Notas Sobre a Vida e as Letras
Notas Sobre a Vida e as Letras
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Joseph Conrad
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Livraria Danúbio Editora 2020
© Notes on life and letters, Joseph Conrad, 1921.
FICHA CATALOGRÁFICA Conrad, Joseph, 1857–1924 Notas sobre a vida e as letras / Joseph Conrad. — 1º ed. — Curitiba, PR: Livraria Danúbio Editora, 2020. ISBN: 978-65-88248-01-0 1.Crítica literária. 2. Ensaios. 3. Literatura. I. Título. CDD – 800 Tradução: Luiz Felipe Ribeiro Revisão: Rafael Salvi Diagramação: Lucas Guse Capa: Gabriela Fontana e Lucas Guse Imagem da capa: Gabriel Ghnassia - Library at Château de Chantilly, France Os direitos desta edição pertencem à Editora Danúbio CNPJ: 17.764.031/0001-11 — Site: www.editoradanubio.com.br Distribuição: CEDET - Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico Rua Ângelo Vicentim, 70, Campinas/SP Todos os direitos desta edição pertencem à Livraria Danúbio Editora Ltda. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma,seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer meio.
Sumário Nota do autor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 PARTE I - LETRAS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Livros - 1905. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Henry James - Uma Crítica - 1905. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Alphonse Daudet - 1898 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Guy de Maupassant - 1904 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Anatole France - 1904 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Turguêniev - 1917. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Stephen Crane - Uma nota sem datas - 1919. . . . . . . . . . . . . . . . . . . Histórias do Mar - 1898. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Um observador na Malásia - 1898 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Um Alegre Ambulante - 1910 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A vida além-túmulo - 1910 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Esforço de Ascensão - 1910 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O Censor Teatral - Uma apreciação - 1907. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
13 15 21 29 33 39 49 53 57 61 65 69 73 77
PARTE II - VIDA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Autocracia e Guerra - 1905 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O Crime de Partição - 1919. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Nota Sobre o Problema Polonês - 1916 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Polônia Revisitada - 1915. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Primeiras Notícias - 1918. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Bom Trabalho - 1918. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Tradição - 1918 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Confiança - 1919. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Vôo - 1917. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Algumas reflexões sobre a perda do Titanic - 1912. . . . . . . . . . . . . . .
83 85 109 123 129 155 159 171 177 183 187
Alguns aspectos do admirável inquérito sobre a perda do Titanic - 1912. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201 Proteção dos Transatlânticos - 1914. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 217 JOSEPH CONRAD - Um Lugar Acolhedor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 227
Nota do autor
Não sei se devo dar uma justificativa para esta compilação, que tem mais a ver com a vida que com as letras. Seu apelo dirige-se aos espíritos que prezam pela ordem e pelo asseio. Falando francamente, isto aqui é um processo de faxina, o qual, dada a natureza das coisas, não pode ser considerado prematuro. O fato é que eu mesmo quis executá-lo, por conta de um sentimento que não tinha relação alguma com as considerações a respeito dos méritos ou deméritos das pequenas (mas inteiras) peças coligidas nas páginas deste volume. É claro que se pode dizer que me bastaria ter pegado uma vassoura e a utilizado sem dizer nada a respeito. Esta, certamente, é uma forma de se fazer uma faxina. Mas seria demais esperar que eu tivesse tratado todo esse material como lixo. Todas essas coisas tiveram um lugar na minha vida. Se alguma delas mereceu ser selecionada e disposta na prateleira – esta prateleira – não sei dizer e, sinceramente, não permiti que minha mente se demorasse nessa questão. Eu tinha medo de acabar num estado de espírito que pudesse ferir meus sentimentos; pois esses escritos, quaisquer que possam ser os comentários sobre a sua publicação, fazem parte do caráter do homem.
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Ei-los então aqui, espanados, que era o mínimo que se podia fazer, mas de modo algum polidos, estendendo-se do ano de 1898 a 1920. Uma pequena coletânea (para um período tão longo) de opiniões muito inocentes: Conrad literário, Conrad político, Conrad que rememora o passado, Conrad controverso. Isso mesmo! Um espetáculo de um homem só – ou seria meramente um homem se exibindo? A única coisa que não se encontrará entre essas figuras e coisas que já deixaram a existência é Conrad en pantoufles1. É uma incapacidade inata. Schlafrock und pantoffeln!2 Isso não! Nunca!... Não sei se devo me gabar como certo general sul-americano, que costumava afirmar que nunca uma emergência de guerra ou de paz o deparara “sem suas botas”, mas posso dizer que, toda vez que os vários periódicos mencionados neste livro pediram-me que aparecesse para tocar a trombeta das opiniões pessoais ou dedilhar o melancólico alaúde que fala do passado, eu sempre tentei primeiro calçar as minhas. Deus sabe como eu não queria fazê-lo! Seus editores, a quem, se me permite, ofereço aqui meus agradecimentos, utilizaram-se principalmente de sua amabilidade para me fazer desempenhar a tarefa, mas houve também suborno. Isso mesmo! Suborno! O que é que você esperava? Eu nunca me considerei melhor do que os meus vizinhos, nem mesmo os mais próximos. Este livro (incluindo estas envergonhadas observações introdutórias) é o mais próximo de déshabillé3 em público que eu jamais chegarei; e talvez seja de alguma ajuda para uma melhor visão do homem, ainda que não forneça mais do que uma vista parcial de um pedaço de suas costas um pouco empoeiradas (depois da faxina), um pouco curvadas e afastando-se do mundo, não por cansaço ou misantropia, mas por outras razões inevitáveis: porque as folhas caem, a água corre e o relógio segue trabalhando com aquela horrível e implacável gravidade que você já deve ter observado no tique-taque do relógio de sua casa. Por razões como essas. Sim! Elas se afastam. E esta foi a chance de propiciar – até mesmo a mim – que elas fossem vistas mais uma vez. A seção intitulada Letras explica-se por si, embora eu não me atreva a afirmar que ela justifique sua própria existência. Ela nada alega em sua defesa, exceto 1 “De chinelos”. [N.do T.] 2 “Roupão e chinelos”. [N.do T.] 3 “Despir” [N.do T.]
