Ego & Alma: O Ocidente Moderno em Busca de Sentido

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EGO & ALMA O Ocidente moderno em busca de sentido



EGO & ALMA O Ocidente moderno em busca de sentido

John Carroll

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Tradução: Frederico Gonçalves Junkert

Livraria Danúbio Editora 2020


Ego & soul: the modern West in search of meaning © John Carroll, 2008. FICHA CATALOGRÁFICA Carroll, John, 1944– Ego&Alma: o Ocidente moderno em busca de sentido, 1º edição. Trad. Frederico Gonçalves Junkert. Curitiba, PR, Livraria Danúbio Editora, 2020. ISBN: 978-85-67801-25-4 Filosofia Moderna Ocidental CDD – 190 Edição: Diogo Fontana Revisão: Mateus Colombo Mendes Capa: Gabriela Fernandes Fontana Diagramação: Lucas Guse

Os direitos desta edição pertencem à Editora Danúbio CNPJ: 17.764.031/0001-11 — Site: www.editoradanubio.com.br Distribuição: CEDET - Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico Rua Ângelo Vicentim, 70, Campinas/SP Todos os direitos desta edição pertencem à Livraria Danúbio Editora Ltda. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer meio.


Sumário Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 Cinco Teses . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 Parte Um - Campos de batalha Capítulo Um - Trabalho. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31 Capítulo Dois - Esporte. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53 Capítulo Três - Amor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75 Capítulo Quatro - Cultura da classe média-baixa. . . . . . . . . . . . . . . . 97 Parte Dois - Niilismo E Consumismo Capítulo Cinco - Ódio a si mesmo na alta cultura. . . . . . . . . . . . . . . 119 Capítulo Seis - A universidade moderna. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141 Capítulo Sete - Compras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155 Capítulo Oito - Turismo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173 Parte Três - Novo Dinamismo Capítulo Nove - Democracia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187 Capítulo Dez - O Automóvel. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207 Capítulo Onze - A casa do faça você mesmo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 217 Capítulo Doze - O computador pessoal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 227 Capítulo Treze - Natureza. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 239 Parte Quatro - O Futuro Capítulo Quatorze - O pesadelo — Se tudo der errado . . . . . . . . . . . 257 Capítulo Quinze - Resiliência. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 269



PREFÁCIO

Os seres humanos são criaturas que buscam sentido, encontram sentido e criam sentido. Ego & Alma supõe que uma vida sem sentido não vale a pena ser vivida. Supõe que os indivíduos precisam de laços e de pontos de referência para além de si mesmos; e que suas vidas dependem de histórias convincentes para terem um contorno aceitável. No geral, as conclusões do livro são otimistas. Defendo que, hoje, no Ocidente moderno, as pessoas continuam a encontrar sinais de coerência na sua experiência cotidiana, apesar de se encontrarem num mundo no qual a incerteza se tornou a norma – particularmente, a incerteza acerca das grandes questões. Ego & Alma apareceu pela primeira vez em 1998. Esta edição foi bastante revista e atualizada. Uma das cinco teses que embasam o argumento do livro foi reformulada e um antigo capítulo sobre a princesa Diana foi descartado, considerando que sua presença mítica diminuiu dramaticamente. Há também três novos capítulos (incluindo um sobre o “A Casa do Faça-você-mesmo” e uma nova Parte IV sobre “O Futuro”) e foram introduzidos novos segmentos que lidam com Jogos Olímpicos, Las Vegas e os novos modelos de democracia. Houve também alguns ajustes estruturais e partes do argumento foram reformuladas. Sou grato a Henry Rosenbloom e à equipe da Scribe por sua contribuição inestimável neste processo.

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CINCO TESES

Quem vive bem? O que caracteriza a boa vida? Sendo mais específico, o que, no Ocidente moderno, podemos afirmar com certeza sobre nós mesmos? Como vivemos e o que fazemos tem algum sentido final? O debate sobre a qualidade da vida moderna se desenvolveu sem resolução por mais de um século e é alimentado pela inquietação com os tempos: os temores acerca da perda de rumo e de laços que outrora, de algum modo, protegeram nossos antepassados, além de um descontentamento geral sobre quem nós somos. Por outro lado, muitos acreditam que este é um momento muito bom para se viver. Questões sobre o valor da vida que levamos se tornaram difíceis de responder porque os indicadores tradicionais desapareceram. Velhas certezas se desgastaram. Elas incluíam a crença num Deus benevolente que nos governa; o otimismo de que o progresso material fará as pessoas mais felizes; e a confiança humanista numa virtude dos indivíduos que os inclina a construírem sociedades melhores. Muitos dos que refletem hoje sobre essas questões não têm certeza se há qualquer ordem superior moldando a condição humana. Duvidam da existência de uma estrutura absoluta dentro da qual seja possível emitir juízos. E, de fato, quem quer que pense de forma séria e honesta é obrigado a hesitar. Devem equilibrar a «dúvida sábia», como a exprime John Donne, com um respeito pela integridade com que os indivíduos tentam viver suas vidas.

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Friedrich Nietzsche escreveu que um povo só vale o quanto for capaz de “imprimir em suas experiências o selo do eterno”.1 Argumento neste livro que, por esse critério, a modernidade tem o seu valor. Por meio da descrição de muitas das atividades centrais da vida moderna – daquilo que as pessoas comuns fazem –, proponho que há um método a ser encontrado. Esse método serve para compreender as coisas de maneira instintiva e, às vezes, errática e cegamente. Há sucesso e fracasso na mesma medida. Abundam sinais de uma dinâmica inspiradora que se opõe à negatividade freqüentemente atribuída à modernidade. O pessimismo generalizado é comum entre os críticos sociais, de sociólogos e filósofos a artistas e jornalistas. Interpretam a vida moderna como se fosse orientada por uma realidade básica de prazeres egoístas, coberta por um véu de ilusões. Os prazeres extravagantes são satisfeitos por uma sociedade de consumo – sendo o consumismo nada além de um materialismo insensato a flutuar numa mistura profana de avareza, lazer despropositado e um desejo insaciável de entretenimento. Os críticos inclinados à esquerda política tendem a culpar a economia capitalista e a lamentar um declínio geral da consciência social. Críticos conservadores ressaltam o desgaste dos padrões morais, decorrente de uma unidade familiar enfraquecida. A infância vem sendo desestabilizada. A segurança trazida pela presença regular de dois pais amorosos se tornou menos comum. A familiaridade com as degradações mais extremas do comportamento adulto está prontamente disponível para as crianças por meio da comunicação visual. A prevalência do abuso de drogas e de álcool e as elevadas taxas mais de depressão e de suicídios entre jovens revelam uma sensação de fracasso da esperança quanto ao futuro. É verdade que as respostas tradicionais às três questões fundamentais – que todos os seres humanos enfrentam – esvaíram-se: “De onde eu venho?”, “O que devo fazer da minha vida?” e “O que acontece comigo após a morte?”. Novas respostas não apareceram. É possível que estejamos situados historicamente entre duas épocas, desgarrados numa espécie de terra-de-ninguém cultural. O que está por vir se encontra em trabalho de parto. Ou, o que é mais provável, viver na incerteza se tornou a nossa condição permanente. Para nós, as respostas definitivas pertencem a um passado remoto, a um conto de fadas. Na melhor das hipóteses, o que sabemos 1 Nietzsche, The Birth of Tragedy, Basic Writings, p. 137.

