últimos anos
memórias Fez uma fogueira no quintal acimentado da casa dos avós e queimou todas as fotografias, todas as cartas, todas as roupas, tudo que indicasse as memórias das pessoas que viveram ali. Sentou-se em frente à fogueira e observou, prazerosamente, tudo se extinguindo. O papel da fotografia se entortava com o calor, enegrecia, até se tornar pó. O tecido das roupas demorava um pouco mais a ser completamente destruído. As letras das cartas eram indecifráveis: a tinta preta se confundia com o queimado do papel. Esperou até que todo o fogo morresse, pacientemente. Não era a primeira vez que fazia esse ritual. Quando as cinzas esfriaram, varreu tudo, colocou em um saco de lixo e jogou na lixeira da rua. Como se fossem apenas dejetos comuns, não memórias mortas. Dias depois doou todos os móveis e mandou que a casa da década de 50 amarela, de portões brancos, janelinhas de madeira, fosse demolida. Como sempre um público grande assistiu todo o processo, as crianças empolgadas admiravam a força que o trator aniquilava tudo. Já havia se acostumado a isso. Mas, dessa vez prestou mais atenção aos detalhes: era a última vez que cumpriria esse ritual. Toda a sua família havia morrido, sobraram apenas algumas pessoas, parentes distantes, que, provavelmente, morreriam antes dela. Carregava o gene, o nome, as memórias, inutilmente. Não poderia repassá-los a ninguém, não poderia tentar reestabelecer o que havia sobrado da tempestade. Estava sozinha; portanto, dedicava-se a apagar quaisquer resquícios de que ela e os seus passaram pelo mundo.
Julia Arantes
morada Dessa vez em que ficamos separados por um mês, eu estava num entardecendo com meu corpo cheio de sal e areia, e a gata da tia se enroscando nas minhas pernas. Eu esperava tomando cerveja na varanda de casa e ele ligou, o sinal ruim da distância. Disse que se esquecera de como eu era, de como era meu cheiro e meus olhos, que de repente sentira um desespero e precisava ouvir minha voz para se lembrar e mesmo assim não conseguia ter idéia: talvez como esquecer falas parado no centro do palco, pontuou. Ou como aqueles caras na guerra, que têm uma perna arrancada e não sentem dor, e eu achei bonito, disse que era uma falta tão, mas tão grande que nem se sentia mais. Antes de ir dormir reencontrei álbum do casamento na cabeceira da cama, fotografias pequenas que um amigo havia feito com uma câmera analógica e rolos de filme preto e branco e de um colorido falso, opaco, embrutecido; uma festa pequena pra bastante gente, que durou caixas e caixas de cerveja das três da tarde até as três da manhã no quintal. A poeira se assenta e aquilo que antes eram cômodos vazios cheios buracos de outras pessoas, torna-se de repente a nossa morada. Laura Cohen
Até onde vai no fundo a terra do quintal?, pergunta o neto com uma das mãos ainda segurando a corda há tanto tempo firme do balaço. Explica o avô que sob a terra tem pedra e sob a pedra tem lava, que é pedra líquida e quente. Geografia, você vai aprender na escola. No futuro, o neto se lembrará da terra, da pedra, da lava, além de saber de outras coisas de carbono e cadarço amarrado; sem se lembrar especificamente daquela fala subterrânea do avô morto. Derreter uns restos de pesadelos que sobraram como pedra quente por dentro o dia todo, esvaziar os armários dos vestidos tristes que tinha a mãe. Lembrar-se-ia apenas da imagem idosa, parada perto da árvore, e de seu balanço hoje rompido, caminhando com cuidado para não tropeçar nas raízes que sobressaíam o solo e as folhas, recuando na direção do profundo. Laura Cohen
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Naquele verão, nos trinta dias que durou a viagem, usei o mesmo vestido bege drapeado cerca de vinte vezes. Ainda hoje, quando eu coloco esse vestido, minha mãe ameaça desmaiar. Eu o lavava no banho, ou no tanque no fundo da casa, quando ele ficava sujo de poeira e barro, e então dependurava no varal de arame esticado rente à parede, com todos aqueles biquínis, toalhas e roupas molhadas. Ele ficava ali, silencioso e tentador, secando. Era bom – leve, de linho, não pesava nos ombros vermelhos queimados ardidos de sol. Ao fim daquele mês, a barra descosturou, mas eu não quis jogar fora. Está dependurado ali no quintal. Praia com a família, que longe todos eles estão, cachorro rondando, primo catarrento querendo brincar. Arranhões nas pernas que deixavam tais brincadeiras com os primos, a areias e os cães, ou até o sol que a gente tentava alcançar quando se arrastava no chão, deixavam também hematomas pequenos nas pernas – joelhos e tornozelos – que ardiam tanto quando a gente entrava e reentrava no mar.
