulação bastante eficaz em seus propósitos comunicativos: atacar crenças do mundo árabe, como de fato foi compreendida. A obra trata-se de uma sátira, ou seja, seu objetivo é criticar, é explicitar o desacordo, é de cunho moral. A sátira esteve sempre ligada ao menosprezo, sendo uma das formas mais eficazes de atingir um adversário. Como já posto, é muito fácil atacar dialogicamente o oponente quando conhecemos sua mente, o seu modus operandi, as suas fragilidades. É sabido que o mundo árabe preserva em alta conta suas crenças político-religiosas, já que elas andam juntas, ditando o jeito de se viver adequadamente. Para um muçulmano, suas crenças são altamente valorosas, e o objeto dessas crenças também. Por pensar desse modo, os muçulmanos aliam crenças (como regras de conduta), falas (orações) e hábitos (ações, atos). Desse modo, torna-se fácil imaginarmos situações que abalem a serenidade de um muçulmano. E não basta não concordarmos com esse procedimento, precisamos realmente compreendê-lo em toda a sua extensão. Por sua vez, o que fazem os meios de comunicação de massa na Cultura Digital? Eles agem como eficazes propagadores de informação, atuando sobre grupos. É um tipo muito eficaz de comunicação, pois, a partir do feedback instantâneo, as redes tornam-se desencadeadoras de tomadas de decisão em grupo, já que as mentes estão conectadas num mesmo lugar, num mesmo momento. Não é difícil observarmos a relevância desse tipo de formatação social nas mãos de pessoas mal-intencionadas. E quais as ferramentas linguísticas para desfazermos essas visões? São as já pontuadas. Pensemos novamente em situações corriqueiras. Quando há uma briga familiar, quem é chamado para mediar? Aquela pessoa que é bem quista pelas partes, que é isenta e que é ouvida. Quem pode fazer esse papel na sociedade? Os artistas. Com que ferramentas? Sua linguagem, o apelo aos seus fãs. Marc: Pouco tempo atrás, a forma de comunicação que predominava entre as pessoas era a presencial. Hoje, pelo contrário, a comunicação mais comum é mediada por um fator virtual. Entretanto, quando ocorre um conflito, percebe-se que o meio digital ainda não é capaz de solucionar o conflito. É preciso retomar a comunicação pessoal, direta. Ou seja, consegue-se utilizar o meio virtual para promover um con-

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flito, mas não se soluciona um conflito por meio dele com a mesma facilidade. Como se dá esta relação entre o conflito e sua mediação virtual? Stéphane: Novamente, a resposta está na compreensão da cognição humana, em seu comportamento padrão. Para solucionar esse tipo de problema, precisamos retornar à base – pensar em como opera a mente humana. Há um autor do século passado chamado Marshall McLuhan que escreveu uma obra intitulada “Os meios de comunicação como extensões do homem”. Ele já falava sobre uma “aldeia global”, imaginando as pessoas conectadas, antes mesmo da explosão da comunicação digital. Esse ambiente é a internet hoje. Mas por que é tão fácil disseminar crenças nesses ambientes, mas mediar conflitos é tão difícil? Em primeiro lugar, pois o que buscamos com a comunicação digital é prioritariamente o contato, a conexão. No entanto, a conexão mais próxima e transparente que temos ainda é o diálogo face a face e, como tal, ele é insubstituível em situações cruciais, justamente porque há informações a respeito de nossas intenções e emoções que só são veiculáveis desse modo. Os meios de comunicação, assim, parecem possuir limitações fundamentais, ainda mais quando se trata de mediação de conflitos. Não é por outro motivo que, nas relações internacionais, quando há um conflito importante, as autoridades se deslocam até o outro país para dialogar. Isso é importante em contexto de conflitos, já que o padrão comportamental de nossa sociedade conectada ainda requer esse tipo de conexão para resolver problemas complexos. A internet, apesar de manter as pessoas conectadas, aparenta superficialidade. Quando se desliga o aparelho, não se está mais conectado. Não se veem as reações das pessoas no outro lado da máquina. Vê-se aquilo que é escrito, mas não a reação corporal – que é fonte rica de informações sobre intenções e emoções. A presença, então, ainda é sinal de respeito e de valorização do outro ou do objeto do diálogo. Essa presença estabelece um vínculo dialógico ainda insubstituível. Cristine: A reunião anual da Assembleia Geral da ONU está em curso. Tendo em vista o que aconteceu no mundo árabe em função do vídeo, já foi formulado um pedido para que a blasfêmia seja considerada um crime internacional ou receba, no mínimo, uma condenação moral por parte dos Estados. Trata-se, ao mesmo tempo, de uma agressão e da liberdade de expressão. A liberdade de expressão é difícil de ser