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brilha de maneira intermitente e vaga, como luzes oscilantes entrevistas, aqui e ali, entre um denso nevoeiro. Qualquer coisa profunda é um enigma. Este é um lugar fértil e excitante para se estar, no entanto, propenso à patologia cultural. Por exemplo, hoje, convicções religiosas ou políticas defendidas com firmeza – onde elas existem de todo – são encontradas entre as minorias e nos extremos. Dois polos de dogmatismo cresceram em reação à fluidez do centro. Num polo, o fundamentalismo religioso, que regressa a uma defesa de credos e práticas medievais. No outro, o ateísmo secular militante, profundamente hostil à religião, com suas próprias crenças fundamentalistas na ciência e em códigos de direitos humanos. A maioria dos ocidentais não pertence a nenhum extremo. Cabe-lhes gastar sua energia psíquica lutando por encontrar alguma noção abrangente de sentido toda vez que miram a cabeça para fora de seus afazeres diários. Ademais, preocupam-se com a futilidade que, do contrário, ameaça inundá-los. Este livro se ocupa da história deles. Toda época histórica obedece a uma espécie de lógica interna. Desde Georg Hegel, o pensamento alemão postulou um zeitgeist, um espírito do tempo. Max Weber, no trabalho que perdura como a obra-prima da sociologia, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, sustentou que o mundo moderno foi gerado a partir de um novo projeto cultural. Weber seguiu adiante para registrar um desencantamento para com a vida e a disseminação de uma racionalidade burocrática profana de “especialistas sem espírito, sensualistas sem coração”, conseqüências inevitáveis do declínio da fé na cultura original.2Devo sugerir, isto posto, que Weber foi muito pessimista. Ele interpretou mal o declínio da prática cristã e a marginalização de suas comunidades, tomando-os como se fossem a totalidade da História. Enquanto seu trabalho descobriu e traçou a lógica interna dos acontecimentos, perdeu de vista as principais façanhas: a capacidade de o Ocidente moderno adaptar-se com criatividade e reorientar a vida cotidiana em função das poderosas mudanças nas condições sociais, econômicas e culturais. A modernização impulsionou a mais radical transformação da história de nossa espécie, sobretudo no plano material – superando a maior parte das mazelas que afetaram os nossos ancestrais, inclusive as doenças, a fome, a pobreza e o trabalho brutal. Ela melhorou a luta pela existência de um modo até certo ponto 2 Weber, The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalis'm, p. 182.

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inimaginável. E, apesar de ter assado muito pão, é óbvio que não foi capaz de anular a sabedoria do Antigo Testamento, o qual diz que nem só de pão vive o homem. O que talvez seja menos evidente é o quanto as atividades modernas disfarçam uma busca por sentido. O cotidiano revela uma procura pelas respostas às três grandes questões metafísicas. E as respostas serão identificadas aqui. Desenvolvo meu argumento por meio de cinco teses, que servem como linhas condutoras a percorrerem toda a história – um pouco como a corda que conduziu Teseu através do labirinto.

Tese um Inconscientemente, todos os humanos sabem o que é verdadeiro e bom e são internamente compelidos a encontrar o que sabem por meio de suas vidas e do que vêem. Eles percebem que há alguma ordem superior moldando sua existência. O Ocidente continua a buscar as estruturas metafísicas desgastadas.

Tese dois A cultura são os mitos, as histórias, as imagens, os ritmos e as conversas que expressam as verdades eternas e difíceis das quais dependem o conhecimento profundo e, por conseqüência, o bem-estar.

Tese três As culturas são singulares. As leis morais fundamentais e os direitos humanos são universais. A crise de sentido no Ocidente moderno é uma questão cultural e não de cunho moral. Para esclarecer a Tese 3, é necessário distinguir três tipos ou níveis diferentes de verdade. O nível básico é o dos fatos, tal como: “Ontem, almocei à uma hora da tarde.” É uma verdade, mas tem uma importância trivial. A vida do indivíduo é composta em grande parte de rotinas e hábitos cotidianos que podem ser descritos

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dessa maneira, mas uma história de vida que é pouco mais que um compêndio de fatos tão efêmeros dificilmente vale a pena ser vivida. Existe uma ordem intermediária da verdade – a ordem ética. Ela é composta das leis morais que restringem o comportamento: os mandamentos, ou «não farás”. Muitas delas são insignificantes, como as regras de polidez, e essas regras menores variam de uma sociedade para outra. A espinha dorsal da ordem ética é um corpo de leis fundamentais. Elas são universais, isto é, são encontradas em toda sociedade humana. Elas incluem “não matarás”; “não atacarás ou lesarás outro humano sem justa causa”; “protegerás os inocentes”; “não trairás a confiança”; e “não mentirás sobre coisas importantes”. Essas leis limitam todos os seres humanos, exceto aqueles que classificamos como “psicopatas” – pessoas que transgridem proibições importantes sem qualquer conflito de consciência. Além disso, todas as sociedades estimam a coragem e desprezam a covardia. Um vídeo de um adulto pulando numa enchente furiosa para salvar uma criança que está se afogando será admirado em todas as culturas pela demonstração de coragem. Existem também leis importantes regendo outros papéis e condutas. Há a “boa mãe”, o “bom pai”, o “líder responsável” e o apoio moral para “dar valor ao trabalho”. O que varia de uma sociedade ou cultura para outra são as circunstâncias específicas sob as quais é permitido violar alguma das leis fundamentais. Algumas sociedades, por exemplo, permitiram o infanticídio – sob a justificativa de que o bebê não seria ainda humano e que, portanto, a proibição normal do assassinato não se aplicaria. No Ocidente, passou-se a denominar de “direitos humanos universais” o reconhecimento de que todos os seres humanos são iguais, nos termos das leis morais fundamentais e de alguns de seus derivados. Essas leis se aplicam independentemente de tribo, etnia, idade, sexo, status, riqueza ou poder. Este é um desenvolvimento histórico excepcional. Os humanos geralmente são tribais. A visão tribal obriga-me a tratar com justiça os membros da minha própria tribo, nação ou cultura, mas aqueles que são de fora podem ser tratados com padrões mais frouxos. Forasteiros – distinguidos depreciativamente como