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o direito de expressão, que, segundo penso, qualquer um que esteja fora de um mosteiro trapista possui. A parte que, em benefício da concisão, ousei chamar de Vida pode talvez justificar-se a si mesma pela emocionada sinceridade dos sentimentos aos quais os vários ensaios dessa seção devem a sua origem. E como estão relacionados a eventos com os quais todo mundo tem notícia, servem como indicações da direção que meus pensamentos foram obrigados a tomar em cada uma das várias encruzilhadas. Se alguém detectar qualquer tipo de coerência nas escolhas, então apenas ficará provado que a sabedoria não teve nada que ver com elas. Certo ou errado, somente o instinto é invariável; fato este que não faz senão aprofundar a sombra de seu mistério inerente. A aparência de intelectualidade que estas peças podem apresentar à primeira vista não passa do resultado do arranjo das palavras. A única lógica que se poderá encontrar nelas é a lógica da linguagem. Mas não preciso me alongar sobre esse ponto. Haverá uma profusão de pessoas sagazes o bastante para perceber a total ausência de sabedoria nestas páginas. Mas minha fé na compaixão e na compreensão humana permite-me imaginar que pouquíssimos questionarão a sinceridade delas. Sejam quais forem as ilusões de que eu possa ter padecido, não me iludi quanto à natureza dos fatos aqui comentados. Posso ter-me enganado quanto à sua importância: mas esse é o tipo de erro para com o qual se pode esperar certo nível de tolerância. O único ensaio desta coletânea que nunca havia sido publicado é a Nota sobre o problema polonês. Ela foi escrita a pedido de um amigo, para uma apresentação privada, e a sua idéia de “Protetorado”, que se originou de um forte senso do caráter crítico da situação, foi moldada pelas circunstâncias da época. Isso foi mais ou menos um mês antes da entrada da Romênia na guerra e, falando honestamente, embora eu tivesse já visto a sombra do que estava por vir, não poderia permitir que minhas desconfianças entrassem e destruíssem a estrutura do meu plano. Eu ainda acredito que ele fazia algum sentido. É certo que ele pode ser acusado de aparente falta de fé e está sujeito a levar muitas pedradas, mas meu objeto era prático e eu tinha de considerar com cautela as crenças pré-concebidas das pessoas a quem ele implicitamente se dirigia, além de suas esperanças injustificáveis. Elas eram injustificáveis, mas quem haveria de lhes dizer isso? Quero dizer, quem seria sábio e convincente o bastante para lhes demonstrar a inanidade de sua atitude mental? A atmosfera estava completamente envenenada por visões que nem chegavam a ser falsas, porque eram simplesmente impossíveis. Eram também o
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resultado de medos vagos e não admitidos, e aí é que residia a sua força. Quanto a mim, levando no peito um medo muito específico, tive o cuidado de não aludir ao caráter delas, pois não queria que a nota fosse jogada fora sem ter sido lida. E então eu tive de lembrar que o impossível às vezes nos engana e acontece, causando a confusão dos espíritos e, com freqüência, a destruição dos corações. Dos outros ensaios nada de especial tenho a dizer. Eles são o que são, e eu agora já sou um pecador muito empedernido para me envergonhar de deslizes sem maior importância. Quanto a terem eles sido publicados dessa forma, reivindico aquela indulgência à qual todos os que pecam contra si mesmos têm direito. J.C. 1920
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PARTE I
Letras
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LIVROS
1905
I “Eu não li os livros desse autor e, se os li, já me esqueci do que tratavam.” Conta-se que essas palavras foram pronunciadas entre nós há menos de cem anos, publicamente, do assento do juiz, por um magistrado civil. As palavras dos nossos dirigentes municipais possuem solenidade e importância em grau muito superior às dos outros mortais, pois eles representam, mais do que qualquer outra categoria de governantes ou chefes, a sabedoria, o temperamento, o bom senso e a virtude normais da comunidade. Esta generalização – ressaltemos logo, em benefício da justiça eterna (e de uma amizade recente) – não se aplica aos Estados Unidos da América. Lá, se é que podemos acreditar nas longas e impotentes queixas da sua imprensa diária e semanal, a maioria dos dirigentes municipais parecem ser ladrões de um tipo especialmente incontrolável. Mas digo isso apenas de passagem. Meu interesse diz respeito a uma declaração proveniente do temperamento comum e da sabedoria comum de uma grande e rica comunidade, e pronunciada por um magistrado civil claramente sem medo e sem censura. Confesso que me agrada o seu caráter prudente. “Não li os livros”, diz, e
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imediatamente complementa, “e, se os li, já esqueci”. Precaução excelente. Gosto também de seu estilo: sem artifícios, carregando a marca da sinceridade masculina. A declaração, reproduzida em forma de texto, é fácil de ler e não é difícil de acreditar. Muitos livros não foram lidos; muitos mais foram esquecidos. Vista como uma peça de oratória, esta declaração é espantosamente eficaz. Calculada para coincidir com a tendência geral do pensamento popular, tão familiarizado com todas as formas de esquecimento, possui também o poder de fazer acompanhar uma emoção sutil à corrente de pensamentos que ela desperta – e pode-se esperar de um discurso humano força maior do que essa? Mas é graças à sua naturalidade que esta declaração é perfeitamente encantadora, pois nada há mais natural do que uma grave autoridade municipal esquecer-se do que é que tratavam os livros que – muito tempo atrás, talvez em sua leviana juventude – uma vez leu. E os livros em questão são romances, ou pelo menos foram escritos como romances. Prossigo assim com cautela (seguindo meu exemplo ilustre), pois, não tendo medo e desejando me manter sem censura tanto quanto possível, confesso logo que não os li. Não li; e se dizem que mais de um milhão de pessoas os leram, ainda não encontrei sequer uma que fosse dotada de suficiente lucidez na exposição para me fornecer um relato coerente a respeito do assunto de que tratam. Mas eles são livros, parte essencial da humanidade e, como tal, ainda que se aglomerem em profusão cada vez maior, são dignos de respeito, admiração e compaixão. Especialmente compaixão. Já disseram, muito tempo atrás, que os livros têm seu próprio destino. Eles o têm, e o seu destino é muito semelhante ao do homem. Compartilham conosco a grande incerteza da ignomínia ou da glória; da justiça inflexível e da perseguição sem sentido; da calúnia e da incompreensão; a vergonha do sucesso imerecido. De todos os objetos inanimados, de todas as criações humanas, os livros são as mais próximas de nós, uma vez que contêm nossos próprios pensamentos, nossas ambições, nossa indignação, nossas ilusões, nossa devoção à verdade e nossa persistente inclinação ao erro. Mas, acima de tudo, assemelham-se a nós pela fragilidade de sua existência. Uma ponte criada de acordo com as leis da arte da construção de pontes certamente terá uma carreira longa, honrada e útil. Mas um livro que, a seu modo, seja tão bom quanto a ponte está sujeito a perecer obscuramente no dia mesmo de seu nascimento. A arte de seus criadores não é suficiente para lhes dar mais do que um instante de vida. Dentre
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os livros nascidos da inquietação, da inspiração e da vaidade de almas humanas, aqueles que as musas amariam mais são os que sofrem maior ameaça de uma morte prematura. Às vezes, seus defeitos os salvam. Às vezes, um belo livro pode ser – para usar uma expressão pomposa – desprovido de alma individual. É óbvio que um livro desta espécie não pode morrer. Ele pode apenas desfazer-se em pó. Mas mesmo os melhores dentre aqueles que devem sua subsistência à afinidade e à memória dos homens têm vivido à beira da destruição, pois a memória dos homens é curta e as suas afinidades, cumpre admitir, são emoções muito flutuantes e que não seguem qualquer princípio. Não encontraremos entre as fórmulas artísticas o segredo da vida eterna para os nossos livros, como não o encontraremos para os nossos corpos em uma prescrição médica. Isto se dá não porque alguns livros não mereçam uma existência duradoura, mas porque as fórmulas artísticas dependem de coisas variáveis, instáveis e indignas de confiança; de afinidades humanas, de preconceitos, de preferências e aversões, da noção de virtude e da noção de decoro, de crenças e teorias indestrutíveis, que alteram sua forma o tempo todo – muitas vezes no breve decurso de uma geração.