Convidado: Stéphane Rodrigues Dias

trabalhada porque, a partir do momento em que alguém (ou uma categoria de pessoas) avalia o que é agressivo ou não e censura determinado material, atribui-se a essa pessoa ou grupo um poder praticamente irrefreável. Em relação a essa possibilidade de criminalização da blasfêmia, qual é a sua posição? Stéphane: Sou favorável à criminalização. A ONU está em uma posição de criação de códigos de conduta. Quando há um ambiente envolvendo tantos países diferentes, tantas crenças diferentes, faz-se necessário um fio condutor. Nós, do Ocidente, vemos a proibição como um processo negativo de tolhimento à liberdade. Entretanto, vejo determinadas proibições como algo positivo. Sabendo-se que temos inúmeras possibilidades de ação, nos orientar enquanto sociedade mostra-se crucial. Os limites, assim, são necessários para estabelecer até onde podemos ir, para termos referência de como agir e viver harmoniosamente em coletividade. A partir dessa premissa, como argumentam os teóricos Austin e Searle, pensemos que nós realizamos atos de fala. A blasfêmia, assim, é um ato de fala. No Brasil, por exemplo, há os crimes de calúnia e difamação, falso testemunho, discriminação. Trata-se, no fim, de atos de fala condenáveis. A ONU, nesse sentido, estaria prestando um serviço à condução harmônica das condutas entre povos, já que criminalizar é apontar que algo não deve ser seguido. Esse fundo moralizante é o mais importante a ser observado, de modo que a punição precisa ser vista em termos de relevância ou não para o sistema. Se mostrarmos que o conteúdo de nossa fala é algo extremamente importante para a sociedade, estaremos avançando enquanto civilização. Criminalizar é, nessa direção, um primeiro passo. A educação é o caminho restante. E o que nós, nas escolas e universidades, podemos fazer? Buscar sermos e formarmos melhores dialogadores, objetivando compreender que o diálogo é a ferramenta mais poderosa de que dispomos, pois ele pode gerar guerras e apartar conflitos, afastar pais e filhos e eternizar relações de amor. Então, sejamos prudentes em nossos diálogos e, através deles, busquemos sempre a melhor forma possível de compreender o outro e de se fazer compreender pelo outro, pois, assim, rumaremos à paz.

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Realizada em 25/10/2012


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Edson José Neves Júnior. Doutorando em Estudos Estratégicos Internacionais, Mestre em Relações Internacionais e Graduado em História, todos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atua como professor de Relações Internacionais na Universidade Vila Velha, no Espírito Santo. Áreas de Interesse: Segurança e Conflitos Internacionais, História Contemporânea da Ásia, África e América do Sul, e Política Externa Brasileira. Tem realizado seus estudos especialmente sobre o contexto de segurança do sul da Ásia, o Terrorismo Internacional e a Política Externa Brasileira. Desenvolve atividades de Extensão e Pesquisa sobre as obras cinematográficas e o ensino das Relações Internacionais. Marc Antoni Deitos: Edson, você é um especialista em um dos temas mais abordados pelas relações internacionais nesta primeira década do século XXI: o terrorismo. Apesar de ser objeto de notícias praticamente quotidianas, inúmeros livros e artigos, e de estar presente em discursos de líderes políticos especialmente do Ocidente, ainda há certa dificuldade em definir o que é o terrorismo. Então, como poderíamos definir o terrorismo hoje? E há alguma diferença do que hoje se associa a atividades terroristas e do que se identificava como tal em décadas passadas? Edson José Neves Júnior: Essa pergunta não poderia ser mais difícil. O uso teórico do termo “terrorismo” é, desde sempre, muito complicado em função do uso político. Esses usos, o teórico e o político, frequentemente, acabam se misturando. Terrorista normalmente é “o outro”. É quem “me ataca”, é o inimigo. Em outras ocasiões, algumas figuras que hoje são muito conhecidas foram consideradas terroristas. Como depois eles assumiram o poder, a história foi reescrita. Até mesmo Gandhi (!). Ainda que pregasse a resistência pacífica, ele era considerado terrorista pelos ingleses. Nelson Mandela também foi considerado terrorista. Como envolve essa carga que é inegavelmente política, o uso do termo sempre foi complicado. O que, recentemente, tem sido feito na tentativa de conceituar o terrorismo, é um esforço para afastar esse aspecto político e estabelecer algumas categorias básicas. É um conceito que está em construção, e desde 2001 muitos trabalhos foram publicados sobre terrorismo – alguns bons e outros nem tanto. Ainda não há um trabalho final sobre o tema, apenas discussões a respeito. Há um professor britânico chamado Andrew Silke que fez


Convidado: Edson José Neves Júnior

um levantamento [Edson se refere ao trabalho “Research on Terrorism: Review of the Impact of 9/11 and the Global War on Terrorism”, da autoria de Andrew Silke, professor da University of East London, no livro “Terrorism Informatics”, publicado pela editora Springer em 2008], estimando quantos livros, desde 2001, foram publicados só nos Estados Unidos sobre terrorismo: são mais de cem livros. Há quem defenda que o assassinato de um faraó no Egito Antigo por envenenamento é terrorismo, por exemplo. Existem também tentativas de reescrever a história, colocando o terrorismo como o grande adversário dos Estados Unidos (EUA) – logo, ele sempre teria existido. Entretanto, se pegarmos a historiografia até o final da década de 1990, veremos que terrorismo era um tema marginal dentro do debate acadêmico. De todos esses esforços recentes para tentar formatar o conceito, pode-se destacar alguns pontos que ajudam a compreender o que é terrorismo. O terrorismo de hoje, pós-11 de setembro, combatido pelos Estados Unidos, é o terrorismo islâmico fundamentalista. É o terrorismo dos talibãs no Afeganistão, do qual se vê falar o tempo todo na televisão. Outro componente são os Estados que apoiam o terrorismo e que produzem armas de destruição em massa. Essa foi a justificativa utilizada para invadir o Iraque e retirar Saddam Hussein do poder. Aqueles que têm essas características são, basicamente, os “inimigos”. Há como incluir muita gente nesse grupo – é o que os EUA vêm tentando fazer com o Irã e com a Síria. Uma segunda característica do terrorismo atual é que ele não tem base territorial específica – ele é, por natureza, transnacional. No caso dos grupos talibãs, eles circulam entre Afeganistão e Paquistão. Não há uma base nacional fixa. Paradoxalmente, apesar de não ter um ponto fixo, para existir, um grupo terrorista precisa ter, obrigatoriamente, o apoio de um Estado nacional ou de uma instituição estatal nacional. No caso do Paquistão, por exemplo, o apoio vem do serviço secreto paquistanês. Todo grupo terrorista também tem um objetivo político, uma racionalidade política, por mais que o meio utilizado para atingir o objetivo não seja muito racional. Há uma parte da bibliografia norte-americana que tenta desconstruir isso, alegando que terroristas são insanos. Alguns procuram classificar os terroristas como pessoas desequilibradas, que sofrem lavagem cerebral na mão dos grupos, mas não é assim. O terrorismo tem um objetivo político, uma relação direta

