UM MILAGRE EM PARAISÓPOLIS
UM MILAGRE EM PARAISÓPOLIS
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Fábio Gonçalves
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Livraria Danúbio Editora 2020
© Um Milagre em Paraisópolis, Fábio Gonçalves, 1990 — Prefácio: © Paulo Antônio Briguet, 1970 — FICHA CATALOGRÁFICA Fábio Gonçalves, 1990 — Um milagre em Paraisópolis — 1ª ed. — Curitiba, PR: Livraria Danúbio Editora, 2020. ISBN: 978-85-67801-26-1 Literatura brasileira. 2. Romance. I. Título. CDD – B869.93 Edição: Diogo Fontana Revisão: Rafael Salvi Diagramação: Lucas Guse Capa: Gabriela Fontana Os direitos desta edição pertencem à Editora Danúbio CNPJ: 17.764.031/0001-11 — Site: www.editoradanubio.com.br Distribuição: CEDET - Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico Rua Ângelo Vicentim, 70, Campinas/SP Todos os direitos desta edição pertencem à Livraria Danúbio Editora Ltda. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer meio.
Sumário Prefácio - O Nascimento de um Escritor. . . . . . . . . . . . . . 9 Parte I - O Noivado I. A igrejinha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 II. O Pastor Josenildo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 III. O Pastor Glauber. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27 IV. Letícia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31 V. Lindalva. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37 VI. Um Beijo de Mãe. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45 VII. O Almoço de Noivado. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55 Parte II - O Segredo I. Saulo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71 II. Silvana e o Anônimo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79 III. Um Conselho a uma Alma Aflita. . . . . . . . . . . . . . . . . . 87 IV. Idéia Fixa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93 Parte III - O Casamento I. Um Beijo de Filho. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97 II. Prontos para o Banquete. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101 III. Uma Cena Tragicômica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105 IV. Último Ato. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107 V. Um Erro e um Herói. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119 Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123
Prefácio O Nascimento de um Escritor
Por Paulo Briguet “O que vimos e ouvimos, nós vos anunciamos, para que também vós tenhais comunhão conosco.” (1 Jo 1, 3) Nos últimos quarenta anos, a literatura brasileira foi uma terra desolada, um deserto povoado por sombras e pedras. Na medida em que se calavam as últimas vozes da alta cultura — Autran Dourado, Herberto Salles, Josué Montello, Bruno Tolentino, Ariano Suassuna, Ferreira Gullar —, o espaço era ocupado por uma algaravia de simulacros cujo movimento pendular ia do vanguardismo oco ao psicologismo barato, quase sempre tributários de ideologias políticas insensatas, quando não criminosas. As poucas exceções à aridez reinante — um Domingos Pellegrini, um Dalton Trevisan, uma Adélia Prado — não eram suficientes para compensar o panorama desolador.
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Mas não poderia permanecer infértil para sempre uma literatura que já teve um Machado, um Euclides, um Bandeira, um Freyre, um Carpeaux, um Drummond, uma Cecília, um Nelson, um Rosa, um Graciliano. Em algum lugar de nosso inconsciente coletivo, as sementes da grande arte literária aguardavam o momento de vicejar outra vez. Creio que esse momento chegou; e um nome que não me deixa mentir é o de Fábio Gonçalves, autor do livro que você tem nas mãos. A novela Um Milagre em Paraisópolis é a primeira obra publicada de Fábio Gonçalves. Para mim constitui um motivo de orgulho e, ao mesmo tempo, uma responsabilidade descomunal a tarefa de prefaciar este livro. Tenho a impressão de que, daqui a muitos anos, estas minhas palavras serão lidas por estudiosos da nossa literatura. Que eles não sejam demasiado