A nova mídia Conheça as iniciativas que vêm mudando a feição do jornalismo
Roberta Requia (1º sem.)
SETEMBRO/OUTUBRO DE 2016 • NÚMERO 24 • FAMECOS/PUCRS • WWW.PUCRS.BR/FAMECOS/EDITORIALJ
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Cura espiritual Doutor Fritz opera na Capital em um evento baseado na fé e no merecimento PÁGINAS 4 E 5
Saúde sexual Os dramas que se escondem sob o glamour da popularizada hipersexualidade PÁGINA 10
Marcas invisíveis
No relacionamento anterior e abusivo, o namorado de Marina não permitia que ela publicasse fotos
Pesquisa feita pelo Editorial J mostra que 93,75% dos entrevistados já sofreram pelo menos uma situação descrita como abusiva PÁGINAS 6 E 7
Jornal do Laboratório de Jornalismo Convergente da Faculdade de Comunicação Social (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Avenida Ipiranga, 6.681 Porto Alegre/RS
papo de redação
Os números do abuso
PUCRS Reitor Ir. Joaquim Clotet Vice-reitor Ir. Evilázio Teixeira Pró-reitora Acadêmica Mágda Rodrigues da Cunha FAMECOS Diretor João Guilherme Barone Reis e Silva
COMO F OI F E ITA A PESQUIS A DO EDITORIA L J
Coordenador do curso de Jornalismo Fábian Chelkanoff Thier
S OBRE RE LACIONA MENTOS A BUSIVOS
Coordenador do Editorial J Fabio Canatta
POR Kamylla Lemos (6º sem.)
Coordenadora de Produção Ivone Cassol Coordenador do Núcleo Impresso Alexandre Elmi Coordenador de Design Luiz Adolfo Lino de Souza Professores do Editorial J Alexandre Elmi, Fabio Canatta, Flávia Quadros, Ivone Cassol, Luiz Adolfo Lino DeSouza, Marcelo Fontoura, Silvio Barbizan e Tércio Saccol Alunos editores Angelo Werner, Annie Castro, Bibiana Garcez, Eduarda Endler Lopes e Eduardo Rachelle Diagramação Eduarda Endler Lopes Alunos Ângelo Menezes, Bruno Abichéquer, Bruno Gentz, Camila Lara, Carolina Vicari, Daphne Constantinopolos, Eduardo de Bem, Gabriel Bandeira, Gabriele Lima, Gustavo Barreto, Igor Dreher, Italo Bertão Filho, Kamylla Lemos, Luiz Eduardo Cardoso, Luiz Otávio Pereira, Matheus Wolff, Mia Sodré, Pedro Braga, Renata Saraiva, Rhafael Munhoz, Roberta Requia, Sara Santiago, Sofia Lungui, Victória Lermen, Victória Urbani, Virgínia Fernandes, Vitor Kafruni, Vitor Lacourt e Wellinton Almeida.
A propos ta de faz e r um a sondagem sobre relacionamentos abusivos para a reportagem “Quando as marcas são invisíveis” surgiu da falta de dados sobre o assunto. O formulário aplicado consistia em perguntas de múltipla escolha, para as quais o entrevistado deveria marcar situações que já tinha vivenciado em um namoro. Essas questões foram elaboradas a partir de artigos e relatos de pessoas que haviam passado por relações abusivas. Foi decidido que, para a amostra de dados ser representativa, os formulários deveriam ser aplicados em lugares diferentes da cidade, tanto em shoppings como em parques, e, além disso, foram divulgados via internet. Houve a preocupação de que pessoas de classes, estilos e gêneros distintos respondessem. Eu e as repórteres Daphne Constantinopolos, Eduarda Endler Lopes, Sofia Lungui
e Victória Lermen fomos para o Centro Histórico, Shopping Iguatemi e Parque Germânia para a sondagem. Observamos o espanto de quem marcava quase todas as opções. Ou que olhavam uma frase e consideravam aquilo como algo romântico. Em um momento, após o entrevistado preencher a folha, ouvi a pergunta: “Isso que é um relacionamento abusivo?”. Presenciamos, também, algumas brigas de casais e relatos de pessoas que foram os abusadores ou os abusados na relação. Muitos deles tratavam aquelas situações como coisas normais em seus namoros. Inicialmente, a proposta era que apenas quem morasse no Rio Grande do Sul respondesse o questionário, mas com a divulgação nas redes sociais, a publicação acabou chegando a todo o Brasil, fazendo com que tomássemos a decisão de fechar o formulário – que chegava a quase 2 mil respostas – e criar outro, com apenas
os respondidos em papel, o que tornaria os dados mais exatos. A pesquisa possui um nível de confiança de 95% e uma margem de erro de 5%, considerando a população de Porto Alegre com mais de 15 anos que vivia em uma união conjugal. Na hora da análise, os dados foram separados por gênero e orientação sexual, para que se pudesse observar as diferenças das respostas entre homens e mulheres, mas também entre gays, lésbicas e héteros. Nisso, percebeu-se que as opções mais marcadas por um certo grupo não eram as mesmas por outro, o que serviu para preservar as diferenças entre os entrevistados e suas vivências. Os resultados, que apresentam uma realidade em que 93,7% dos entrevistados já passaram por pelo menos uma situação descrita como opressiva, mostram uma naturalização de relações abusivas. Precisamos parar e refletir sobre os relacionamentos que vemos e temos.
CONTEÚDOS DO EDITORIAL J FamecosCast É uma webradio com programação diária de reportagens, debates, entrevistas, colunas e noticiários ustream.tv/channel/famecos-cast. Twitter, Instagram, Flickr e Facebook Por meio de perfis, notícias e imagens são compartilhadas. Pelo Twitter, no @editorialj. Pelo Instagram, no @editorialj. No Facebook, pelo facebook.com/editorialj. No Flickr, flickr. com/editorialj. Editorial J na TV Telejornal semanal, com produções audiovisuais pelas redes sociais e reportagens sobre assuntos diversos. As edições estão disponíveis em youtube.com/editorialj.
Ao vivo no Facebook POR Eduardo Rachelle (3º sem.) Foram quase três meses de preparação para fazer o primeiro telejornal ao vivo do Editorial J nas redes sociais. Desde agosto, quando a ideia surgiu, começamos a planejar como
poderíamos colocar em prática esse projeto. Por ser novidade, pensamos em uma nova forma de fazer um telejornal. Um programa, que por ser nativo para redes sociais, necessitava de um estilo diferente de matérias e novos tipos de linguagem televisiva. Um conteúdo inovador,
IMPRESSÃO Gráfica Epecê - PUCRS
Laboratório de Jornalismo Convergente da Famecos www.pucrs.br/famecos/editorialj
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que conseguisse aproximar o público da nossa proposta. Depois de resolvermos todos os problemas técnicos, colocamos em prática o objetivo de fazer matérias mais dinâmicas e visuais. Abraçamos a nossa redação como cenário, e com ela assumimos uma maior informalidade frente às câmeras. Com esse novo norte, achamos um jeito diferente de fazer reportagens e estamos descobrindo a cada dia formatos incomuns para contar histórias em vídeo. A equipe de vídeo acreditou em um projeto de inovar a cada edição do programa. Estamos fazendo algo novo. Buscando diferentes maneiras de produzir e consumir telejornalismo.
startups
Novos moldes do jornalismo
C O N HEÇA AS I N I C I AT I VAS QUE VÊ M RE VOLUCIONANDO O JORNA LISMO, PRODUZINDO T R AB A L H O S Q U E D I ALOGAM COM O LE ITOR POR MEIO DE NOVAS LINGUAGENS P O R Mia Sodré (2º sem.) e Sofia Lungui (2º sem.)