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com Estado e poder. Há, ainda, outra corrente que trata o terrorismo como um tipo de guerra irregular, assimétrica. E há um pesquisador chamado Eugênio Diniz, que resume de modo muito claro qual é o meio utilizado pelo terrorismo: é o emprego ou ameaça do emprego do uso da força e da violência indistintamente. Nisso reside a diferença para o exército regular. Atingem-se todos que, na concepção do grupo terrorista, estão vinculados ao inimigo. Por isso há tanta publicidade sobre o terrorismo, o impacto dele é muito grande, já que aqueles que não estão diretamente envolvidos com a batalha são atingidos. Quanto aos seus objetivos, basicamente são dois: um deles é causar instabilidade na região onde ocorre o ataque, fazendo com que a população local se volte contra o seu governo. Quando a população pressiona o governo, a instabilidade social se transforma em instabilidade política. O outro objetivo é a publicidade. A publicidade retroalimenta o terrorismo – sem a cobertura da mídia, não há terrorismo. É a publicidade que faz com que o medo se propague para outras regiões. Além disso, ela influencia no recrutamento de novos membros no local de atuação do grupo. Cristine Koehler Zanella: É comum, no Ocidente, associarmos o Oriente Médio e o sul da Ásia (região onde se concentram países como Bangladesh, Índia, Paquistão, etc.) como regiões com grande concentração de grupos terroristas. Não por acaso, seus estudos têm se concentrado no sul da Ásia, mais especificamente em torno do Paquistão. Essa imagem é procedente? O sul da Ásia é realmente uma região com grande concentração de grupos terroristas? A que você atribui isso? Edson: Antes de falarmos sobre o terrorismo no sul da Ásia, é preciso deixar algo claro: tanto no sul da Ásia quanto no Oriente Médio, o Islã, em si, não é todo fundamentalista. Pelo contrário: a menor parte do Islã é fundamentalista. No entanto, como falei antes, os grupos fundamentalistas-terroristas acabam tendo maior publicidade e, por consequência, são mais conhecidos. No caso do Paquistão, que é o foco da minha pesquisa, cerca de 80% dos muçulmanos são vinculados a correntes mais contemporâneas do Islamismo. Eles tentam adaptar o Islamismo ao tempo presente, não defendem nenhuma prática violenta ou coisa parecida. O problema é os outros 20%. A área de concentração do terrorismo é, de fato, aquela região, porque grande parte da população islâmica fundamentalista radical está ali, entre sul da Ásia e Oriente Médio. Na concepção


Convidado: Edson José Neves Júnior

deles, não é terrorismo – é jihadismo. O problema é que a jihad não é, essencialmente, a guerra, o uso da força. A leitura do Corão indica que a mais importante jihad é um grande esforço pessoal em nome de Alá, mas esforço pessoal para seguir a religião e ser um bom muçulmano. A pequena jihad é que é uma guerra de conquista para levar o Islamismo para outras regiões. Isso que foi transformado na jihad é uma corrupção do objetivo inicial. Por isso acredito que o emprego do termo “terrorismo” seja mais adequado. O terrorismo se concentra, sim, nessa região. No caso do sul da Ásia, é porque desde 1947, quando Índia e Paquistão conquistaram a sua independência, o Paquistão sofria com uma assimetria de forças muito grande em relação à Índia, e por isso acabou utilizando forças irregulares. As forças irregulares eram militantes islâmicos mobilizados por meio da religião; eles lutaram uma guerra santa contra os infiéis indianos. Desde a primeira guerra entre Índia e Paquistão, são utilizados guerrilheiros muçulmanos – pessoas que, hoje, seriam consideradas terroristas. Na guerra de 1965, isso aconteceu novamente, na guerra de 1970-1971, na qual o Paquistão perdeu praticamente metade do país (a região que hoje é Bangladesh), também. Foi assim durante toda a década de 1990 e é assim ainda hoje. O emprego desses meios irregulares está relacionado, sempre, à assimetria de poder. Aqueles que são pobres utilizam o recurso ao terrorismo porque eles não têm condições para manter as forças convencionais na guerra. E, para o Paquistão, manter uma guerra contra a Índia tornou-se, ao longo dos anos, uma questão que impacta a nacionalidade paquistanesa. Basta lembrar que, quando o subcontinente indiano separou-se da Inglaterra, o Paquistão ficou com 30% das Forças Armadas e a Índia ficou com 70%. Fez-se necessário para o Paquistão utilizar forças irregulares. Não que o Exército do Paquistão não esteja envolvido – ele está. Militares estão envolvidos no treinamento e na preparação para a guerra desses grupos. Cristine: Sendo o terrorismo um fenômeno complexo, quais as variáveis (históricas/sociais/econômicas/religiosas ou outras) com as quais deve se preocupar um aluno que está interessado em compreender a atuação de grupos terroristas do sul da Ásia? Edson: É preciso escolher as variáveis de acordo com o recorte da pesquisa. No meu caso [Edson se refere à sua pesquisa para a dissertação de mestrado], utilizei as variáveis políticas e religiosas. Havia uma relação direta no recrutamento,

