Fuga!

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“eu pensei correr de mim mas aonde eu ia eu tava quanto mais eu corria mais pra perto eu chegava�


Laura Cohen. A Catarse e o Catarro.

Mesmo que ninguém queira, a ficção parte sempre de um terreno real para atingir o vazio do que é irreal e formar suas imagens. Tantas vezes acabo pensando que uma das funções disso é sempre escapar do mal que causa a coisa em si. Às vezes é melhor entendê-la quando bem apartada de mim, logo depois de olhar com medo o real nos olhos; ou simplesmente para abandoná-la ali, com muito esforço no papel e apenas esquecer. A coisa separada de mim é outra cosa, - ela sempre sozinha


já não me pertence. Pode sofrer uma ação individual do tempo. Há sempre essa liberdade no desprendimento dos fatos escritos: eles desaparecem da minha pele. Eu me separo disso porque não preciso suportar tudo. Nos separamos porque a coisa que deve ser escrita ou que já foi escrita é completamente diferente de mim. Vejo-a como um grande monte de lixo.Ela apodrece sozinha.Ela age sozinha. Ela não tem mais o meu nome.


Não matar o próprio pai ou evitar o coito com a própria mãe é motivo o suficiente, mas, ainda assim, um bom motivo não quer dizer uma anulação.Sim, talvez a fuga mais clássica e menos agradável da história da minha visãozinha de mundo me faça acreditar em destino, afinal. É bem o que diria minha autoajuda na estante ao lado da janela: Eu preferiria não ter que citar os Wethers, os Kerouacks ou os Cobains, mas, se há algo de lógico nessa cronologia, não posso evitar tangenciá-la A fuga é (ótimo: evitar). parte dessas estéticas, porque ela é verdadeiramente linda, verdadeiramente plástica. Aliás, ela é tão essencial à plasticidade que temos aí a técnica de milhões de quadros a argumentar por mim. Eu vou organizar os termos: a fuga é um elemento plástico, um adjetivo, na verdade; talvez até um estado de espírito, cuja essência é aquilo que se pretende motivo. Em outras palavras, a essência da fuga é uma outra busca e, se é busca, então é possível afirmar que, enquanto houver visão, ou visibilidade, haverá fuga. Fugir, por outro lado, não é a prática dessa fuga, mas uma técnica. Evitar, por exemplo, é outra técnica – há milhões, que vão desde andar até colecionar botões, passando inclusive, pelo jogo ou o sexo. já julguei Em um pensamento mais rasteiro, que, talvez, fosse a escrita minha fuga. Não é. Quando escrevo, na verdade, é em fun“a fuga é só um outro caminho”.

Tulio Magno.


ção de permanecer, porque se trata de uma seleção, um trabalho árduo para encontrar o artifício com que eu sinto o mundo, logo, escrever é a afirmação interventiva do estar. A fuga é afirmação da mesma forma, mas não há interferência, se é que eu me faço claro. Quando há fuga, não tenho nome para as coisas, ou tenho nomes completamente novos, mas há uma insurreição e, como não?, algum fulgor, ou fugacidade, que, com sorte, deixa algum rastro que me é útil quando eu paro e me vasculho um pouco, já num momento posterior de intervenção. Faz todo sentido, nesse ponto, observar minha autoajuda, ou o In Utero em uma estante – essas já foram minhas fugas alguma vez na vida, assim como aquelas revistas que doei ao meu primo ou a cerveja que tomei para mais certo dia na minha memória. Pois bem, mas, assim como não foi possível a Édipo evitar matar o próprio pai ou transar com a própria mãe, não se pode evitar a ressaca, o fim de uma música ou de um livro. Tenho várias fugas, como todos que chegam à fase adulta as têm. Quando tento definilas, costumo me perder, porque o hábito, que é também uma técnica de fuga – a que mais detesto, aliás – torna tudo mal engavetado em minha mente, como um funcionário preguiçoso de repartição, que não sabe diferenciar o valor real das coisas e trata todos os documentos como simples