P
equenas equipes, publicação estritamente digital, fontes de recursos alternativas e objetivos claros e bem definidos. Estas são as principais características das empresas e startups de jornalismo que estão surgindo no Brasil. Por meio destas experiências, o jornalismo ganha uma nova forma, e os jornalistas deparam com um cenário diferente. Os avanços da tecnologia e das plataformas digitais possibilitaram maior abertura para iniciativas deste tipo, que foram abordadas em suas diversas formatações nesta reportagem. Tornou-se mais fácil empreender, novas funções surgiram, novos debates foram levantados. O Editorial J mergulhou neste tema. Para compreender que mudanças são estas, quem as está protagonizando e que caminho pretendem seguir, foram selecionadas e investigadas propostas de jornalismo fora dos eixos tradicionais (veja quadro nesta página). Os critérios da escolha: plataformas não ligadas a organizações ou grupos e grau de notoriedade e relevância. Foram realizadas entrevistas com fundadores, diretores, editores e repórteres das empresas. Com dificuldade para competir com os grandes veículos, já estabelecidos no cenário de mídia, estes novos empreendimentos possuem necessidade de inovar, utilizar abordagens diferentes. Por essa razão, cada iniciativa construiu seu próprio perfil, com temáticas e rotinas de produção próprias. Nas palavras de Felipe Seligman, co-fundador do Jota Jurídico, veículo empenhado em cobrir o setor Judiciário do país, “estamos em um momento de extrema produção de conteúdo e aumentar somente a quantidade de informação sobre qualquer assunto seria um equívoco”. O jornalista disse acreditar que o que destacou a empreitada foi o fato de realizarem uma cobertura diferenciada, mais técnica e para um público específico. “Não é preciso inventar a roda, mas sim reinventar o que já existe”, explicou. O jornalismo independente, sobretudo, pode ser tomado como uma consequência da crise de modelo de negócio pela qual o jornalismo tradicional vem passando. Cada vez mais jornalistas altamente capacitados estão sendo demitidos das grandes empresas de comunicação. “Essa crise da imprensa tradicional, de certa maneira, permitiu que jornalistas,
um pouco por falta de opção, começassem a tentar apostar em projetos independentes” afirmou a jornalista Ana Magalhães, da revista digital de jornalismo narrativo Calle2. Outro projeto analisado pelo laboratório foi o Congresso em Foco, cujo objetivo inicial era aproximar as pessoas da realidade do Congresso Nacional. “Antes a visão era mais distante e imprecisa. Se um parlamentar fazia algo errado, todo o Congresso era meio que responsabilizado, se tornava agente daquela notícia. Como hoje as informações fornecidas pelos veículos são mais ricas, e o Congresso em Foco entre esses, a população passou a ficar mais atenta” explicou Sylvio Costa, jornalista e fundador. Atualmente, o veículo não se restringe à cobertura do Supremo Tribunal Federal e de política, mas também se empenha em fornecer informações completas sobre qualquer assunto relevante para a sociedade. Com a produção dividida entre o site e a revista bimestral, os 12 integrantes do veículo trabalham em uma redação em Brasília, num espaço alugado, próximo ao Congresso. A rotina de produção é intensa, e conta com um sistema de plantão, para que haja publicações nos feriados, inclusive. O sustento financeiro se baseia em publicidade, assinaturas e vendas da revista, além da receita gerada pela hospedagem no site da UOL. A pesquisa do Editorial J utilizou como modelos o Mapa do Jornalismo Independente, da Agência Pública, e um dos principais estudos acerca das iniciativas digitais de jornalismo no país, de Sergio Lüdtke. O mapa da Agência Pública, empresa responsável por algunas iniciativas de reportagem investigativa no Brasil, agrega as mais notórias iniciativas independentes do país. Já a pesquisa de Lüdtke, jornalista e diretor do Interatores.com, elucidou a forma como se dá o jornalismo nessas plataformas, obtendo resultados relevantes. Constatou, por exemplo, a facilidade que há para os jornalistas, nos dias de hoje, de abrirem startups sem muito investimento, com a ausência de barreiras financeiras no mercado de conteúdo digital. Lüdtke revelou também o elevado número de empreendimentos que fazem uso de newsletter: metade dos 200 participantes da pesquisa. Os resultados de ambos os levantamentos, em termos gerais, coincidem com os encontrados pelo Editorial J.
Volt Data
Brio
• O Brio é um site especializado em grandes reportagens que trazem recortes da vida real num contexto jornalístico. Sua abordagem é feita com o modelo de jornalismo longform, que realmente se atém a contextualizar suas histórias e envolver o leitor com reportagens de fôlego. • De: Não tem local fixo.
• Com o intuito de tornar mais acessível e desenvolver o jornalismo de dados, nasceu o Volt Data Lab. Hoje, o Volt se tornou um dos catalisadores dessa modalidade de jornalismo no país, produzindo reportagens e trabalhos para diversos veículos, canais e até mesmo universidades. • De: São Paulo - SP
• Receitas: investimento pessoal e colaboração de um investidor.
• Receitas: parcerias, uma newsletter e realiza trabalhos sob encomenda.
Jota
• Os profissionais do Jota Jurídico trabalham para acompanhar, monitorar e publicar notícias aprofundadas sobre o Judiciário, para que este se torne mais transparente. Com isso, acabam pautando outros temas, atraindo públicos variados e não se limitando aos advogados e magistrados. • De: Brasília - DF • Receitas: a plataforma é sustentada por serviços e produtos.
Repórter Brasil • Investiga os setores trabalhistas e socioambiental do país, com o intuito de pautar violações aos direitos humanos. De forma clara, a Repórter Brasil luta para combater o trabalho escravo. • De: São Paulo - SP • Receitas: convênios, parcerias, apoios, anúncios e doações.
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Nexo
• O Nexo é um jornal digital com a proposta de apresentar notícias contextualizadas sobre o Brasil e o mundo. Sua proposta é apresentar posicionamentos diversos para que o leitor tenha subsídios para formar sua própria opinião. O Nexo conta com uma equipe de 27 profissionais. • De: São Paulo - SP • Receitas: investimento dos colaboradores e um sistema de assinaturas.
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Confira as outras startups no site do Editorial J
espiritualidade Roger Silva (4º sem.)
Médium realiza cirurgias de duas formas: a visível, que inclui a retirada de material, e a invisível, realizada apenas no espírito
Mistério marca relação entre cura e fé DO U TO R F RITZ OPE RA NA CAPITAL. INCE RTEZA CIENTÍFICA , F É E ME RE CIME NTO DÃO O TOM DO EVENTO P O R Aristoteles Junior (4º sem.)
“A
cura já não está ao meu dispor. Agora, estou correndo atrás de um milagre”. A afirmação do aposentado Herno Campos, 54 anos, é recorrente entre as motivações de quem procura a cura espiritual. Muitas pessoas buscam na medicina alternativa a solução para as suas doenças. Apesar da ciência tradicional se apropriar de certas técnicas singulares, como a acupuntura, algumas delas continuam baseadas apenas na fé. Desde o Egito Antigo, onde a terapia chegava através do Seichim (acesso e canalização das energias cósmicas radian-
tes), os tratamentos espirituais estiveram presentes no cotidiano das pessoas. Antes, como um dos poucos caminhos viáveis. Hoje, como o último ato de fé na batalha contra um mal invencível. Contudo, esse aspecto da medicina alternativa permanece parcialmente ignorado do ponto de vista científico. Herno chegou, em uma fria tarde de junho, ao ginásio da Mocidade da Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre, à procura da cura para um gliobastoma de nível 4. O tumor, localizado em seu cérebro, é considerado extremamente agressivo. “Faz dois anos que estou me tratando. A
expectativa dos médicos era que eu vivesse apenas um”, disse. Porém, a agressividade do tratamento de químioterapia e radioterapia fez com que Herno procurasse a alternativa ascética, isto é, voltada para a vida espiritual. O folder de apresentação do Instituto Espírita André Luiz, que realiza cirurgias espirituais, afirma que o corpo sofre de doenças geradas por reflexos de alterações no espírito. As enfermidades são causadas por ações equivocadas em um âmbito moral e por modificações no plano emocional do ser humano. A cura espiritual age no perispírito, que seria a camada intermediária
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que liga o corpo (físico) e a alma (abstrata). Para isso, o médium encarna o espírito de um médico e assume o tratamento. A operação de Herno seria realizada pelo Doutor Adolf Fritz, por intermédio do médium Mauro Vieira. Era a primeira vez que Fritz operava na capital gaúcha. Ele obteve fama mundial através da mediunidade de José Pedro de Freitas (José Arigó), a partir do final da década de 1950, no Brasil. Diversos médiuns em todo o país e na Europa já afirmaram manifestar o espírito de Fritz. De acordo com a edição 56 da Revista UFO, publicada em novembro de 2007,
Adolf Friedrick Fritz nasceu na Alemanha e formou-se em Medicina na Faculdade de Yverdun, na Suíça. Com 61 anos, foi mandado para o front da Primeira Guerra Mundial, como médico cirurgião. Lá, especializou-se em realizar cirurgias com poucos recursos. Fritz teria falecido quatro anos depois, após ser atingido por um estilhaço de explosão de granada. Apesar da riqueza de detalhes da história, a vida terrena de Adolf Fritz não foi documentada.
