Coração Jornal

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Número 01 | Belo Horizonte | Outubro de 2010

Devaneio de uma pessoa esquisitinha Patrícia Silveira

Aí teve um daqueles momentos que paro e me pergunto se eu existo mesmo. Não sei se eu estava triste ou só cansada, não sei se era só culpa da chuva ou do dia 22 de janeiro de 2009, que não me foi lá muito solidário, mas o certo é que de repente eu me senti meio fora do mundo ou, antes, meio dentro de um mundo diferente. Andando naquela chuva ralinha, com cheiro do estrago que ela já tinha feito, fiquei pensando em por que vem chovendo tanto. E de repente me veio uma resposta tão boba, e tão doida, mas ao mesmo tempo tão espontânea que eu fiquei me perguntando quais as chances de eu estar dentro de um livro do Roberto Drummond. Porque aí toda essa chuva podia ser as lágrimas de todas as pessoas que sofrem e que de repente resolveram chorar pela alma, lágrimas passando pelos poros da alma e inundando o mundo com a fúria que só habita o coração de quem sofre. E eu seria uma coadjuvante que nunca foi escrita, uma personagem que nunca saiu do plano da idéia e que

não sabendo chorar pela alma podia ao menos largar da sombrinha e se banhar naquele pranto tão familiar. Senti vontade de me molhar com aquela água divina e de me lavar com aquilo que sai da alma dos outros. Aquieta a solidão. Senti vontade de sair correndo e cantando alguma coisa beeeem alto para ver se alguém me ouvia e resolvia me escrever. Talvez cruzar o meu caminho com o de alguém que existe para que eu possa, naquele processo mágico, passar a existir também. Mas não fiz nada disso. Fiquei quietinha debaixo da sombrinha. Talvez algum pedacinho de mim acreditasse que a Maria Tomba Homem, a Luna ou o Tio Red Label viesse me pedir abrigo ali. Talvez as gotas de lágrimas já os tivessem fatigado também. Ou talvez só fosse a tristeza, o cansaço, a chuva ou o dia 22 de janeiro de 2009, que não me foi lá muito solidário... P.s.: Poesia à parte, eu penso nessas coisas de verdade...



Quando se deseja Mariana Martins

Ele me largou suja, aleijada, faminta. Quando ele chegou aqui eu estava inteira. Ele chegou e raspou meu cabelo, cortou meu corpo todo, pintou as paredes da minha casa de preto. Espalhou pedaços de mim por todos os cômodos. E se foi. Me deixou no chão enquanto eu, fraca, estendia minha mão. Eu fiquei ali, agonizando e ele passou por cima de mim e foi embora. Sozinha nessa casa sem janelas, eu desejei ele de volta. Fiquei aqui, muito tempo encolhida no canto, pedindo, implorando ele do meu lado. E eu quis tanto que ele voltou. Eu desejei e ele veio. E hoje ele está aqui. Ele não me vê, não me ouve, Tropeça no meu corpo caído no chão. Não sente minha pele nua do seu lado. Não percebe meus carinhos, meus beijos. Não escuta meus soluços, meus sussurros apaixonados, meus gritos loucos. Não me toca; não sente o cheiro do meu perfume, nem do suor da minha pele. Mas não importa. Porque eu quis ele de volta e ele voltou. Eu desejei e ele está aqui. Está tudo bem agora.


Este homem, Rute Daniel Prudente

Refratada acima da janela por um vitral verde e empoeirado, a luz alcançava tímida a rachura de pele brilhosa e mole por cima do osso, na direção do tórax, as mãos se combinavam como as de uma figura mitológica gentil; as costas, arranjadas com descuido sobre o chão, comprimiam pelas bordas um pequeno eixo imaginário, de onde em pouco aquele homem, eu, acordaria, acordaria. Olhei para o teto com tontura, depois girava o osso da nuca torcendo lentamente o couro cabeludo para entregar muito frouxa a bochecha derramada sobre o piso de cerâmica. E eu levantei o rosto, eu podia ver, essa porta aberta, já é de noite, cadê Rute? que porra é essa? depois de um giro os olhos não puderam acompanhar a cabeça e pediam que voltassem, mas viam de esguelha, abaixo das costelas, abertas duas talhas violetas, a calça embebida de, era sangue, na hora ele pôs-se de quatro e a garganta implodiu sufocando um soluço – Rute descobriu tudo.

Rute não levou o fusca, estava ali parado na porta de Assis, Rute... ele não acreditava. Depois de tossir, o corpo reanimou-se inteiramente opaco no meio da sala, foi só o tempo de esturrar, ele mancou na direção da porta, ele pouco se importava onde a louca estivesse ou pra quem contasse, negaria, pouco se importava, ela era louca e porque, aonde mesmo ela teria ido? Vai ter de queimar a barriga, isso vai dar bicho. Respirou de novo o ar abafado debaixo das telhas de Eternit e agora olhava tudo, a faca da cozinha no chão, a cadeira virada, a camisa, a luz do banheiro acesa, merda, Rute, mulher louca naquele vestido de pano fino e aquela alpercatinha gasta, vai Rute, vai pro inferno, vai louca; ele mancou pela cozinha um pouco torto, a casa oca por cima dos retratos da parede, havia uma lógica chinesa em tudo, o tapetinho, o barulhinho da pia, e a estatuazinha branca de cavalo na cristaleira – Rute não saberia guardar segredo, de nada.