papéis. Descobrir o que foi fuga ou não só depende da existência dessa intervenção, dessa assunção, que depende da observação – o reverso da visão e da visibilidade que a permitem. Se eu fujo, bebo, ou coisa assim, o que me sobra é tomar alguma posse de mim mesmo, afirmar, intervindo, tudo o que eu vivi. E a esse respeito, como a Antígona para Édipo, eu tenho a escrita, minha cria e companheira. Belo Horizonte, Outono de 2011. Francisco Manuel Gonçalves.


Matheus Ferreira. –Parece um balé. O que é que os filmes não colocam pra sempre na nossa cabeça né ? Enquanto eu me imagino ouvindo “Also sprach penso em como uma boa Zarathustra”, amiga estaria rindo de mim por eu lembrar uma hora dessas da Marilena Chaui. A quase nula influencia da gravidade te faz lembrar que o vazio é aterrador e absoluto. Absoluto mais em um sentido de definitivo mesmo. Ele sempre esteve lá e ele sempre vai estar. Ou nunca mais. Isso talvez é que seja o vazio. O caso é que você se movimenta de maneira calculada, da pra quase ouvir algum lugar do seu cérebro contando “um... dois... três... agora.” Mas mesmo com tanto cálculo, a sensação de que você não foi criado pra esse lugar é absoluta. Igual ao


vazio. Da pra questionar se você foi mesmo criado ou se sei lá o que quando você olha pra aquilo que você teme que de fato seja o infinito. “Um... dois... três... quatro.” Parece a vida toda a duração daquilo e você, apreensivo como se o resto dela dependesse de estar tudo no lugar certo e na hora certa. E depende. Eu lembro de ter lido que o deus “Caos” era inicialmente descrito como aquilo que ocupava o queenganado... havia entretinha o Éter e posso estar um a Terra... negócio de que o termo era derivado de um verbo que significava “separar, ser amplo”. Eu estou exatamente no caos absoluto e é estranha a sensação de que em alguma instância, todo mundo sempre esteve. “Um... dois...” meu deus! E eu nem acredito em deus! Aquela coisa se ver a vida toda passando diante dos seus olhos é real, mas você faz isso não na hora que morre, mas na hora que nasce. A gente sempre vem equipado com alguma espécie de gravador. Só não da pra saber se ágüem vai ouvir um dia. Mas na hora o caos está dentro de você. Eu aperto o botão e digo “diário de bordo do naufrágio... primeira parte...”. Matheus Ferreira, 20 de junho de 2009.


Já faziam quatro semanas que eu não conversava com ninguém e naquele momento aquilo parecia algo muito bom. Poucas roupas e pertences e quase tudo molhado e sujo, naquela bagunça pós-tempestade e eu só conseguia me lembrar dos meus discos e de como devia ser naufragar no espaço como o Major Tom da musica do David Bowie. Nunca tive muita coisa, mas sempre o que tive foi precioso. Agora pra mim eu organizava num canto as minhas coisas e numa marmita de metal eu guardava coisas pra memória:um pacote inteiro de massinha de modelar que eu usava pra fazer bonequinhos - todos verdes, a unica cor que eu tinha das pessoas importantes pra mim: a Yoko, minha cachorrinha, meus pais, meu irmão,


Pensei tanto que esqueci de pensar em o que que seria da minha vida: foram os primeiros dias que eu não pensei nisso, e justo quando eu aceitei a condição de náufrago e já funcionava como um eremita perfeito, veio uma tempestade denovo e eu fui engolido sorrateiramente pelo mar e acordei na enfermaria de um clube à beira mar de uma praia de Santa Catarina. Desde então, quando dá eu viajo pro litoral e perambulo de praia em praia atrás das minhas pessoas de massinha e da saudade que eu tenho de mim.