Uma corrente de fé O protocolo de início da cerimônia de cura espiritual inicia com uma corrente de 25 pessoas, vestidas de branco, no centro do local. De mãos dadas, fazem orações como o Pai Nosso e a Ave Maria. Em seguida, uma enfermeira dá as instruções: é proibido cruzar pernas e braços, e os celulares devem ser desligados. Enquanto isso, o médium se prepara para começar as operações. Quem frequenta, por algum motivo, não consegue evitar o questionamento entre crença e razão. Apesar de não conseguir mergulhar cegamente na fé que inebria o ar, os acontecimentos são perceptíveis aos sentidos humanos: como explicar a ausência de dor onde ela, naturalmente, deveria existir? E como permanecer completamente cético ao tratamento, vendo tantas provas vivas de sua eficácia? As cirurgias são, em sua maioria, feitas em menos de dois minutos cada. Apenas casos mais graves são levados às macas, localizadas no fundo do ginásio, local em que biombos impedem a visão do público. Herno foi levado a uma delas, onde teve parte de seu cabelo raspado. “Eu senti, em um primeiro momento, como se tivesse levando uma injeção. Depois, percebi minha cabeça sendo cortada, de forma indolor. No restante da operação, estava envolvido pelo clima e pela vibração dos médiuns. Não senti nada além de uma tontura”, afirmou Herno. As orientações pós-operatórias são a troca de curativos, a abstinência sexual por três dias e a impossibilidade de comer carne vermelha no mesmo período. Herno revelou que Doutor Fritz pediu para vê-lo novamente em dois meses. Não foi passada nenhuma orientação quanto ao tratamento feito, paralelamente, na medicina tradicional. “Fiquei, de fato, tenso. Mas estava ciente de que estava nas mãos de um grande cirurgião.” A crença de que iria deixar o ginásio curado de uma atrofia no nervo óptico levou o radialista Newton Azambuja à Lomba do Pinheiro, na mesma gelada tarde de 5 de junho. Ele nasceu estrábico e, em 1969, fez uma cirurgia para a correção do problema. Todavia, a visão jamais voltou ao normal. “Anulei minha carreira de narrador esportivo, passando para a reportagem, em virtude do meu problema de visão”, disse. Newton já havia assistido a uma sessão de cura do Doutor Fritz em Rosário do Sul, sua terra natal. “Possuo um sonho acalentado de recuperar a visão do olho direito, desde os dez anos de idade. Através da operação a que fui submetido hoje, tenho fé que alcancei esse objetivo”, afirmou.
“Meu organismo não sabe que estou incorporado. Não tenho consciência, apesar de sentir, às vezes, que meu corpo precisa se revitalizar.” Mauro Vieira
Os procedimentos que tratavam de problemas de visão, como catarata e miopia, foram realizados em sequência. Formou-se uma fila de aproximadamente 50 pessoas, somente para esta especialidade. “Fiquei, de fato, tenso. Mas estava ciente de que estava nas mãos de um grande cirurgião”, concluiu Newton. O radialista relatou, ainda, que o médico fez uma brincadeira com ele durante o procedimento. “O Doutor Fritz brincou comigo, dizendo que eu devia agradecer por ele não tirar meu olho para fora”, riu. O bom humor do médico alemão, através do médium Mauro Vieira, atingiu também a reportagem. Ele convidou um jornalista para encostar no olho de um paciente, ou retirar agulhas no final de um procedimento.
Operações alternativas De acordo com a equipe de enfermagem do médium Mauro Vieira, a melhora se dá por meio de dois fatores: a fé em Deus e o merecimento. Contudo, as operações alternativas podem representar um problema legal. O artigo 282 do Código Penal Brasileiro, por exemplo, condena a prática ilegal de medicina. Já o 283 prevê pena para anúncios de cura por “método secreto
ou infalível”. Enquanto isso, o 284 impõe condenação por curandeirismo, “usando gestos, palavras ou qualquer outro meio”, e “fazendo diagnósticos”. Ainda assim, alguns hospitais espirituais realizam até 800 cirurgias deste tipo por dia. Como se trata de uma ação extrema, até mesmo dentro das práticas de cura da alma, não há conclusão sobre a eficácia da cirurgia espiritual. Em pesquisa publicada na 46ª edição da revista da Associação Médica Brasileira, em 2000, o fundador do Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Alexander Moreira-Almeida, acompanhou dez procedimentos espirituais. O médico pôde apurar que as cirurgias são realizadas sem nenhuma técnica de antissepsia, sem anestesia e produzem feridas cirúrgicas reais nos pacientes. As lesões, no entanto, são opcionais. O paciente pode optar entre a cirurgia visível, que inclui a retirada de material, e a invisível, que é realizada apenas no espírito. A crença faz a diferença neste momento. Após o estudo, Moreira-Almeida acompanhou apenas quatro pós-operatórios. Seis meses após a cirurgia, dois demonstraram significativa melhora, e dois afirmaram não ter obtido benefício algum. O resultado da pesquisa é inconclusivo: Moreira-Almeida afirma que, como não houve identificação de fraudes, o fenômeno ainda necessita de estudos para a explicação adequada da analgesia e uma avaliação de sua eficácia. “Como vários autores relatam benefícios com os tratamentos, é fundamental um melhor conhecimento destes mecanismos. Isso possibilitaria a adaptação como terapias complementares à medicina ocidental”, afirma. Mauro Vieira realiza operações por meio de uma mediunidade inconsciente. “Meu organismo não sabe que estou incorporado. Não tenho consciência, apesar de sentir, às vezes, que meu corpo precisa se revitalizar”, afirma. Além do Doutor Adolf Fritz, o médium trabalha com o Doutor Joseph Fritz e o Doutor House Fritz. Cada um deles possui uma área de especialidade
e aptidão, e os três operaram na presença da reportagem.
O atendimento O Dr. House Fritz é conhecido pela velocidade em seus atendimentos. Ele realizaria a cura apenas através de uma agulha, penetrando o paciente, em cerca de 10 segundos. “A chave do processo é a fé. Será que a cura vem através do que tu sentes ou do que tu falas?”, provoca. Durante o atendimento, ele fez um teste com dois repórteres, introduzindo uma agulha no braço de cada um deles. O repórter que afirmou ter fé em Deus não experienciou nenhuma dor. Enquanto isso, o repórter que se declarou ateu sentiu um desconforto. O médium afirma que, se o ser humano for capaz de aceitar a espiritualidade e possuir fé, a cirurgia espiritual não é necessária. “Se a pessoa chegar em casa, colocar um copo d’água e se concentrar no que precisa, ela será atendida. Isso, é claro, se possuir fé e merecimento”, pondera. O termo “merecimento”, de acordo com Mauro, se refere à alma da pessoa, e não só as suas atividades na Terra. “Uma prostituta, sob o meu olhar, não seria merecedora da cura. Mas nós não sabemos os motivos que levam ela a desempenhar esta atividade. Se a alma dela for pura, o tratamento funcionará”, diz. Descartando a falta de conclusão científica e o cenário nebuloso da fé humana, a cura espiritual é muito procurada. Nos dois dias de atendimento do Doutor Fritz em Porto Alegre, foram realizados cerca de mil atendimentos. Uma das razões para que isso aconteça é o fato dela não provocar nenhum efeito colateral e ser gratuita. Em situação grave ou não, todos os pacientes tinham em comum a crença incondicional de que aquela operação funcionaria. O mistério que marca a relação entre cura e fé perdurará por muito tempo, impregnado na subjetividade da fé humana. “Ainda vai levar um tempo até que o ser humano seja capaz de compreender a espiritualidade”, conclui o medium Mauro.
Roger Silva (4º sem.)
