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OUTUBRO/NOVEMBRO 2015 • NÚMERO 21 • FAMECOS/PUCRS • WWW.PUCRS.BR/FAMECOS/EDITORIALJ
jornalistas
Sinal da rotatividade e das transformações do mercado, levantamento aponta que mil pessoas deixaram as redações tradicionais no Estado de 2014 até maio de 2015 PÁGINAS 4 E 5
Hora de falar
Como foi a onda de protestos de servidores que paralisou Rio Grande do Sul por conta do atraso nos salários
Três histórias sobre tentativas fracassadas de suicídio mostram sequelas do ato e encorajam debate por informação
Annie Castro (3º sem.)
Indignação coletiva
PÁGINAS 6 E 7
Nova ordem Maçonaria com critérios mais flexíveis de recrutamento recorre a anúncios em publicações e abre espaço para mulheres PÁGINAS 10 E 11
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papo de redação
Jornal do Laboratório de Jornalismo Convergente da Faculdade de Comunicação Social (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Avenida Ipiranga, 6.681 Porto Alegre/RS PUCRS Reitor Ir. Joaquim Clotet Vice-reitor Ir. Evilázio Teixeira Pró-reitora Acadêmica Mágda Rodrigues da Cunha FAMECOS Diretor João Guilherme Barone Reis e Silva Coordenador do curso de Jornalismo Fábian Chelkanoff Thier Coordenador do Editorial J Fabio Canatta Coordenadora de produção Ivone Cassol Projeto gráfico Luiz Adolfo Lino de Souza Professores responsáveis Alexandre Elmi, Fabio Canatta, Filipe Gamba, Flávia Quadros, Ivone Cassol, Marcelo Träsel, Marco Villalobos, Silvio Barbizan e Tércio Saccol Alunos editores Annie Caroline Castro, Bruno Ibaldo, Cândida Schaedler, Eduarda Endler Lopes, Gabriel Gonçalves, Georgia Ubatuba, Jéssica Moraes e Yasmin Luz Diagramação Bruno Ibaldo, Caroline Frantz, Luísa Franke, Naomi Kiesel Alunos Adriana Dallʼagnol, Adriane de Oliveira, Amanda Fialho, Ana Carolina Lopes, Ana Luiza Delmestre, Angelo Werner, Aristóteles Junior, Bárbara Benini, Bárbara Biolchi, Bibiana Garcez, Bruna Machado, Bruna Ranzan, Bruna Zanatta, Bruno Ravazzolli, Camila Lara, Camila Spanemberg Bado, Camila
Surian, Carla Tesch, Carolina Weber, Carolina Fortes, Carolina Hickmann, Caroline Escobar, Daiane Lemos da Fonseca, Diego Rodrigues Carneiro, Dimitria Prochnov, Dimitriu Ritter, Edissa Coelho, Eduardo Pinzon, Fabiana Bonugli Gabriel, Felipe Ferraz, Fernanda Peña, Frederico Martins, Gabriel Johnson, Gabriel Raimundi, Gabriel Severo, Gabriela Barros, Germano Durand, Giovane Gonçalves, Guilherme Flores, Guilherme Ricacheski, Izabella Peres, Jéssica Caldas, Jhonnathan Hirano, João Pedro Cunha, João Pedro Torma, João Praetzel, Jorge Santana, Juliana Baratojo, Juliana Lemos, Juliana Mastrascusa, Juliana Prato, Juliano Castello, Kamylla Lemos, Kátia Almeida, Kim Pereira, Laura Werner Azevedo, Leonardo S. do Nascimento, Leonardo Sá, Lorenzo Pooch Leuck, Lousiane Silva Cardoso, Lucas Borba dos Santos, Lucas Maróstica, Lucas Zandonai, Manuela Kuhn, Marcos Belo, Maria Antonia Fiorini, Maria Polo Gonçalo Cirne Lima, Mariana de Mello Pontes, Mariana Duarte Cruz, Mariana Soletti, Matheus Goularte, Matheus Wolf, Mayra Maggenti, Myllena Ribeiro, Natália Pegoraro, Nathália Gomes, Nicole Feijó, Nicole Oliveira, Ohana Constante, Otavio Daros, Pâmela Soares da Cunha, Paula Estivalet, Pedro Silva, Pietro Bottega, Rafael Marantes, Renata Ramos Leite, Roberta Vargas Farinha, Roberto Kralik, Rodrigo Oliveira, Thiago De Souza, Vanessa Back, Vinícius Casagrande, Vinicius Spengler, Virgínia Da Costa, Vitor Vidoto Werle, Wellinton Almeida, William Antony e Ysrael Falcão
Na rua com os servidores P O R Kamylla Lemos (4º sem.)