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no entanto não é uma guerra religiosa – é uma guerra política. A religião, nesse caso, serve como combustível para a guerra. Não utilizei o campo da economia, por exemplo. Para um primeiro contato com o assunto, sugeriria uma leitura abrangente e, depois, na definição do tema, um recorte de uma variável mais adequada à pesquisa pontual. Cristine: O seu trabalho, bastante recente (apresentado em julho deste ano na ABRI), enfoca o papel-chave do Paquistão na evolução da guerra ao terrorismo. Nele você afirma que o governo paquistanês não só tem conhecimento da atuação de grupos terroristas na região, como se aproveita da guerra promovida por estes grupos, mesmo tendo sido um aliado dos EUA e da OTAN quando ocorreu a ofensiva no Afeganistão, em 2001. Como o governo paquistanês se aproveita das ações promovidas por grupos terroristas? Edson: Hoje em dia, se desenha no Paquistão uma pré-guerra civil em decorrência dessa contradição. Há setores organizados politicamente dentro da sociedade paquistanesa que não só criticam o governo, como atentam contra ele. Como eu disse, o Paquistão, durante toda a sua história, se utilizou de grupos terroristas. Após o 11 de setembro, o Paquistão experimenta uma situação peculiar, mantém o apoio aos grupos irregulares e, também, dá suporte à coalizão anti-terrorista : é uma contradição – e é justamente isso o que estou estudando agora, no doutorado. O que posso afirmar desde já é que, atualmente, o Estado paquistanês já não se beneficia como antes. O Paquistão tomou como compromisso o combate ao terrorismo, reprimindo grupos no noroeste do país, próximo à fronteira com o Afeganistão, e tem reprimido também grupos da Caxemira. O problema é que o Estado paquistanês não possui hierarquia, unidade. Há um serviço secreto, que constitui um governo paralelo dentro do próprio país. O Exército também não é unificado, há setores do Exército que têm uma política externa própria. Esses grupos possuem uma identidade com as organizações islâmicas do país, baseando as suas ações nelas. Para o Paquistão se estabilizar, ele precisa reprimir todos esses grupos, o que não é nada fácil, já que são grupos transnacionais e bem relacionados com setores dentro do próprio Estado. O que o país vive hoje é um momento de transição, definindo se é realmente comprometido com a guerra contra o terror, ou com os fundamentalistas. Um


Convidado: Edson José Neves Júnior

tempo atrás, li o depoimento de um general paquistanês, dizendo que, se o Paquistão não possuir forças militares convencionais o suficiente, o país irá utilizar “os loucos”, porque eles ainda são o recurso à disposição. O desfecho desse conflito interno ainda está em aberto, e depende muito de mudanças internas e pressões externas futuras. Cristine: Em artigo para a revista Conjuntura Austral de 2010 (O Paquistão e o terrorismo transnacional na Caxemira: entre o patrocínio real e a punição virtual), você afirma que o Paquistão, após sucessivas derrotas para a Índia em torno da disputada região da Caxemira, não encontrou outra saída que não a de deflagrar uma “guerra por procuração”. No que consiste a “guerra por procuração”? Ela ainda hoje é a estratégia de ação do governo paquistanês na Caxemira? Edson: É um tipo de conflito no qual as forças tradicionais não admitem envolvimento direto no conflito. Elas acabam “patrocinando” outro grupo armado – grupos paramilitares, guerrilheiros - para realizar o combate. O grande momento de virada na relação entre Índia e Paquistão foi o Acordo de Simla, de 1972, depois de o Paquistão ter perdido a guerra. Um dos artigos diz que a disputa pela Caxemira não mais pode ser resolvida pela guerra entre os dois países. Em outras palavras, uma disputa formal entre os dois exércitos é proibida. Como esse dispositivo precisa ser cumprido, o Paquistão começou a utilizar forças irregulares – ou seja, recorreu às organizações jihadistas que existiam na Caxemira e no próprio Paquistão. Desde 1972, isso tem sido feito de modo recorrente, já que soldados paquistaneses não podem ser mobilizados para o conflito. Mesmo em 1999, na Guerra do Kargil [Edson se refere ao conflito armado ocorrido em Kargil, uma cidade da Caxemira indiana], o Paquistão não admitiu ter participado do conflito, mesmo diante de uma série de evidências indicando o contrário. Sabia-se da presença de militares paquistaneses no conflito, por exemplo. Entretanto, quando esses militares eram capturados pelo exército indiano, o Paquistão alegava que eles haviam sido desligados da corporação, que não integravam mais as Forças Armadas paquistanesas. O Paquistão reiteradamente defendeu que não estava envolvido na guerra. Além disso, alegou que o conflito era movido apenas por essas organizações jihadistas descontentes com a administração indiana na região. Segundo o governo paquistanês, era uma re-