Das nove semanas que eu passei naquela praia estranha e deserta, a ultima foi a que eu mais pensei. Armazenei umas frutas debaixo da árvore, um pouco de água, assentei e pensei. Pensei muito. Pensei em como deve ser viver na pele de um cachorro, sobre como boa parte da vida é desnecessária, como as coisas não fazem muito sentido e que a gente só fica em paz quando aceita isso, e como Tom Jobim errou na letra de “Wave”: é plenamente possível ser feliz sozinho.Pessoas de massinha são seres humanos perfeitos ainda que tortos e mal feitos, inclusive, porque os de verdade são assim também. Gabriel Garcia Marquez e mais uma meia dúzia de pessoas que ainda estavam comigo sempre.


Laura Cohen. O dente do Louco. I. Ouço o que o louco diz. Ele ameaça tomar o lápis da minha mão e diz: “cinqüenta e sete!”. Ele quase me faz tropeçar na calçada quannuvem do me faz olhar para uma no alto. A caminho do ponto de ônibus me encontro com Daniel em frente ao louco. Eu estou voltando para casa, Daniel está indo embora. Cumprimento a timidez dele com um abraço quase beijo estamos no rosto ouvindo música” “agora ( , diz o louco), a saudação híbrida daqueles que têm pouca intimidade.


, “Daniel!” diz o louco. Mando ele se calar. Daniel está de óculos escuros e carrega livros; pergunta se eu já revelei as fotos daquele dia. Digo que ainda não, mas que vou fazer isso hoje Eu vejo o louco que Daniel se eu tiver tempo. tenta esconder o corpo. Daniel ouve muito o louco dele ecom finge não

ouvir e se cala quando eu pergunto se o louco existe. Às vezes, quando se sente próximo de mim e confia em mim, Daniel sussurra as coisas que o louco dele diz. O louco dele diz: “Esquerda! Nanquim! Quadrado! Pedaço de pano!”. Eu vejo o louco que fica atrás da cabeça dele. O louco dele é bom. Ele tem vergonha do louco, ele não fala do louco. Quero que meu louco seja bom também. Daniel leva um cheiro de perfume forte que faz o louco ver o banho que ele tomou em casa. “A que horas Daniel acordou?”, o louco pergunta e exige que eu pergunte isso a Daniel. Mas deixo Daniel despedir-se de mim com sotaque e retomar o seu caminho. Penso que a mulher de Daniel também tem um louco, mas o louco dela é mulher.Penso que vou para a terra pura de Daniel um dia, e o meu louco irá comigo para berrar cada coisa que vê.


II. Faço isso para que ele não arranque os próprios dentes. Às vezes eu arranco sim um dente dele, e ele Faço isso para que ele não arranque ossofre. meus. Ele desliza na minha boca úmida e belisca, eu cuspo ele pra fora gritando as palavras que ele gosta de ouvir. Às vezes, também, eu mato o louco: recuso a tentação de ir agora em direção a ele e obedecê-lo. Preciso esperar isso. “Vê, a linha da terra?”,


ele diz, ressurgindo sem dor. Ele começa a crescer de novo como uma erva nas próprias vísceras. “Você sente na ponta da língua uma coisa escura e asquerosa? É tinta. Livre-se disso. Cadê sua palavra, hem? Fale comigo!”, diz o louco. Ele coloca o lápis de volta na minha mão e diz que há mais santidade no meu ato do que qualquer reza. Preciso acabar com isso logo, penso. “Então acabe”, diz o louco. Permaneço. “Diga logo”, ele insiste. Sim, vou dizer tudo. Continuo calada. Ele olha para mim. “Lá vem o tempo”, diz o louco, “você quer acabar igual a mim?”. Eu rezo e falo com a terra e registro a minha palavra. Assim que eu escrevo o nome do louco, ele adormece.