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anúncio de que o Estado iria parcelar os salários do funcionalismo no dia 31 de agosto mobilizou os servidores públicos estaduais, que organizaram uma greve de quatro dias. Assim como todo veículo de comunicação do Rio Grande do Sul, o Editorial J ficou atento para não perder acontecimentos relevantes daquela semana, buscando mostrar para os leitores os diferentes lados afetados pelo parcelamento. Durante os quatro dias das manifestações, os repórteres alimentaram o Instagram com fotos, entraram ao vivo na webrádio Famecos Cast e fizeram matérias para o site do Editorial J. O Editorial J foi para a rua ouvir as pessoas prejudicadas por causa do parcelamento, desde quem estava sobrevivendo com apenas R$ 150, até os donos de restaurantes que notaram a diminuição de clientes. Os repórteres passaram por escolas, restau-
rantes e, principalmente, manifestações. A cobertura da greve, impossível de ser experienciada em sala de aula, mostrou, na prática, como é a vida de um repórter profissional. O sargento da Brigada Militar Alceu Mendes protagonizou um dos momentos mais chocantes da cobertura. Em frente ao Palácio Piratini, ele pedia esmolas para os motoristas que passavam por lá. Essa foi a solução encontrada por ele para completar o salário que havia sido parcelado e descontado. Um dos problemas enfrentados pela reportagem foi a falta de segurança. O risco de sair na rua com gravadores, câmeras e filmadoras para produzir as reportagens amedrontou os estudantes de jornalismo. No segundo dia de cobertura, durante a apuração da matéria “Alunos sem aulas e sem previsão de recuperação”, a fotógrafa Camila Lara foi assaltada enquanto esperava os repórteres Angelo Werner e Nicole Oliveira na frente do Centro dos Professores do Rio Grande do Sul (Cpers), no centro de Porto Alegre. O medo
também foi compartilhado pelos motoristas que acompanhavam os alunos para as reportagens e temiam dirigir para o centro em dias de protesto. A equipe também experimentou a correria de uma redação em semanas como aquela. Antes dos alunos saírem, os professores auxiliavam dando as informações necessárias para a pauta e durante a apuração, os locutores da webrádio Famecos Cast ligavam para que os repórteres contassem como que transcorria. Ao chegar na redação, as fotos eram selecionadas, e os alunos produziam as matérias que seriam publicadas no site. A semana deixou toda a redação envolvida na cobertura. Quem não ia para a rua ajudava com informações e aqueles que passavam perto de protestos tiravam fotos e postavam no Instagram. No final dessa semana tumultuada, havia tanto material que o Editorial J organizou no Medium um resumo da cobertura. Intensos, os quatro dias deixaram uma prévia do que vem pela frente na profissão.
FamecosCast É uma webradio com programação diária de reportagens, debates, entrevistas, colunas e noticiários ustream.tv/channel/famecos-cast.
P O R Annie Castro (3º sem.) Twitter, Flickr e Facebook Por meio de perfis, notícias e imagens são compartilhadas. Pelo Twitter, no @editorialj. No Facebook, pelo facebook.com/editorialj. No Flickr, flickr.com/editorialj.
Editorial J na TV Telejornal semanal, com pautas temáticas e reportagens sobre assuntos diversos. As edições estão disponíveis em youtube.com/ editorialj. IMPRESSÃO Gráfica Epecê - PUCRS
Laboratório de Jornalismo Convergente da Famecos www.pucrs.br/famecos/editorialj
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ada integrante do Editorial J passou por momentos únicos. Apesar das diferentes experiências, possuem uma paixão em comum: o jornalismo. Inspirado no projeto fotográfico Humans of New York, que conta a história das pessoas que vivem ou visitam a cidade, o núcleo de fotografia do Editorial J decidiu mostrar quem são os alunos e os professores do laboratório. A página no Facebook Humans of J surgiu durante da campanha de divulgação do Editorial J. A ideia era de que os seguidores conhecessem um pouco mais das pessoas do laboratório. Foram fei-
tas entrevistas com os integrantes dos cinco núcleos e as fotografias foram tiradas nos lugares prediletos de cada um dentro da PUCRS. Por ser um lugar de aprendizado e de novas experiências para os estudantes de jornalismo, o Edito-
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rial J renova constantemente sua equipe. Sendo assim, pretendemos manter a página Humans of J ativa, a fim de contar um pouquinho sobre todos que frequentam ou passam pelas salas 108 e 112 do Prédio 7.