severos comigo. A ficção de Fábio Gonçalves é tão solidamente ancorada na realidade que acaba por se confundir com a própria realidade. Depois de ler Um Milagre em Paraisópolis, passei a acreditar piamente que o autor havia nascido e crescido na famosa favela paulistana. Mas isso não é verdade; Fábio, realmente, nasceu numa favela, mas em outra menos famosa, localizada em Diadema, na Grande São Paulo. A força minuciosa com que ele descreve ambientes, estabelecendo uma dinâmica narrativa rara de encontrar em escritores brasileiros contemporâneos, e combinando a linguagem culta com expressões coloquiais da urbe paulistana, fez-me pensar que ele era um cidadão de Paraisópolis. Analisemos rapidamente esse nome: Paraisópolis. No Livro do Gênesis, deu-se o nome de Paraíso ao lugar em que viviam o homem e a mulher antes da Queda. Quando eles cedem à tentação da serpente e comem do fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal — “Sereis como deuses”, disse a serpente —, são expulsos do Paraíso, cujas portas passaram a ser guardadas por um anjo com uma espada flamejante. Tempos depois, ocorre o primeiro assassinato bíblico, entre os filhos de Adão e Eva. Por inveja, Caim mata Abel, e é condenado a vagar pelo mundo. O que pouca gente lembra é que
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Caim vem a fundar a primeira cidade — a primeira pólis. O nome “Paraisópolis”, portanto, encerra um paradoxo, uma impossibilidade lógica. Nele estão, simultaneamente, o lugar perdido após um ato de desobediência e o lugar fundado sobre um ato de inveja. A novela de Fábio Gonçalves tematiza esse paradoxo — que vem a ser o paradoxo da sociedade brasileira nos últimos 40 anos. Paraisópolis, contradição em termos, representa o drama do nosso povo, em que a luta pela sobrevivência material se sobrepõe às necessidades do espírito, impedindo o casamento entre o Céu e a Terra que é a marca das grandes civilizações. O título da obra, porém, traz mais uma palavra-chave: milagre. Que outro nome podemos dar ao fenômeno de um rapaz nascido em ambiente pobre e violento, exposto continuamente aos riscos e tentações da criminalidade e do vício; que até os 22 anos considerava-se “um analfabeto de mola”; que de repente conheceu um professor chamado Olavo de Carvalho e começou a desenvolver amplos interesses intelectuais; que examinou o horizonte da própria ignorância; que se colocou em face da mortalidade e desvendou as camadas de autoengano em que sua consciência estava mergulhada; que começou a ler avidamente os clássicos da literatura; que aprendeu latim e outros idiomas; que passou a ouvir música clássica e a estudar história da arte e simbólica tradicional; que se interessou por Filosofia Política e leu quase toda a obra de Eric Voegelin; que em apenas um mês e meio escreveu um romance intitulado Peroba e com ele ganhou um prêmio nacional de literatura, enquanto nascia o seu primeiro filho, Pedro; e que fez tudo isso justamente no período em que o Brasil passava por transformações políticas e sociais jamais vistas em nossa história — a chamada revolução conservadora brasileira? Que nome daremos a isso tudo, senão milagre? “Antena da raça”, Fábio Gonçalves revela, nos meandros de seu estilo em formação, a influência dos autores que promovem a grande conversação da literatura em todos os tempos. Sua voz literária
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ecoa autores do século XIX — Balzac, Flaubert, Proust, Manzoni, Dickens, Poe, Tchekhov, Tolstói, Machado —, autores do século XX — Faulkner, Maugham, Murilo Mendes, Jorge de Lima, José Lins do Rego, Jorge Amado — e alguns nomes da literatura contemporânea como Kundera e Houellebecq. No entanto, parece-me que o autor mais próximo ao seu universo é um russo que morreu há 140 anos: Fiódor Dostoiévski. A favela de Fábio Gonçalves é a sua estranha São Petersburgo, com bailes funks e sem noites brancas. Parece impossível, mas é ali que o milagre acontece — o milagre da nova literatura brasileira. — Paulo Briguet é escritor.