Mauro Vieira, que recebe o Dr. Fritz, no início da cerimônia de cura espiritual no centro do local SETEMBRO/OUTUBRO DE 2016 • PÁGINA 5
comportamento
Quando as marc
P E S Q UIS A FE ITA PE LO E D ITORIAL J MOSTRA QUE 9 3 ,7 5 % DOS ENTREVISTA
POR Kamylla Lemos
E
(6º sem.)
ra outono, quando Lucas* caminhou até o colégio de Marina, com o objetivo de pedi-la em namoro. Inspirado em uma das cenas do filme Simplesmente Amor - que eles tinham visto juntos -, no qual o personagem de Andrew Lincoln declara seu amor para a melhor amiga por meio de cartazes, Lucas apareceu na saída da aula, com anel de compromisso, flores e, claro, cartolinas. Ao contrário do filme, que contava a história de um amor não correspondido, Marina aceitou o pedido. Mas havia um problema. Ciumento, não gostava que Marina publicasse fotos, dizia que ela estava querendo chamar a atenção. Além disso, o namorado também reclamava das roupas que a menina usava. “Estávamos indo para o show acústico do NxZero e eu estava com uma calça de couro. Ele dizia que eu estava muito vulgar, que estava aparecendo a minha bunda, que eu não ia com aquela calça de jeito nenhum”, conta. Ele foi até o guarda-roupa da mãe, pegou uma legging, vestiu e ameaçou sair daquele jeito. Marina acabou trocando de roupa. O que ela não sabia, na época, era que estava em um relacionamento abusivo. Essa situação, aparentemente inofensiva mas corriqueira enfrentada pela Marina ilustra uma das conclusões da pesquisa realizada pelo Editorial J, em agosto de 2016, sobre relacionamentos abusivos. Segundo os dados, 93,75% dos entrevistados passaram por pelo menos uma situação descrita como abusiva. Além disso, o levantamento mostra que são as mulheres que mais sofrem, com 53,6%, seguidas dos homens com 45,6%. Quando questionados se a família ou amigos já haviam incentivado eles a terminarem o relacionamento tóxico, 53,3% disseram que não e 46,8% responderam que sim. Segundo a psicóloga Ligia Baruch, especialista em terapia de casal, esses relacionamentos são aqueles nos quais predominam o controle, o ciúmes, a possessividade e a imaturidade emocional em detrimento de prazer, companheirismo, confiança e crescimento mútuo. “Neste tipo de relação, as crises, brigas, xingamentos e tristezas são frequentes e nunca levam a um amadurecimento da relação”, explica. Em alguns momentos, Lucas agia de forma diferente, como no aniversário de um ano de namoro, no qual ele preparou um jantar à luz de velas. “Aconteciam essas coisas fofas. Aí eu pensava que não merecia ele”, afirma Marina. Durante o tempo em que ficaram juntos, o casal terminou por dois meses. Ela beijou um homem e, depois de reatar o namo-
ro, manteve a amizade. Um dia foi para o banho na casa do namorado e deixou o celular, com senha, na cama. Quando voltou para o quarto, Lucas estava irritado, jogou a aliança de namoro longe e disse: “ou ele ou eu”. As brigas por ciúmes eram constantes. Nessa época, já tinha crises de ansiedade porque sabia que o relacionamento ia acabar. Um dia após ela pedir o tempo, Lucas terminou o relacionamento. Depois do fim, descobriu que ele tinha instalado um programa no computador que salvava as senhas quando alguém digitava. Era assim que ele lia as conversas dela no Facebook. “Realmente achava que postando tantas fotos minhas, estava me exibindo para todo mundo, achava que não podia usar roupas curtas. E quando as pessoas diziam ‘A Marina tá louca, nao sai do pé dele’, eu achava que eu estava louca”, conclui. Marina faz parte da estatística que mostra que 36,3% das pessoas já se sentiram em alteradas/fora de si em alguma situação de conflito com o parceiro. Esses dados foram coletados pelo Editorial J por meio de formulários, aplicados no Centro Histórico, Parque Germânia e Shopping Iguatemi em Porto Alegre, nos quais eram apresentadas uma série de situações consideradas abusivas que o entrevistado deveria assinalar caso tivesse experienciado aquilo no relacionamento. A pesquisa possui um grau de confiança de 95% e uma margem de erro de 5%, considerando a população de Porto Alegre com mais de 15 anos que vivia em uma união conjugal. As opções mais marcadas foram: quis ler suas mensagens em redes sociais ou Whatsapp (55,5%), agiu como se estivesse sempre certo (52,8%), fez com que você se sentisse culpado após uma briga mesmo estando certo (51,7%), justificou o comportamento dele colocando a culpa em você (41,1%) e falou para você excluir pessoas de suas redes sociais (38,1%). Isso revela que as opções que falavam sobre a interferência de novas tecnologias eram sempre citadas pelos participantes. Para o presidente da Associação Brasileira dos Profissionais de Saúde, Educação e Terapia Sexual (Abrasex), Paulo Tessarioli, as redes sociais podem tanto ajudar como atrapalhar um relacionamento. O psicólogo e especialista em relacionamentos digitais acredita que o ciúmes se amplifica nos ambientes online, por ser mais acessível. “É mais fácil de ver o que o outro está fazendo, com quem ele está se relacionando”, fala. E foi através de uma rede social de encontro, o Tinder, que Miguel* conheceu Gustavo*. No começo, o novo parceiro dava muitos presentes para Miguel, o levava para jantar regularmente e era muito carinhoso. “Ele sempre me falava o quão bom ele era nas
Em sua casa, Miguel construiu uma espécie santuário para o ex namorado, o coisas que fazia, que era um guri que não existia mais”, relata. Além disso, o fato de Miguel não sentir ciúmes o incomodava. Um dia, Gustavo ameaçou que o trairia, porque, em sua opinião, quem ama sente ciúmes. Na época, Miguel estava com 21 anos e Gustavo, 24. Com o passar dos meses, o relacionamento começou a mudar. Na frente da mãe de Miguel – e de outras pessoas –, o namorado era incrível. Mas, ele não podia sair mais com os amigos e, se chegasse mais tarde em casa, isso já era motivo para que Gustavo brigasse com ele. Em uma das brigas, Miguel reclamou por Gustavo nunca sair com seus amigos. “Ele disse que eu não podia terminar. Que eu não ia ser nada sem ele”, relembra. O comportamento que pode parecer romântico, na verdade é abusivo. A frase “você nunca vai amar alguém como eu
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amo você” pode ser considerada uma declaração romântica, o que mostra uma naturalização das relações abusivas. Na pesquisa, 29,6% das pessoas responderam que já ouviram isso. As críticas constantes de Gustavo fizeram com que Miguel parasse de fazer as coisas de que gostava. O namorado tentava, também, controlar a vida acadêmica dele. Para Gustavo, o parceiro não podia entrar na Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul e, sim, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Além disso, o curso escolhido também deveria mudar de Biologia para algo que, segundo ele, desse dinheiro. Por isso, Miguel quase desistiu de entrar na faculdade. Um ano e meio após o início do namoro, Gustavo o traiu em uma festa. “Estávamos numa festa juntos. Desci para dançar com uma amiga. Quando subi,
cas são invisíveis
A DOS JÁ SOF R ERA M P E LO ME N O S UMA S ITUAÇÃO DE S CRITA CO MO A BUSIVA Roberta Requia (1º sem.)