Reprodução/Facebook
Faces do J
CONTEÚDOS DO EDITORIAL J
história
Quem tem medo de cemitérios E S P E C I A LIS TA E M ARTE CE MITE RIAL, H ARRY BELLOMO G A N H A B IOGRAF IA S OBRE S UAS P E S QUIS AS PIONEIRAS
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ode ser difícil visitar um cemitério sem se arrepiar. Muito disso se deve aos clássicos do terror. Um cenário repleto de lápides em meio à névoa acaba sendo quase exigência - ou clichê - no gênero. Agora, você já parou para pensar no valor das necrópoles para a memória dos povos? Harry Bellomo pensou. Ainda na década de 1980, o historiador e ex-professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) defendeu sua dissertação de mestrado A Estatuária Funerária em Porto Alegre (1900-1950). O trabalho rendeu-lhe a alcunha de precursor do estudo cemiterial no Estado. Recentemente, Bellomo teve sua vida profissional biografada por Regina Zimmermann Guilherme no livro Harry Rodrigues Bellomo: mestre e historiador de dois séculos, da Editora da PUCRS (EDIPUCRS). Baseada em entrevistas que totalizam 30 horas de gravação, a autora relatou a contribuição do pesquisador para a historiografia e sua carreira de docente. Além de conversar com o biografado, Regina ouviu mais 18 pessoas para enriquecer o registro. Entre elas, professores, funcionários e prestadores de serviços que conviviam com o professor dentro e fora da universidade. O Editorial J conversou com Bellomo no lançamento da obra para convidados, realizado em setembro (14), na PUCRS. Com 80 anos completados em janeiro, o professor se mostrou simpático e falante. Afetuoso com os convidados, fez questão de riscar dedicatórias durante quase duas horas e de presentear com seus livros a quem podia. “Tem que aproveitar”, brincou. “A gente nunca sabe se é a última produção ou a mais recente.” Bellomo é um pioneiro involuntário, um sortudo de primeira categoria. Ao planejar sua dissertação
de mestrado (1979-1988), decidiu analisar a imprensa às vésperas e durante os primeiros movimentos da Revolução Farroupilha (18301840). Admitindo certa ingenuidade, previu cerca de 10 jornais para serem examinados em seu levantamento. A realidade provou o contrário e, quando descobriu que existiam mais de 60 periódicos no período, desanimou. A pesquisa parecia insustentável. Na ocasião, o professor enfrentava uma rotina desgastante. Acabava suas aulas e visitava o Museu de Comunicação Hipólito José da Costa para pesquisar por uma ou duas horas. Logo, voltava à PUCRS para continuar lecionando. O mestrando também não contava com a sorte. O museu fechava nos fins de semana, seu único tempo livre. Mesmo assim, Bellomo resistia. Precisava pensar em uma medida eficaz para levar adiante sua apuração. Foi quando surgiu a ideia de passar o período de férias de verão em Piratini, onde a vastidão de jornais da época estaria disponível para sua análise. Ao chegar no arquivo do Museu Histórico Farroupilha, uma surpresa o esperava pregada na porta: “Fechado. Férias coletivas até março”. Bellomo quase enlouqueceu. Toda a mobilização da viagem tinha sido em vão, e a expectativa de terminar sua pesquisa na cidade, não correspondida. A sucessão de infortúnios catalisou uma mudança nos planos do professor. Não tinha como ser de outra forma. De volta à Capital, precisava de um tema que não dependesse da agenda de funcionamento de museus, arquivos ou bibliotecas. Muito menos do recesso de funcionários. Depois de muito pensar, surgiu o estalo: pesquisar arte sacra ou arte cemiterial. As igrejas apresentavam um ponto desfavorável na disputa. Fecham à noite, salvo quando programada uma missa ou celebração, o que dificultaria, novamente, o
ritmo da apuração. Sobraram os cemitérios, que ficam abertos o dia inteiro. Alguns, inclusive, durante a noite. “Não foi sempre a minha ideia”, confessou. “Aconteceu por eliminação.” O historiador analisou primeiramente a arte estatuária nos cemitérios da Santa Casa de Misericórdia, São Miguel e Almas e em mais duas necrópoles luteranas de Porto Alegre. Conforme a autora da biografia de Bellomo, o crítico de arte e pesquisador baiano Clerival do Prado Valladares (1918-1983) foi o primeiro a pesquisar a arte funerária no Brasil. Contudo, seu trabalho tinha um sentido de catalogação. Bellomo, por outro lado, optou por um enfoque histórico e artístico, ainda inédito. Depois de defendida e aprovada a