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volta interna e não uma guerra. Apesar de pouco verossímil, esse é um discurso recorrente. Ele é necessário ao Paquistão, já que por meio dele o país demonstra que está seguindo o Acordo de Simla e não envolve outros países no conflito. É imprescindível que os aliados paquistaneses não se voltem contra o país. No caso da Caxemira, o território é basicamente dividido entre Paquistão, que tem aproximadamente 30% do território; Índia, que tem cerca de 40%; e China, que possui o restante. Apesar de ser uma área com densidade populacional muito baixa, ela também é importante para a China em função de algumas rotas comerciais mantidas ali. Como a Índia e a China possuem alguns desentendimentos na região, o Paquistão se sente, de certa forma, confortável nesse cenário, já que ele sempre teve a China como aliada. Marc: Qualquer observador constata facilmente que são os Estados Unidos que capitaneiam a ‘guerra ao terror’ lançada a partir dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. A partir deste marco, observa-se facilmente que agências de segurança dos Estados Unidos (como CIA e FBI) passaram a ter papel mais ativo e que a legislação estadunidense se adequou também aos novos tempos, com a adoção do USA Patriot Act e da Intelligence Reform and Terrorism Prevention, por exemplo, com a suspensão de diversos direitos consagrados naquele país. Em suma: o Estado se reorganizou para esta ‘guerra ao terror’. Com todo esse redesenho do Estado, com realocação de verbas, criação de legislação específica para combate ao terrorismo e busca de uma nova estratégia de ação internacional, quais os impactos da luta ao terror na estrutura de poder dos órgãos estadunidenses? Isto é, internamente, quem saiu reforçado e quem saiu enfraquecido após 11 anos de “guerra ao terror”? Edson: Essa reorganização interna pela qual os Estados Unidos passaram merece um comentário à parte. O 11 de setembro significou, para os EUA, a reconstrução de um “novo inimigo total”. Os EUA tiveram um grande inimigo total durante toda a Guerra Fria, a União Soviética. A estrutura do país, especialmente a estrutura estatal de segurança, se organizava para combater esse inimigo – à época, se organizava para evitar a propagação do comunismo e acabar com a URSS. O Macarthismo, dos anos 1950, foi uma reorganização estatal aos moldes da que ocorreu em 2001. Houve uma “caça às bruxas” nos EUA para ver quem era comunista dentro do país. Foi um período de tensão política, onde


Convidado: Edson José Neves Júnior

bastava um indício de simpatia ao comunismo para ser perseguido. Criou-se um ambiente de medo, tal qual foi feito após o 11 de setembro, quando houve suspensão de direitos civis, por exemplo. Criou-se um arcabouço jurídico para combater o terrorismo internamente. Quem é considerado terrorista não tem direito sequer a um advogado – há a previsão de um período no qual o suspeito de terrorismo pode ficar detido, sendo interrogado, sem direito a advogado. Nesse momento de “disseminação do inimigo”, os EUA guardam pouco da liberdade civil que, historicamente, caracteriza o país. A análise de quem saiu fortalecido e de quem saiu enfraquecido precisa ser segmentada em dois períodos: antes da crise econômica que ocorreu no início de 2008 e após ela. Crise econômica, aliás, que foi reforçada pelos gastos militares no combate ao terrorismo. Estima-se que, até 2011, os EUA já haviam gastado mais de U$ 4 trilhões na guerra contra o terror. Isso em uma economia que entrou em recessão – e que, apesar de estar se recuperando, ainda não superou a crise (!). Alguns setores, como CIA e FBI, de fato se beneficiaram da guerra contra ao terror. Essas agências haviam sido, de certa forma, deixadas de lado após a Guerra Fria, já que não existia mais um grande inimigo. Não era mais necessário caçar espiões russos em território norte-americano, ou europeu, ou no Oriente Médio. Tanto existia esse déficit que, quando começou a guerra ao terrorismo, quase não existiam agentes da CIA no Afeganistão. Não havia quem falasse as línguas regionais. Os agentes que, lá, na década de 1990, eram especializados na região, tinham se aposentado e não foram repostos. Isso ocorreu em várias regiões, já que a CIA não era mais vista como uma agência estratégica. A mesma tendência se observa para o FBI. O período de “paz e prosperidade”, tão anunciado pelo presidente Bush após a Guerra do Golfo (1991), fez com que o aparato de segurança fosse parcialmente desmobilizado. Com os ataques de 2001, a CIA, o FBI e as Forças Armadas ganharam, pois se tornou necessária a sua preparação à guerra contra o terror. Nessa época, o presidente Bush já anunciava que os EUA fariam todos os esforços, possíveis e impossíveis, para acabar com o terrorismo. A partir de 2008, a situação tornou-se mais grave em função da crise econômica. A crise fez com que o Obama se afastasse da guerra ao terrorismo, tentando torná-la algo não tão custoso à economia norte-americana. De modo geral, mesmo os setores

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que se beneficiaram no início da guerra ao terror acabaram prejudicados após 2008, pois a guerra tornou-se onerosa demais. Não bastasse isso, é uma guerra que parece estar longe de chegar ao seu fim. Marc: Qual é a importância da morte do Osama Bin Laden no combate ao terrorismo? Pode-se realmente dizer que, com a morte do líder da Al Qaeda, houve, como foi dito pela campanha oficial estadunidense, “mission accomplished”? Edson: A morte do Osama, ocorrida em maio de 2011, é algo muito complexo, é necessária uma pesquisa mais detalhada para entender seus impactos no alto escalão da política dos Estados Unidos. À primeira vista, parecia a oportunidade perfeita para os EUA. O homem que os atacara dez anos antes estava morto. Era, realmente, mission accomplished. Mas, em minha opinião, a oportunidade perfeita tornou-se oportunidade perdida. A morte do Bin Laden foi a oportunidade para Barack Obama sair da região – a presença dos EUA no Afeganistão já começa a se tornar algo parecido com o que ocorreu no Vietnã, onde o país não consegue nem sair, nem ficar. Se ele fica, precisa prestar contas pelos gastos; se ele sai, é considerado covarde e derrotado. A postura norte-americana no combate ao terrorismo é complexa porque envolve uma “máquina de guerra” formada nos EUA ao longo da Guerra Fria – grupos ligados ao setor bélico que querem que a guerra continue. Esses grupos perderiam muito dinheiro com o fim da guerra. Eles querem que a guerra ao terror não só continue, como também seja ampliada para outros países – como Paquistão, por exemplo. É vantajoso para esses grupos redesenhar o Oriente Médio, criando um cenário no qual os EUA controlem grande parte dos países e os recursos naturais da região. Pode-se dizer que a morte de Osama Bin Laden foi uma oportunidade perdida para o setor que quer o fim da guerra. No entanto, para outros grupos – como o Exército e algumas empresas privadas que atuam no Afeganistão, continuar a guerra é vantajoso. Além disso, há a questão do lobby. Essas empresas que integram a “máquina de guerra” estadunidense possuem grande lobby político, pressionando o Congresso para que ele vote pela permanência dos EUA na guerra. Obama se comprometeu oficialmente a retirar as tropas do Afeganistão em 2014, mas a possibilidade de isso se materializar ainda depende dos interesses econômicos e estratégicos norte-americanos na região.