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bárbaros, gentios, pagãos, infiéis ou selvagens – são presas legítimas do meu interesse próprio. Foi somente a partir de meados do século XX que a crença em direitos humanos universais se tornou predominante no Ocidente. Esta é uma das grandes conquistas da civilização ocidental, que tem suas fontes nos ensinamentos de Jesus e na filosofia grega clássica, consolidou-se no Iluminismo europeu e, desde então, desenvolveu-se como elemento básico da forma política liberal-democrática. A terceira e mais alta ordem da verdade é a cultura. A tarefa central de toda cultura é fornecer respostas convincentes para as três grandes questões acerca da condição humana. Esta é a ordem das verdades com “V” maiúsculo, as verdades metafísicas. As respostas são fornecidas por meio de histórias – o que os aborígines australianos chamam de histórias do Sonho. São narrativas arquetípicas de muito tempo atrás que fornecem estruturas de sentido e tipos de personalidades ideais através das quais cada indivíduo pode dar sentido à sua vida. Cada geração precisa recontar essas histórias atemporais de maneiras que façam sentido para ela. A cultura popular – do jornalismo dos tablóides a Hollywood, da novela televisiva às lendas esportivas – explora essas histórias. Nelas, os temas clássicos do herói, do romance, do dever, do destino, do mal, da tragédia e da redenção são infinitamente retrabalhados. Nesse aspecto, toda cultura é diferente. É uma diferença central e incontroversa. Os arquétipos da cultura ocidental são particulares e únicos – vindos de Homero, da tragédia grega e dos quatro relatos da Vida de Jesus. Eles são muito diferentes, por exemplo, das histórias dos sonhos aborígenes. São diferentes do núcleo de fundação das histórias hindus contadas no Mahabharata; embora, neste caso, existam fortes paralelos. Da mesma forma, os locais sagrados da cultura variam – de Meca ao rio Ganges, de Roma ao Monte Fuji. Porém, o que eles representam é inegociável. No último século, a grande debilidade do Ocidente se tem dado no domínio da cultura. As correntes principais da literatura, da arte, da música e da filosofia abandonaram amplamente sua missão de recontar as histórias atemporais de novas maneiras e de interpretá-las. Ela traiu sua responsabilidade de ajudar as pessoas a compreenderem suas vidas e sua época. Em seus relativismos,

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surrealismos, desconstrucionismos e pós-modernismos, negou que existam verdades fundamentais. Negou algumas vezes até que existam leis morais universais. É do interesse de todos que todas as culturas sejam fortes e independentes. Conforme expressa a sabedoria aborígene, se você não sonhar, você morre. A insegurança acerca da crença tende a criar uma série de patologias, incluindo o fanatismo. Hoje, a civilização ocidental se sustenta em três pilares. Há a cultura helênica e cristã – o sonho ocidental. Existe a forma política da democracia liberal, comprometida com a crença em direitos humanos universais. E há a sociedade tecnológica e industrial – o sistema econômico capitalista em constante evolução. A defesa dos direitos humanos universais depende do reconhecimento de que eles são independentes da cultura em sentido amplo. As leis morais fundamentais são constitutivas da condição humana. Elas formam um elemento central do ser humano, independentemente da tribo ou da cultura. Uma democracia deve, por sua natureza, aplicar suas leis a todos, independentemente da orientação cultural. Da mesma forma, é fundamental para a democracia liberal e para a separação da Igreja e do Estado que todos os cidadãos sejam livres para estabelecer igrejas e adorar como quiserem. A democracia moderna garante estabilidade social suficiente, possibilitando um alto grau de liberdade da cultura. Os três pilares são inerentemente diferentes uns dos outros nas suas naturezas fundamentais e nas suas lógicas internas. No entanto, sua evolução histórica envolveu interações complexas. Notavelmente, a separação entre a Igreja e o Estado, indispensável ao surgimento da democracia moderna e do capitalismo, tem suas raízes nos ensinamentos de Jesus – um fator cultural. Até a monolítica Igreja Católica Romana respeitou amplamente essa separação. Além disso, conforme expôs Max Weber, a ética protestante – um fator cultural – constituiu uma pré-condição essencial para o surgimento da economia capitalista. Cada cultura, na sua própria esfera, cultiva um entendimento único da vida mortal. Cabem a todos os seres humanos, independentemente de onde vivam, defender as leis morais fundamentais e os direitos humanos universais.

Tese quatro Uma tripla lógica neo-calvinista transita pela modernidade: a consciência individual, a vocação mundana e a anima mundi.

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A modernidade é culturalmente protestante e assim permanece tanto tempo depois que o Deus de Lutero e de Calvino desvaneceu na obscuridade. A Reforma corroeu a hierarquia da Igreja e a autoridade do clero com uma doutrina simples: os indivíduos deveriam ser guiados na vida por sua própria consciência, em termos morais e espirituais. Deus falou diretamente, através daquilo que Milton descreveu como o representante d’Ele no homem: a consciência. Assim, a mais alta autoridade sobre o que fazer e como viver foi democratizada para cada ser humano individual, independentemente de idade, sexo, raça ou condição social. Não somente os bispos e os sacerdotes perderam seus privilégios; as autoridades seculares também o fizeram – reis, primeiros-ministros, líderes civis e magistrados. Finalmente, no último quarto do século XX, a mesma lógica atingiu as famílias, corroendo a capacidade dos pais de disciplinarem seus filhos adolescentes. Os críticos sociais freqüentemente afirmam que a qualidade cultural definidora da modernidade é o humanismo liberal, com sua crença central na liberdade do indivíduo. De fato, a corrente principal do pensamento moderno, em todos os níveis, desenvolveu-se com base na premissa de que a liberdade é progresso. Os indivíduos serão mais felizes e melhores, suas vidas mais realizadas, tanto quanto eles forem libertados de entraves: as restrições dos pais, dos empregadores, das hierarquias sociais, das desigualdades, das expectativas, das ordens políticas e até mesmo das repressões psicológicas pessoais. Reprimir é ruim. A linguagem da modernidade centrou-se na palavra “liberdade”. No entanto, a verdade mais profunda é que tal otimismo liberal só foi capaz de se espalhar tão intensamente devido a uma suposição predominante de que ainda resta uma autoridade controladora – a consciência do indivíduo. Nem tudo é permitido. Max Weber ressaltou que o capitalismo dependeu de uma inversão da atitude tradicional negativa em relação ao trabalho. A visão da aristocracia ociosa era a de que ninguém em sã consciência escolheria trabalhar a não ser que fosse necessário – as pessoas comuns trabalhavam para comer. O calvinismo ensejou uma revolução, enfatizando que o principal retrato do estado da alma individual era a maneira pela qual os humanos conduziam a atividade central de sua vida – suas vocações. Idealmente, eles faziam isso com dedicação, disciplina, rigor e habilidade. O trabalho tornou-se a nova forma de oração: o indivíduo sozinho, de cabeça baixa, concentrado em silêncio, hora após hora, dia após dia. Os pintores holandeses do século XVII, Vermeer e de Hooch, evocaram o clima de devoção

