Editorial J - Especial Depois da Chuva - Março/Abril de 2016

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PAPO DE REDAÇÃO - ESPECIAL

MARÇO/ABRIL 2016 • FAMECOS/PUCRS WWW.PUCRS.BR/FAMECOS/EDITORIAL J

DEPOIS DA CHUVA T E X T O Angelo Werner (3º sem.) • FOTOS Annie Castro (3º sem.)

A destruição causada pelas chuvas em outubro de 2015 foi amplamente noticiada. Mas o Editorial J queria fugir do óbvio na cobertura, ir além do factual. Para narrar o fenômeno a partir dos seus personagens, decidimos acompanhar uma das famílias da Ilha Grande dos Marinheiros, em Porto Alegre, que estava abrigada no Ginásio Tesourinha.

Procuramos uma família, mas praticamente fomos escolhidos por nossos personagens. Foram pelo menos sete encontros e cerca de 30 horas de conversa. Oito meses depois, a história continua atual porque é exemplo de força de vontade, persistência e esperança. Talvez, a lição mais difícil não tenha sido jornalística: aprendemos a dizer adeus.


O DIÁRIO ETERNO R A

chuva que atingiu Porto Alegre em outubro de 2015 deixou mais de 3 mil pessoas desabrigadas. O Editorial J acompanhou, durante três semanas, uma das famílias atingidas pela enchente da Ilha Grande dos Marinheiros, desde a estadia no Ginásio Tesourinha até o retorno para a casa destruída e o processo de reconstrução. Abaixo você acompanha o diário resultante deste projeto. Primeiro dia A quadra do Ginásio Municipal Osmar Fortes Barcellos, mais conhecido como Tesourinha, se transformou em uma pequena comunidade durante o domingo dia 11 de outubro, com casas de paredes baixas feitas de papelão, lona e pano. As arquibancadas logo ficaram cheias de doações, que eram repassadas como kits de roupa, higiene e do que mais precisassem, distribuídos conforme a necessidade de cada pessoa. Essas famílias, somando mais de 230 pessoas, foram desabrigadas pelas chuvas acima da média que alagaram suas casas na Ilha Grande dos Marinheiros. O clima no local era bastante tenso na maior parte do tempo. A extrema proximidade entre vizinhos (a cada dia mais numerosos, com o fluxo constante de pessoas que perdiam ou recuperavam suas moradias), a intimidade quase nula e todos os efeitos psicológicos causados pela destruição de seus lares fazia com que desentendimentos e brigas fossem constantes. O tráfego de centenas de pessoas pelo local deixava os desabrigados bastante desconfortáveis, e era difícil encontrar uma família que quisesse conversar. Um casal, porém, destacava-se desse padrão e não tinha problemas em interagir com os vizinhos, voluntários e mesmo jornalistas. “Já dei três entrevistas hoje”, comentou Jofrei Derungs, 66 anos. Ele e sua companheira há mais de 30 anos, Maria Bernadete Stevan Trindade, 62, chegaram ao Tesourinha ainda com a primeira remessa de desabrigados, no dia 11, com o neto Luciano, de oito anos. Durante a noite anterior à evacuação da região alagada, Seu Jofrei não dormiu. Ficou na porta de casa, observava o nível do rio subir lentamente, tomando a rua e entrando no terreno de casa. Ao amanhecer, percebeu que a situação era emergencial e ligou para os bombeiros. Foram retirados do local com a água na altura do pescoço. “A casa ficou inacessível. Mas se desse pra ficar, a gente ficava”, admitiu Jofrei. A vontade de estar em casa, mesmo que se explique sozinha, tinha bastante apoio no desconforto gerado pela permanência no Tesourinha. Dona Maria mantinha uma boa relação com os voluntários, com os quais trabalhou junto nos primeiros dias no ginásio para ajudar

a passar o tempo e esquecer da situação, até precisar parar por uma torção na mão. Alguns vizinhos “ambiciosos”, conforme eles, não permitiam que o local fosse agradável por muito tempo. Logo no terceiro dia de permanência, ao voltar de um banho no banheiro comunitário, Dona Maria percebeu que um kit de higiene, recém recebido, tinha sido roubado de cima de sua cama. “As doações são para todos, todo mundo recebe o que precisa, não adianta querer muita coisa”, desabafa ela. Após 10 dias nesse cenário de saudade e estranhamento, era difícil encontrar um sorriso que durasse mais que poucos instantes. Seu Jofrei tentava manter a esperança de conseguir voltar para o lar, apesar de todos os obstáculos: “Tem momentos que chego a chorar com essa situação. É muita humilhação”.