dissertação, cerca de 20 alunos interessados somaram-se ao trabalho. Com o crescimento do grupo, uma ampliação dos estudos foi possível. Além da arte estatuária, pinturas, vitrais e azulejos se tornaram objeto de observação. Relacionando a simbologia dos epitáfios às formas com que os vivos encaram os mortos, o núcleo de pesquisa acabou desenvolvendo um caráter antropológico. Nas saídas de campo, a equipe portava câmeras fotográficas e blocos de anotação. Um componente mais inusitado também estava presente: giz para tornar as inscrições visíveis. Com 50 anos de magistério, sendo 40 na PUCRS, Bellomo se tornou referência no Departamento de História. Quando lecionava, era lembrado pela maneira atraente com que apresentava os conteúdos aos novatos. Ele mesmo esclarece: “Eu tinha uma relação muito boa com os alunos, porque sempre procurava trabalhar dentro do interesse deles”. Para Bellomo, a história não é estanque. Tampouco o ensino. Assim como o intercâmbio das áreas de conhecimento sempre se fez necessário, a atualização das maneiras de compartilhá-lo também.
Annie Castro (3º sem.)
P O R Rodrigo Oliveira (4º Sem.)
Estatuária foi objeto de análise por grupos de pesquisa a partir de uma abordagem que ganhou contornos antropológicos
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história imprensa
Quase mil profissionais saíram das redações LEVANTAMENTO DO EDITORIAL J APONTA QUE 959 JORNALISTAS OU RADIALISTAS FORAM AFASTADOS OU PEDIRAM DEMISSÃO NO ESTADO ENTRE JANEIRO DE 2014 E MAIO DE 2015 POR Pedro Silva (6º sem.)
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m meio às transformações nos negócios de jornalismo, as redações do Brasil têm sofrido cortes – fenômeno que também atinge o Rio Grande do Sul. Para dimensionar o tamanho do ajuste promovido pelas empresas de comunicação do Estado, o Editorial J levantou números exclusivos. Somando os cortes feitos de janeiro de 2014 a maio de 2015, entre as categorias profissionais de jornalistas e radialistas, foram 959 desligamentos, entre pedidos de demissão e afastamentos sem justa causa. Empresas alegam que houve reposição no quadro de funcionários e que as saídas foram geradas por uma mudança no perfil do profissional de redação. A pesquisa foi produzida a partir da consulta a dois sindicatos. No Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjor/RS), os demitidos sem justa causa totalizaram 247 entre 2014 e 2015. O Sindicato dos Trabalhadores e Empresas de Rádio e Televisão do Rio Grande do Sul (Sindirádio), por sua vez, conta com números bem mais expressivos pela grande quantidade de rádios existentes no Estado. As rescisões homologadas no mesmo período contabilizaram 600 afastamentos. Em 2014, os desligamentos de empresas de comunicação, somando os dois sindicatos, totalizaram uma média de 56 pessoas por mês, reunindo os demitidos sem justa causa e os pedidos de demissão. Em apenas cinco meses de 2015, essa média subiu para 57 pessoas por mês. A média do Sindicato dos Radialistas, do ano passado até maio de 2015, passou de 33 para 40 afastamentos mensais, enquanto no Sindicato dos Jornalistas houve queda de 23 para 17 cortes mensais de 2014 para 2015. O Sindjor/RS, presidido por Milton Simas, tem uma preocupação que vai além da redução feita no período. O presidente da entidade parte da ideia de um enfraquecimento não só do impresso, como também do conteúdo jornalístico produzido nos últimos anos pelas grandes empresas. “É visível a redução dos impressos e de suas redações, tudo fortalecido por um público que cada vez mais se informa pelas novas tecnologias e também pelo trabalho tendencioso que os grandes veículos têm feito”, comenta. Por outro lado, o presidente do Sindicato dos
O tamanho do corte
Como a redução de postos de trabalho no jornalismo afetou as redações gaúchas: Conforme o Sindicato dos Radialistas e o Sindicato dos Jornalistas do Rio Grande do Sul,
359 600 959
jornalistas que deixaram de trabalhar nas redações de veículos de comunicação no Estado.
radialistas se somaram ao contingente dos afastados.
jornalistas foram desligados de 2014 a maio de 2015, época do levantamento
Como os ajustes atingiram os jornalistas em redações de jornais, rádios e televisões: (fonte: Sindjor/RS)
Pedidos de demissão* 90 em 2014
Demissão sem justa causa**
32 até maio de 2015
193 em 2014
Total: 122
* Quando o profissional solicita o desligamento da empresa.