Medidas de Defesa Comercial: o caso da salvaguarda do vinho brasileiro Kelly Lissandra Bruch

Realizada em 23/11/2012


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Kelly Lissandra Bruch. Graduada em Direito, Especialista em Direito e Negócios Internacionais (UFSC), Mestre em Agronegócios (UFRGS), Doutora em Direito pela Université Rennes I, em co-tutela com a UFRGS. Atualmente, realiza suas pesquisas no Pós-Doutorado da UFRGS na área de Agronegócios. É consultora do Instituto Brasileiro do Vinho (IBRAVIN) desde 2005, e consultora técnica do Instituto Rio Grandense do Arroz (IRGA) desde 2010. Professora no Programa de Mestrado Profissional em Biotecnologia e Gestão Vitivinícola da UCS, expert indicada pelo Governo Brasileiro junto à Organização Internacional da Uva e do Vinho (OIV). É revisora de vários periódicos e autora de diversos artigos na área de propriedade intelectual e agronegócios. Marc Antoni Deitos: Profa. Kelly, a Sra. está vivenciado um momento muito marcante à frente das disputas nacionais e internacionais que envolvem o vinho brasileiro. Nós acompanhamos o encaminhamento dessas disputas, inclusive verificando os grupos que apoiavam e que rejeitavam a aplicação de uma medida de defesa comercial do nosso vinho. Para compreendermos as alternativas que estavam à disposição do setor vitivinícola, a Sra. poderia nos esclarecer por que o setor optou por uma medida específica de salvaguarda, entre as demais medidas de defesa comercial possíveis, ou até mesmo, alguma outra medida que não as de defesa comercial? Como o setor chegou à conclusão de que a salvaguarda era a melhor estratégia para a defesa comercial do vinho brasileiro? Kelly Lissandra Bruch: Essa situação é discutida no Instituto Brasileiro do Vinho (IBRAVIN) desde 2005. Desde a chamada “segunda abertura dos portos” – quando o presidente Collor fez alterações na política econômica do Brasil e o país entrou na Organização Mundial do Comércio (OMC) e firmou o Acordo do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) –, o setor vitivinícola tem passado por um período muito conturbado. Desde que entrei na IBRAVIN, uma das demandas é, justamente, saber o que precisa ser feito. É sabido que, cada vez mais, os vinhos importados têm invadido o mercado a ponto de, este ano (2012), os vinhos brasileiros ocuparem apenas 15% do mercado na categoria ‘vinhos finos’; em 1980, os vinhos nacionais ocupavam 90% do mercado. Essa perda de espaço é praticamente uma catástrofe. Desde 2005, a IBRAVIN analisava o que poderia ser feito em relação a isso: desde medidas inter-


Convidada: Kelly Lissandra Bruch

nas a medidas relacionadas à defesa comercial. Primeiramente, falou-se muito em antidumping. Buscou-se aferir, então, se alguma empresa estrangeira estava ofertando seus produtos com preços predatórios no Brasil. Fomos até o Chile, por exemplo, e verificamos que não era a situação; não havia nenhuma empresa praticando dumping no Brasil. A questão, no caso do Chile, é tributária: os produtores de vinho, apesar de terem uma tributação interna bem alta, têm uma tributação muito baixa quando exportam. Isso dá a eles uma vantagem muito grande, só que não cabe na prática do dumping. Também o Brasil desonera os impostos (ICMS) para exportar, todos os países fazem isso. A segunda hipótese envolvia a prática de subsídios estatais proibidos pela OMC. Analisamos uma série de práticas na Argentina – uma delas é o reintegro, aplicado a vários produtos –, mas não se pôde caracterizar nenhuma como subsídio proibido, passível de aplicação de medida compensatória. A União Europeia, por sua vez, também oferece subsídios aos seus produtores, mas nenhum que comporte uma medida compensatória. Entretanto, o setor vitivinícola continuava a sofrer com a concorrência externa, que avançava de modo constante no mercado brasileiro. Foi nos anos de 2009 e 2010 que houve um agravamento das importações: esse foi o aumento súbito necessário à aplicação de medida de defesa comercial. Além do aumento brusco de importações, verificou-se que, dentro das empresas brasileiras, estava ocorrendo um dano grave no setor de vinhos finos. Dada essa situação, entrou-se com o pedido de salvaguarda. Por outro lado, no aspecto interno, também se buscou adotar outras medidas que preservassem o setor. Selos de controle, por exemplo, que antes eram aplicados apenas aos uísques, começaram a ser postos nas garrafas – evitando, assim, o descaminho, já que o selo só é dado àqueles que pagam o IPI. O selo foi a maneira encontrada para coibir a entrada ilegal de vinho e também para coibir empresas brasileiras de colocarem produtos no mercado sem ter pagado tributação. Não ter encontrado uma solução no primeiro momento fez com que se buscassem novas alternativas ao setor; pode-se dizer que a dificuldade fez com que o setor vitivinícola se organizasse. Cristine Koehler Zanella: Professora, a elaboração da estratégia de defesa a ser seguida pela empresa ou pelo setor econômico é muito importante, mas nós