II Os romances, livros que as musas devem amar, exigem muito da nossa compaixão. A arte do romancista é simples. Ao mesmo tempo, é a mais elusiva de todas as artes criativas, a mais propensa a ser obscurecida pelos escrúpulos de seus servidores e devotos, destinada, mais que qualquer outra, a perturbar a mente e o coração do artista. Afinal, a criação de um mundo não é tarefa pequena, exceto, talvez, para os divinamente talentosos. Na verdade, todo romancista precisa começar criando para si um mundo, grande ou pequeno, em que possa honestamente acreditar. Esse mundo não pode ser feito senão à imagem do próprio autor: está fadado a permanecer individual e um pouco misterioso, e ainda assim precisa se parecer com algo que seja familiar à experiência, aos pensamentos e às sensações dos leitores. No coração da literatura de ficção, mesmo a menos digna de tal nome, pode-se encontrar alguma espécie de verdade, ainda que seja apenas a verdade de um pueril e teatral ardor no jogo da vida, como nos romances de Dumas, o pai. Mas a bela verdade da delicadeza humana pode ser vista nos
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romances do Sr. Henry James; e a cômica e terrível verdade da rapacidade humana deixada à solta entre os despojos da existência vive no mundo monstruoso criado por Balzac. A busca da felicidade por meios legais e ilegais, através da resignação ou da revolta, pela arguta manipulação das convenções ou pela solene adesão à mais recente teoria científica, é o único tema legítimo a ser desenvolvido pelo romancista, este cronista das aventuras dos homens em meio aos perigos do reino do mundo. E também o reino deste mundo, o terreno sobre o qual seus personagens caminham, tropeçam ou morrem, deve fazer parte do arranjo de suas fiéis crônicas. Conceber uma idéia que abarque tudo isso de maneira harmoniosa é um grande feito; e mesmo a mera tentativa, se deliberada e séria, e não aquela que resulta da sugestão insensata de um coração ignorante, é uma ambição louvável, pois é preciso alguma coragem para caminhar calmamente aonde os idiotas ficam ansiosos por correr. Como observou certa vez a respeito da ficção um distinto e bem-sucedido romancista francês, “c’est un art trop difficile”4. É natural que o romancista se sinta inseguro frente a sua tarefa. Ele a imagina muito maior do que realmente é. E, sendo a criação literária apenas uma dentre as legítimas formas de atividade humana, é somente sob a condição de não renunciar ao reconhecimento das mais distintas formas de ação que possui algum valor. Esta condição é às vezes esquecida pelo homem de letras, que com freqüência, especialmente em sua juventude, possui a tendência de reivindicar a superioridade exclusiva da sua atividade frente a todas as outras tarefas do espírito humano. A massa de verso e prosa pode até cintilar aqui e ali com o brilho de uma fagulha divina, mas na soma dos esforços humanos não tem uma importância especial. A sua existência é tão justificada quanto a de qualquer outra realização artística, e seu destino é o mesmo: ser esquecida, sem, talvez, deixar qualquer vestígio. A vantagem do romancista sobre os trabalhadores de outras áreas do pensamento se encontra na sua privilegiada liberdade – a liberdade de expressão e a liberdade de confessar suas mais profundas convicções – o que deve consolá-lo da dura escravidão imposta pela pena.
4 “É uma arte muito difícil” [N.do T.]
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III Liberdade de imaginação deve ser o mais precioso bem de um romancista. A tentativa voluntária de descobrir os paralisantes dogmas de algum credo romântico, realista ou naturalista num trabalho da livre inspiração é um ardil digno da teimosia humana, que, depois de inventar um absurdo, esforça-se para encontrar-lhe uma linhagem de ancestrais ilustres. É uma fraqueza dos espíritos inferiores, quando não o astuto expediente de que se valem aqueles que, inseguros de seu talento, desejariam dar-lhe algum lustre através da autoridade de uma escola. Tais são, por exemplo, os apóstolos que proclamaram Stendhal um profeta do Naturalismo. Mas o próprio Stendhal nunca teria aceitado qualquer limitação da sua liberdade. Sua mente era de primeira ordem. Lá em cima, seu espírito deve estar esbravejando com um desprezo e uma indignação peculiarmente stendhalesca, pois a verdade é que mais de uma espécie de covardia intelectual se esconde atrás de fórmulas literárias, e Stendhal era eminentemente corajoso. Escreveu seus dois grandes romances, que tão pouca gente leu, em um espírito de destemida liberdade. Não se deve supor que eu reivindique para o artista da ficção a liberdade de um niilismo moral. Eu antes lhe exigiria muitos atos de fé, dos quais o primeiro seria nutrir uma imorredoura esperança; e a esperança, ninguém contestará, envolve toda a devoção do esforço e da renúncia. É uma forma de confiança – confiança enviada por Deus – na força mágica e na inspiração pertencentes à vida deste mundo. Nós tendemos a esquecer que o caminho para a excelência se encontra na humildade intelectual (que é diferente da emocional). Aquela esterilidade tão irremediável que percebemos no pessimismo declarado não passa de sua arrogância. Parece que a descoberta que muitos homens em várias épocas fizeram, de que há muito mal no mundo, se tornou razão de orgulho e de uma alegria perversa para alguns dos escritores modernos. Este não é o estado de espírito adequado para quem deseja se aproximar da arte da ficção de modo sério. Ele dá ao autor – só Deus sabe por que – uma exultante sensação de superioridade. E essa exultação é a maior ameaça àquela fidelidade absoluta aos seus sentimentos e sensações que um autor deve preservar em seus mais entusiasmados momentos de criação. Para se ter esperança, num sentido artístico, não é necessário pensar que o
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mundo é bom. Basta acreditar que não é impossível que ele tenha sido feito assim. Se ao vôo do pensamento imaginativo é permitido elevar-se acima das várias morais adotadas pela humanidade, um romancista que se julgasse essencialmente superior a outros homens estaria descumprindo a primeira condição de sua vocação. Possuir o dom das palavras não é grande coisa. Um homem munido de uma arma de longo alcance não se torna um caçador ou um guerreiro pela mera posse de uma arma de fogo; muitas outras qualidades de caráter e temperamento são necessárias para que ele se torne um ou outro. Àquele de cujo arsenal de frases talvez uma em cem mil possa atingir o longínquo e elusivo alvo que é a arte, eu pediria que, em suas relações com a humanidade, fosse capaz de reconhecer com ternura suas virtudes escondidas. Gostaria que não fosse impaciente com as suas pequenas fraquezas e não escarnecesse de seus erros. Gostaria que não esperasse muita gratidão daquela humanidade cujo destino, exemplificado nos indivíduos, ele pode retratar como ridículo ou terrível. Desejaria que olhasse com grande misericórdia para as idéias e preconceitos dos homens, que de forma alguma resultam da maldade, mas dependem de sua educação, de seu status social, e até de suas profissões. O bom artista não deve esperar nenhum reconhecimento pelas suas fadigas e nenhuma admiração pelo seu gênio, já que só com muita dificuldade se poderá avaliar quão duro foi seu trabalho, e não é possível que seu gênio signifique alguma coisa para os iletrados que, mesmo da pavorosa sabedoria de seus mortos, não puderam ainda extrair nada além de inanidades e platitudes. Desejaria que ele aumentasse sua benevolência através da observação paciente e amorosa, enquanto sua capacidade mental se desenvolve. Se há algum lugar onde a promessa de perfeição para sua arte pode ser encontrada, é na prática imparcial da vida, e não em fórmulas absurdas que tentam prescrever este ou aquele método específico de técnica ou criação. Que ele amadureça a força de sua imaginação em meio às coisas deste mundo, as quais está incumbido de conhecer e cuidar com carinho, e se abstenha de invocar uma inspiração pronta de algum paraíso das perfeições do qual nada sabe. E eu nunca lhe negaria a orgulhosa ilusão que às vezes atinge um escritor: a ilusão de que a sua realização quase igualou a grandeza de seu sonho. Pois o que mais poderia lhe dar a serenidade e a força para acolher no peito como uma coisa encantadora e humana a virtude, a retidão e a sagacidade de sua própria cidade, declarando com uma eloqüência simples, pela boca de um pai conscrito5: “eu não li os livros desse autor e, se os li, já esqueci...” 5 Pai conscrito: designação dada aos senadores na Roma Antiga. [N.do T.]