54 até maio de 2015
Total: 247 ** Quando a empresa demite o funcionário sem motivo específico e deve pagá-lo, posteriormente, todas as verbas rescisórias a que tem direito.
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As campeãs do ajuste Quais empresas mais assistiram à saída de profissionais, apenas segundo o Sindicato dos Jornalistas:
Pedidos de demissão 2014
Demissão sem justa causa 64
2015
2014
2015
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mil exemplares diários. Passados dez anos, a circulação do jornal é de 152 mil exemplares, somando a isso os 12 milhões de usuários dos meios digitais e os 46 mil assinantes digitais. Acrescidas essas assinaturas e comparando com a década passada, tem-se um crescimento de 12% nos leitores. Recente pesquisa do Ibope apontou que 1,5 milhão de pessoas no Brasil acompanham notícias exclusivamente pelos meios digitais. A internet é, há alguns anos, o segundo meio de comunicação mais utilizado pelos brasileiros, apenas atrás da televisão. O conteúdo que antes era produzido especificamente para o impresso, agora ganha força com os meios digitais, no que diz respeito à audiência e alcance do público-leitor. Independente dos dados, o visível novo modelo de gestão que as empresas de comunicação vêm tomando, não só no Rio Grande do Sul, mas em todo o Brasil, tem causado desconforto para quem trabalha nelas. O presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Celso Schröder, entende que a crise alentada pelos principais
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Rádio e TV Portovisão
Caldas Júnior
RBS
Editorial Sinos
Caldas Júnior
veículos do país “não tem o tamanho para o setor como se tem argumentado”, e trata o fenômeno como essencialmente brasileiro. Ao contrário daqui, no resto do mundo haveria um investimento expressivo no jornalismo. Para Schröder, as demissões no Brasil atendem a uma profunda mudança de perfil da profissão, na qual o primeiro sintoma de uma crise estaria na própria gestão dos veículos. “Os donos das empresas não estão acostumados com concorrência, a ter que apresentar um melhor produto e, portanto, a primeira coisa que tiram é o melhor trabalhador. Aí temos como resultado o não-jornalismo. A verdadeira crise é de qualidade nos impressos hoje em dia”, define Schröder. Ao mesmo tempo em que os cortes aconteceram, contratações para reposição foram feitas. A discussão é se a qualidade do produto foi reduzida com os profissionais que ocupam as vagas. Para Carlos Etchichury, editor-chefe do Diário Gaúcho, jornal do Grupo RBS, trata-se “de uma renovação natural do mercado de trabalho, que não é de hoje, na qual as empresas têm
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3 RBS
Rede Vale
Caldas Júnior
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Editorial Sinos
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Radialistas, Antônio Edisson Peres, diz que as demissões nos veículos vão além de uma crise financeira e passam pela “incompetência administrativa”. Peres afirma ainda que os donos dos veículos “não entendem absolutamente nada de rádio”. A dispensa sem justa causa, segundo a Constituição Federal, é a demissão aplicada, sem motivo grave, pela empresa ao contrato de trabalho do empregado. Ela é precedida de direitos do empregado e obrigações do empregador, como, por exemplo, aviso prévio e décimo terceiro normal. Por motivos de insatisfação no trabalho ou de uma proposta melhor recebida, quem faz o pedido de demissão também tem, por lei, de receber seus direitos, feito o pedido num prazo mínimo de 30 dias. Em ambos os casos é necessário o aviso prévio. A primeira posição na estatística do Sindicato dos Jornalistas é ocupada pelo Grupo RBS, responsável por 85 das 359 demissões no período analisado. Essa liderança também traduz o fato de o grupo ser o de maior expressão em veículos de comunicação no Rio Grande do Sul. Em entrevista ao núcleo de áudio do Editorial J, durante palestra realizada na PUCRS, Eduardo Sirotsky Melzer, diretor-executivo do Grupo RBS, chega a justificar os números com o argumento do tamanho. “Somos a empresa do Brasil que mais tem jornalistas”, afirmou, contabilizando um total de 1,2 mil empregados hoje. Melzer também