“Realmente achava que postando tantas fotos minhas, estava me exibindo para todo mundo, achava que não podia usar roupas curtas.” Marina*
onde coloca os objetos que lembram o relacionamento abusivo sofrido vi que ele estava beijando um cara”, relata. O namorado colocou a culpa em Miguel, dizendo que o tinha deixado sozinho. Além disso, também existia um outra pessoa por quem Gustavo era apaixonado, e, cada vez que o homem acabava seu relacionamento, o namoro de Miguel também acabava. Isso aconteceu quatro vezes. Após ser deixado sozinho em uma rua de Porto Alegre, Miguel terminou o namoro. Em uma madrugada, depois de receber um pedido para reatar, ele disse que não queria. Eram três da manhã quando o ex-namorado apareceu na frente da casa de Miguel, com uma faca na mão, dizendo que se mataria caso não voltassem. Com as insistências de Gustavo e também da mãe de Miguel, eles acabaram voltando. Mas, assim como os 35,7% dos en-
trevistados que responderam que o parceiro disse que mudaria após uma tentativa de término e não mudou, a relação continuou abusiva. Eles terminaram de novo em junho de 2015, quando Gustavo disse que estava apaixonado por outra pessoa, que eram muito diferentes, que, enquanto ele queria adotar uma criança, Miguel não. “Perdi a motivação para tudo. Não saí de casa nas férias de julho, não comia. Senti vontade de me matar”, lembra. Miguel se sentiu culpado após o término. “O pior é depois que a gente se afasta, a gente começa a romantizar a situação”, diz. E foi o que aconteceu com a Nicole* depois de conhecer Rafaela*. “Ela nunca tinha se relacionado direito com meninas”, conta. Aos 18 anos, as duas se aproximaram na mesma hora em que se conheceram, e, a partir
daí, não passavam um dia longe da outra. Elas tinham um namoro aberto, ou seja, elas podiam se relacionar com outras pessoas. Rafaela tinha muito ciúmes, mas não queria fechar o namoro. Isso deixava Nicole muito desgastada, porque ao mesmo tempo que Rafaela saía com pessoas diferentes, Nicole não podia nem conversar com suas amigas. Nessa época, ela resolveu contar para a mãe que era lésbica. Acabou expulsa de casa. Uma de suas amigas ofereceu para ficar morando na casa dela, mas a namorada tinha muito ciúmes e não deixava que ela ficasse lá. “Nisso eu já estava desencadeando uma crise depressiva”, diz. Mas a atitude de Rafaela não é incomum. Na pesquisa feita pelo Editorial J cerca de 33,3% dos entrevistados já estiveram em um relacionamento em que o namorado tentou controlar o círculo de amizades. Sem nenhuma amiga, Nicole só falava com a namorada e o melhor amigo. Ela não conseguia sair de casa e nem ir para a aula. Foi quando ela começou a ir em um psiquiatra, que indicou remédios para o tratamento. Um dos efeitos colaterais era a perda de libido. Foi quando Rafaela começou a fazer chantagem emocional por causa da falta de sexo. “E então comecei a me forçar a fazer algumas coisas para não perdê-la”, afirma. Nicole não é a única, 22,1% das pessoas afirmam ter feito sexo sem vontade após pressão do parceiro. Relacionamentos abusivos estão presentes no nosso dia a dia de forma muito natural. A psicóloga Ligia aconselha as pessoas que acreditam estar passando por essa situação a fazer uma autorreflexão para se avaliar. E, também, a observar comentários de familiares e amigos que convivem com o casal. Caso a pessoa esteja em uma situação onde ela é o abusador ou o abusado, deve procurar ajuda e tratamento psicológico. *Nomes trocados para preservar a vítima.
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+ O Editorial J realizou a pesquisa sobre relacionamentos abusivos em agosto de 2016. Os dados coletados mostram as situações descritas como abusivas que os entrevistados passaram.
55,5%
quis ler suas mensagens em redes sociais ou Whatsapp
52,8% agiu como se estivesse sempre certo
41,1%
justificou o comportamento dele(a) colocando a culpa em você
38,1%
falou para você excluir pessoas das suas redes sociais
37,1%
disse o que você deveria ou não vestir Confira o restante dos dados coletados pelo Editorial J
amor sem limite
Mães em tempo integral
C O MO É A VI DA DAS MULH E RE S QUE ALTE RARAM SUA ROTINA PESSOA L E P RO F I SS I ONAL PARA CUIDAR DE FILH OS COM DEFICIÊNCIA P O R Eduarda Endler Lopes (5º sem.)
L
oiva trabalhava na lavoura com os pais e sonhava em entrar na faculdade. Aos 18 anos, engravidou. Lembra, com um olhar profundo e distante, que neste momento a vida dela tomou outro rumo. Quando sua filha tinha oito meses, descobriu que ela estava doente e possuía uma má formação congênita no cerebelo, chamada Síndrome de Dandy Walker. A doença rara fez com que Loiva Eggers, agora com 40 anos, mudasse todos os seus planos e começasse uma luta diária. Logo que recebeu a notícia, ficou perdida e não conseguia aceitar a situação da filha. “Eu estava totalmente desamparada”, lembra. Loiva relata que, na época, não teve acompanhamento psicológico, diferente de hoje, pois quando uma criança nasce com alguma deficiência, a mãe já sai do hospital com noções de como será a vida com uma criança deficiente. As dificuldades de cuidar de um filho especial exibem a força que elas têm e o amor que sentem por essas crianças. Hoje, a filha de Loiva, Kelly Eggers, tem 22 anos. Kelly gosta de passear e aponta para o carro pedindo para sair de casa. A mãe a entende por meio dos sons que emite, seja por risos, grunhidos ou urros. Na rua, não se sente confortável quando encostam nela, prefere ser cumprimentada de longe. Em poucos momentos dá abraços. A mãe lastima que já passaram por muitas situações constrangedoras, pois as pessoas olham com pena e comentam sem disfarçar. No início, Loiva explicava e dizia que não precisavam sentir dó da filha, mas agora percebe que não vale a pena, pois não vão entender. “Queria que entendessem que ela é feliz do jeito que ela é e que eu cuido muito bem dela”, desabafa Loiva. Ela explica que queria que percebessem que Kelly, apesar de tudo, está ali com ela todos os dias e que fica triste com situações em que os filhos somem no mundo e a mãe nunca mais tem notícias deles. São inúmeras as dificuldades enfrentadas por mães como Loiva, que transformam suas vidas para cuidar de filhos com deficiência. A mãe de Kelly lamenta que a Associação de Pais e Amigos dos Especiais (Apae) de Venâncio Aires, no interior do Rio Grande do Sul, excluía a filha. Kelly não aprendia, não mostrava resultado, então começaram a não dar atenção à filha.
Loiva relata que chegaram a recomendar é uma perda do filho idealizado. “Aquelas para ela ir até a prefeitura e pedir por mais mães que durante a gestação imaginavam professores. Quando Elisa Zart, terapeuta uma criança saudável, a cor dos olhos, ocupacional apareceu, resolveram fazer todo o imaginário e a fantasia, quando nasuma bicicleta adaptada para Kelly. Além ce uma criança com deficiência ou quando de ajudar a filha, que, devido aos medicaela fica com deficiência depois de um temmentos, tem tendência a engordar, quepo, ela tem que elaborar esse ideal e se dar riam mostrar para a associação que existe conta do filho real, que vai ser um filho que o que fazer, que é só questão de interesse. vai ter muitas demandas”, explica. A bicicleta especial é dupla. Dessa forma, Em função dessas necessidades, as Loiva pedala e automaticamente faz com mães de filhos deficientes abdicam de que a filha a ajude, assim, Kelly pratica um muitas atividades além do trabalho. A exercício. psicóloga vê a chegada de uma criança na Após muito tentar, a família começou família como um momento de crise, pois, a receber auxilio do governo. Hoje, Kelly além de cônjuges, o casal terá que exercer ganha seus medicamentos e fraldas por as funções de pais. Esse filho, muitas vezes, meio da ação da Defensoria Pública. “Se além de precisar dos familiares, vai depentu não vais atrás, ninguém vai aparecer na der de uma série de outros compromissos, tua porta e dizer que tu tens direito”, conta como tratamento, médico, fisioterapia, reLoiva. A mãe ressalta abilitação. “É um mundo que não possui nenhum médico que a maioria luxo, mas que tem saúde das pessoas não está tão para cuidar dos filhos, a par, ela vai ter que se o que é o essencial para inteirar, se apropriar ela. O irmão de Kelly, disso. A família, nesse Matheus, quatro anos, momento, está em um já ajuda a mãe, cuidando momento de crise, que da irmã e auxiliando no as relações conjugais às que for possível. A mãe vezes não dão conta”, brinca: “A Kelly deixa o observa. mano abraçar ela, mas As dificuldades ennão com muita força”. frentadas por essas pesEm alguns momensoas fazem com que elas tos, Loiva não se sente se adequem e tenham bem, fica mais sentidomínio da situação. MiMichelle da Rosa mental e se pergunta o chelle da Rosa, 35 anos, porquê de tudo isso ter observa o filho e lembra acontecido com ela. “Por dos momentos que já que minha filha tinha que ser essa uma em viveram. Antes de tê-lo, ela trabalhava em cada 70 mil?”, pergunta-se, questionando uma metalúrgica e tinha uma rotina corria doença rara. Mas, apesar disso, sabe que da. Quando Bruno Ricardo Fritzien nasceu, é normal sentir essa frustração e que são a mãe teve que mudar seus hábitos. Hoje, fases. No fim, Loiva percebe que ninguém Bruno tem oito anos. Michelle fica em casa poderia ajudá-la mais do que ela mesma. com o filho, leva-o para a fisioterapia e para Lamenta que, às vezes, as pessoas tentam a equoterapia, tem consultas médicas em apoiar, mas não sabem quais palavras usar Porto Alegre, entre outras coisas. Desde o e acabam machucando. Emocionada, a nascimento, precisou se adaptar. mãe da Kelly revela que nunca imaginou Antes, Michelle tinha dificuldade em que teria a força que teve e tem até hoje: aceitar a doença do menino e sentia falta de “Se alguém viesse até mim e dissesse que trabalhar, principalmente quando passava eu ia passar por isso, eu ia dizer que eu não em frente à empresa. Ela explica que agora ia conseguir”. possui mais controle sobre isso. Casada, A professora de psicologia da Pontifícia Michelle e o marido André não costumaUniversidade Católica do Rio Grande do vam sair, devido ao número de contas a Sul (PUCRS) e terapeuta familiar Maria pagar. Quando o filho nasceu, precisaram Isabel Wendling ressalta que quando uma abdicar de coisas que pouco desfrutavam. mãe tem um filho com deficiência, ela “A gente evita sair em lugares que tem baruprecisa trabalhar dentro dela um luto, que lho. Às vezes, tem uma festa e a gente acaba
“Pena eu tenho das crianças que estão na rua passando fome, que não têm o que vestir, disso tenho pena, mas não tenho pena de uma criança deficiente.”