troca de melhor comportamento com as outras crianças. Também brincava na pracinha do lado de fora do ginásio, quase sempre sozinho. Dona Maria explicava que esse não era o comportamento normal do menino, normalmente disciplinado e carinhoso em casa. “Se aqui é estranho pra gente, imagina pra ele. Longe de casa, no meio dessa loucura toda, claro que ele fica mais arisco”, explica Dona Maria. Neto do casal, Luciano mora com os dois e é criado como filho desde que nasceu. É um “netilho”, como ele mesmo gosta de dizer. O pai do garoto, filho de Jofrei e Maria, havia ficado na Ilha Grande, para tomar conta das casas e daquilo que restara dos pertences da família. Muitos saqueadores estavam atuando no local, se aproveitando da tragédia. Mesmo com os bons momentos do dia, Seu Jofrei ainda só pensa em voltar para casa. A Segundo dia saudade se soma ao estresse e à preocupação causados pela permanência No dia seguinte, o quano local. Tamanho é o efeito dro encontrado era razoadisso, que Seu Jofrei não velmente mais animado sabia mais informar com cerdo que antes. Seu Jofrei teza há quantos dias estavam Veja como a reportagem foi publicada no Medium desfilava, entre novas enali: “Aqui tu perde a noção trevistas para diversos jordo tempo”. No final da tarde, nalistas e conversas amiuma notícia movimentou gáveis com voluntários e todo o Ginásio Tesourinha. O outros desabrigados, com time do Internacional havia um novo conjunto de abrienviado um convite para que go, verde e branco. Era a todos os desabrigados fossem primeira vez que trocava assistir ao jogo no Beira-Rio de calças desde a saída de contra o Joinville, no sábado casa, pois acabara dando seguinte. Seu Jofrei não se preferência às necessidaanimou muito: “Não vou, sou des da companheira e do gremista”. neto, mas os voluntários localizaram as peças dentre as doações e resolveram presenteá-lo. Sexto dia Sua felicidade e o seu conforto com a mudança eram aparentes. Após o final de semana, chegou a notícia Outro que claramente estava tendo um de que o nível havia baixado nas ilhas. Seu bom momento era o pequeno Luciano. Muitos Jofrei, ainda de manhã, se apressou em direção voluntários visitavam o local especialmente ao local para checar como estavam as coisas. para trabalhar com as crianças. Caracterizados O cenário que encontrou lá teria desolado como personagens infantis, levavam jogos, qualquer um: a água ainda batia nos joelhos e distribuíam livros e organizavam brincadeiras. tomava todo o grande pátio da casa. A oficina, Luciano se lembrava especialmente da vez em que se encontra nos fundos, estava alagada, que havia sido visitado pelo Batman. Naquela com diversos equipamentos submersos. E os manhã, um grupo de voluntárias havia levado saqueadores fizeram da casa um alvo, roubaele e mais 41 crianças à sala de cinema da Usina ram os motores das duas kombis que a família do Gasômetro, P. F. Gastal, para assistir à ani- possuía. Mas ao voltar para o ginásio, a reação mação francesa Zarafá sobre a amizade de um de Seu Jofrei surpreendeu. Ele estava animado menino e uma girafa. com o fato de o nível estar mais baixa e acrediLuciano conversava pouco e ficava bastante tava em um retorno próximo, talvez na próxima desconfortável na presença de estranhos. Sem quinta-feira, para voltar a trabalhar e recuperar ir a nenhuma das duas escolas (uma de manhã todos os danos. e a outra de tarde) desde a enchente, que tam“Já deixei muita gente rica nessa vida”, bém as afetara, passava boa parte do tempo contou Jofrei, que trabalha como mecânico e pedalando em um triciclo, que negociara com chapeador desde os 13 anos de idade. A oficina uma das coordenadoras da Defesa Civil em alagada é o seu local de serviço, e o pátio da casa