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HENRY JAMES
Uma Crítica 1905
O espírito crítico hesita ante a magnitude da obra do Sr. Henry James. Em minhas prateleiras, seus livros se encontram numa posição cuja acessibilidade revela o hábito da comunhão freqüente. Mas não todos os seus livros. Até hoje não foi editada uma coletânea de seus escritos, como se fez com alguns de “nossos mestres”; nada de belas fileiras de volumes em bocaxim ou meia-pele, reclamando precipitadamente sua completude e me sugerindo uma idéia de conclusão, de rendição daquele campo, onde todas essas vitórias foram conquistadas, ao destino. Nada desse gênero se fez pelas vitórias do Sr. Henry James na Inglaterra. Em um mundo como o nosso, tão sofrido e com todo tipo de maravilhas, não gastaríamos nossas forças num inútil deslumbramento por meras encadernações, se o fato, ou antes a ausência do fato concreto, que é patente no caso de outros homens cujos escritos têm importância (para o bem ou para o mal) – se o fato, como eu ia dizendo, não fosse a expressão de uma inequívoca verdade espiritual e intelectual; uma casualidade da indústria editorial (eu suponho) que adquire um significado simbólico decorrente de sua natureza negativa. Porque, definitivamente, no corpo da obra do Sr. Henry James não há qualquer indício de
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conclusão, nenhum sinal de rendição, ou mesmo de probabilidade de rendição, à conquista que obteve naquele campo onde é um mestre. Felizmente, ele nunca poderá alegar completude; e, se acaso confessasse algo assim em um momento de ignorância de si mesmo, não seria acreditado pelas próprias mentes às quais tal confissão naturalmente se dirigiria. É impossível pensar no Sr. Henry James tornando-se “completo” de outro modo que não pela brutalidade de nosso destino comum, cujo fim nada significa – considerando-se que sua lógica seja de ordem material, a lógica de uma pedra que cai. Não sei qual a marca da tinta em que o Sr. Henry James mergulha sua pena; na verdade, ouvi que ultimamente está ditando; mas sei que sua mente se banha nas águas que escorrem da fonte da juventude intelectual. Mesmo para o pior dos leitores, a coisa – um privilégio, um milagre, como queira – não é difícil de perceber. Para quem possui a graça da leitura atenta é evidente. Depois de uns vinte de anos de cuidadoso relacionamento com a obra do Sr. Henry James, evolui até uma convicção absoluta, a qual, sentimentos pessoais à parte, traz uma sensação de felicidade para nossa existência artística. Se a gratidão, como alguém a definiu, é uma vívida percepção de benefícios vindouros, fica muito fácil ser grato ao autor de “Os Embaixadores” – para mencionar o último de seus trabalhos. Os benefícios certamente virão; a fonte dessa benevolência nunca secará. A corrente de inspiração flui transbordante em uma direção predeterminada, indiferente aos períodos de seca, imperturbável em sua limpidez pelas tempestades do mundo das letras, sem languidez ou violência em sua força, nunca recuando sobre si mesma, proporcionando uma nova visão a cada volta de seu curso, que atravessa essa terra ricamente povoada, produzida por sua fertilidade para o nosso deleite, nosso julgamento, nossa descoberta. É, de fato, uma fonte mágica. Com esta frase podemos deixar de lado a metáfora da fonte perene, da juventude inextinguível, das águas correntes, que aplicamos à inspiração do Sr. Henry James. Em seu volume e força, o conjunto de sua obra compara-se antes a um rio majestoso. Toda arte criativa é mágica, é uma evocação daquilo que não se vê, em formas persuasivas, esclarecedoras, conhecidas e surpreendentes, para elevar a humanidade, que é forçada, pelas condições de sua existência, a se preocupar seriamente com os mais insignificantes vaivéns dos acontecimentos. Sendo essencialmente uma ação, a arte criativa de um escritor de ficção pode ser comparada a um trabalho de resgate, uma luta, nas trevas, contra rajadas de
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vento que ameaçam uma grande multidão. É uma operação de resgate essa captura – que se disfarça sob belas palavras – de períodos fugazes de turbulência, que os remove de sua obscuridade natural e os leva a uma luz onde as formas inquietas podem ser vistas, agarradas, dotadas com a única possibilidade de permanência neste mundo de valores relativos – a permanência da memória. E a multidão também sente isso, de modo vago; já que a exigência de cada indivíduo ao artista é, na verdade, o grito “leve-me para fora de mim mesmo!”, ou seja, para fora da minha atividade perecível, até a luz da consciência inextinguível. Mas tudo é relativo, e a luz da consciência é apenas duradoura, é meramente a mais duradoura de todas as coisas da Terra, inextinguível somente em comparação com as efêmeras obras de nossas mãos diligentes. Quando o último aqueduto estiver em ruínas, o último dirigível caído no chão, a última folha de grama morta sobre uma terra moribunda, o homem, tornado indômito pelo seu treinamento de resistência à miséria e à dor, com essa mesma luz de seus olhos confrontará o brilho débil do sol. O talento artístico, do qual todos nós possuímos uma minúscula partícula, pode encontrar sua voz em algum indivíduo desse último grupo, dotado de um poder de expressão e corajoso o suficiente para interpretar a derradeira experiência da humanidade segundo o seu temperamento, nos termos da arte. Não quero com isso dizer que ele tentaria divertir a humanidade em seus últimos momentos com algum conto engenhoso. Seria exigir muito – da humanidade. Duvido do heroísmo dos ouvintes. Quanto ao heroísmo do artista, não há dúvida. Não haveria qualquer heroísmo de sua parte. O artista, em sua vocação de intérprete, cria (a mais clara forma de demonstração) porque precisa criar. Identifica-se tanto com sua voz que, para ele, o silêncio é como a morte; e a premissa era a de que restará um grupo de sobreviventes, reunidos à sua porta para assistir à última nesga de luz bruxulear sob o negrume do céu, para ouvir a última palavra pronunciada na então silenciosa oficina terrestre. É seguro afirmar que, se houver alguém, na véspera desse dia sem amanhã, que se sinta impelido a falar, será o homem imaginativo – se proferirá uma exortação austera ou um comentário sarcástico, quem pode saber? De minha parte, após um curto e superficial relacionamento com meus semelhantes, estou inclinado a pensar que a última declaração, por mais estranho que isso possa parecer, expressará uma esperança que nos é hoje absolutamente inconcebível. Pois em seu orgulho, sua confiança e sua invencível tenacidade,
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a humanidade é encantadora. Dormirá no campo de batalha junto aos seus mortos, à maneira de um exército que houvesse conquistado uma vitória inútil, e não perceberá quando for derrotada. E talvez esteja certa. As vitórias talvez não sejam tão inúteis como pode parecer quando consideradas desde um ponto de vista puramente estratégico, utilitário. O Sr. Henry James parece acreditar nisso. Ninguém, possivelmente, retratou melhor a obstinação, ou soube como envolver com o manto da honra espiritual a figura curvada do vencedor de uma luta inútil. E a honra é sempre merecida; pois as lutas que o Sr. Henry James narra com uma percepção tão sutil e direta, ainda que sejam apenas disputas pessoais, terríveis em seu silêncio, não deixam de ser heróicas (no sentido moderno) pela ausência de palavras de ordem, choque de armas e soar de trompetes. Apenas algumas almas escolhidas se envolvem nessas aventuras, registradas pelo Sr. Henry James com uma destemida e insistente fidelidade às peripécias da disputa e aos sentimentos dos combatentes. Às mais violentas emoções dos contos de capa e espada, das aventuras navais tão apreciadas pela juventude, cuja