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Parte I O Noivado ————————
I A igrejinha
Era um domingo, dia bonito, pela graça de Deus. Sendo verão, o Sol surgira bem cedo para alumiar e aquecer o emaranhado de barracos, vielas, bichos e gentes que conforma a Paraisópolis. Com a quentura, as ruas desta, que é a maior favela de São Paulo, acordaram agitadas, no reboliço. O funk, o gospel, o forró e o samba estalavam alto nas casas e nos botecos; o late-late dum sem-número de vira-latas esfaimados e sarnentos alegrava as praças e os parquinhos; o vôo gracioso dos pardais e bem-te-vis, que de vez em vez repousavam na perigosa gambiarra de fios da rede elétrica, do telefone e da internet, tratava de embelezar o céu. Como fosse, nos campinhos de barro ou nas quadras de piso irregular, homens marmanjos e meninos miúdos disputavam encaniçadas partidas de futebol; e nas feiras-livres que se estendiam de par a par nas principais ruas da quebrada, as senhoras mães de família, no
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meio do grita-grita dos vendedores e no vuco-vuco daquele povaréu multicolorido e suado, digladiavam-se com suas vizinhas à cata de hortifruti barato pra passar a semana. Ainda, muitos moleques com marra de maloqueiro subiam de laje em laje pra empinar seus papagaios e fumar suas drogas matinais; e os humildes trabalhadores, homens e mulheres obrigados a desobedecer ao mandamento sabático, arrastavam-se estoicamente até o trem que margeia o Rio Pinheiros, a linha 9 da CPTM, rumo ao Centro da Capital. Mais a mais, nesse furdunço de bem cedinho, nesse corre-corre da gente pobre, uma boa soma de desgraçados saia às igrejinhas de crente em busca do consolo divino. Pois naquele domingo gostoso, a Igreja do Dia do Juízo, como do seu costume, estava abarrotada. Lá, umas tiazinhas carolas, uns varões engravatados e crianças vestidas como os pais cantavam a plenos pulmões, para toda Paraisópolis ouvir: “Glória, glória, aleluia Glória, glória, aleluia Glória, glória, aleluia Vencendo vem Jesus” — Irmãos! — assim principiou sua reza o Pastor Josenildo. O homem, com os olhos semicerrados e os braços esticados ao céu, em gestos agitados e alguma coisa teatrais, marchava apressadamente de um lado a outro do altar. — Glorifiquem o Senhor! A volta d’Ele está próxima! Aleluia! Os sinais estão sendo dados, irmãos! As guerras, a fome, as mortes! Irmão matando irmão, pai matando filho, filho matando pai! É tudo choro e desolação! Aleluia, aleluia, aleluia! São os Cavaleiros do Apocalipse! O Anticristo já está no mundo! Logo as trombetas soarão anunciando a vinda do Messias! Aleluias! Aleluias! Ele descerá do Seu Trono, irmãos! Ressuscitará os mortos e julgará sua Igreja! Ô, aleluia! Isso, irmãos! Clamem ao Senhor das alturas! Ao
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Rei dos reis! Mais alto! Clamem! Glórias, glórias e glórias! Ele ouvirá nossas vozes, atenderá nosso clamor! Tendo chegado ao limite da excitação, os olhos do pastor reviraram-se na órbita e sumiram-se pra cima. Então, de repente, seu corpo desembestou a enrijecer, como quem fizesse muita força, e ele deu de se tremer todo, de tão rígido foi ficando. Pois, assim, duro como estátua, com o rosto vermelho do esforço, o pastor desatou a dar uns pulinhos ligeiros, indo de lá pra cá, feito uma pulga desorientada. E o povo remendando. Daí, abrupto, fez-se silêncio: o homem parou todo sério e quieto, em gesto contemplativo, numa espécie de transe místico. E os fiéis admirados, sem piscar, sempre atentos àquelas manobras mágicas que, segundo a crença geral, faziam abrir as Janelas do Céu para derramar por sobre os fiéis as Bênçãos prometidas por Malaquias — no capítulo 3, versículo 10 do seu livro profético. Ato seguinte, depois de sussurrar só para si uma oração, o sacerdote deu de ulular em línguas estranhas, e meteu-se a rodopiar feito pião, e, a título de exorcismo, começou a impor suas mãos na cabeça dos diáconos — os quais, pelo toque, desfaleciam e tombavam, estrebuchando-se, rastejando no chão, como se epiléticos. — Aleluia, aleluia, aleluia! — todos na congregação repetiam em coro forte, imitando os gestos e as palavras de Josenildo. As mulheres sacudiam os cabelos freneticamente e choravam orações; os homens giravam como dervixes turcos, e tiravam o paletó, e traulitavam com a peça em seus vizinhos, que, sem se melindrarem, retribuíam o golpe com idêntica violência ritualística. Além da dança extática, vozes angustiosas ecoavam nessa igrejinha que era só uma dentre as tantas que, em recente, foram fundadas em cada esquina de Paraisópolis. Esta, por sinal, era das mais simples. Ocupava o espaço que noutros tempos fora o de um boteco, numa ruazinha ainda sem asfalto, ombreando dois cortiços — coisa que, a um tempo, obrigava os crentes a participar das contendas e do funk dos vizinhos, e estes a ouvir todos os cultos que ali se rezavam.