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serve como depósito de carros que esperam o reparo, ou aguardam o retorno de seus donos. Todos, claro, estavam agora inundados. Usadas para trabalho, as duas kombis saqueadas pertenciam a eles. Com elas, a família recolhia lixo em certos condomínios de Porto Alegre, rejeitos que Dona Maria reciclava em casa antes de vender. “A gente tem que fazer algo para viver. Roubar não é uma opção, a pessoa pode fazer qualquer coisa”, explicou Jofrei. Enquanto isso o celular dele não parava de tocar, com ofertas de serviço que não podia aceitar. Era dinheiro que estava deixando de entrar. Mas todo o trabalho da família para conseguir se manter financeiramente reforçava o desconforto deles com os vizinhos no abrigo. Devido aos vários carros expostos no quintal, começaram a se espalhar comentários de que eles não precisariam estar ali, recebendo doações e sendo ajudados. Comentários que geram desconforto, pois garantem que são tão pobres quanto os outros, e que tudo aquilo que possuem é relacionado ao trabalho. Já Luciano tinha outros problemas em mente. O pequeno cômodo no qual dormiam era dividido com outra família, e a televisão era bastante disputada. Luciano nunca obtinha sucesso em fazer a sua vontade ser ouvida quanto aos canais que queria assistir. Assim, foi providenciada mais uma televisão, exclusivamente para eles, na qual Luciano poderia assistir o que quisesse. Contudo, ainda era necessária uma extensão para ligá-la, e Luciano não descansou enquanto não conseguiu uma. Fez uma longa campanha envolvendo voluntários e visitantes. No final, o esforço foi recompensado. Mesmo não conseguindo encontrar nenhuma extensão entre as doações, os voluntários presentearam a família com alguns fios elétricos encontrados, com os quais Seu Jofrei não teve dificuldade para adaptar e fazer o aparelho ligar. Luciano passou a tarde feliz, sob total controle do televisor. Oitavo dia A família foi surpreendida, assim como todas as outras alojadas no Ginásio Tesourinha, logo na manhã do dia 28. Após 17 dias de abrigo, elas teriam que se retirar do local, pois ele precisava voltar ao seu funcionamento normal. Dona Maria fez questão de ressaltar que eles não foram expulsos, mas sim convidados a se retirar, da forma mais educada possível. Então, mesmo que cinco ou seis famílias ainda se negassem a sair do local, Seu Jofrei, Dona Maria e Luciano pegaram suas coisas, as doações e, finalmente, voltaram para casa. Mesmo após chegar à Ilha Grande dos Marinheiros, é preciso percorrer mais três quilômetros por uma rua de chão estreita até


O DE UM RECOMEÇO a casa deles. Naquele dia, o trajeto ainda era bastante complicado. Certos pontos estavam alagados, e o trânsito, mesmo de carro, era difícil. Uma vez lá, longe da parte mais movimentada da ilha, se percebe o quanto a casa é isolada, com o Rio Jacuí logo do outro lado da rua. “Aqui no fundo não vem ninguém, nenhum tipo de serviço, de projeto… mas também não vem bandidagem, não tem crime”, comentou Dona Maria. Enquanto na rua o problema eram as poças, na casa o embaraço era com o lodo. Um lodo escuro e malcheiroso que tomava conta de tudo. A oficina do Seu Jofrei (que por lá é conhecido como “Seu Dunga da Mecânica”) estava coberta por 20 centímetros dele, no qual estavam escondidas diversas ferramentas e equipamentos de trabalho, que caíram enquanto estavam fora. O peso de tudo isso fez com que os 70 centímetros de concreto sobre os quais ele ergueu a pequena oficina afundassem no solo. A casa, por sua vez, não foi invadida pela água nem pelo lodo, por pouco, pois é erguida em cima de vigas de madeira, altas o suficiente para impedir isso. Ela apresentava, porém, claros sinais da ação das chuvas e do tempo. Buracos no telhado causados pelo granizo fizeram com que chovesse lá dentro, e teias de aranha se espalhavam por diversos cômodos da casa. Seu Jofrei acreditava que a água havia deixado as vigas mais soltas e conseguia sentir a casa balançar. “A casa não tem estrutura, a gente não tem condições de construir. A gente mora aqui de teimoso mesmo”, ele desabafou. Dona Maria observava o cenário com um olhar triste, lembranças de como era o lugar antes da enchente. As bananeiras e os limoeiros quando davam fruta, os pássaros que cantavam e os animais que passeavam por ali. Alguns desconhecidos, às vezes, apareciam pedindo para fazer camping no quintal da casa. Dona Maria aprovava. “Aqui é um paraíso sem todo esse lodo, toda essa água”, disse ela. No momento, entretanto, o cenário era de devastação, marrom, e cheio de lixo trazido pela correnteza. As previsões, contudo, eram bastante otimistas. Seu Jofrei planejava consertar uma das kombis no dia seguinte, para voltar a trabalhar o mais cedo qur fosse possível. Uma das motos já estava funcionando, e servia como principal meio de locomoção de Jofrei na ilha. O filho do casal, pai de Luciano, ajudava com o recolhimento e a distribuição de doações (que Dona Maria havia trazido em boa quantidade, com o intuito de ajudar parentes e vizinhos). Havia muito a ser feito, mas ânimo para tanto não faltava.