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sabemos ser esse apenas o início de uma longa batalha que ocorre entre as próprias empresas pela busca da proteção, assim como com os setores e indústrias que se opõem à medida. Poderia nos descrever um pouco sobre o que ocorreu após a escolha da medida de salvaguarda do vinho como forma de proteção do setor tanto entre as indústrias que buscavam a medida de defesa comercial (em colaboração entre as empresas para o sucesso da medida), como a ação dos setores que se articularam em oposição à medida? Kelly: A primeira coisa feita pelo IBRAVIN foi optar pela escolha de uma empresa especializada para auxiliar na solicitação da medida de salvaguarda. Optou-se por isso porque, como diz aquele conhecido ditado, “santo de casa não faz milagre”. Por mais que o IBRAVIN pedisse às empresas que entregassem os dados necessários ao preenchimento do formulário por meio do qual se requer a salvaguarda, não seria atendido. Após a contratação da consultoria, as empresas se reuniram. Não foram todas as empresas que aceitaram prontamente solicitar a medida, foi preciso uma ‘peregrinação’ para conseguir os 50% do mercado em apoio – acabamos conseguindo mais do que isso, cerca de 70%. Fez-se necessário ir até as empresas, conversar com os proprietários, com os contadores, e foi um processo difícil. Uma das maneiras pensadas para engajar as empresas foi fazê-las pagar a consultoria, por exemplo. O que deu certo. Isso tudo ocorreu ano passado (2011), em meio a sigilo absoluto. Mesmo após o pedido ser protocolado, manteve-se o sigilo. O problema ocorreu quando, após a presidente Dilma comparecer à Festa da Uva e se comprometer a realizar todas as ações possíveis, o pessoal da área técnica do governo publicou o pedido sem ter comunicado nada previamente ao IBRAVIN. Eu estava na reunião da Organização Internacional da Uva e do Vinho, em Paris, quando soube, por meio do representante do Ministério da Agricultura de Portugal (!), da publicação. Havia na época uma grande falta de sintonia entre o setor vitivinícola e o governo, o que causou um problema enorme. Nada estava preparado, nem mesmo a resposta a ser dada para a mídia. Ninguém sabia o que fazer ou falar, e a semana de silêncio teve uma repercussão muito negativa. Aqueles que tinham interesse em causar tumulto alardearam uma série de coisas, como se o objetivo fosse cortar o acesso dos brasileiros ao vinho de qualidade, retirando-lhes as opções, uma espécie de


Convidada: Kelly Lissandra Bruch

“volta à URSS”. De maneira geral, houve falta de preparo para enfrentar a situação. Nem mesmo a consultoria técnica contratada sabia como proceder porque, além de ser destinada à parte técnica, a repercussão do caso estava sendo enorme. Uma coisa é pedir antidumping para ácido cítrico, que se usa na indústria; quase ninguém sente o efeito. Outra coisa é pedir uma salvaguarda, que afeta a todos os países, para vinho, um produto que o consumidor final sabe o que é. Foi uma batalha complicada, pois os importadores ficaram contra e, por sua vez, influenciaram os mercados – especialmente no eixo Rio-São Paulo –, os restaurantes. Em virtude de todas essas pressões, o governo brasileiro que, até então, estava a favor da medida de salvaguarda, começou a ter certa hesitação. Diante desse cenário, começou-se a buscar alternativas, como negociações – em sigilo – com os demais setores. Em suma, foram situações que demandaram um preparo transdisciplinar e muito consistente. Cristine: Profa. Kelly, além da concorrência que o vinho brasileiro enfrenta, uma série de problemas estruturais internos, englobados no conceito de “Custo Brasil”, afetam negativamente o setor vitivinícola brasileiro, como a logística inadequada e a ausência de um controle adequado sobre o vinho importado nas aduanas, dentre outros. Mas, o que mais chama atenção é a influência que a “Guerra dos Portos” exerce na concorrência interna que o vinho brasileiro sofre. A Sra. poderia nos explicar o que é e como a “Guerra dos Portos” impacta a competitividade do vinho brasileiro? Kelly: Esse é um problema delicado. Descobri a “Guerra dos Portos” quando estávamos fazendo um estudo tributário, buscando compreender como era a legislação de cada Estado. Alguns estados brasileiros têm incentivos fiscais para que se importe vinho por eles – destacadamente, Espírito Santo e Santa Catarina. Importando vinho por esses estados (e internalizando o vinho neles), não se paga e ainda se ganha um “crédito de ICMS” de 8% ao enviar o produto para outro estado. Em contrapartida, em outros estados, paga-se 25%. Essa questão tributária é um dos problemas. Há ainda transações contábeis para redução da alíquota final, manobras para que a entrada do produto em alguns estados seja mais lucrativa. Há a entrada virtual, fictícia, do produto em um estado, por exemplo. Além disso, há falta de planejamento logístico, desconhecimento, des-