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piedosa. Este ideal do trabalho, incluindo a noção de vocação, permaneceu; qualquer que seja a realidade das ocupações modernas, há geralmente um sentimento de descontentamento, um sentimento de fracasso, até mesmo uma culpa quando a realidade não corresponde ao ideal. A tendência da Reforma foi retirar a religião das igrejas e transportá-la para dentro da vida cotidiana. De fato, estava implícito na lógica calvinista – ainda que não de forma intencional – o que veio a completar-se virtualmente no século XX: o desaparecimento das igrejas. Calvino chegou a escrever que a Igreja que importava era a invisível, cujos fieis são conhecidos apenas por Deus. A vocação era um aspecto da secularização da adoração. O outro era o que os antigos chamavam de anima mundi – encontrar uma alma nas coisas do mundo, um espírito que pode respirar através das coisas cotidianas, comuns, incluindo a matéria. Vermeer pintou o modo como um jarro de água, um pedaço de pão ou um tapete ricamente tecido se iluminam com um brilho divino quando manuseados com reverência. Os indivíduos humanos têm o poder da presença sagrada, e são fortes o bastante para dotar com graça o mundo à sua volta. O domínio primário da anima mundi se tornaria a natureza. A partir do final do século XVIII, os ocidentais iriam cada vez mais sair de casa, para longe da vila e da cidade, em busca do sagrado – no além. Eles estavam retirando-se da civilização, esforçando-se para imergirem na paisagem, no oceano ou no deserto, e ali comungar com os espíritos da Terra e dos céus. O calvinismo incentinou, inadvertidamente, um novo paganismo. A lógica calvinista, que transita pela modernidade, mostra poucos sinais de arrefecimento. Não apenas as igrejas foram esvaziadas, mas a maior parte das outras formas de vida comunitária está perdendo vitalidade, conforme lamentam os sociólogos há mais de um século. Parece que a sociedade moderna gosta de sua experiência coletiva em pequenas doses: seu anseio por uma vida comunitária acolhedora, íntima e segura não deve exigir muito, mas deve antes ser suavizado pelas idealizações de fantasia das novelas televisivas. Ao mesmo tempo, uma série de atividades seculares – o esporte, as relações íntimas e até os encontros com a natureza – está ganhando um status intermediário entre o profano e o sagrado.

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Tese cinco O progresso ocidental desenvolveu-se através do ego, algumas vezes às custas da alma, enquanto o Oriente tendeu a enfatizar a alma às custas do ego. O Ocidente foi fundado num equilíbrio entre ambos, conforme formulado na tragédia grega e revitalizado no protestantismo. O ego é cheio de caráter. É o eu na sua presença única e definida, sabe do que gosta e do que precisa, mas tem também de ser educado. O eu infantil, alternando entre um eu onipotente e um eu tímido e insignificante com medo do escuro, precisa ser metamorfoseado no eu adulto. Este último, idealmente, está completo e integrado, aprofundado pela experiência, conhecedor de si mesmo, de seus talentos e de suas falhas, à vontade consigo mesmo, satisfeito ao encontrar o caminho do que tem de fazer na vida. Esse ego realizado é virtuoso, capaz de tolerar seus próprios impulsos covardes ou injustos. É também compassivo, não fechado nas suas próprias ansiedades, mais livre para sentir os outros. O ego governa a pessoa para o bem e para o mal. La Rochefoucauld chamou-lhe auto-estima (amour-propre) e atribuiu à sua vaidade a maior parte da motivação humana necessária para a sobrevivência material, especialmente nos assuntos pessoais. Ele o descreveu como o maior de todos os bajuladores e “mais esperto do que o homem mais inteligente do mundo”.3 O ego é vital para o bem-estar individual. Os clichês da terapia moderna são de que você precisa acreditar em si mesmo, sentir-se bem consigo mesmo e não rebaixar-se. Eles ainda subestimam a natureza, o poder e o alcance do ego. O ego, além disso, tem o poder de mobilizar o ódio, o despeito, a intriga, o encanto – na verdade, todo o repertório das emoções humanas – como armas de ataque e de defesa. Freud o retratou de maneira diferente: em seu sistema, o ego é contrastado com o id e o superego e é reduzido a uma entidade insignificante sem seus próprios impulsos, conhecido principalmente por sua capacidade de raciocinar. É como se Freud, ao negar a existência da alma, sentisse a necessidade de eviscerar o ego. Todos se esforçam para ver e serem vistos, tudo o que expanda o tamanho e o prazer narcísico do ego. Todo mundo está vulnerável – é meramente uma 3 La Rochefoucauld, Maximes, n°. 4.