III. O louco me lembra de uma coisa ruim depois me lembra de uma coisa boa depois me lembra de uma ruim e uma boa. O louco olha e vê os loucos atrás da cabeça dos outros, sempre grita a eles – “os seus sapatos, catequese, rotina, telescópio!”. Então eu vou e corto fora a língua do louco, sempre achando que ele não vai falar mais. Porém ele segue gritando e sua voz não parece parar de aumentar de som. Ele sabe que a dor daquele corte sempre recai sobre mim. Então ele abre o próprio ventre – repete que quer dar o estômago para a terra comer. Ainda dói. Falo com o louco para ele não me matar, mas ele não se afasta de mim. Quando ele permanece, acho que nunca vou dar conta. Finalmente me sinto convencida a perder tempo, me sento e escrevo de novo e o louco se cala de novo: a fala do louco só é audível num tom mínimo agora, e se assemelha ao som do lápis. Assim ele cala a boca do meu ouvido e toda a gente sã pode ouvir seu discurso insistente de desordem.




pรกgina foragida.


Francisco Manuel. Can´t fin d my way home

Se não foss e Penélope, a Odisséia seria muito menor. I. Um dos grandes motivos que levam os homens às grandes mudanças pessoais é, muitas vezes, a vergonha. É por isso que grandes mudanças não são, senão, o mais sincero fruto de uma fuga patética daquilo que não pode ser encarado com tanta freqüência assim.

Quando alcancei terras estrangeiras – era a Inglaterra – senti-me burro. Eu não sabia pronunciar um inglês adequado e jamais conseguiria falar com alguém devidamente. Senti um medo óbvio, paralisante e, espiri


tuosamente, resolvi me apoiar em alguma “Can you give me a beer?” bebida. tentei sozinho antes de chegar a qualquer bar, pub ou restaurante.

o por um preço bom e ganhei um tapete. Percebi, assim que entreguei o dinheiro, que ele era vira-lata e velho. Não me importei. Encontrei uma espécie de apart-hotel que aceitava animais de pequeno porte nos quartos, deixei o Bucks (pensei nesse nome,ou em Reinaldo) por lá e fui buscar minhas coisas no hotel em que eu me hospedara até então. A morte dele, quatro meses depois, foi triste, mas acho que tem a ver com a faxineira que, primeiro, alegara ser impossível tirar os pêlos do carpete - que eu troquei pelo tapete de banheiro da búlgara; depois começara a se dizer alérgica ao poo do

mas bancadas espalhadas: nelas encontravam-se vasos diversos, alguns tapetes e coisas que soavam a artesanato. A mulher se aproximou, vinda da porta, com um sorriso simpático. Ela era búlgara, vendia algumas coisas e tinha um filhinho moreno brincando perto da porta com um cão. Ela virou-se da sua tentativa de me empurrar um tapete de banheiro e deu a ralhar com o menino em sua língua. O cachorro apanhou também e quando eu achei exagero o que ela fazia, disse “sell the dog to me”. Levei-

Desconfiei no dia em que ela cachorro. pisou em algo e gritou “shit”, por uma coisa que, até então, era só um poo.

Após dois meses, consegui pedir a minha cerveja. Antes, comprei um cachorro, com quem eu pude falar português e ser entendido. Eu me guardava todos os dias da rua e, ao chegar em casa, desatava a contar coisas e dar ordens. O fato é que comprei o cachorro nas primeiras semanas, quando minha compreensão de mundo ainda estava em crise, graças a essa mudança repentina de língua. Aquele fora um dia em que eu resolvi passear por uma rua atraente, relativamente arborizada– eraaproximei verão, nãodefazia Vi e me um muito quintalfrio. com algu-


No dia seguinte, quando voltei do meu passeio na rua, vi a porta do banheiro fechada. Quando entrei, vi meu vidro de perfume quebrado no chão e o pote de shampoo esparramado. Bucks estava deitado ao lado da pia, com os olhinhos fechados e já sem respirar. Chorei, paguei a conta, comprei passagem e voltei pra cá.