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não indo, porque como ele não gosta, fomos abrindo mão de várias coisas por causa dele”, explica. Com brilho nos olhos, a mãe do Bruno lembra que, quando engravidou, imaginou que a vida continuaria normal, que teria apenas uma pessoa a mais na família, mas não foi isso que aconteceu. “Quando tu tens uma criança especial, tu tens que abandonar tudo”, lamenta a mãe, com a voz baixa. Aos sete meses de gravidez, Michelle teve eclampsia, uma doença caracterizada por convulsões associadas à hipertensão arterial, o que causou a paralisia cerebral de Bruno. Quando o filho estava na Unidade de Terapia Intensiva, descobriram que o bebê tinha um tumor no coração. Após investigar mais, os médicos do Hospital de Clínicas de Porto Alegre constataram, ainda, um no cérebro, no rim, no fundo do olho e algumas manchas na pele. Com isso, veio o diagnóstico de que Bruno possuía também esclerose tuberosa. A mãe de Bruno conta que se incomoda com o fato de muitas pessoas sentirem pena. “Pena eu tenho das crianças que estão na rua passando fome, que não têm o que vestir, disso tenho pena, mas não tenho pena de uma criança deficiente, pois ela tem um pai e uma mãe que vão cuidar, que vão correr atrás”, afirma, sorridente, ao olhar para o filho. Michelle, que tem as redes sociais ativas, explica que gosta de postar fotos do Bruno porque sabe que existem mães que tentam esconder os filhos dentro de casa. Ela ressalta que toda pessoa é diferente, por mais normal que seja: “Não adianta eu esconder que ele é diferente, que ele é uma criança especial. Tenho que mostrar pra poder incluir ele, porque a gente tem uma dificuldade de inclusão muito grande”. Esses filhos carecem de outros tipos de preocupações e atenções. A diretora da Apae da Escola Especial Nazareth, localizada na zona sul de Porto Alegre, Jacira Meneses, explica quais são os cuidados gerais que uma criança deficiente necessita. Quando um bebê deficiente nasce, a família deve procurar um local especializado e iniciar a estimulação precoce, que é um tratamento que exercita as funções e a capacidade de uma pessoa deficiente mental. Além disso, são necessários outros cuidados, como alimentação e digestão e doenças cardiovasculares. Jacira afirma que a Apae apoia a família nas decisões tomadas, pois cabe a eles saber o que é melhor para o desenvolvi-
Eduarda Endler Lopes (5º sem.)
Michelle da Rosa, mãe do Bruno, adaptou a rotina devido à demanda de cuidados do filho que possui paralisia cerebral e esclerose tuberosa mento do filho. Ela explica que hoje as mães estão mais adaptadas às rotinas necessárias e interessadas no bem estar dos filhos e na qualidade de vida, conseguindo aceitar o auxílio que surge de fora. Isso possibilita que elas retomem às suas atividades. “Percebe-se que após alguns anos, as mães tentam se recolocar no mercado de trabalho e conseguem conciliar casa, filhos e trabalho”, explica. As necessidades fazem com que essas mulheres se tornem extremamente cautelosas e dedicadas aos filhos. A mãe da Daniela sempre fez de tudo por ela. Quando a filha começou a caminhar, Vânia Bublitz, 54 anos, percebeu que a menina tinha dificuldades em levantar, precisando se apoiar nas mãos. Aos dois anos e depois de muitas consultas, descobriram que Dani possuía amiotrofia espinhal. A doença degenerativa de origem genética permitiu que Daniela Bublitz caminhasse até seus 12 anos. Na época, os médicos diziam que geralmente as crianças andavam até os oito anos e não passavam dos 15, devido à saúde frágil, que possibilita infecções, pneumonia e outros problemas.
Hoje, Dani tem 21 anos e exibe uma saúde inesperada. Quando diagnosticada, a mãe falou ao médico que com sua filha a situação seria diferente e que ela conseguiria. Anos fazendo fisioterapia e natação, Dani conseguiu ir além. Devido à demanda da filha, a mãe teve que parar de trabalhar na farmácia da família. Sempre presente, Vânia está ligada ao telefone para quando a filha precisar. Daniela explica que, quando vai para festas com sua scooter, a mãe fica atenta ao telefone. No momento que Dani precisa ir ao banheiro, ela se desloca até o local da festa para levá-la. Depois, volta para casa. “Nós somos uma pessoa, eu acho”, brinca Dani. Outro fator que ajudou a preservar a saúde de Daniela foi a música. Devido às atividades praticadas para cantar, ela nunca teve problemas respiratórios, o que é raro na situação dela e surpreende os médicos. Além do exercício, a música a ajudou a ser mais social, pois era muito tímida no início e assim conseguiu fazer mais amigos. Hoje, a música é seu sonho de vida. Olhando para a scooter, ela sorri e explica: “Isso daqui não me impede em nada e eu posso ser reco-
nhecida como uma cantora e não porque tu estás numa cadeira, não porque as pessoas têm pena de ti”. O pai Derci, também presente, divide as tarefas com a esposa. Daniela os define como os músculos dela, como a força. Vânia, que considera que a vida continuou normal, explica que só precisa dedicar mais do seu tempo à Daniela. Não se incomoda em deixar de fazer atividades por causa dela, pois vê isso como algo natural. “Se Deus deu ela pra mim assim, é porque ele sabia que a gente ia cuidar bem dela”, reconforta-se Vânia. No meio de todos os cuidados, a mãe teve câncer de mama. Mesmo assim, sempre cumpria todas as tarefas com a filha. Daniela conta que não gosta de mostrar o lado triste, que deseja que quem a vê por fora a enxergue feliz, a Daniela, não a menina que anda na scooter. Deseja ser vista como a cantora Daniela, não como uma cadeirante que canta. “Se eu for contar o que passei, vão pensar que eu sou uma coitada, mas na verdade eu sou feliz”, sorri ao olhar para a mãe. Essas mães, ainda que fortes e resilien-
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tes, precisam procurar amparo para não se entregar. Maria Isabel, terapeuta familiar, aconselha que a pessoa encarregada de cuidar de uma criança com necessidades especias sempre busque ajuda. Seja psicológica, seja de uma equipe que auxilie e tire de cima dela uma sobrecarga de cuidados. Maria Isabel ressalta que a mãe precisa entender que quanto melhor ela estiver, mais vai poder cuidar do filho e lembra de uma metáfora que faz em aula: quando os passageiros estão no avião, são estabelecidas normas. Sempre há alguém que fale “quando houver despressurização, máscaras de oxigênio caem”. Eles orientam que primeiro os passageiros peguem as máscaras e coloquem em si mesmos, para depois colocar na criança que está ao lado. “É uma comparação que sempre faço. Não adianta nada essa mãe ficar sem respirar, sem ter fôlego, auxiliando o filho a respirar e ter vida, e daqui a pouco ela desmaiar ali do lado. Daqui a pouco ela cai, daqui a pouco ela está em um nível de stress que ela não vai mais dar conta”, finaliza. Mães de filhos deficientes precisam colocar em si suas próprias máscaras de sobrevivência antes de salvar seus filhos.
sexo
Prazer, ninfomania SOFRIMENTOS E DRAMAS QUE SE ESCONDEM SOB O GLAMOUR DA HIPERSEXUALIDADE P O R Angelo Werner (4º sem.)