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— Esse povo deve achar que Deus é surdo — murmurava de dentro do seu quartinho o Sr. Walter, policial aposentado com fama de ranzinza que morava nos fundos do quintal à esquerda. — Pois é! Tô a ponto de chamar a polícia. Tô com menino pequeno em casa e esses doidos, com essa gritaiada, não deixam o menino dormir — concordava a Dirce, uma das mais encrespadas vizinhas do cortiço da direita. — Os incomodados que se mudem, seus encapetados — retrucava assim a comitiva de senhorinhas da igreja que cuidava das relações públicas com esta peculiar civilidade de favelado. — Ô Vanda, fala pro seu filho baixar essas músicas feias aí. Que pouca vergonha, mulher. Que baixaria. Olha o que essas músicas tão falando. Misericórdia! — pedia uma das irmãzinhas, antes do culto iniciar. — Tá reclamando do meu filho, sua biscate? Só porque é crente acha que pode sair medindo o filho dos outros? Capaz! Vá pro Diabo que te carregue! — e assim a vizinha dava banana às suplicantes, fechava a janela de um golpe, e pedia pro seu menino subir o som, só de birra. Não passava uma só semana sem que os corticeiros e os crentes se pegassem em entreveros dessa natureza. Fosse como fosse, nada daquele edifício pobre e malcuidado, encurralado no meio dessa vizinhança hostil, assemelhava-se a um templo. Na verdade, o povo de Paraisópolis só sabia que ali se praticavam coisas divinas porque uma placa, escrita a canetão, proclamava: “Jesus Cristo é o Senhor — Igreja do Dia do Juízo”. Por fora lembrava uma casa qualquer. A fachada, pintada à cal, estava descascada e carcomida, e a porta, que era dessas de comércio, dessas que se abrem pra cima, estava toda ela pichada e buracada da ferrugem. A julgar pela primeira vista, um desavisado, sob risco de pecar gravemente, chamaria aquilo de espelunca, de bodega. E olha que dentro a situação não era mais
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reconfortante. O chão era daqueles vermelhões, dos que se precisa encerar, e as paredes, mal pintadas em um branco já encardido, tinham o rodapé ferrado de bolor. Demais, havia aqui e ali umas boas rachaduras, e o teto baixo, que deixava o ambiente abafadíssimo, em vez de adornos de arte sacra, revelava boas marcas de infiltração e goteiras. A mobília eram só umas cadeiras de plástico separadas por um corredorzinho ao fim do qual se achava o altar. Ali descansava um púlpito em marfim, e sobre ele um porta-bíblias de acrílico que equilibrava um grosso volume do Livro Sagrado. Até se podia dizer que as únicas coisas bonitas eram as quatro poltronas pesadas e luxuosas, com base de madeira ornada e estofado vermelho-real, que, durante os cultos, acomodavam o pastor e os principais diáconos da congregação — diáconos que, em regra sendo anciãos, dado o conforto desses bons assentos, não raro davam profundíssimas pescadas durante a pregação do Pastor Josenildo.
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II O Pastor Josenildo
Encerrado o primeiro momento de clamor, os fiéis, voltando do transe, secaram suas lágrimas e suores, resfolegaram-se, e se assentaram. Nisto, o pastor, homem de uns quarenta e poucos, sujeito pardo, flagrantemente nordestino — de cabeça achatada, baixinho, corpo seco e aterrado —, cabra que se vestia à moda crente, com terno extremamente folgado, gravata jacquard, sapato social nos trinques e cabelo repartido — esse homem, conforme todo o seu rebanho expectava, posicionou-se na frente do púlpito para falar. E para os circunstantes, sua palavra era fogo, luz e salvação. Não obstante, o homem andava com algum aperreio nos últimos tempos. Nas vielas, no comércio e nas praças, o povo paraisopolitano ciciava que era alguma coisa grave, uma provação divina, como a que acometera Jó. E o Pastor havia mesmo amarelecido, encaveirado, e perambulava de uma banda a outra com os olhos fundos como quem sofresse de insônia. — Será que o Diabo não se encostou nele?