Anos mais tarde, quando eu comecei a escrever isso, senti que me faltava conteúdo nas mensagens e procurei alguma forma de preencher esse vazio. Por algum motivo, a memória que eu possuía sumiu e eu não consegui me lembrar de nada.

Cabe ressaltar, antes, aqui, que não me refiro a nenhuma amnésia, que não falo, sequer, em esquecimento. Esquecer é outra coisa, exige laboro e qualquer dispêndio de energia – trata-se de uma arte, uma substituição de uma coisa por outra, um processo paralelo e não antônimo ao da memorização. Não lembrar é que é a verdadeira pane; é no não lembrar que a memória e o controle nos fogem, e a sensação é de insuficiência e vazio.

Essa história é de não lembrar.



II. Fiz doze anos antes do dia do meu aniversário, assim que ganhei uma luneta, a única da minha vida, bonita como só. Com ela, o que eu pude ver, no tamanho que eu pude ver, parecia uma saída para a monotonia: pude ver a capela da cidade de meus avós maior do que a igreja de Santo Rosário e constatei o quanto os meus jantares ali seriam ainda mais fartos, uma vez que a mesa suportava muito mais comida. Um dia, da janela, mirei além dos montes e vi o quanto Nova uns Promessa era próximo. Demorou cinco anos para que eu pudesse constatar o quanto Nova Promessa, uma cidadezinha menor que a Santa Fé de meus avós, estava realmente ali ao lado. Saí para conhecer meu objetivozinho de


Deu tudo errado.

eu voltar, haverá um lugar nos esperando com uma cama, um frigobar e nada mais a se fazer. E eu acredito nisso – eu aprendi a mentir para mim mesmo. Desligo o telefone, venço alguns quilômetros, pousome em algum lugar, olho o computador e, sociofóbico, correspondo somente com as pessoas que não me machucam, as pessoas que eu julgo não machucar – eu evito o Tomás. Devem sentir minha falta alguns antigos amigos – ou talvez, estejam tão distantes e incomunicáveis entre si lá quanto eu aqui no sul do país. Ao pensar nisso, vejo que não volto por medo de me deparar com essa obrigação de decidir me tornar algo. Quando eu paro e penso, vejo que eu devo ficar só – mas eu aprendi a desconfiar de mim mesmo. Apesar dessa viagem, estive o tempo todo em contato com meus entes. Para alguns poucos, fui um tipo de herói que saiu por aí, mas o resto todo entende a farsa, pois não

há o menor propósito nisso aqui. Dói lembrar que não há o menor propósito naquilo lá também, não há nada de grande me esperando – não tenho apego àquele porto. Mas eu tenho um enorme apego àquele porto. Acontece de ser um desamparo enorme isso. Eu fugi para não ter que encarar os fatos. O pior deles é o fato de que eu jamais consegui ser algo, à parte os sonhos. Não por não ter tentado, mas por não ter sido bom mesmo. Como não sou bom aqui, inalando poeira e pó de asfalto sem o menor propósito.

mundo com algum dinheiro no banco, uma mochila bem arrumada e a intenção de, depois de conhecer Nova Promessa, conhecer um lugar por mês. No entanto, é nessas horas em que me sinto sozinho e percebo o quanto eu tenho medo de ficar sozinho. No momento em que me correspondi com Tomás, percebi que eu deixara tudo para trás, mas jamais consegui deixar a culpa e nunca consegui, de fato, desprender as pessoas mim. Ainda falo com ela ao telefone, que,de quando