J
oe é encontrada em um beco, cheia de hematomas, por um homem mais velho, chamado Seligman. Sob seus cuidados, ela revela que é uma ninfomaníaca e afirma: “Sou uma pessoa horrível”. Para justificar o sentimento de conflito, ela passa, então, a relatar capítulos de sua vida, guiados pelo desejo compulsivo por sexo. Este é o começo de Ninfomaníaca, filme em duas partes de 2013 e 2014, mais um na lista de obras provocadoras do cineasta dinamarquês Lars von Trier. O sucesso da produção ajudou a popularizar e dar destaque a um tema ainda envolto em confusões. Baseados no caso retratado da garota viciada em sexo casual e incontrolável, o termo ninfomaníaco, no masculino, passou a designar, genericamente, qualquer pessoa com apetite e desejos sexuais exacerbados. Lina Wainberg, doutora em Psicologia com mestrado em Sexologia, enfatiza que a palavra não é corretamente aplicada. Ninfomania é utilizada para designar as mulheres que possuem comportamento sexual compulsivo, sendo que, em homens, a forma equivalente é satiríase. Os nomes são derivados de ninfa e sátiro, figuras da mitologia greco-romana comumente relacionadas à sexualidade. Também chamada de apetite sexual compulsivo, transtorno do desejo sexual hiperativo, compulsão sexual, hipersexualidade ou apetite sexual hiperativo, a condição afeta de 3 a 6% da população mundial. Lina constata que a maioria dos afetados são homens e atribui isto à influência cultural. Ainda conforme ela, o nível de comorbidade, ou presença de outra doença psiquiátrica concomitante, é alto, o que evidencia a sua característica compulsiva. “A dependência química é a principal delas, assim como a compulsão alimentar, trabalho, gastos e jogos compulsivos”, aponta. A doença é classificada no CID-10 (Classificação Internacional de Doenças) como uma disfunção sexual não causada por transtorno ou doença orgânica, sendo relacionada ao comportamento, como explica a psicóloga, terapeuta de família e sexóloga Denise Braz. Para ela, sua origem pode se dar por relações mal resolvidas no passado referentes à sexualidade, como uma possível iniciação prematura da vida sexual, mas ressalta que esta não é uma questão fechada. Lina Wainberg afirma que as causas são multifatoriais e aponta a existência de fatores hereditários para as compulsões, não apenas no âmbito sexual. “Além dis-
so, uma criação onde haja humilhações leva ao desenvolvimento de adultos com autoestima baixa, infantilizados e com a dissociação entre sexo e amor”, conta. Ela aponta também que o tratamento mais adequado consiste em intervenção medicamentosa, terapia cognitivo-comportamental (sessões de conversa que buscam soluções personalizadas para cada caso específico) e, em casos específicos, terapia de casal. Ambas as sexólogas deixam claro que as delimitações da condição são, ainda, muito sutis. Diversos pesquisadores tentam conceituar o termo, o que ele engloba e o que não se aplica. Conforme o diretor do Programa de Sexualidade Humana da Universidade de Minnesota, Eli Coleman, em sua obra Is your patient suffering from compulsive sexual behavior?, a hipersexualidade apresenta subtipos. São eles: sexo compulsivo com múltiplos parceiros; com um único parceiro; fixação compulsiva na obtenção de um parceiro inatingível; masturbação compulsiva, e compulsão por múltiplos relacionamentos afetivos. Já Martin Kafka, psiquiatra norte-americano especializado na área, acrescenta em um de seus artigos o vício por pornografia e sexo virtual na espectro da doença. Denise completa a caracterização feita pelos dois especialistas: “Como toda e qualquer compulsão, a hipersexualidade atrapalha muito a vida da pessoa em todos os sentidos”. A vida amorosa é afetada, conforme ela, pela intranquilidade que a condição pode causar em possíveis parceiros, que se sentem ameaçados pela possível busca de satisfação em outros lugares. A vida social é comprometida quando a busca por novas oportunidades de sexo acabam gerando isolamento dos círculos de amizades já estabelecidos. Esta busca pode culminar, também, em falta de foco no ambiente profissional. Lina explica que existem interrupções nas atividades mais de uma vez por dia para buscar o alívio, geralmente acompanhadas de comportamento inadequado e com exagero nas suas expressões sexuais, gerando desconfiança e desconforto perante os conhecidos. “O pensamento não consegue Aline* retomar nenhuma outra atividade até que haja o
alívio. É quase como se fosse um transe mental”, compara ela. Aline*, 22 anos, conhece muito bem os efeitos da ninfomania na vida pessoal. Durante um acompanhamento psicológico por causa de déficit de atenção e hiperatividade, foi diagnosticada, também, com a condição. “Ela disse que era normal, que geralmente quem tem déficit de atenção desenvolve alguma outra coisinha. A minha foi a ninfomania”, relata. Ela caracteriza a doença como um vício. Sendo assim, o distúrbio colocava suas necessidades acima de qualquer outra coisa. Até mesmo acima do bom senso, o que fazia com que se metesse em roubadas, ou fazer “coisas retardadas”, como ela mesma diz. Chegou ao ponto de sair de casa, no meio da madrugada, para ter encontros sexuais com desconhecidos. “Às vezes, me atrasava no trabalho porque estava num encontro, no motel, essas coisas”, comenta, sobre o prejuízo que a ninfomania causava em sua carreira de educadora. A iniciativa de procurar ajuda veio dela própria, mas apenas depois de perceber os estragos que a condição havia causado. Deparou com a falta de credibilidade que estava recebendo no ambiente de trabalho, após perder prazos e se tornar, no geral, uma má funcionária. Não foi um caminho fácil, e os avanços dependiam majoritariamente da força de vontade, da autoconsciência e da necessidade de melhorar. Soluções criativas foram necessárias para lidar e controlar o problema: “Agora estou bem. Trabalho com sexo, então consigo controlar as coisas, controlar as vidas”. A hipersexualidade não pode ser definida apenas a partir da frequência sexual desejada ou necessitada pela pessoa, pois isto depende de diversos fatores, como a faixa etária, a nacionalidade e a cultura nos quais se está inserido. Dessa forma, o que realmente caracteriza o transtorno são o descontrole e o sofrimento ligados ao desejo sexual. “Se a frequência sexual é por opção, se não é necessário interromper as atividades diárias para aliviar a tensão sexual, se não há prejuízo na vida social, afetiva e pro-
“As pessoas têm essa noção da ninfomania, elas acham que é uma coisa legal, que é uma coisa bacana. E, não, não é legal, não é bacana.”
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fissional e, principalmente, se não houver a sensação de sofrimento, não temos um diagnóstico”, caracteriza Lina. Ainda assim, inspiradas pelas cenas de sexo ousadas dos filmes de Lars von Trier, milhares de pessoas se reúnem em grupos virtuais, geralmente batizados com o errôneo termo no masculino. Neles, homens e mulheres compartilham vídeos e imagens eróticas, postam fotos sensuais, ou mesmo nuas, de si próprios, junto de endereços de e-mail e números de telefone, para possíveis contatos e encontros sexuais. A busca pela palavra-chave ninfomania no Facebook encontra 102 resultados, em português e espanhol. São páginas marcadas com a tag de Interesse, de bandas, festas e até empresas de informática com este nome, além de diversas comunidades e grupos. O maior destes grupos se chama “NINFOMANÍACOS — RJ” e conta com mais de 17 mil membros. Sua imagem de capa é retirada diretamente do filme que o inspirou e, com um fluxo de dezenas de mensagem diárias, os usuários marcam transas por todo o Estado do Rio de Janeiro, geralmente com a presença da palavra “diversão”. Em outro grupo, de língua espanhola, uma publicação se destaca. É de uma usuária que reclama do conteúdo encontrado, diferente do que esperava. “A ninfomania é não querer parar de fazer sexo não importa o lugar ou a hora. Não é o que vejo neste grupo”, lamenta. As respostas, todas masculinas, dão o tom dos motivos da reclamação: “Quer que eu te mostre? Me passa teu número”. Aline evita falar sobre o assunto, especialmente porque, quando se abre, não é levada a sério. Conforme ela, as pessoas acham que é brincadeira, ou que não é um problema, e sim algo positivo. Denise reforça a ideia, explicando que, às vezes, a condição pode ser confundida com safadeza, ou diversos outros termos pejorativos, e isto só aumenta o mal estar consigo próprio. “É comum ouvir de compulsivos sexuais que sentem um vazio interior incrível e que buscam no sexo uma tentativa de tamponar esse vazio, essa dor”, exemplifica. Quanto às reações dos outros e a existência desses grupos que usam o termo de forma imprópria, Aline desmistifica: “As pessoas têm essa noção da ninfomania, elas acham que é uma coisa legal, que é uma coisa bacana. E, não, não é legal, não é bacana”. *Nome fictício
direito
Sem identidade ELIANA RUBASHKYN, TRANSEXUAL E EX-REFUGIADA, FOI OBRIGADA A VIVER POR QUASE DOIS ANOS NOS GUETOS DE HONG KONG POR UM ERRO BUROCRÁTICO Foto: divulgação POR Giovana Fleck (6º sem.)
