CADERNO ESPECIAL | COPA DO MUNDO 2014
JUNHO/JULHO 2014 โ ข FAMECOS/PUCRS WWW.PUCRS.BR/FAMECOS/EDITORIAL J
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Caroline Ferraz (6ยบ sem.)
VIDAS QUE MUDAM COM A COPA DO MUNDO
especial P O R Bibiana Dihl (7º sem.)
V
estindo uma camiseta cinza com a inscrição Mek Áurio e enrolado em uma bandeira do Brasil, Áurio Giovanella entra na sala de casa, onde a TV está ligada. “Estou pronto”, ele avisa – e logo estende a bandeira sobre o sofá da sala. Na cozinha, Suzana, Nadyellen e Gustavo concluem os preparativos para a festa. O cheiro de pipoca salgada se mistura ao de pinhão. Apesar de a resposta ser previsível, a pergunta precisa ser feita: “O senhor vai torcer para a Seleção Brasileira?”. Áurio, 47 anos, é proprietário do Mek Áurio. O bar, fundado em 10 de agosto de 1985 quase ao lado do Beira-Rio, foi demolido na manhã de 6 de maio. “Não tive coragem de ficar lá enquanto a máquina demolia”, ele revela, enquanto Fred erra mais um passe. “Fui lá só depois para ver como tinha ficado”. O terreno onde se localizava o ponto de encontro, cuja renda correspondia a 80% do salário do dono, pertencia à prefeitura de Porto Alegre, que o alugava por R$ 1.059,00. O contrato tinha validade até 2017, com possibilidade de renovação para mais cinco anos. O bar foi pintado em janeiro deste ano nas cores da Copa do Mundo, mas, quatro meses depois, acabou demolido. No lugar, precisavam ser erguidas as estruturas temporárias do estádio. “Me
tiraram dali para favorecer outro comércio, que é o comércio da Fifa”, lamenta Áurio. Neste momento, a conversa é interrompida com um “Uuuhhh”, feito em coro pelas quatro pessoas presentes na sala. Segundos antes, o narrador dizia: “Neymar caprichou na cobrança”. “Que caprichou, o quê?”, grita Nadyellen, 18 anos, filha de Áurio, depois que a bola passa longe do goleiro Pletikosa, da Croácia. O pai concorda: “É, a Seleção não está muito bem...”. Um reforço na pergunta: “O senhor vai torcer para a Seleção Brasileira?”. A resposta evidente está na bandeira estendida e nas camisetas do Brasil vestidas pelas outras três pessoas, mesmo que a Copa tenha tirado o Mek Áurio do local onde estava há 29 anos. “Vou, vou torcer, sim”, ele afirma. “Todo mundo gosta de futebol. Aqui a gente gosta da Seleção”, explica. “O problema é que foi uma sacanagem dos nossos políticos”. Havia a programação de um churrasco na casa de Áurio para assistir ao jogo entre Brasil e Croácia, mas ela foi cancelada depois dos acontecimentos. “Fiquei sentido. Não estava no clima”, conta. Entre um pinhão e uma mão cheia de pipoca, Áurio conta que o vice-prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, deu declarações em que afirma que o dono do Mek Áurio sabia que teria que sair desde 2009. “É mentira”, rebate. “Nunca fui comunicado”. O aviso só chegou em 10 de abril,
TORCENDO PELA SELEÇÃO
Áurio Giovanella, o dono do Mek Áurio, assistiu ao jogo de estreia com a família
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quando um oficial de Justiça esteve no bar e deu a notícia. A comoção foi grande. Vários clientes, alguns há mais de 20 anos, foram até o bar com o discurso de comer o último lanche, porque não sabiam quando poderiam comer outro novamente. Aliado à comoção da clientela, outro motivo que dá esperanças ao dono do bar é a garantia de que um novo Mek Áurio será construído após a Copa. “Eles não me querem lá, mas foram obrigados, porque meu contrato ainda era válido quando me tiraram”, conta. O novo bar, a ser construído em terreno cedido pela prefeitura ao Internacional, deve ficar pronto no final de agosto. Mas, assim como a pipoca que repousa no pote sobre a mesinha de centro – ninguém come, estão todos vidrados no jogo, que já está 2 a 1 –, o valor do novo terreno será salgado. “Vou pagar 600% a mais”, ele lamenta. “Vai ser cerca de R$ 6 mil”. Aos 46 minutos do segundo tempo, a bandeira da Seleção já estava amassada sobre o sofá, e a pipoca e o pinhão, frios. Mas a família Giovanella e os convidados ainda comemoraram o último gol marcado por Oscar, fechando o placar Na despedida, um agradecimento ao repórter: “Gosto que contem a minha história. Não te preocupa, que aqui estamos torcendo pela Seleção”.