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vantagem competitiva. O “Custo Brasil” gerado pelo governo se soma a outro custo, produzido pelo próprio funcionamento das empresas. Cristine: Partindo, agora, mais diretamente para o cenário internacional, Profa. Kelly, analisando a produção de vinhos no mundo na última década, percebese que os maiores produtores mundiais, como França, Itália e Espanha reduziram sua produção, e também a área de vinhedos plantada, ano a ano, desde 2000. Ao mesmo tempo os produtores dos países em desenvolvimento, como Argentina, Chile, África do Sul e até mesmo a China têm aumentado sua produção de vinho. Quais os fatores internacionais e as razões que explicam esses números? Vivemos uma transição no modo ou na qualidade do consumo de vinho no mundo? Kelly: Há várias possíveis respostas a essa pergunta. Na Europa, que é o “velho mundo vitivinícola”, há uma forma de produção um tanto quanto arcaica. O que tem acontecido lá é uma conversão: há um incentivo a alguns produtores para que parem de cultivar seus vinhedos – normalmente, vinhedos antigos, com baixa produção e baixa qualidade – para que eles sejam convertidos em vinhedos mais modernos e produtivos. Como muitas vezes uma menor produção gera maior qualidade - o que se traduz em maior valor agregado - essas medidas refletem o perfil de consumo atual da Europa, que privilegia a qualidade em detrimento da quantidade. Particularmente, acredito que a moderna produção do “novo mundo” – que investiu em vinhedos novos, bons e com tecnologia, conquistando o mercado – fez com que a Europa buscasse sanar os problemas de sua produção, incentivando a mudança no que estava obsoleto. Por outro lado, países como o Chile, por exemplo, são naturalmente muito competitivos, já que o clima é adequado e pode-se produzir a um custo baixíssimo. A África do Sul aumentou sua produção, mas tem mantido certo equilíbrio. A China, por sua vez, tem um mercado consumidor absurdo. Eles têm crescido de tal forma que, para nós, é estratosférica, mas que, para eles, não é o suficiente ainda. A China será a maior produtora, isso é muito claro. Atualmente, o hábito de consumir vinho ainda está pouco difundido no país, mas em breve ele será adquirido, criando a demanda. O mesmo ocorrerá com Rússia e Índia. Índia tem a produção de vinho tropical, como o nordeste brasileiro. O Brasil, aliás, também possui uma série de lugares com potencial muito interessante para consumo de


Convidada: Kelly Lissandra Bruch

vinho – é o caso da própria região nordeste e da região da campanha. Marc: Profa. Kelly, sabemos que o setor vitivinícola tem se articulado para buscar financiamentos junto ao Fundo para a Convergência Estrutural e Fortalecimento Institucional do MERCOSUL (FOCEM). Essa é uma estratégia de estímulo muito interessante e que requer um conhecimento especializado do consultor da área internacional. Quais os projetos e quem são os parceiros do Brasil para pleitear os recursos ao FOCEM? O financiamento de projetos para o setor vitivinícola pode auxiliar a integração econômica do MERCOSUL? Kelly: Os projetos, que começaram a ser elaborados no início de 2012, estão sendo finalizados e ainda não foram submetidos – quem os submeterá será o governo do estado do Rio Grande do Sul por meio da Secretaria de Agricultura. Esses projetos são estruturantes e estão relacionados a três áreas. A primeira delas é tecnologia – trata-se da estruturação do laboratório de enologia, tanto para realizar fiscalização dos vinhos comercializados quanto para realizar pesquisas e estabelecer novos métodos de análise, permitindo um exame mais detalhado, a fim de oferecer maior segurança ao consumidor. Melhora da matéria prima é a segunda área, afinal, é sabido que “não se faz vinho bom com uva ruim”. E, para melhorar a matéria prima, é necessário assistência técnica – medidas relacionadas a isso, à pesquisa das áreas mais adequadas ao cultivo de cada tipo de uva, ao aprimoramento dos cultivares, constituem o segundo eixo dos projetos. A terceira área está relacionada à estruturação da cadeia produtiva, das relações logísticas. Ao lado disso, instituímos o Plano Estratégico Vitivinícola Regional (Pevir), que é um projeto da vitivinicultura do MERCOSUL. O propósito dessas ações é melhorar a produção do vinho em toda a região, otimizando o que cada país faz de melhor, e até mesmo articulando os países para que haja a promoção dos vinhos produzidos nos países do MERCOSUL em países parceiros – que é a prática da União Europeia. Com base em tudo isso, busca-se a integração com complementariedade. Marc: Após sete meses do início da investigação para aplicação da medida de salvaguarda do vinho brasileiro, o setor vitivinícola chegou a um acordo com os setores contrários à aplicação da medida que resultou na retirada do pedido de salvaguarda há cerca de mês e na promessa do aumento da oferta do vinho nacional em

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restaurantes e supermercados. Tendo em vista esse acordo, temos duas perguntas: a possibilidade desse acordo constituía uma alternativa presente à época do início da investigação para a salvaguarda, ou foi uma variável não prevista no início do processo? E, por fim, após ter vivenciado por completo um período tão rico que vai da construção da estratégia do setor vitivinícola até o fechamento do acordo com os setores opositores, se a Sra. pudesse destacar um elemento que a prática na área internacional nos ensina, e que não está presente nos livros, qual seria ele? Kelly: Algo sabido por todos, mas que é extremamente difícil de praticar, é o diálogo. Estar aberto ao diálogo, acreditar que pessoas diferentes podem se sentar à mesma mesa para negociar e realizar algo juntas é algo muito bom, é fundamental. Meses atrás, não imaginava poder sentar à mesa com o presidente da Associação Brasileira de Supermercados (ABRAS) e o representante da Federação do Comércio do Estado de São Paulo para, conjuntamente, promover a abertura do mercado de São Paulo para os vinhos brasileiros. Todos falam que é importante dialogar, mas estar aberto ao outro e acreditar verdadeiramente é algo difícil, mas indispensável.



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