É
verão em Bogotá, Colômbia. Eliana tem sete anos. Está em cima do sofá, chorando. Sua mãe atravessa a sala, segurando as roupas compradas especialmente para a missa de Páscoa. “Não quero usar a gravata, mãe!”, grita a menina. Eliana vestiu a gravata para todas as missas de Páscoa, jantares de Natal, casamentos, festividades e entrevistas de emprego ao longo de 18 anos. Diagnosticada como hermafrodita quando atingiu a maioridade, a necessidade de encontrar a identidade e enfrentar o conservadorismo da família judaico-ucraniana fez com que vivesse uma história internacional de abuso e violência como refugiada transgênero. Tudo aconteceu depois de ela se formar em Farmácia na Universidade Nacional da Colômbia, quando descobriu uma bolsa de estudos para mestrado em Química em Taiwan. O estado insular é conhecido pelo número de cirurgias de mudança de sexo e pelo tamanho da comunidade transexual. A chegada a Taiwan e o início do tratamento hormonal foram documentados pelo blog de sua autoria Soy Eliana – redigido em ucraniano, espanhol, inglês e mandarim. Os primeiros posts, tímidos, narravam a vida no campus e compartilhavam desde receitas até fotos que ilustravam suas mudanças corporais. Após o primeiro semestre, a Universidade Médica de Taipei pediu a renovação dos documentos de Eliana. Em seu passaporte, ainda constava seu nome de batismo e sua foto antes do tratamento. Ela foi aconselhada a procurar pelo consulado colombiano mais próximo e atualizar as informações o quanto antes. Ela deveria atravessar 815,14 quilômetros de Taipei até Hong Kong. A viagem deveria durar dois dias. Eliana partiu com pouco dinheiro e nenhuma reserva de hospedagem. O plano era passar a noite no aeroporto. Mas ficou quase cinco noites. Detida na imigração por um oficial que riu da sua situação, ela foi encaminhada para a delegacia do Aeroporto Internacional de Hong Kong. Ao ver a foto de um homem no passaporte de uma mulher, os seguranças acreditaram que estavam diante de um documento falso. “Quando entendi a complexidade da situação, percebi que eles me tratariam a partir dali como uma criminosa”. E foi exatamente o que aconteceu. O primeiro passo foi examinar o conteúdo das bagagens. Ela conta que, durante a inspeção, eles zombavam dos seus pertences e não respondiam a nenhuma de suas perguntas. Um dos guardas se virou para ela e disse: “Nós precisamos de você pelada”. Não adiantou clamar pela pre-
“Minha mãe jamais aceitaria um filho gay, uma filha transexual, então, era inimaginável. Ela preferia ter voltado atrás e não ter engravidado.” Eliana Rubashkyn
Nascida na Colômbia, Eliana trocou de país para construir carreira sença de um médico, de uma mulher, chorar um campo na periferia de Hong Kong. ou gritar. Eles começaram a tocar nos seus Campos de refugiados na Ásia são coseios. Perguntavam como um homem podemuns, mas Eliana não foi aceita. Tendo em ria ter seios de verdade. Quando eles a desvista o conservadorismo desses países orienpiram completamente, o estupro começou. tais, um transexual, cujo tratamento tinha “Não há muito o que dizer sobre isso, perdi sido interrompido e se tornava cada vez mais toda minha dignidade naquele momento”. O andrógino, não foi bem visto. A ONG, então, medo de ser deportada para a Colômbia fez optou por transferi-la para o único lugar com que ela tivesse um ataque de ansiedade. disponível: um contêiner extra de uma carga Quando o oficial se distraiu, ela conseguiu encomendada pela organização. Ela viveu lá ligar o celular, pedindo ajuda pelo Facebook. por quase um ano. “É muito complicado ser O post chamou a atenção de um amigo que uma refugiada transgênera. Nós somos muito contatou a Organização de Direitos Humanos mais vulneráveis. Não é só uma questão de Hong Kong Rainbow. Eles falaram imediataviolência e burocracia.” mente com o aeroporto e conseguiram canceO governo colombiano não a enxergou lar o processo de deportação de Eliana. omo cidadã, enviou um simples “não podeEles a deixaram ir depois de mais quatro mos ajudar”. Iniciou-se uma batalha pelo dias, sem um carimbo, sem documentos e reconhecimento como mulher e pela obcom uma carta que dizia tenção de asilo em outro que ela estava em situação país. Ela se mantinha com “semi-legal”, ou seja, a um auxílio simbólico da qualquer momento poONG e com a venda de deria ser deportada. Ela doces. Além disso, lançou Confira a reportagem passou a noite seguinte em uma campanha no modelo completa no site um hotel, em contato com crowdfunding, com a qual a ONG que a tirou do aeroanônimos podem doar porto. A única saída para dinheiro pela internet em Eliana era se registrar em troca de recompensas, uma lista da Organização para conseguir mais ajudas Nações Unidas (ONU) da. Através da campanha que categorizava pessoas Aid for Eliana, conseguiu que procuram por asilo. retomar seu tratamento Ganhou status de refugiahormonal – um colaboda e foi transferida para rador norte-americano
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chegou a enviar oito caixas de tabletes de estrogênio. Depois de meses, ela finalmente foi transferida para uma habitação adequada. Eliana se instalou em um apartamento de um cômodo com uma cozinha minúscula e um banheiro. Ao lado da cama, livros e caixas se acumulavam formando pilhas, quase caindo por cima da escrivaninha com o computador. O espaço para se locomover era pequeno. “Não era muito. Mas voltei a me sentir digna”, lembra. Ela iniciou um processo de midiatização de sua história. “Comecei a mandar e-mails, comentários, mensagens por redes sociais; tudo para chamar a atenção da mídia internacional”. Até que aconteceu. Após diversas entrevistas para veículos como BBC, El País e The New Zeland Herld, Eliana conseguiu espaço. No dia 16 de dezembro de 2013, a ONU aprovou uma resolução tratando Eliana como mulher sob o sistema de refugiados da ACNUR. Ela se tornou a primeira pessoa transgênera internacionalmente identificada como mulher sem ter completado a cirurgia de transformação sexual. Em maio de 2014, a Nova Zelândia aceitou Eliana como refugiada e garantiu asilo, estendendo reconhecimento universal ao seu gênero. “Honestamente, foi um soco na cara de todos que quase me fizeram desistir”. De acordo com a ACNUR, aproximadamente 170 mil pessoas, neste momento, têm seus direitos básicos feridos por não se identificarem com seu gênero de nascença. Destes, apenas 7 mil encontram meios de sair de seus países de origem. A partir disso, cerca de 700 pessoas conseguem acessar o sistema de refugiados da ONU e não mais do que 400 são os reconhecidos oficialmente como refugiados. Menos de 30 conseguem asilo político por ano. “É um absurdo, minha luta é para pararmos com isso de achar que transgêneros têm menos direitos que os outros”.
Carolina Vicari (2º sem.)
Dias de voto
O Editorial J esteve nas ruas durante os dias 2 e 30 de outubro para cobrir o primeiro e o segundo turno das eleições municipais deste ano. No primeiro turno, nossa equipe acompanhou o voto dos quatro candidatos que lideravam as pesquisas (Melo, Marchezan, Pont e Genro), assim como o da ex-presidenta Dilma Rousseff. No segundo, os dois concorrentes, Marchezan e Melo, também foram acompanhados de perto. Em ambos os dias, um time fez entrevistas
exclusivas com os candidatos que passavam pelo local de votação, e, no fim da tarde, estivemos presente nos comitês para ver as reações aos resultados da votação. A cobertura online, somada, durou mais de 24 horas, com quatro inserções ao vivo contando com convidados, que chegaram a 11 mil pessoas. A nossa hashtag, #VotoJ, usada para agrupar o conteúdo produzido, entrou nos trending topics do Twitter de Porto Alegre, chegando ao primeiro lugar.
Alicia Porto (4º sem.)
SETEMBRO/OUTUBRO DE 2016 • PÁGINA 12
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Pedro Braga (5º sem.)