Luiza Antonioni (4º sem.)
Caroline Ferraz (6º sem.)
SÓ É BOA PRO NEYMAR P O R Bruna Zanatta (3º sem.)
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a sala da residência de Semara Bugança, uma televisão de 42 polegadas exibe o primeiro jogo da Copa do Mundo 2014. O aparelho ainda está com os adesivos de proteção, como veio da loja. “Não comprei essa TV para a Copa do Mundo. Essa Copa só é boa pro Neymar”, avisa. Semara mora na Vila Tronco, na região da cidade conhecida como Grande Cruzeiro, zona sul de Porto Alegre, desde que nasceu. Atualmente, está na casa da mãe, na Avenida Moab Caldas, a popular “Avenida Tronco”, que deverá ser duplicada, inicialmente dentro dos projetos de mobilidade urbana vinculados à Copa do Mundo. Para que o projeto se concretize, ela, sua família, seus vizinhos e mais 1.525 famílias terão de deixar suas moradias. Pela casa, ela pode receber os R$ 52.340,00 do bônus-moradia oferecido pelo Departamento Municipal de Habitação (Dehmab). “Vamos assistir à Copa no meio dos escombros”, lamenta ela, que não realiza reformas em sua casa há três anos, aconselhada pelos agentes do órgão. “Eles falaram pra eu não gastar mais nessa casa”, conta. Quando a casa começou a apresentar problemas, ela se mudou para a resi-
dência da mãe, no mesmo terreno. Seus pais são uns dos que já conseguiram o benefício, e hoje estão instalados na nova moradia, também na vila. Na casa onde morava, continuam todos os seus móveis. Quando ficou sabendo que poderia ganhar uma casa nova, Semara comprou móveis novos. “Comprei um jogo de sofá novo e uma cama box. Estão lá na casa, atirados. Pobre não pode ter conforto”, lastima. Um amigo da família entra na sala e diz a Semara – que perdeu o primeiro tempo porque estava trabalhando – que a presidenta Dilma Rousseff foi vaiada. Ela se surpreende: “Sério?”. O amigo responde: “E tu achas pouco? Tu vais levar teu filho no Beira-Rio quando ele precisar de hospital?”. Neymar cobra o pênalti e vira o jogo. Gol! Todos permanecem sentados. O Fuleco, mascote da Copa do Mundo do Brasil, está estampado do lado de fora da casa, na parede. Na vizinhança, os sinais das desapropriações tomam conta da paisagem e misturam-se a bandeiras do Brasil e a declarações de incentivo à Seleção Brasileira: “Vai, Brasil!” Os responsáveis pela ação são os 60 alunos do Instituto de Integração Social da Vila Tronco, que, há dois anos, recebe jovens de 14 a 17 anos para atividades recreativas no período em que não estão na escola. Marizia da Silva Canez mora em frente
ao Instituto, onde seus filhos também passam as tardes. Por isso, Marizia abriu a casa para que as crianças a decorassem. As janelas, o teto, o chão e as unhas (Marizia é manicure) – tudo está nas cores do Brasil. Ela fez um chimarrão para torcer. A casa ainda vai passar pela avaliação e ela acredita que, apesar de tudo, a Copa pode melhorar sua vida. Logo, a casa mais decorada da Vila Tronco será desapropriada, e as janelas verdes e amarelas estarão entre os escombros. Na sede do Instituto, que não será atingida pelas despropriações, um telão exibiu o jogo do Brasil e Croácia, a aguardada estreia no Mundial. As crianças celebraram o gol contra de Marcelo, zagueiro da seleção brasileira. Janaina Gonçalves é auxiliar e pinta na pele das crianças os símbolos da CBF e da Copa do Mundo. Ela pergunta por que estão torcendo para a Croácia. “Porque é melhor que o Brasil”, responde um dos meninos. O filho de Semara, João, participa do projeto e tem talento para o desenho – o que explica o Fuleco na parede. A mãe não se incomoda e até pensa em colocar o menino em um curso de desenho. Mas diz que “não está nem aí pra Copa”. Oscar marca e, já em um bar próximo, Semara comemora, junto de sua turma: “Esse guri mereceu o dele!”.
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Moradora da Vila Tronco, Semara Bugança deixou sua casa em função das obras da Copa
Yanlin Costa (2º sem.)