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Ana Paula Garcia - Artes Gráficas B / 2010 .Julia, aos 19 anos, nunca escreveu com freqüência, tendo dificuldades em reconhecer alguma qualidade nos textos que produz e, conseqüentemente, em dividir aquilo que escreve. No entanto, essa também estudante de Letras na UFMG, posta em seu blog desde 2009, o qual, mesmo tendo alguns posts deletados, se mantém ativo, revelando que a escrita também ocupa um papel relevante na vida de sua escritora.
Julia Arantes Aos 20 anos, essa estudante de Letras da UFMG sempre escreveu, preenchendo com seus textos, no passar dos anos, de guardanapos de papel a moleskines de todos os tamanhos. Segundo lugar do I Prêmio Araucária de Literatura, em 2009, Laura publica seus textos em seu blog desde janeiro de 2006, juntamente com seus desenhos, os quais também guardam uma relação muito íntima com a palavra.
Laura Cohen
quem?
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domingo
Colocou aquele banquinho verde de madeira bem rústica que eu sempre gostei no meio da grama do quintal, pegou uma vasilha grande e começou a descascar três cachos de bananas que estavam bem pretinhas, quase apodrecendo, no limiar de algo que poderia ser aproveitado ou não. Dizia que não gostava de deixar nada apodrecer, porque era pecado, né, tem tanta gente passando fome nesse mundo; e os meninos gostam tanto desse doce. É, sempre gostei muito mesmo, vó. Ela falou que ia fazer doce de goiaba também, que esse ano deu goiaba demais e embaixo do pé tava cheio de fruta apodrecendo. A coisa boa é que enche de passarinho aqui em casa. Ela virou pra mim e disse que eu ia ver as frutas furadinhas pelo biquinho do pássaro. O segredo do doce de banana é tirar essas linhas e o cabinho preto, sabe? Se você ferver tudo com o cabinho fica ruim, fica aqueles pedacinhos durinhos. Fiz que sim com a cabeça e sorri, fazendo que ia pegar uma banana da vasilha para ajudá-la. A sua mão melada de banana encostou na minha; não, não precisa não. Você vai me ajudar a catar as goiabas no chão porque eu tô velha demais pra isso. Batia o sol de fim de tarde em nós duas. Pronto, vou colocar a vasilha lá dentro e você vem me ajudar a catar goiaba. Ela voltou com uma sacola nas mãos, andando com dificuldade. Foi até o pé e apontava para as frutas que eu deveria pegar. Ela examinava todas que eu colhia uma por uma; as boas colocava na sacola, e as outras deixava para os passarinhos. Fazíamos tudo isso caladas, concentradas no trabalho. Ela dizia que essa era a parte mais importante de fazer o doce; tinha que escolher bem. Antigamente seu avô que escolhia as goiabas pra mim; ele não errava uma. Falou com uma voz frágil – me voltei para ela. Toda ela era frágil. Acho que já chega de goiaba. Vamo voltar pra casa, filha. Você mexe o tacho de banana que eu mexo o de goiaba; é o mais complicadinho. Julia Arantes