“Pois é meu velho, dessa vez a coisa me quebrou” Jofrey Derungs, 66 anos, vítima de enchentes constantes

Nono dia

Décimo-quarto dia

Como previsto, os reparos começaram A chuva que veio durante o final de semana rapidamente e, em menos de um dia, já se per- realmente impediu o mutirão de acontecer. A cebia a melhora. Seu Jofrei havia retirado boa água subiu até o nível da rua, e Jofrei não conparte do lodo de dentro da oficina. Era possível seguiu dormir por causa disso: “Tu não imagina enxergar o chão. Também conseguiu telhas como fica a cabeça de uma pessoa com esse novas, adesivas, para cobrir os buracos no te- medo de perder tudo. Tu fica paranoico”. Duas lhado, além de todas as peças necessárias para cobras apareceram dentro de casa também, na o reparo da Kombi. Com a ajuda do bom tem- pia da cozinha e no banheiro. Eles acreditam po, ensolarado e quente, o lodo estava secando. que elas subiram pelos canos, trazidas com a Ficava muito mais fácil de transitar pelo local. enchente. Nos seis anos em que vivem na casa, esta Mas as coisas na oficina iam melhorando, era a sétima enchente que enfrentavam, a aos poucos. Uma das kombis estava pronta segunda apenas no último ano. O que mais os para funcionar, com todas as peças, e surgiu deixava indignados era que nenhum tipo de um novo serviço para Seu Jofrei. Era uma outra assistência ocorria depois do retorno para casa. Kombi, para ser completamente reformada. “Não adianta o Fortunati ir só nos abraçar no Mesmo com os preços mais baixos pelo trabaTesourinha, sequinhos. Tem que colocar uma lho devido à situação, já que todos ali estavam bota até o joelho e vir aqui ver passando pelas mesmas dificuldaa nossa realidade”, desabafou des, os R$ 700 combinados pela Dona Maria. reforma seriam bem vindos, ainda Ainda assim, Seu Jofrei mais com a cesta básica recebida parecia mais preocupado que na volta para casa acabando. A gente no dia anterior. Passada a aniNão bastando todos os promora aqui mação com a volta para a casa, blemas que eles tinham no moagora era a hora de calcular as mento, uma outra confusão antiga de teimoso perdas e a destruição. Aprovinha à mente deles vez ou outra. mesmo.” ximadamente R$ 600 de lixo Antes mesmo de voltarem para reciclável foram levados pela casa, eles tinham medo de serem Jofrey correnteza ou completamente despejados do local. Isso porque Derungs encharcados. Um trapiche de o terreno e a casa foram doados a 15 metros que havia construído eles pelos irmãos Maristas, quando na frente de casa, rio adentro, Jofrei foi eleito vice administrador da estava sendo encontrado aos Associação Nossa Senhora das Águas, que poucos, em partes, por toda a extensão da rua. funcionava ali. Jofrei se envolveu bastante com Seu Jofrei não gostava muito de olhar em volta, o projeto, organizavam eventos no local e diverpara tudo aquilo. Dava tristeza. sas ações para o bem da comunidade. Todos os carros do pátio foram inundados, Infelizmente, foi percebendo aos poucos água no motor, sendo que o veículo de um certos problemas na forma como a Associação cliente foi danificado pela chuva de granizo. era administrada. Ao se impor contra o que Jofrei acredita que perdeu 70 pneus levados achava errado, a Associação ruiu. Agora a sede pela força da inundação, somando as duas úl- é uma construção abandonada no terreno, timas enchentes. Várias peças raras de carros completamente tombada após a enchente. que possuía na oficina, incluindo um motor Uma vizinha alega, atualmente, que eles são do primeiro modelo de Fusca brasileiro, de invasores de terra, e luta pela posse do terreno 1959, se perderam ao cair das estantes. O plano na Justiça. “Nós já vencemos ela no tribunal, encontrado para solucionar os problemas no mas ela sempre diz que vai recorrer. Imagina momento era o de vender tudo o que pudesse ser despejado daqui? Eu fico toda ruim sempre aproveitar dali para o ferro velho, pegar o di- que penso nisso”, comentou Dona Maria. nheiro e ver o que poderia ser feito com ele. “O Enquanto isso Luciano continuava sem que perdi enterrado aqui dava pra só comer e aula, pois as duas escolas ainda não haviam dormir por uns dois meses”, calculou Jofrei. terminado de se recuperar e reaberto, então, Eles acreditavam que, com mais quatro passava os dias em casa, brincando e assistindo ou cinco dias de sol como aquele, o lodo secar à televisão. Sua atividade favorita, claramente, iapor completo, e a família, filhos e netos iriam é brincar com a coleção de dinossauros de plásse reunir para fazer um mutirão de limpeza na tico que possui. O menino parece ser um entucasa. Mas a previsão de chuva para a semana siasta na área, explicando o nome de cada um seguinte trazia desesperança. Seu Jofrei não deles, suas características e mostrando no pátio conseguia esconder o desânimo: “Pois é meu onde cada um deles fica. Mesmo quando ainda velho, dessa vez a coisa me quebrou”. no Tesourinha, separado deles, conseguiu um