MINHA VIDA É AQUI
Geraldo Fraga viveu por 15 anos na área ao lado do Beira-Rio e foi despejado em fevereiro P O R Thamíris Mondin (5º sem.)
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a quinta-feira, 12 de junho, o Brasil parou às 17h para assistir à abertura da Copa do Mundo. O jogo inaugural foi em São Paulo, mas em Porto Alegre as ruas ficaram irreconhecíveis para um dia útil no meio da semana. Na Zona Sul, nas redondezas do estádio Beira-Rio, palco dos jogos do Mundial na capital gaúcha, a batucada do samba que vinha de um pavilhão de festas ficava ainda mais alta pelo contraste do vazio na avenida. Do outro lado, em uma casa de madeira muito simples, erguida sobre um terreno desnivelado, o mecânico Geraldo Fraga, 48 anos, tomava café e fumava em silêncio, sentado na soleira da porta aberta. Geraldo costuma tragar seus cigarros olhando para o outro lado da avenida, onde vivia até fevereiro deste ano, quando foi despejado. Ele faz parte do grupo de moradores que ocupava a área ao lado do estádio do Internacional. Estava ali havia 15 anos, quando se mudou para um espaço onde funcionava uma floricultura. Antes disso, já morava na zona sul de Porto Alegre. Desde que chegou de Santo Antônio da Patrulha, recolhido aos 10 anos como menor abandonado, permaneceu na região. Quando jovem, transitou entre os institutos de menores vinculados à antiga Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (Febem), onde aprendeu o ofício de mecânico, por meio do qual se sustenta
até hoje e paga suas contas em dia, como gosta de destacar. “Sempre vivi por aqui. Minha vida é aqui, meus amigos, meus clientes. Se perguntar para qualquer um pelo Geraldão, todo mundo me conhece”, explica. Depois da ação de despejo, ele foi morar na casa onde recebeu a equipe do Editorial J, que pertence ao vizinho, para o qual prestava serviços como mecânico. Na nova casa, ele não tem o pequeno pátio que na outra lhe servia como espaço de trabalho. O acesso para a avenida também não é o mesmo, o que lhe tirou os clientes ocasionais que paravam por ali. Com o dinheiro do aluguel social, acordo que ele aceitou depois de brigar na Justiça pela posse da área que ocupava, paga o vizinho pela casa de dois cômodos. Antes, havia recusado a proposta que muitos de seus vizinhos aceitaram, a mudança para um espaço na Restinga.“Eles queriam nos empurrar lá para Pitinga, que é uma área da Restinga que chamam até de Carandiru. Querem nos empurrar para o meio dos bandidos, onde não tem transporte e a gente não tem como vir reclamar. Para eles, quanto mais longe a gente estiver, melhor. E depois chamam de inclusão social. Para mim, isso é exclusão”, desabafa. O que mais o incomoda é a permanência dos pavilhões da escola de samba Praiana e da Banda do Saldanha, que estão na mesma área onde ele morava. “É isso que eles vão deixar aí. Isso pode ficar. Eu e todo mundo tivemos que sair. A marmoraria, o posto de gasolina, todo mundo que tinha negócio. Mas a Praiana eles vão deixar. E
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o Saldanha também, que está aí ganhando rios de dinheiro. Isso é Brasil”, reclama. Geraldo conversava sem se preocupar com a partida entre Brasil e Croácia, que marcava a abertura do Mundial e para a qual todos estavam voltados. Não viu nenhum lance do jogo. Não por protesto, embora considerasse a organização da Copa bastante injusta, mas porque sua televisão não sintonizava nenhum canal. Chacoalha a antena enferrujada que já estava ali quando ele se mudou, para mostrar que o aparelho de tevê dentro da casa não tinha utilidade. “Pode ser que assista alguma coisa da Copa, se conseguir arrumar uma tevê que funcione. Mas prefiro olhar corridas, sabe?”, justifica. Alheio ao clima de festa que contagiava a maioria dos lares brasileiros, Geraldo conversava sorridente e contava sua história com algum bom humor. Diante da pergunta se a Copa lhe tirou algo importante, ele disse que não foi o torneio, mas a organização dele. “Não me sinto revoltado. A palavra é enganado. Eles só se lembraram que eu estava ali por causa da Copa. Quer dizer, o cara mora ali há 15 anos, paga água a luz em dia, e depois desse tempo todo é que eles querem me chamar de invasor?”, pergunta, rindo largamente. Na despedida, a noite se anunciava, e o jogo estava inacabado. Geraldo seguiu fumando na soleira e olhando para o outro lado, enquanto a banda de samba ritmava os gols (3 a 1 para o Brasil).