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questão de maneira e sutileza – à lisonja, à massagem do ego, que brilha como um carro novo quando é polido pelo elogio de alguém cujo julgamento é valorizado – ou, em tempos ruins, por qualquer pessoa. Ao mesmo tempo, como Aristóteles assinalou, a raiva é geralmente o resultado de um sentimento de menosprezo, fazer alguém sentir-se menor do que acredita ser, deixar-se abater.4 No uso em inglês, o último ”abate” é a morte, que é executado para acabar com a miséria dos animais de estimação muito doentes. O impulso de conhecer pessoas importantes, de estar na presença ao vivo de estrelas quando elas se apresentam, de identificar-se com o sucesso – na forma de um time de futebol, de um partido político ou de uma nação – são formas de aumentar o próprio tamanho. Da mesma forma, fofocas – especialmente para criticar terceiros e expor sua suposta tolice (“Você acredita no que ela fez?”) – são depreciativas e impulsionadas com o fim de usar a comparação implícita para aumentar a sua própria importância. O sinal mais evidente de um ego seguro é que ele não tem necessidade de vangloriar-se ou de menosprezar, e raramente fala sobre si. No entanto, pessoas cujo valor não é reconhecido corretamente podem sentir, com razão, que sofreram uma injustiça. O ego ferido ou danificado pode soltar alguns demônios horríveis e direcioná-los. O ego de Judas reconhece a existência de alguém que é melhor e maior; quem faz isso, por comparação, sente-se vazio. Isso é algo que não se pode suportar; assim, a raiva invejosa o leva a destruir Jesus – que, a propósito, estava longe de ser modesto, como quando afirmou: “Antes que Abraão existisse, Eu Sou.”5 Na verdade, o sofrimento de Judas é maior do que o do ego desprezado: a presença de Jesus revela seu ser mais profundo. Há também egos esmagados ou pequenos, devido talvez à falta de orientação na infância – os que sofrem de timidez ou de um baixo interesse nas pessoas e nas coisas ao seu redor. Seu engajamento é inibido e a vida torna-se desinteressante e deprimente, vivida da forma mais indolor possível. O ego por si só é naturalmente inseguro. Sem a alma, ele é pateticamente fraco. Em última análise, isso decorre da sua mortalidade. Como pode ser, pergunta-se, que algo tão grandioso quanto eu seja extinto? “Eu morro!”, Shakespeare formulou sua essência quando fez Macbeth, um homem que é quase 4 Aristóteles, Rhetoric, capítulo 2.2, pp. 142–6. 5 João 8: 58.

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exclusivamente ego, que apenas em face da morte começa a sentir remorso por todo o mal que fez – refletir, desde o início, que “Nada existe mais senão aquilo não existe”.6 O ego sozinho tem de tornar-se maior e maior, ou não há nada. Este é o sapo-boi de Esopo, que teve que se inchar para provar a um boi real que ele era tão grande quanto ele. O sapo-boi soprou e soprou até explodir e reduzir-se de novo ao nada. Aquiles de Homero foi o maior guerreiro de todos, muito maior do que todos os outros homens, ”radiante no seu brilho”, trazendo glória aos gregos.7 No início da Ilíada, seu discurso desdenhoso ao rei Agamenon – “tu governas nulidades” –, reverbera como um terremoto.8 Ele pode dizer com naturalidade a um jovem troiano implorando por sua vida: “Amigo, morre; por que em vão pranteias? Também, melhor do que és, morreu Pátroclo. Vês-me aqui belo e bravo, de mãe deusa E ilustre pai gerado? Pois violento Fado me ocorrerá, quer manhã seja, Ou tarde ou meio-dia, quando a vida Alguém de hasta me tronque ou seta alada.”9 Este é o ego, um formidável senso do eu e de sua presença singular, do eu e dos seus grandes atributos. O ego de Aquiles realizou sua vocação como guerreiro e como líder – “quão grande, quão esplêndido sou eu” (“ego kalos te megas te”). No entanto, há também a alma; e é porque o ego viveu, não foi negado nem encolheu na timidez insegura, que o grande homem não é mais impulsionado por suas ambições e ansiedades. Ele pode afastar-se de sua glória e refletir franca e pesarosamente acerca do sentido de tudo isso. A alma é o fragmento da divindade em todos os seres humanos vivos e em muitas outras criaturas e coisas, se formos acreditar na anima mundi. Muitas religiões afirmam que ela entra no corpo quando nascemos, quando respiramos 6 Shakespeare, Macbeth, ato I, cena II, versos 141–2. 7 Homero, The Iliad, livro 19, versos 362–4. 8 Homero, The Iliad, livro 1, verso 231. 9 Homero, The Iliad, livro 21, versos 106–12.

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pela primeira vez – uma visão implícita no grego do Novo Testamento, que usa a palavra pneuma para se referir a toda respiração, ao vento e ao espírito. Formativa do Ocidente é a palavra grega para alma, psuchē, que é etimologicamente relacionada com o verbo psuchē – que significa soprar ou respirar.10 Há algum paralelo nas práticas de um povo religiosamente musical, o hindu, que desenvolveu exercícios respiratórios básicos para suas devoções. A alma parte com a morte. O máximo que pode ser conhecido na modernidade cética acerca da partida é o que Poussin descreveu em sua primeira versão do Sacramento dos Últimos Ritos, onde evoca a alma voando pela janela em uma rajada de vento enquanto o moribundo expira – novamente, imagens do pneuma. Para onde e de que forma [a alma voa], personalizada ou não, reencarnada mais tarde ou não, não podemos simplesmente saber. Como o cético Sócrates disse aos seus amigos, pouco antes de beber veneno: ou eu morro e é isto ou minha alma parte na morte para se juntar a outras almas que partiram. Homero também teve a alma partindo do corpo quando da sua morte, saindo pela boca, pelo peito ou por uma ferida aberta. Uma variante disso é a teoria agostiniana de que a alma pode morrer antes do corpo, o corpo continuando sem alma, conforme pode ser observado em casos extremos de derrame cerebral, ou nos relatos dos “mortos-vivos”, aqueles que haviam desistido nos campos de concentração nazistas.11 A pessoa ideal de Aristóteles era magnânima – “alma-grande”. Aristóteles, o mais mundano dos dois grandes filósofos gregos, ridicularizou os idosos, em contraste, como pequenos de alma (mikropsuchoi), numa passagem que vale a pena ser reproduzida em detalhes: “Acontece que viveram muitos anos, foram enganados e cometeram faltas em diversas ocasiões, e ainda, por via de regra, aquilo que fazem é insignificante, em tudo avançam com cautela e em tudo dizem menos do que convém...E são de alma pequena por terem sido maltratados pela vida; por isso, não aspiram a nada 10 Bremmer, The City of God, pp. 21–2. 11 Augustine, The Early Greek Concept of the Soul, vol. 2, livro 13, capítulos 2–4, pp. 1-4. Primo Levi se refere, nos seus relatos dos campos de concentração nazistas, aos Muselmänner, aqueles que haviam desistido como os afogados, os “não-homens” já vazios demais para realmente sofrerem (pp. 93–106).