Vicêncio, Vicêncio. Ele molhou um pano limpo na pia, e o fez parecendo ser um gesto muito heróico e digno, depois espremeu com espumas na barriga. Nada foi removido, o sangue depois do que lhe parecia dias estava seco, vai ter de limpar direito, e vai ter de queimar, mas poderia ser que Rute... ele fungou o nariz, ela foi pros infernos, fugida entre os capetas, sabe o que eu quero? que ela volte aqui, burro... ele tinha de queimar essa merda, abriu a tampa do álcool nas ventas, e fingindo mais coragem ensopou o pano cobrindo com força a barriga e chorou; e como era? o nome da prima, como era... ontem, Rute estava sem roupa dentro do quarto, eles se amaram, e o nome da prima... ela coçou-lhe a cabeça e beijou-lhe a testa, e misteriosamente fez um frio no quarto depois de ter adormecido e pela primeira vez ele sentia medo; meio que dormindo ele via o cabelo dela mudando de cor. Ele tinha de ficar esperto, aquilo era caso de polícia. Vicêncio, você me esconde o quê? Responde Vicêncio. Nada. Como nada? Nada, me deixe dormir. Eu deixo – Rute levantou muda de manhã.

Acordou e saiu cedo, foi buscar qualquer coisa, manteiga e leite, eu nem me levantei, mudei de lado e o meu rosto inteiro dividiu-se em mil pedacinhos no mosquiteiro, que teve sempre esse mesmo cheiro de cimento encharcado, até cansava; quando era pequeno brincava de beijar minha prima do outro lado, eu dava risada. Mas Rute retornou depressa, e o mosquiteiro espocou no peso do braço daquela fêmea, a faca da cozinha repetiu-se aguda no abdome, eu golfei, e ela fugiu abrindo a porta com força na parede, ela voava puxando o menino e eu tombei no chão atrás dela, caindo para alcançar-lhe os pés, e aquela porta voltou de quina contra as costelas, eu gritava “puta”, eu tropecei na sala e beirando a porta da rua eu apaguei – Rute veio dos infernos. Eu vou me lembrar de quando conseguia prolongar naquele vento frio das tardezinhas o meu jeito de ser feliz e criança amiúde, você dormiria depois, quando os dedos se acalmassem depois do estalo debaixo da coberta, eu não te pouparia nem os dedões, eu amo você, amanhã de >


manhã a gente acorda mais tarde, o biscoito amolece no copo de leite, você vai me levar para andar de bicicleta, eu vou te abraçar até o meu bumbum doer e eu te pedir pra descer e descansar, você é tão grande, a gente pode se beijar atrás do carro, titia não vê, se titia vê a gente morre, a gente fica deitado aqui no chão a tarde toda, quem pintou o dominó? foi Titia? Você sabe, a gente é primo, a gente não pode se beijar, para de rir, eu não vou contar, você vai me levar até a praça, eu vou deitar o queixo no seu ombro, a gente viu aquele velhinho dormindo feliz, o seu cabelo tem um cheiro, você me lava depois da praia, você consegue se lembrar? Ele nunca mais tinha visto a prima, casouse muito moça – e Rute não quis casar. Você não quer Rutinha, não quer casar? Não carece. Ele imaginava Rute imaginando o que melhor poderia dizer quando tivesse que abrir aquela boca por algum motivo, e sem muita volta ele pensou que era assim mesmo que ela pensava: “não carece”, é que a vaca teimava em parecer mais inteligente, e ele se punha a imaginá-la Rute imaginando, ela pensava qualquer coisa e era nele, de como era forte e sério e calado, e como era bonito quando comia com o maxilar mais frouxo, a colher virada para o próprio peito, ela amaria aquele homem de bigode, aquele homem feio, e tão comum, escuta aqui, eu sou tua mãezinha, você me segura como se eu fosse égua, você me adora, eu sou muito burra pra você, e você gosta. Seria sensato

repetir isso assim, como se fosse ela? você me responda, você é um bosta? Rute não sabia com quem lidava, ele jurava e não conseguia adivinhar com que pés andaria Rute empunhando uma faca para tirar-lhe o sangue, por maior esforço que fizesse, a brincadeira de imaginar-se Rute acabava antes que fosse descoberto, porque ainda que merecesse a pena, a sociedade lhe permitiria aquilo, seguir muito firme sendo um homem, e Rute, a burra não tinha percebido isso, ou percebeu e por isso mesmo fugia, e logo não era tão burra como parecia – Não existe homem culpado, Rute. Não vai adiantar, a ferida inchava de um pus verde, ele tinha de buscar um médico, doutor Alonso, mas servia se fosse outro, a chave do fusca perdera-se no chão, debaixo da cadeira, ou seria melhor chamar alguém? Ele curvou-se para apanhar a camisa e a porta se abriu: Com a boca seca e os cabelos de uma mendiga louca, Rute parou na porta e lhe mostrou bufando o peso do facão de roça. Ele quis gritar-lhe pelo amor de Deus, que parasse agora com essa maluquice infernal, se ela era louca de ter-lhe feito isso, se o que lhe passava era coisa de Deus, e o que o povo pensaria de uma sujeira dessas, Rute, e o menino? Vicêncio pediria agora, que dissesse na cara dele os motivos de toda aquela ingratidão, mas Rute riscou o facão no ar como se fosse leve, Rute não lhe disse nada.

___________________________________________________________________________________________________________ Coração Número 01, Belo Horizonte, Outubro de 2010 Produzido para a disciplina de Artes Gráficas B – Planejamento Visual Gráfico, da Escola de Belas Artes da UFMG Concepção: Rafael Fernandes e Mariana Martins Diagramação, direção de arte e projeto gráfico: Rafael Fernandes Participação: Daniel Prudente, Patrícia Silveira e Mariana Martins



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