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— É, menina, homem que mexe muito com essas coisas... já ouvi umas histórias... — Deixem de fofocaiada, suas incrédulas, o pastor é um varão excelente, essas coisas não pegam em homem assim, não. Era desse modo que o povo filosofava aquelas estranhezas do pastor. O homem foi assim ao púlpito. Estava exausto, pingando de suor, muito diferente do seu costume. De normal, Josenildo era forte, vigoroso, rezava três desses cultos seguidos, sempre com a mesma qualidade. Mas estava diferente. Esforçou-se muito para fazer o seu rito inicial, o Clamor, a Descida do Espírito de Pentecoste, a Dança Davídica. Aquilo o extenuou. Pois, no que ele ia começar sua fala, com a camisa grudada da suadeira e as mãos frias fazendo o microfone trepidar, viu o povo se embaralhando, as pessoas se sumindo, ficando foscas, um calorão lhe subindo no peito... Caiu desmaiado. O Pastor Josenildo carregava sempre uma expressão séria e trejeitos austeros. Sempre com conversa curta, cenho contido, riso difícil. Um homem duro, que até fazia medo. E a casmurrice tinha justo propósito. Josenildo era a autoridade espiritual naquela igrejinha e precisava, a todo custo, provar-se merecedor do posto. Vindo do Nordeste há pouco mais de vinte anos com a mulher prenha e mais dois pequenos dependurados no pescoço, esse homem buscava, conforme a cartilha do retirante, as oportunidades de emprego que lhe eram escassas na terrinha. Com este propósito, chegou em São Paulo no início de 2000. E ficou maravilhado, pela manhã, com a Rodoviária do Tietê. Empolgou-se e encheu-se de esperança com o que viu, à tarde, no Centro, onde fez questão de se demorar, ele e a família, todos bobos com o corre-corre, com o trânsito acirrado, com os prédios a perder de vista, o Mercadão, o Municipal, a Sé. No entretanto, mais à noite, conforme se aproximava com seus trapos, mulher e filhos da
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biboca sinistra que lhe haviam arranjado, foi se angustiando. É que um conterrâneo seu, já experimentado nas delícias e dissabores da cidade, descolara para o pobre sujeito, segundo seus haveres, um quarto-e-cozinha caindo aos pedaços na perigosa Paraisópolis. — Nildo do céu, esse lugar me dá é agonia — disse Lindalva quando desceram do ônibus e se depararam com aquele mundo de barracos tortos e sem reboco construídos por homens bêbados, os esgotos correndo ao léu, o fedor de merda empesteando o ar, o crocito de corvos em torno dos cadáveres de cães e gatos, o entra-e-sai de gordas ratazanas nos bueiros, os pinguços velhos gritando palavrões na porta do boteco, os meninos mal-encarados exibindo seus cigarros de maconha, e seus pinos de coca, e seus armamentos. O homem não quis dizer nada, só olhou fundo para tudo aquilo, engoliu um seco, mordeu o maxilar, e pensou que pobre não tinha que querer. Muito perrengue ele já havia suportado nessa vida, e sempre com muita bravura. Esse cabra, é preciso dizer, crescera com o couro grosso e não tinha cara feia que lhe pusesse receio. Josenildo era sujeito do sertão, da Caatinga, homem feito de barro endurecido, torrado no sol. Lugar difícil de viver era com ele mesmo, sabia de cor. Meditando essas coisas ele sorveu mais um gole da paisagem, cindiu Lindalva e suas crias nos braços, empertigou-se, e aceitou a empreitada. “É isso que cumpre a um macho”, concluiu, mentalmente. Com efeito, percorridos esses vinte anos, tanto ele fez que transformou o barraco da chegada num sobrado de dois andares, com acabamento pro gasto, com mobília decente, com quarto para cada filho e um Chevette na garagem. Conquistas tais que o colocaram na conta das famílias de classe média da favela — pois na favela também há hierarquia de classes. E o homem não erguera tudo isso só com o seu braço raçudo. Contara também com o da esposa, a Lindalva. Os dois, sem estudos nem parentes, largados à sorte na fria e inumana São Paulo, tiveram de se virar nas pias dos restaurantes chiques da Vila Madalena, em diárias nos casarões do Morumbi, nos bicos na Feira