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livro sobre dinossauros dentre as doações, para se manter antenado no assunto. Luciano agora brincava mais, conversava mais e parecia, no geral, muito feliz por estar em casa. Décimo-sexto dia Com previsão inicial de uma semana, o reparo da Kombi já estava bastante avançado após apenas dois dias. Conforme Seu Jofrei, se ele focar em um projeto, ele consegue ser bem rápido, mesmo que seja muito trabalho pra um homem só, especialmente aos 66 anos e com problemas nas costas. Como trabalha desde criança, sua coluna sempre sofreu: possui oito pinos de metal devido a isso. Não deveria se esforçar, mas não consegue evitar. Há alguns anos, enquanto erguia uma peça pesada, um dos pinos arrebentou. Desmaiou e precisou ser levado imediatamente a um hospital. Tudo deu certo, mas o aviso do médico foi claro: mais uma dessas e é direto para a cadeira de rodas. Seu Jofrei vive agora sempre atento. “O posto de saúde aqui da ilha fecha cedo, se qualquer coisa acontecer depois disso tem que ir até Porto Alegre ou Eldorado do Sul. E o atendimento é pelo SUS ainda, ou seja, tem que se cuidar até pra não ficar doente mesmo”, ironiza ele. Empregado na época, Jofrei precisou ficar de 2001 a 2008 sem trabalhar por causa do problema. Após um exame judicial, conseguiu o direito de receber aposentadoria. Aguarda a aprovação dos juros referentes ao ano de 2012 em diante. Conforme ele, nem precisa dos juros, ele só quer receber o dinheiro. A primeira ideia de investimento já está bem definida: uma casa em algum lugar alto, longe das ilhas. Provavelmente na Vila Bom Jesus, em Porto Alegre, onde morava e trabalhava antes. Ele pensa, também, bastante no futuro de Luciano, mesmo que este já tenha seus planos bem definidos. “Vou ser gari”, afirma o menino, com orgulho e certa ingenuidade. Dona Maria disse estar louca para voltar a reciclar, apesar da recente queda no valor dos produtos reciclados. Com a Kombi já pronta, o que ela espera agora é a situação normalizar um pouco, a casa ficar em ordem, Luciano voltar a estudar. A perda dos sacos cheios de material reciclável não desanimou ela, assim como quando, em junho deste ano, a Kombi, cheia, pegou fogo. É um eterno processo de recomeço. E os planos de retomada são muitos. Além da aposentadoria, Seu Jofrei conta com a reforma de um Volkswagen Variant que possui no pátio para conseguir um bom dinheiro, talvez usar parte dele para reformar e pintar a Kombi, ir para a praia com ela. Pois o importante não é o que se perde com a enchente, ou o que é levado pela correnteza, mas sim as esperanças e os sonhos que ficam depois da chuva.


As imagens desta página são um retrato parcial de três semanas na vida de uma família atingida por uma enchente – fragmento de uma situação vivida diversas vezes por Jofrei, Bernadete e Luciano. Por mais que as fotografias busquem ser fiéis ao sofrimento daqueles dias, elas registram apenas uma parcela da dor de quem, por conta da destruição provocada por chuva e lama, precisa reencenar mais uma vez a própria história.


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