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de grande, nem de extraordinário, só ao que é indispensável à vida. Também são mesquinhos, porque os bens são indispensáveis à vida, mas, ao mesmo tempo, sabem por experiência como é difícil adquiri-los e fácil perdê-los. São covardes e propensos a recear tudo, pois as suas disposições são contrárias às dos jovens. São frios, ao passo que os jovens são ardentes, de modo que a velhice abre o caminho à timidez, tendo em conta que o medo é uma espécie de resfriado... Vivem mais segundo princípios calculistas do que segundo o caráter: o calculismo depende das conveniências, ao passo que o caráter depende da virtude... Os idosos também são compassivos, mas não pelas mesmas razões que os jovens: estes são compassivos por humanidade, aqueles, por fraqueza; com efeito, em tudo vêem um mal que os ameaça, fato que, como vimos, inclina-os à compaixão. Por isso, andam sempre a queixar-se, não gostam de brincadeiras, nem de rir.”12 De fato, Aristóteles está se concentrando mais no ego do que na alma – o ego tornado sombrio, desconfiado e derrotista, abalado pela experiência da vida. Seu megalopsuchos, ao contrário, é alguém de excelência, que estima altamente seu próprio valor, mas não com exagero (ou falsa modéstia); não está excitado demais pelo sucesso nem muito afligido pelo fracasso; é generoso e serve aos outros, mas não é dado à admiração, pois nada é particularmente grande. Acima de tudo, os grandes de alma são honrados, orgulhosos de sua própria virtude no sentido prático de não permitirem que qualquer ato os comprometa. Em termos modernos, Aristóteles está falando de um grande ego, em que “grande” não é simplesmente grande, mas também de alto nível e bom. Aristóteles passa longe do fato de que, quando os velhos são importantes – como podem ser – eles têm uma presença que é expressiva. Outros são atraídos por eles, mas não como as celebridades, que querem livrar-se de seu carisma; nem como campeões esportivos que acabaram de alcançar um grande feito. A atração é antes por uma certa aura de profundidade, de terem vivido e de terem sido enriquecidos pela experiência – assim como a sabedoria é aquele tipo de conhecimento associado a uma minoria dos velhos, um conhecimento que é mais do que teoria e informação, um conhecimento alicerçado nos verdadeiros mistérios. Tais pessoas são embaixadoras da vida da alma. Seu exemplo ensina que a vida

12 Aristotle, Rhetoric, livro 2, capítulo 2.13, pp. 174–6. Traduzido por Martha C. Nussbaum, The Fragility of Goodness, Cambridge University Press, Cambridge, 1986, p. 338.

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vivida da maneira correta cultiva, nutre e aflora a essência divina, de um modo que permeia toda a pessoa. Para ir além, parece que a vida plena tem o recuo do ego na velhice como um de seus ciclos naturais, à medida que o espírito esmaece. A alma preenche proporcionalmente. Quando isso ocorre, o medo da morte diminui e pode até desaparecer completamente. A alma, não distraída pelo ruído do ego ansioso, está então livre para preparar-se para sua partida. Há também o espírito. É mais que energia; antes, a força da vitalidade, como se o sangue da vida fosse o espírito. Alguém que é espirituoso é cheio de entusiasmo; cheio de vigor. O pressuposto homérico acerca do guerreiro enfurecido é edificante, uma divindade respira através dele – ele tem um espírito sobre-humano. O jogador de futebol moderno, em forma, movimenta-se pelo estádio como um deus, maior do que a vida, imortal, e a multidão responde a ele com admiração, de forma religiosa, como se ele tivesse o toque mágico. Apenas de estar na sua presença, estar ali naquele momento especial para testemunhá-lo, é como uma revelação que pode transformar a vida comum e a matéria comum numa manifestação encantada e eterna. Ele tem aquele espírito extraordinário, aquela energia, aquele estilo, aquele “algo especial” – o ingrediente único e intangível que faz a vida como ela pode e deveria ser, “maior que a vida”. Quando estamos inspirados, somos elevados pelo espírito. Sua fonte é obscura. Parece respirar através de nós, vindo de fora, transformando-nos de fora dos nossos seres mundanos e materiais. No entanto, parece também, simultaneamente, surgir de dentro de nós. Ocorre o oposto com uma pessoa que está desanimada. Quando uma pessoa está “para baixo”, ela está com “baixo astral”. A implicação é que, sem espírito, estamos mortos. Quando nos referimos a alguém como “espírito de porco”, queremos dizer que ele tem uma pobreza de espírito; mais uma vez, uma falta, que lhes traz malevolência. Indivíduos falarão de assumir uma tarefa, de iniciar um empreendimento, “quando o espírito os mover”. Uma pessoa descrita como sendo de “bom espírito” está em embulição e animada, não está pesada nem é preguiçosa ou claudicante – tampouco é um peso morto a constituir um fardo para outros espíritos humanos. Estamos aqui no campo da metafísica pura e cotidiana, em que a linguagem do pneuma não mostra sinais de declínio.

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Não é exatamente a linguagem da alma nem a do ego. Tanto a alma como o ego carregam a marca individual da pessoa, enquanto o espírito parece mais geral, pertencendo ao cosmos sagrado abrangente – novamente, o pneuma sagrado está talvez tão perto quanto podemos imaginar. Por outro lado, as pessoas se referem ao “espírito de um lugar” como se houvesse um caráter particular no ar, definindo o local. Depois havia o daimon grego: no caso de Sócrates, o espírito que o vigiava e que lhe sussurrava um conselho sempre que ele estava prestes a fazer algo tolo. O daimon renasceu no cristianismo católico como o anjo da guarda, um espírito personalizado que ajuda a guiar seu protegido humano pela vida. Mas este é um uso um pouco diferente daquele da força vital insipiradora. Os gregos antigos distinguiam entre psuchē e thumos, entre algo como alma da vida e alma da respiração. A primeira está localizada na cabeça e sobrevive à morte: um fantasma de sonho partindo. A alma da respiração, ativa nos pulmões, é destruída na morte. Tem uma afinidade com o que o Ocidente chamou de “espírito”.13 O espírito não tem lugar na psicologia moderna profana, freudiana ou outra, que teoriza sobre instintos e pulsões, como se os seres humanos fossem animados apenas por impulsos biológicos herdados e por alimentos convertidos em energia, como se os genes e o ambiente explicassem a totalidade da vida. O discurso do dia-a-dia transmite maior sabedoria. Existe o fragmento da divindade, a alma, presente durante o período mortal; existe o ego; e existe o espírito da vida. O espírito flui e reflui, assim como a natureza dos fluídos. Em alguns, está sempre em baixa; em outros, especialmente cheio, está transbordando, fervilhando – nossa tendência é usar metáforas líquidas ou gasosas para capturar sua essência. Tem uma fonte terrena e visceral, o eu totalmente localizado nos instintos, tendo algo do sangue que pulsa através das artérias e das veias. Mas é também o espírito sagrado, com sua outra fonte no cosmos. Desta forma, é mais como um raio, unindo terra e céu, embora geralmente com atmosferas menos voláteis. Casos fronteiriços ajudam a esclarecer as três categorias. Há os simples de alma, pessoas com naturezas boas e ingênuas, em harmonia com a vida cotidiana, 13 Onians, The Origins of European Thought, pp. 93–6. David Claus traçou a psicologização do conceito grego de alma de Homero, para quem ela é uma espécie de força vital imortal, completamente sem personalidade, até Platão, para quem ela é um eu pessoal abrangente, parte imortal e parte mortal, com componentes morais, racionais e emocionais, responsiva à educação e à terapia.