compreensão da ação (como de outras coisas) é imperfeita e limitada, igualam-se, para a alegria de nossa idade mais madura, os desafios impostos, as dificuldades que se apresentam ao senso da verdade, à noção de inevitabilidade e, antes de tudo, à conduta dos homens e mulheres do Sr. Henry James. Sua gente é encantadora. Encantadora por sua tenacidade; recusa-se a admitir sua derrota; dormirá no campo de batalha. Essas imagens bélicas vêm à pena por si mesmas, já que, pela dualidade da natureza humana e pela competição entre os indivíduos, a história da vida terrestre deve, em última análise, ser a história de uma guerra realmente implacável. Nem seus amigos, nem seus deuses, nem suas paixões deixam o homem em paz. Em virtude desses aliados e desses inimigos, ele conserva seu precário domínio, ele possui sua fugaz significação; é apenas essa relação, em todas as suas manifestações, grandes ou pequenas, superficiais ou profundas, que é comentada, interpretada, demonstrada pela arte do romancista, do único modo que essa tarefa pode ser realizada: pela livre criação de circunstâncias e personagens, conquistada numa luta contra todas as dificuldades de expressão, em um esforço imaginativo que busca sua inspiração na realidade das formas e sensações. Que um sacrifício seja necessário, que algo precise ser deixado para trás, é a verdade gravada nos mais profundos recantos do belo templo construído para a nossa edificação pelos mestres da ficção. Não há outro segredo atrás da
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cortina. Toda aventura, todo amor, cada sucesso resume-se à suprema energia de um ato de renúncia. É este o limite máximo de nosso poder; é a mais potente e eficaz força de que dispomos, na qual se assentam os labores de um homem solitário em seu escritório; é a rocha sobre a qual se construíram nações cujo poder lança uma imponente sombra sobre dois oceanos. Assim como uma força natural, que tanto é obscurecida quanto iluminada pela multiplicidade de fenômenos, o poder da renúncia é obscurecido pela massa de fraquezas, vacilações, motivações ocultas, passos em falso e concessões que compõem o conjunto da nossa atividade. Mas nenhum homem ou mulher que seja digno do nome pode aspirar a algo mais, a algo maior. E os homens e mulheres do Sr. Henry James são dignos do nome, dentro dos limites que a sua arte, tão clara, tão segura de si, estabeleceu para as atividades deles. Ele seria o último a lhes atribuir proporções gigantescas. O próprio mundo diminuiu ao longo dos anos. Mas em todas as esferas das perplexidades e emoções humanas existem muitas grandezas – sem falar da grandeza do próprio artista. Onde quer que se encontre, no início ou no fim das coisas, o homem precisa sacrificar seus deuses às suas paixões, ou suas paixões aos seus deuses. Este é o problema, e ele é, na verdade, grande o bastante, se abordado com um espírito de sinceridade e sabedoria. Em um de seus estudos críticos, publicado há mais ou menos quinze anos, o Sr. Henry James reivindica para o romancista a posição do historiador como a única adequada, tanto perante si mesmo, quanto perante seu público. Acredito que a afirmação não pode ser contestada e que a posição é inatacável. Ficção é história, história humana, ou não é nada. Mas é também mais que isso; está assentada sobre solo mais firme, baseando-se na realidade das formas e na observação de fenômenos sociais, ao passo que a história se baseia em documentos, impressos ou manuscritos – impressões de segunda mão. Portanto, a ficção está mais próxima da verdade. Mas, deixemos isso para lá. Um historiador pode ser um artista também, e um romancista é um historiador, o preservador, o guardião, o expositor da experiência humana. Como convém a um homem de linhagem e tradição como a sua, o Sr. Henry James é o historiador das consciências refinadas. É claro que esta é uma afirmação geral; mas não acredito que sua verdade será, ou possa ser questionada. Seu defeito é deixar tanta coisa de fora; e, além disso, a consideração que o Sr. Henry James merece não permite defini-lo em apenas uma curta frase. O fato é que ele fez a sua escolha e que sua escolha
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justifica-se completamente pelo sucesso de sua arte. Ele tomou para si a melhor parte. O horizonte de uma consciência refinada abrange mais bem e mal do que o de uma consciência que pode ser grosseiramente chamada de não-refinada, uma consciência menos perturbada pelas sutis distinções de nuances de conduta. Uma consciência refinada preocupa-se mais com o que é essencial; seus triunfos são mais perfeitos, ainda que menos vantajosos, num sentido mundano. Em suma, há em suas operações mais verdade a ser detectada e apresentada por um historiador. Sua complexidade e as implicações que suscita são infinitas, mas nada disso escapa à arte do Sr. Henry James. Ele dominou o território, nada selvagem, é verdade, mas cheio de lampejos românticos, de profundas sombras e lugares ensolarados. Não deixa perdurar qualquer segredo que esteja ao seu alcance. Revela-os como devem ser revelados – isto é, com beleza. E, de fato, a feiúra não tem senão um pequeno espaço nesse mundo que criou. Ainda assim, sempre pode ser sentida na veracidade de sua arte; está lá, envolvendo a cena, exercendo-lhe pressão. Torna-se visível, tangível, nas disputas, no contato entre as consciências superiores, nas suas perplexidades, no sofisma de seus erros. Pois uma consciência superior é naturalmente virtuosa. O seu refinamento é justamente o que nela há de natural, um permanente senso da intangível mas sempre presente retidão. Essa superioridade se torna mais visível no triunfo supremo dessas consciências, ao emergirem milagrosamente, através de um enérgico ato de renúncia. Enérgico, não violento: a diferença é ampla, enorme, como entre substância e sombra. Em meio a tudo isso, o Sr. Henry James mantém um firme controle da substância, daquilo que vale a pena possuir, que vale a pena segurar. A opinião contrária, se não foi ainda categoricamente afirmada, vem sendo insinuada com alguma freqüência. Para a maioria de nós, que vivemos de bom grado numa espécie de luar intelectual, sob o tênue reflexo da luz da verdade, as sombras a que os homens e mulheres do Sr. Henry James renunciam com tanta firmeza destacam-se e adquirem um valor extraordinário, tão extraordinário que a sua rejeição ofende, por seus inconvenientes escrúpulos, aqueles instintos práticos que uma cuidadosa Providência implantou em nosso peito. E, além dessa justa causa de descontentamento, é óbvio que uma solução por rejeição sempre se apresenta um tanto inconclusiva, surpreendendo especialmente quando contrastada com os métodos usuais de solução por recompensas e punições, pelo triunfo do amor, pela fortuna, por uma perna quebrada ou uma morte súbita. A razão pela qual o
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público leitor, que como grupo nunca deu a um contador de histórias a ordem para ser um artista, exigir-lhe-ia esta imitação da Onipotência Divina, é absolutamente incompreensível. Mas as coisas são assim; e estas soluções são legítimas na medida em que satisfazem o anseio de conclusão, pelo que nossos corações ardem com um desejo maior do que o desejo dos pães e peixes desse mundo. Talvez o único desejo verdadeiro da humanidade, que vem à luz em seus momentos de ócio, é que a deixem sossegada. Os romances do Sr. Henry James nunca nos dão sossego. Seus livros terminam como um episódio da vida termina. Fica-se com a sensação de que a vida ainda continua; e mesmo a sutil presença dos mortos é sentida naquele silêncio que cai sobre a criação do artista logo que se lê a última palavra. É extremamente gratificante, mas não é conclusivo. O Sr. Henry James, grande artista e historiador fiel, nunca tenta o impossível.