III. Quando finalmente cheguei à Nova Promessa, fui conhecer a igreja, que, por estar fechada, fez-me parar no hospital ao lado para pedir informações. Havia umas três ambulâncias, todas muito sujas de terra, recebendo alguns enfermos em macas e outros mais acompanhados de enfermeiros. Pergunteioso internos que acontecia ali. - Estamos transferindo para São Camilo de Lélis. – disse uma enfermeira jovem com olhos grandes e muito pretos, morena e muito bonita à qual tive a audácia de me dirigir. Entrei no hospital e o atendente protestou, dizendo que eram proibidas visitas naquele dia. Resolvi querer entender, admitindo-me forasteiro. - A Via do Cobre vai sofrer um desvio por causa dos acidentes e aí vão criar uma nova rodovia que vai cortar essa parte da cidade. O hospital vai se mudar lá pra cima – apontou para algo que parecia ser a avenida principal da cidade, alguns morros além – ao lado da matriz. Só então reparei que as casas, que naturalmente se fecham aos domingos nos interiores, estavam um pouco mais do que cerradas. Elas estavam interditadas, não por sinais ou placas, mas por um silêncio opaco daquilo que não tem nem mais uma broa para oferecer. Jamais chorei naquela cidade, mas nunca consegui sentir-me exatamente bem por ali. Só que eu fiquei...


O dia que senti vontade de chorar em Nova se o senhor quebrar as pernas, ou arrumar Promessa foi o dia em que eu peguei o uma irritação nos olhos justamente nesse ônibus para São Paulo. Quis tentar alguma dia? E se o senhor piscar ou escolher fechar faculdade, mas não consegui – tudo muito os olhos? - Foi porque eu escolhi fechar os olhos que difícil ou caro. Resolvi continuar ganhando dinheiro como minha mulher morreu. atendente disso ou daquilo. Juntei – nisso Não questionei mais nada. eu sou bom. Tive mais que o suficiente e decidi voltar à Santa Fé antes de viajar pra longe. Praticamente todos os dias de um determinado mês, eu desci com alguns amigos para tomar alguma cerveja perto da rodovia, em uma pizzaria que vendia coisas baratas e estava perto do bordel. Bêbados, íamos nos divertir um pouco às custas das moças feias e baratas daquela cidade. Certo dia desse mesmo agosto, acertei uma quadra na loteria. O dinheiro não era grande, portanto, permiti-me não guardálo. Fiz uma festa entre amigos naquele bordel, que foi fechado ao resto do público. Eu já estava muito bêbado e cansado quando abandonei o local. Fui andar pela estrada que tangenciava a cidade. Tive um medo óbvio, principalmente ao perceber uma pessoa andando a passos largos atrás de mim. - Sem medo, sem medo – disse- me o barbudo ao passar. Segui o ritmo de seus passos. Disse-me que não poderia parar enquanto não fechasse os olhos. Era assim que ele deveria se portar toda a noite do dia 23, quando sua viuvez comemorava datas. Fiquei triste ao ouvir aquilo e questionei – e


IV. Com a morte do meu avô e a aquisição de minha licença de motorista, ganhei um carro, que eu prontamente usei para voltar a Belo Horizonte para tentar uma faculdade. Meu pai, que estava morto desde os meus quinze anos, disse-me, certa vez, que eu tinha habilidade para lecionar. Tentei uma faculdade particular para História e, com a ajuda de minha mãe somada às minhas economias, consegui fazer um curso, inclusive, em tempo hábil. Ao me formar, resolvi viajar um pouco e desisti de continuar os estudos por aquela época. Fui parar em Batista, cidade em que me apaixonei pela terceira vez. Fui a uma festa de comemoração da colheita – herança alemã da cidade – e lá ajudei uma mul