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nas quais o ego é discreto. Há espíritos puros, como o Billy Budd de Melville: um santo tão desprovido de ego que vai alegremente para sua execução, com seu último pensamento devotado ao capitão amaldiçoado que o havia condenado. Há almas profundas com pouco ânimo e, no caso de Milly Theale, de Henry James, um corpo fraco; ou aqueles nutridos pelo sofrimento, como no caso das origens da música afro-americana gospel, espiritual ou soul. Há os pequenos de alma com espíritos elevados, frequentemente talentosos, como os vendedores, em quem o espírito é mais terreno que divino. A frase de Picasso, “Eu não me desenvolvo, eu sou!”, sugere um grande ego com fortes espíritos naturais.14 Há, ainda, os espiritualmente dotados com personalidades más – pessoas nas quais parece que a alma é grande, mas fraturada, ou o ego é danificado de um modo que desencadeia instintos malévolos, utilizando o espírito de modo rancoroso. Em outra frente, como argumentou James Hillman, os indivíduos carregam seu próprio esquema, uma semente dentro de si, crescendo de acordo com sua própria lógica predeterminada e controlando a vida. Essa semente não pode ser plausivelmente interpretada como apenas uma combinação de ambiente e genes herdados, pois até os bebês podem afirmar seu próprio “eu” particular, seu caráter, seu ego.15 Nós viemos ao mundo com um ego e uma alma. Além disso, o ego, diferentemente da alma, é mortal e teme sua própria extinção. Quando há ego demais, especialmente um ego inseguro e uma alma insuficiente, então o medo da morte pode consumir a vida. A tragédia grega teve sua origem na Ilíada e seus afluentes mais profundos no Agamenon, de Ésquilo, e no Édipo Rei, de Sófocles. Ela explorou várias formas de realização, de corrupção e de aniquilação do ego, levando à liberação de suas preocupações, de modo que a alma pudesse elevar-se. Sua sabedoria centrava-se não na negação de um ou de outro, mas no equilíbrio dos dois. O fruto metafísico era, apesar de tudo, uma alegria do espírito e uma gratidão pela vida. O adendo de Calvino era diferente. Por um lado, sua ênfase na atividade mundana – trabalho, família, dever cívico – carregava consigo as armadilhas do ego realizado. Por outro lado, sua insistência de que a graça é tudo era orientada puramente para a alma, sendo o ego uma força para a corrupção potencial. 14 14 Hillman, The Soul’s Code, p. ix. 15 Hillman, The Soul’s Code, pp. 63–91.

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Weber viu nesse paradoxo, no coração do calvinismo, o catalisador da férvida agitação e do incansável auto-exame intelectual, sublimado no trabalho sistemático e disciplinado, que produziu a revolução industrial e, por meio disso, o mundo moderno. O equilíbrio grego, formativo da cultura ocidental, está sempre sob ameaça. As provações, os sofrimentos, os infortúnios e as injustiças da condição humana tendem a incentivar um recuo do mundo, uma anestesia do ego para entorpecer suas dores. Ou podem provocar a reação oposta: uma tentativa de conquistar o mundo para estabelecer o ego triunfante, tão poderoso a ponto de ser imune ao sofrimento. Daí a metáfora comum, “ele vendeu sua alma”. Mas a perda da alma, no final, significa a perda do ego, o outro lado escuro da egomania, sua sombra, contaminada pela autoconsciência sem raiz e por um senso predominante de que tudo é arbitrário e fútil. Da mesma forma, a matéria sem alma é matéria morta.

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Parte Um

CAMPOS DE BATALHA —————— Capítulo Um

TRABALHO

Pode-se aprender muito sobre uma cultura olhando para seus heróis. Os homens e mulheres idealizados na arte da Renascença eram principalmente religiosos – Jesus, a Madona, Maria Madalena, Moisés e Davi. Havia também figuras da mitologia clássica – Primavera e Vênus, de Botticelli, Dânae, de Ticiano. E havia imagens de líderes seculares, como o guerreiro equestre de Donatello, Lorenzo de Medici, de Michelangelo, e o Impererador Carlos V, de Ticiano. Os papas eram retratados como potentados do mundo. No entanto, na Holanda calvinista do século XVII, com Vermeer, há uma mudança cultural. Retratos seminais da rendeira, do astrônomo, do geógrafo, da empregada de cozinha e do artista mostram as pessoas em seu trabalho diário. Os indivíduos não possuem nome, são desconhecidos. É o trabalho em si que é celebrado.