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ALPHONSE DAUDET
1898
É doce falar com respeito dos mortos que fazem parte do nosso passado, o qual indiscutivelmente nos pertence. Precisamos admitir que, infelizmente, o hoje não é senão uma luta desordenada e que o amanhã pode nunca chegar; apenas o precioso ontem não nos pode ser tomado. É um presente dado pelos mortos, os grandes e os pequenos, que torna a vida suportável, que quase nos faz acreditar num benevolente planejamento da criação. E algum tipo de crença é muito necessário. Mas o conhecimento real de assuntos infinitamente mais profundos do que qualquer plano de criação concebível apenas os mortos possuem. É por isso que, ao falarmos deles, nosso respeito deve ser equivalente ao seu silêncio. Sua generosidade e sua discrição não merecem de nós menos do que isso; e eles, que já fazem parte do imutável, provavelmente não se sujeitariam a pedir mais do que isso de uma humanidade que troca seus amores e seus ódios a cada vinte e cinco anos – com o advento de cada nova e mais sábia geração. Um dos mais generosos dentre os mortos é Daudet, que, com uma prodigalidade que beira a magnificência, doou-se a si mesmo sem reservas em sua obra, com todas as suas qualidades e todos os seus defeitos. Nem suas qualidades, nem seus defeitos eram grandes, mas de forma alguma eram imperceptíveis. Fora do
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comum, apenas sua generosidade. O que mais impressiona em sua obra é o seu trabalho desinteressado. Mais talentoso do que muitos homens mais proeminentes, não tece louvores a si mesmo, não procura persuadir a humanidade de sua grandeza. Nunca se fez passar por cientista ou por vidente, ou mesmo por profeta; e descuidou de seus interesses ao ponto de nunca ter apresentado uma teoria que se propusesse a dar uma significação extraordinária à sua arte, isolada de tudo, em um mundo que, por um estranho equívoco, não foi provido de um significado óbvio. Tampouco simulou uma postura insensível ao espetáculo da vida, postura que em deuses – e em raros mortais aqui e ali – pode se revelar apropriada, mas adotada por certos homens faz-nos pensar, muito a contragosto, na melancólica quietude de um macaco. Ele não era o expositor enfadonho desta ou daquela teoria, presente hoje e rejeitada amanhã. Não era um grande artista, nem mesmo era um artista, se preferir – mas era Alphonse Daudet, um homem tão singelamente claro, honesto e vibrante quanto o brilho do sol de sua terra natal; sol que, lamentavelmente, brilha para todos, amadurecendo tanto uvas quanto abóboras, e que não pode, é claro, receber os aplausos daqueles poucos escolhidos que observam a vida protegidos sob uma sombrinha. Naturalmente, sendo um homem do sul, manifestava uma franca confiança em si mesmo, mas distinguia-se pela pequena e muito mais valiosa qualidade de não ser escravo de alguma crença evanescente. Era um trabalhador que não conseguiu obter a admiração da elite, mas que mereceu a afeição das massas; e de quem se pode falar com ternura e pesar, pois não é imortal – apenas morto. Durante sua vida, o homem simples cuja tarefa deveria ter sido alçar-se, em nome da Arte, a alguma elevação, contentava-se em permanecer embaixo, no plano, em meio a suas criações, participando avidamente daqueles desastres, fraquezas e alegrias que são, a seu modo esquisito, bastante trágicos, mas de forma alguma tão graves e profundos quanto alguns escritores – provavelmente em benefício da Arte – gostariam de nos fazer crer. Se pensarmos bem, há uma considerável falta de franqueza numa visão majestosa da vida. Sem dúvida, uma prudente reticência quanto ao assunto, ou mesmo uma insinuação levemente falsa atirada nessa direção são, de certa forma, louváveis, já que ajudam a preservar a dignidade do homem – uma questão da maior importância, como qualquer um pode perceber; entretanto, não podemos evitar a sensação de que uma certa dose de sinceridade não seria totalmente condenável. Declarar, então, com deliberada moderação,
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uma convicção que, em momentos infelizes de lucidez, irresistivelmente se faz perceber pela maioria de nós: a agitação cega causada principalmente pela fome e complicada pelo amor e pela ferocidade não merece, seja por sua beleza, ou sua moralidade, ou seus resultados possíveis, todo o alvoroço artístico que gerou. Pode ser consolador – pois a tolice humana é muito estranha – mas dificilmente é sincero o grito dirigido àqueles que lutam para não se afogarem numa insignificante poça: vocês são mesmo admiráveis e grandiosos por serem as vítimas de tão profundo, tão terrível oceano! E Daudet era sincero; talvez por não saber ser diferente – mas era muito sincero. Se enxergava apenas a superfície das coisas é porque a maior parte delas não passa de superfície. Ele não fingia – talvez por não saber como – não fingia ver qualquer profundidade em uma vida que é tão-somente um véu de aparências instáveis, esticado sobre regiões de fato profundas, mas que nada têm que ver com as meias-verdades, meios-pensamentos e ilusões totais da existência. A estrada que leva a essas regiões distantes não passa pelos territórios da Arte ou da Ciência, onde vozes bem conhecidas altercam ruidosamente, nebulosas e vazias; é um caminho de árduo silêncio, pelo qual viajam homens simples e desconhecidos, de lábios cerrados, ou talvez sussurrando suavemente suas dores – apenas para si mesmos. Mas Daudet não sussurrava; falava alto, com animação, com clareza e graça de estilo – tal como canta um pássaro. Enxergava a vida à sua volta com extrema nitidez e a percebia como ela é – mais tênue que o ar e mais fugidia que um relâmpago. Apressava-se em oferecer-lhe sua compaixão, sua indignação, sua admiração, sua solidariedade, sem nem por um momento pensar nas graves questões que normalmente se ocultam na lógica de tais sentimentos. Tolerava as pequenas fraquezas, as crueldades menores, os erros graves; a única coisa que notadamente não perdoava era dureza de coração. Essa atitude pouco pragmática teria sido fatal em um homem melhor, mas seus leitores o perdoaram. Ademais, é cortês com rainhas exiladas e costureiras deformadas, e cheio de uma terna compaixão por atores destruídos, por cavalheiros arruinados, por acadêmicos estúpidos; regozija-se com as alegrias das pessoas comuns, de uma forma também comum – e nunca tenta esconder tudo isso. Não, o homem não era um artista. E se, porventura, suas criações forem iluminadas pelo brilho de seu temperamento de modo tão vívido que acabam por se mostrar infinitamente mais reais do que as ilusões
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desbotadas que cercam a nossa existência cotidiana? Desorientado, o homem está sempre vagueando em meio delas, levantando a voz, atento aos detalhes errados. Leva Tartarin pelo braço, e não disfarça seu interesse pelos cheques de Nabob, sua simpatia por um acadêmico honesto mas plus bête que nature6, seu ódio de um arquiteto plus mauvais que la gale7; ele está no meio disso tudo. Sofre junto com o Duc de Mora e com Felicia Ruys – e nos deixa ver isso. Ele não se coloca sobre um pedestal numa pose hierática e imbecil, como um deus qualquer cuja grandeza consiste em ser estúpido demais para se interessar por alguma coisa. Ele se importa imensamente com seus Nabobs, seus reis, seus guarda-livros, suas Colettes e suas Saphos. Vibra junto com seu universo, e com uma lamentável simplicidade acompanha M. de Montpavon naquele último passeio pelos Boulevards. “Monsieur de Montpavon marche à la mort”8, e o criador desse desventurado gentilhomme o segue com passos furtivos, olhos bem abertos e um dedo que aponta de modo marcante. E quem deixaria de olhar? Mas é difícil; é às vezes muito difícil perdoá-lo o detalhismo, o dedo que aponta, as tentativas de explicação de evidentes mistérios. “Monsieur de Montpavon marche à la mort”, e em seguida, na calçada movimentada, tira seu chapéu com minuciosa cortesia à esposa do médico, que, elegante e infeliz, está fadada à mesma peregrinação. É demais! Sentimos que não conseguiremos perdoá-lo tais encontros, o sussurro constante de sua presença. Sentimos, até que, de súbito, a própria ingenuidade disso tudo nos toca com a sugestão de uma verdade revelada. Vemos, então, que o homem não é falso; tudo isso é feito com uma transparente boa-fé. O homem não é melodramático; apenas pitoresco. Pode não ser um artista, mas chega tão perto da verdade quanto alguns dos maiores. Suas criações são vistas; podemos olhar dentro de seus olhos, os quais são tão insensatos quanto os olhos de qualquer sábia geração que possua nas mãos a fama de seus escritores. Sim, elas são vistas, e é também visto o homem que não é um artista, compadecido, indignado, alegre, humano e vivo no meio delas. Eles inevitavelmente marchent à la mort – e estão muito próximos da verdade do nosso fado comum: seu destino é pungente, é intensamente interessante e não tem a menor importância.