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do Rolo, na costura em casa com a Overlock comprada no carnê, na barraca de CDs piratas que Josenildo esticava no Viaduto do Chá ou na João Mendes... Uma vida lascada de difícil. E o Josenildo, calado como de costume, muito se entristecia em ver sua rainha se esfolando naquelas lidas ingratas. “Um dia tiro ela desses apuros”, dizia de si pra si quando via a mulher chegando esbagaçada do serviço, com os pés inchados clamando por uma salmoura, a lombar empenada, só se aliviando com o Doutorzinho de cânfora e eucalipto, o rosto ficando velho menos da idade que do cansaço. “Um dia eu livro ela.”. No entretempo dessa evolução, Josenildo mais Lindalva criaram três filhos, duas moças e um moleque. E o casal esforçou-se para dar aos pequenos tudo aquilo que lhes fora negado na infância dura no sertão. Deram iogurte, bolacha, videogame, boneca, escola paga. Também os protegeram do trabalho precoce, do qual eles mesmos, na lavoura, não puderam fugir. Quer dizer, sob certos aspectos, seus rebentos foram criados à moda moderna, citadina. Porém, como contrapartida, havia os rigores morais aprendidos na caatinga, a rígida disciplina domiciliar, herdada dos pais brucutus, o controle excessivo das amizades e a fiscalização até paranóica quanto a potenciais namoricos das filhas, tanto mais da bela caçula, o bem-maior desse bruto do Josenildo. E esse regime de quartel endurecera quando, depois de umas poucas e boas na nova terra — que não era a Canaã dos seus sonhos —, esse Josenildo, que ia se afundando no álcool pra agüentar o trabalho pesado e o assédio dos fiadores, para a glória de Deus, converteu-se a Cristo. Ou melhor, o homem se transformou naquilo que a sabedoria popular chama de “Bíblia”, personagem bastante conhecido da periferia paulistana. O Bíblia é o sujeito que num dia está lá jogando dominó na praça, sorvendo boas doses de pinga, tarando as mocinhas, gritando
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impropérios. É o homem já para além dos trinta que ainda freqüenta os forrós ou pancadões da favela, que não dispensa um baseado quando a oportunidade se lhe oferece, que é consumido pelo vício da pornografia, que vai assiduamente nas “primas”... É ainda o típico mau funcionário, daqueles que dá golpes no patrão; o mau pai, do tipo que ofende os filhos por besteira — se é que os assume; e o mau marido, o que xinga e soca a companheira por puro sadismo. Entretanto, num momento seu de desilusão com a vida, de profunda crise de consciência, aparece, como que vindo do Céu, um irmãozinho crente. E ele vem, lhe fala com gosto das Boas-Novas de Cristo, canta-lhe um daqueles louvores que faz verter lágrima até de mármore, ambos se desfazem no choro, e, num repente epifânico, acontece uma mudança completa e definitiva naquela alma alquebrada e pecadora. Converte-se. E uma tal mudança começa a se desenhar para o mundo quando, no dia seguinte, o recém-converso assume o traje já descrito — ternão folgado, cabelo lambido, sapato no brilho. Traje este que é coroado — e aqui tem-se a peça principal da indumentária — com um volume parrudo do Livro Sagrado, que o Bíblia, dali em diante, carregará pra cima e pra baixo, faça chuva ou faça sol. Daí a alcunha. O Bíblia, por conseguinte, é aquele que morreu para o mundo; é, no jargão cristão, uma Nova Criatura. O abençoado, com efeito, não possui mais vícios: não bebe, não fuma, não joga, não diz palavrão, não constrange mais as mulheres na rua, respeita a sua família, não mente. É um Novo Homem. O problema é que às vezes o Bíblia se torna — como posso dizer? — um piegas, um fariseu. O homem passa a condenar ao inferno qualquer um que cometa os mesmíssimos deslizes humanos que até ontem lhe eram totalmente banais. Bebeu? Vai pro inferno. Fumou? Já está danado. Adulterou? Está nos braços do Tinhoso. E a única chance de salvação, segundo o costume, é ouvir suas admoestações eviternas. Daí o Bíblia nos castiga com uma enxurrada de citações das Escrituras, de ditos populares, de exemplos de