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Tomemos O Geógrafo, hoje exposto em Frankfurt. O homem está sozinho, de pé, inclinado para frente sobre a mesa de trabalho. Sua mão esquerda se apoia num livro fechado; a da direita equilibra levemente um compasso. Ele olha com concentração feroz para uma distância imaginária, a boca ligeiramente aberta, o olhar misturando um pensamento prático sistemático, com uma interioridade reflexiva. Raios descendo obliquamente através de uma janela iluminada por chumbo tocam sua figura. Na frente dele, há um mapa de pergaminho náutico; outros dois mapas estão empilhados no chão e uma carta marítima da Europa está pendurada na parede do fundo. Aqui está uma teoria completa do trabalho como elemento central para a boa vida. Por meio da dedicação a uma tarefa prática (neste caso, a cartografia), uma vida pode ser identificada e iluminada. Uma série de equilíbrios é estabelecida. O homem mapeia a Terra, o domínio da matéria, mas faz isso através da mente – exatamente como, de modo contrário, a verdade vista pelo intelecto é registrada no pergaminho, onde perdurará. O mapeamento é uma cópia de um mundo público e privado, com o gráfico do mar como uma projeção da condição interna do homem: o oceano do eu inconsciente é situado, seus contornos são conhecidos. Ele não é uma alma perdida. A ordem délfica do “conhece-te a ti mesmo” é alcançada através do trabalho. A turbulência da vida emocional e da intimidade também é dominada. Um tapete oriental ricamente tecido cobre a frente da mesa, pendurado até o chão. Ele está amarrotado, simbolizando a inquietação acerca do que está mais perto da Terra, do domínio dos seus instintos e desejos, dos seus assuntos pessoais. Inclinando-se para frente, ele é atraído em parte para o tapete desordenado, pesado pelo que representa. Os mapas no chão são outro sinal de efusão. Sua tarefa é severa; suas tentativas fracassadas são descartadas. No entanto, o próprio geógrafo, apesar de um olhar conturbado, está circunspecto. Ele está vestido de azul, com faixas vermelhas – representando o sangue e a paixão; correndo em V na frente de seu corpo, revela-se uma abundante camisa branca – representando a inocência e a virtude. A paixão está em harmonia com a virtude, sua forma controlada espelhando o compasso, a ferramenta através da qual ele mede o equilíbrio correto das coisas. O trabalho, portanto, tem uma função pessoal, como uma espécie de meio meditativo para domar as provações e os sofrimentos infligidos pela vida.

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Ganha-se um equilíbrio em que a consciência é libertada para governar, para ver o caminho correto e direcionar o movimento ao longo dele, ou pelo menos para aceitar o que ocorre sem reclamação. Mas há mais um ganho, que é vital. Em seu trabalho, o geógrafo está em estado de oração, esperando que o espírito respire por meio da sua ação, transformando-o em algo mais que um trabalho profano e mundano. Ele é o protestante vendo Deus “por um espelho, de maneira obscura”, por meio de uma atividade vital central que é perseguida com todo seu coração, mente e virtude. A recompensa esperada é um momento de graça. A pintura está completa. É, em si, uma ordem que brilha com o sublime – o sublime no mundo. No seu centro está o indivíduo humano, cuja presença tem dois focos. Há a mão direita equilibrando o compasso, o corpo como ferramenta, movendo-se para alcançar uma harmonia de três vias, com a mente, o desejo e a tarefa – que, como dizemos, está “à mão”. Verticalmente, seu rosto está na parte de cima, através da qual o espectador pode sentir o poder da mente concentrada, uma carga entre os olhos tão dura e clara quanto o diamante. A mente não é apenas um intelecto treinado. Ela é também alma. A alma e a mão governam o mundo e atraem a luz do além. Elas fazem isso através do trabalho. Acima dos ombros largos do geógrafo, em cima de um armário, há um globo. Seus ombros estão inclinados para frente como se ele carregasse a Terra sobre eles. Neste disfarce, ele é Atlas, o antigo titã. A alusão calvinista é à sua responsabilidade como indivíduo pelo mundo. Todos nascem com essa responsabilidade, que é realizada através de uma vocação. Além disso, o globo está contido numa moldura de madeira em forma de cruz. Essa cruz está na parede do fundo, assim como um crucifixo estaria posicionado numa igreja. O lar, ou local de trabalho, é a nova igreja.16 O ethos imaginado por Vermeer moldou a modernidade. Existe uma crença – chame-a de fé – de que há um estado acessível do ser, no qual a mente, o corpo e o mundo externo estão fundidos, movendo-se juntos, em harmonia, como se 16 Vermeer havia sido criado como protestante, mas se casou com uma católica e se converteu. Quaisquer que fossem suas visões religiosas explícitas – e parece ter tido laços com os jesuítas – o ethos cultural que ele pintou foi rigorosamente protestante. Sua própria cidade de Delft tinha conexões fortes com a Casa de Orange, em Haia. Max Weber, sob cuja sombra foi concebido este capítulo, teria considerado Vermeer particularmente adequado para ilustrar sua tese da ética protestante.

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obedecessem à mesma lei universal. No esporte, o termo usado é “forma” – a equipe (ou atleta) que entra em forma, repentinamente, acha que tem poderes quase sobre-humanos de movimento e controle. A forma é um estado de graça. Se a modernidade tem alguma compreensão da categoria religiosa da graça, aqui está sua expressão principal. Homero também sabia disso. Na Ilíada, quando um guerreiro suporta tudo diante dele, seus inimigos assumem que alguma divindade está agindo através dele. A ética protestante é a crença de que tal estado pode ser alcançado por meio do trabalho. A vocação é um meio de agir no mundo para se tornar aberto, receptivo à graça. A graça pode ou não vir – está além do poder humano. Como disse Homero, não se pode determinar se deus respira através do homem. A transformação da atitude em relação ao trabalho forjou o mundo moderno. O capitalismo não teria sido possível se uma maioria da população ativa não tivesse ganhado capacidade de aplicação metódica, sustentada por longos e regulares períodos de tempo. Isso dependia de uma mudança da disposição psicológica no caráter típico da Idade Média européia – baixo autocontrole, temperamento explosivo, incapacidade de concentração –, com traços, em suma, que o mundo moderno identificaria como delinqüentes. Era ainda o caso da Inglaterra elisabetana, com descrições de congregações de igreja e de multidões de teatro transmitindo a impressão de uma inquietação generalizada e de uma incapacidade de ficar parados, de pessoas com disposição à tagarelice constante, brincando, cutucando, arrastando e cuspindo – conforme um historiador disse, como uma classe de alunos cansativos.17 Nenhuma fábrica ou escritório modernos funcionaria com essas pessoas. A mudaça da atitude em relação ao trabalho ocorreu de forma lenta, com a alteração do caráter em direção a uma maior capacidade de autodisciplina, de controle emocional e de concentração prolongada.18 Voltando aos nossos tempos e aos fatos sociológicos, a pergunta que se coloca é: quais são os sinais da existência contínua desta ética protestante do trabalho? Particularmente, ela ainda floresce, apenas sobrevive ou está em declínio terminal? Existem duas dimensões para esta questão. A primeira diz respeito à influência do ideal em si – a esperança de que o trabalho possa ser realizado no modo 17 Keith Thomas, Religion and the Decline of Magic, Penguin, London, 1978, p. 192. 18 Explorei detalhadamente as características dessa mudança de disposição, suas pré-condições psicológicas e uma parte de sua evolução histórica no caso da Inglaterra, em ‘The Role of Guilt in the Formation of Modern Society: England 1350 1800’, The British Journal of Sociology, vol. 32, no. 4, Dec. 1981; and in Guilt, pp. 97–122.

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