her a achar o telefone caído no chão. Algo aconteceu ali que a fez ir comigo para a pousada. Foi maravilhoso, até o dia seguinte pela manhã, quando ela me contou que seu recém-marido chegaria de uma viagem. Passei o dia no quarto da pousada tentando ligar para ela. À noite fiquei ainda mais triste imaginando-a com ele. Dia seguinte saí pela cidade à procura de um almoço decente. Vi um restaurante já na saída para a rodovia. Ele era pequeno e servia, no dia, um prato fumegante com frango e quiabo. Eu jamais consegui me esquecer desse prato. A dona do restaurante desatou a conversar comigo. Era uma mulher maravilhosa, já em seus setenta anos, que parecia ter projetado em mim algo maternal. Ela faloume da importância de comer bem e dormir bem. Contei do meu projeto de ir ao Sul. Ela falou de seus parentes lá, dos quais um primo estava em leito de morte. Chamei-a para me acompanhar, já que o que a impedia de visitar o ente querido era o preço da passagem. Ela aceitou. Dois dias depois, seguimos viagem e conversa.


V. Dois anos após a morte de minha mãe, resolvi me mudar de Belo Horizonte. Fui para a cidade de Antônio Dias, pois tive um palpite que teria emprego certo como professor nesses grupos escolares de cidadezinhas. Foi bem assim e, além de história, lecionei português. Ali conheci um homem muito humilde apegado à igreja, mas muito transtornado. Era o faxineiro da escola, seu nome era Virgílio e eu o tratava por “senhor”, apenas respeitando seus cabelos brancos, pois ele não teria mais que quarenta anos naquele tempo. Conheci Seu Virgílio ao sair cansado da sala, certo dia. Ele me pedira para conversar.


- O senhor faz poema? Surpreendi-me com a pergunta. Questionei. - Eu era, antes, um freqüentador de bordel. O senhor não se importa de eu falar isso, importa? – fiz-lhe um gesto efusivo para mandá-lo não se preocupar e continuar. – pois é, eu era. Até que conheci Cecília... linda, grande, sabe? Conversei muito com ela e mal podia esperar para receber, no fim do mês, para poder levar ela pro quarto. Só que ela me contou um dia que tinha um segredo, sabe, menino? Eu fiquei foi muito bravo com aquele... quero dizer, eu briguei com ela e ela chorou. E foi por isso que eu perdi a Cecília e agora eu economizo todo fim de mês. “Veja bem, professor Plínio, eu quero chegar com flores e um poema, coisa que toda mulher gosta, sabe? Só que eu não sei escrever...” Só consegui fazer esse tal poema anos depois, em pleno carnaval, quando me envolvi com uma garota muito nova, na expectativa de superar minha ex-namorada, que morreria naquela quarta-feira de cinzas. Perdi as passagens de trem para Antônio Dias e, quando me encaminhei àquela cidade, fora de carro, pela BR 381. Fui para Londres logo que voltei de minha viagem para o Sul com a Dona Maria. Naquela região do Brasil, senti uma promissora idéia de moradia, de estadia permanente e vi que, antes, eu precisaria viajar um

pouco, conhecer mais cidades e andar com a mochila nas costas por aí. Decidi, então, pegar minhas economias e ganhos de herança para ir à Europa. Estive menos de um ano em Londres. Já aos quase quarenta, senti o vazio de um não-saber maldito, das saudades de minha mãe e do apego doloroso a algumas pessoas. Eu namorava uma garota que tinha esperanças demais, tinha um melhor amigo que era um amigo de caráter, também cheio demais de força e vida e eu, agora, queria me estabelecer em um canto sem ter que me responsabilizar por alimentar ou não os sonhos desse pessoal. Decidi mentir uma bolsa de estudos nos EUA. Isso me envergonhou muito mais, mas o fiz, descendo, na verdade, para Curitiba, sem ter um plano de vida, sem uma sustentação, querendo, além de outros motivos, não me encarar ali na minha cidade... Não consegui viver por lá e, ainda às custas da minha capacidade de guardar dinheiro à despeito das viagens, fui tentar outras cidadezinhas no Sul. Deu tudo errado.


Encontrei uma cidade chamada Nova Est창nN찾o tenho coragem de voltar a cia. Belo Horizonte.




à todas as idéias que já me

fugiram.



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