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outros crentes. No espaço de semanas, o sujeito vai de humilde pecador a teólogo erudito e sábio conselheiro. Aliás, só Deus sabe como um perfeito analfabeto se transmuta, sem mais nem menos, nesse Agostinho, nesse Tomás Morus. Só isso, por si, já é um baita milagre. No caso do nosso Pastor Josenildo, ele foi, durante os primeiros anos da sua conversão, um Bíblia exemplar. De dia passava horas ouvindo hinos e pregações no rádio e tomava nota de tudo — na medida que seu iletramento permitia; à noite, com a família reunida na mesa do jantar, ele lia, aos tropicões, algum trecho das Escrituras, improvisava sua exegese, e na sequência arriscava seus primeiros clamores — aos que todos deveriam repetir, ritualmente. Como incumbe aos varões de Deus, ele também arrastava o seu povo aos cultos de segunda, quarta, sexta e domingo. Demais, não perdia a oportunidade de pegar seus velhos amigos “do mundo” e lhes passar longuíssimos sabões evangélicos — no que os amigos saíam chamando-o de louco, alegando que ele estava um belo dum fanático, um verdadeiro chato de molas. Pois então Josenildo ia culpando o Diabo pelos desaforos dos mundanos, e martelava que não queria mais saber daquela gente incrédula, só se aprazendo em companhia de outros fiéis. E só fiel excelente. Josenildo, buscando ser crente perfeito, pulou de galho em galho à cata da congregação que lhe parecesse mais santa e correu por muitas até ser levado à Igreja do Dia do Juízo. Então, muito convencido por tudo que ali se dizia, assossegou-se da sua peregrinação e redobrou seu empenho à obra de Deus. Com isso, foi ascendendo, passo a passo, aos cargos de colaborador, subdiácono, diácono, pastor suplente e, há dez anos, a pastor titular — tendo pego o cargo mesmo sabendo das condições, tim-tim por tim-tim. — É pegar ou largar, varão. Aqui não tem meia-conversa. Queremos que seja o nosso pastor, e o negócio funciona assim, assim, assado — disse-lhe, em reunião a portas trancadas, o Bispo da Igreja do Dia do Juízo que iria consagrá-lo.
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“Com isso aí eu fico bem — matutou o Josenildo, olhando fixo pro proponente — posso dar o de melhor pro meu povo, dar paz pra minha velha... Mas esse negócio tá errado, Josenildo... Tá errado. Vê no que tu tá entrando, homem. Seu pai te ensinou a honra...” — Fique tranqüilo que a coisa é feita dentro das leis divinas e humanas... — assegurou-lhe o velho esguio e narigudo, com jeito de estrangeiro, que estava sentado em sua frente com postura despreocupada e mesmo maliciosa. — Não tem mutreta, varão. Você acha que a gente te colocaria em coisa errada? — Respondo amanhã, Bispo. Não sou de ficar fazendo caso, mas isso aí eu tenho que pensar — e foi se levantando. — Amanhã eu digo. Fica com Deus. Nesta mesma noite, sem poder dormir pela indecisão, Josenildo, em gesto raríssimo, foi consultar Lindalva: — Mulher — sussurrou ao pé do ouvido da esposa, na cama do casal, com a lua os alumiando de viés — Tô lhe contando porque com a gente não tem segredo. Pra mim, aí tem coisa. Isso vai é azedar. Isso aí não é coisa de sujeito homem fazer... Isso eu sei, mulher. Meu velho me ensinou direitinho. — Deixe de ser frouxo, homem! Como assim? Que bestajada é essa agora? — disse a mulher, impaciente. Tu pode fazer isso, Josenildo Ferreira. Se estão lhe dizendo, é porque tu pode, homem. Isso aí muitos ungidos fazem... Agora pronto! Você foi escolhido e ponto final. Você é um homem de Deus, Nildo. Um escolhido. Deus lhe deu o talento. Não pode negar o talento, homem. Tu sabe a Parábola, Mateus 25. Largue de conversinha e cumpra com suas obrigações. Honre suas calças, Nildo! As palavras da mulher atribularam o seu coração. Diante disso, ele se calou — e aceitou o cajado.
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