6 “Mais burro que a natureza” [N.do T.] 7 “Pior que sarna” [N.do T.] 8 “Monsieur de Montpavon caminha rumo à morte” [N.do T.]
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GUY DE MAUPASSANT9
1904
Apresentar Maupassant aos leitores ingleses com explicações e justificativas, como se sua arte fosse obscura e sua obra tendesse à imoralidade, seria uma impertinência gratuita. A concepção que Maupassant tem de sua arte é a que se poderia esperar de uma mente prática e resoluta; mas, na consumada simplicidade de sua técnica, ela deixa de ser perceptível. E esta é uma de suas maiores qualidades, fundada principalmente na abnegação, como todas as grandes virtudes. Pronunciar um julgamento sobre a tendência geral de um autor é uma tarefa difícil. Não podemos depender apenas da razão, nem confiar exclusivamente em nossas emoções. Em muitos casos, se usadas em conjunto, atrapalhariam uma à outra, pois as emoções possuem sua própria, irrespondível, lógica. Nossa capacidade para emoções é limitada e o campo da nossa inteligência é restrito. A suscetibilidade a todo sentimento combinada com uma aguda apreensão de todo subterfúgio intelectual acabaria não em julgamento, mas em absolvição universal. Tout comprendre c’est tout pardonner.10 E, com esta benevolente neutralidade para 9 Yvette e outras histórias. Traduzido por Ada Galsworthy. [N.do A.] 10 “Tudo compreender é tudo perdoar”. [N.do T.]
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com os aguerridos erros da natureza humana, toda luz abandonaria a arte e a vida. Estamos então livres para brigar contra a atitude de Maupassant perante nosso mundo, do qual, como o resto de nós, ele possui aquela parcela que seus sentidos são capazes de lhe dar. Mas não precisamos brigar de forma violenta. Se nossos sentimentos (que são delicados) acabam feridos porque seu talento não é exercido para o louvor e a consolação da humanidade, nossa inteligência (que é grande) deveria nos permitir enxergar que ele é um pecador esplêndido, como todos aqueles que, neste vale de transigências, erram pelo excesso de devoção à verdade que lhes vai na alma. Seu determinismo, árido de louvores, censuras ou consolação, possui todo o mérito de sua conscienciosa arte. O valor de qualquer convicção consiste precisamente na firmeza com que ela é sustentada. Exceto por sua filosofia, que no caso de um artista tão completo não tem importância (a não ser para as almas solenes e ingênuas), Maupassant, de todos os escritores de ficção, é o que menos precisa ser perdoado por seus leitores. Não exige perdão porque nunca é enfadonho. O interesse do leitor por uma obra de imaginação ou é ético, ou é simples curiosidade. Ambos são perfeitamente legítimos, já que, numa representação fiel da vida, tanto uma moral quanto uma emoção podem ser encontradas. E na obra de Maupassant há o interesse da curiosidade e a moral de um ponto de vista consistentemente mantido e nunca impingido para fins de satisfação pessoal. O espetáculo desse imenso talento, servido de capacidades excepcionais, triunfando sobre os mais ingratos assuntos através de uma inabalável unidade de propósito é, em si mesmo, uma admirável lição sobre o poder da honestidade artística, da virtude artística, podemos dizer. O homem não permite que nenhuma das fascinações que cercam um escritor na solitude de seu trabalho o desvie do caminho estreito, da visão de excelência que lhe foi concedida; e é nisso que consiste a sua inerente grandeza. Não será levado à perdição pelas seduções do sentimento, da eloqüência, do humor, do páthos; de todo aquele esplêndido préstito de erros que passa entre o escritor e sua probidade na folha de papel em branco, como o brilhante cortejo de pecados mortais diante do austero anacoreta, no ar deserto da Tebaida. Isso não significa que Maupassant nunca tenha vacilado em sua austeridade; mas o fato é que nenhum demônio jamais conseguiu, à força de tentações, derrubá-lo de seu alto e estreito pedestal. É a austeridade de seu talento que está em questão, é claro. Peçamos ao
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leitor mais arguto, que às vezes pode dispor de um momento ou dois para a consideração e a fruição da excelência artística, que reflita um pouco sobre a tessitura de duas histórias presentes neste volume: “O Barbante” e “Uma Venda”. Nesta, quantos ensejos para a demonstração gratuita da inteligência ou da astuta bufonaria do autor; naquela, para a desmedida exibição de sentimento! E tanto o sentimento quanto a bufonaria poderiam ter ficado muito bons, de um modo acessível às inteligências mais medíocres, ao custo da verdade e da honestidade. É aqui que se revela a austeridade de Maupassant. Ele se abstém de perturbar com sua habilidade a eloqüência dos fatos. Há humor e há páthos nessas histórias; mas tal é a grandeza de seu talento, o refinamento de sua consciência artística, que todas as suas altas qualidades parecem inerentes às coisas mesmas das quais ele fala, como se elas fossem completamente independentes de sua apresentação. Fatos, e apenas fatos, são sua única preocupação. É por isso que nem sempre é devidamente compreendido. Seus fatos são retratados com tanta perfeição que, assim como os acontecimentos da vida real, exigem do leitor a faculdade da observação, que é rara, e o poder da compreensão, que, em geral, é insuficiente na maioria de nós, guiados que somos principalmente por frases vazias que não requerem qualquer esforço, nem nos exigem quaisquer atributos além de uma vaga suscetibilidade à emoção. Ninguém nunca recebeu os aplausos da multidão por conta de uma simples e clara exposição de fatos da vida. Palavras penduradas em uma convenção nos têm fascinado tanto quanto contas de vidro sem valor penduradas em um fio sempre encantaram nossos irmãos, os simples selvagens das ilhas. Agora, Maupassant, a quem já se chamou de mestre do mot juste11, nunca foi um negociante das palavras. Suas mercadorias não eram contas de vidro, mas gemas polidas; talvez não as mais raras e preciosas, mas certamente da mais alta qualidade dentre as de seu gênero. Do quão se esmerou nas suas gemas, tomando-as em seu estado bruto e polindo-lhes pacientemente cada uma das facetas, os dois volumes de contos publicados postumamente dão abundantes provas. Acredito que provam também a afirmação feita aqui, de que o autor não era, de modo algum, um negociante das palavras. Olhando os débeis rascunhos iniciais que deram origem a tantas histórias perfeitas, descobrimos que aquilo que foi amadurecido, melhorado, levado 11 Frase que significa “palavra precisa”, associada à busca pela perfeição estilística empreendida por Gustave Flaubert (1821-1880). [N.do T.]
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à perfeição por um esforço incansável não foi a elocução do conto, mas a visão de sua verdadeira forma e detalhe. Essas primeiras tentativas não são hesitantes ou vagas em sua expressão. A concepção é que está equivocada. Os assuntos ainda não foram suficientemente contemplados. Seu método não consistia em agrupar palavras expressivas, que nada significam, em torno de figuras nebulosas e misteriosas, que não pertencem nem à Terra nem ao Céu e que são tão caras a intelectos confusos. Seu olhar escrupuloso, prolongado e devotadamente atento aos aspectos do mundo visível descobriu, enfim, as palavras certas, como se estivessem milagrosamente impressas para si no semblante das coisas e dos acontecimentos. Esta era a forma que sua inspiração assumia; vinha-lhe de modo direto, franco, à luz do dia, e não através das tortuosas e escuras estradas da meditação. Suas realidades, ele as recebia de uma fonte genuína, deste universo de vãs aparências, no qual nós homens pudemos encontrar tudo para nos tornar orgulhosos, aflitos, exultantes e humildes. O renome de Maupassant é universal, mas sua popularidade é pequena. Não é difícil compreender por quê. Maupassant é um escritor extremamente nacional. Tão extremamente nacional em sua lógica, sua clareza, suas idéias estéticas e morais, que foi aceito por seus compatriotas sem que precisasse pagar o tributo da bajulação, nem à nação como um todo, nem a qualquer de suas classes, esferas ou divisões. A verdade de sua arte possui uma irresistível força narrativa; e ele está livre da obrigação de afetar patriotismo. É, indiscutivelmente, um francês dos franceses e, assim, é simples o suficiente para ser universalmente compreensível. O que lhe falta para o sucesso universal é a mediocridade de uma óbvia e agradável delicadeza. Não está preocupado em adoçar sua verdade para torná-la mais suave; esquece-se de espalhar rosas de papel sobre as sepulturas. O descaso com essas cortesias elementares o expõe às acusações de crueldade, cinismo, dureza. E, no entanto, é seguro afirmar que este homem escrevia desde a plenitude de um coração compassivo. É inclemente, porém gentil com sua humanidade; desta, não censura os medos prudentes ou os pequenos ardis; não desdenha de seus esforços. Parece-me que olha com profunda piedade para seus problemas, enganos e sofrimentos. Mas ele olha para isso tudo. Vê – e não desvia o olhar. A verdade é que ele é corajoso. Coragem e justiça não são virtudes em geral apreciadas. A prática rigorosa da justiça choca as massas, que sempre (talvez devido a um indistinto sentimento de
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culpa) a associam à misericórdia. À maioria de nós, que queremos ser deixados em paz com as nossas ilusões, a coragem inspira um vago alerta. Este é o sentimento geral com relação a Maupassant. Suas qualidades, para usarmos a encantadora e popular frase, não são amáveis. Sendo a coragem uma força, não se pode mascarar sob o manto da afetação de delicadeza e moderação. Mas, ainda que sua coragem não tenha um caráter cavalheiresco, não se pode negar que ela nunca busca causar efeito através da brutalidade. O autor destas breves reflexões, inspirado por um longo e íntimo contato com a obra desse homem, foi surpreendido pelo apreço a Maupassant manifestado por muitas mulheres dotadas de sensibilidade e inteligência. Suas almas, mais delicadas e audazes, são boas juízas da coragem. Sua maior agudeza de espírito descobriu nele a masculinidade genuína e sem ostentação, a virilidade sem pose. Elas discerniram, na constância do relacionamento dele com o mundo, aquele temperamento empreendedor e destemido, pobre em idéias, mas rico em força, que atrai especialmente a atenção da alma feminina. Não se pode negar que ele pensa muito pouco. Nele, uma extrema energia de percepção alcança grandes resultados, como, em homens de ação, a energia da força e do desejo. Ao olhar para os problemas intelectuais, talvez os simplifique demais, além do que a natureza deles permite; porém, um homem que tenha escrito Yvette não pode ser acusado de falta de sutileza. Mas nunca será demais insistir nisto: sua sutileza, seu humor, sua severidade, embora não haja dúvidas de que sejam propriamente seus, nunca são apresentados de outra forma que não como pertencentes à nossa vida, como encontrados na natureza, cujas belezas e crueldades exalam o espírito da serena inconsciência. A filosofia de vida de Maupassant é mais temperamental do que racional. Nada esperando dos deuses ou dos homens, confia em seus sentidos para obter informações e em seu instinto para fazer deduções, e pode parecer que não tenha feito senão um reduzido uso de sua mente. Mas seja-me permitido explicar de modo mais claro: sua sensibilidade é realmente muito grande; e é impossível ser sensível sem que se pense vividamente, sem que se pense corretamente, partindo de premissas inteligíveis e chegando a conclusões simples. Isso é honestidade literária. E podemos dizer que esta não difere muito da honestidade que idealmente encontraríamos na respeitável maioria, da honestidade dos legisladores, dos guerreiros, dos reis, dos pedreiros, de todos aqueles que expressam seu sentimento fundamental durante o curso normal de suas atividades, através do trabalho de suas mãos.
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O trabalho das mãos de Maupassant é honesto. Ele pensa o suficiente para concretizar suas destemidas conclusões em exemplos esclarecedores, retratando-os com aquele preciso conhecimento dos meios e aquela absoluta devoção à meta de criar um verdadeiro efeito – que é arte. É o mais completo dos narradores. É evidente que Maupassant olhava para a humanidade com um espírito diverso do daqueles escritores que têm pressa de afundar as dificuldades do nosso lugar no universo em um mar de explicações falsas e sentimentais. Maupassant era um verdadeiro e zeloso amante do nosso mundo. Diz ele mesmo, em uma de suas passagens descritivas: “Nous autres que séduit la terre...”12 Era verdade. A terra lhe exercia um encanto irresistível. Sua face augusta e sulcada ele contempla com a ardente perspicácia das verdadeiras paixões. Possui a capacidade de detectar aquilo que importa, o imutável, nas aparências inconstantes da natureza e sob a volúvel superfície da vida. Dizer que ele não pôde abarcar com seu olhar toda a magnificência e todo o sofrimento da vida é dizer apenas que ele era humano. Sem avançar sobre nada de que não tenha ainda se apropriado através de sua incomparável visão, este criativo artista possui a verdadeira imaginação; nunca se permite inventar nada; não estabelece qualquer simulação vazia. E não se curva a nenhuma pequenez em sua arte – muito menos à desprezível futilidade de uma frase de efeito.
12 “Aqueles de nós a quem a terra seduziu...” [N.do T.]
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