explica as demissões através da meritocracia e diz só “querer os melhores ao seu lado”. Igualmente questionado sobre as demissões, o atual presidente da RBS, Nelson Sirotsky, relaciona o fato com uma transformação do jornalismo e justifica que a empresa está em “constante evolução”. Ele ainda contra-argumenta que o momento é bom, mesmo com tantos desligamentos no último ano. O principal jornal impresso do grupo, Zero Hora, passou por uma reformulação tanto na aparência quanto no conteúdo. Além dos cortes de profissionais do grupo nos jornais e nas rádios, a empresa anunciou o fechamento de sua unidade de TI no TECNOPUC, parque científico e tecnológico da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), somando mais 25 demissões. Os cortes geram incertezas. Simas vê como complicada a vida dos novos formandos em Jornalismo, pois, segundo ele, “o mercado vem se fechando nos grandes veículos”. O presidente do Sindjor/RS sugere como necessário ampliar a visão para caminhos alternativos, diante do fechamento de vagas de trabalho. “A redução de tamanho dos impressos e do seu público leitor é fator fundamental para o grande número de demissões e o encolhimento das redações”, comenta. Em contrapartida à visão de Simas, uma pesquisa recente da Associação Nacional de Jornais (ANJ) apresenta crescimento de leitores no país, tanto na plataforma impressa como na digital. Em números divulgados na seção “Carta do Editor”, pela editora Martha Gleich, a Zero Hora tinha, em 2005, apenas sua edição impressa, contando com, em média, 177
buscado profissionais com um novo perfil”. Entende-se por novo perfil alguém com dinamismo para saber trabalhar com áudio, vídeo e texto. Esse novo modelo de jornalismo, como simplifica Etchichury, também trata de um investimento dos grandes jornais no leitor. “Essa aposta exige mais produção de conteúdo, mais vídeos, mudanças na forma de entregar as matérias. Quem investia mais no jornal era a publicidade, e isso está mudando”, pontua. O Diário Gaúcho teve 12 jornalistas afastados da redação no período analisado. As empresas procuram hoje se adequar a um novo ritmo de produção. Os quase mil desligamentos ocorridos no período de um ano e cinco meses tendem, segundo Etchichury, a se evidenciar muito mais pelas novas tecnologias. “É uma grande mudança na maneira de se trabalhar e, consequentemente, no perfil dos novos empregados”, afirma. A figura cada vez mais convergente do jornalista fez, independente das razões dos cortes ocorridos, com que se exibisse os novos profissionais do meio com mais força.
saúde
A voz de quem sobre O suicídio não é um tema novo. A abordagem do assunto pela mídia, porém, permanece tímida. O Editorial J tentou quebrar esse silêncio, por entender que falar sobre a questão é importante. Portanto, dar voz a quem tentou pôr fim à própria vida e hoje convive com sequelas dessa tentativa é o objetivo da reportagem. Três pessoas, com idades distintas e problemas diferentes em função do ocorrido, contam suas histórias e relatam como convivem com a sequela.
POR Eduarda Endler Lopes (3º sem.)
O
suicídio é um grave problema de saúde. A cada 40 segundos, uma pessoa morre dessa causa no mundo. De acordo com a pesquisa Comportamento Suicida: Conhecer para Prevenir, realizada pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), por trás de uma tentativa atendida em pronto-socorro, outras 17 pessoas pensaram seriamente em pôr fim à própria vida. Destas, cinco chegaram a elaborar um plano de morte. O ato contra a própria vida não é um problema atual. É visto como saída extrema, em alguns casos, há muitos séculos. Um livro do alemão Johann Wolfgang Goethe criou uma onda de suicídios na Europa, no século 18. Em seu romance Os Sofrimentos do Jovem Werther, o protagonista põe fim à própria vida, dando um tiro na cabeça, devido a um amor não correspondido. A literatura, naquela época, era responsável por um grande impacto na vida cultural, política e ideológica da humanidade. Por isso, a obra de Goethe influenciou no modo de pensar e agir da sociedade. Como consequência, houve inúmeras tentativas de suicídio relacionadas ao romance, fazendo com que o livro se tornasse maldito pela Igreja. Apesar do número elevado de tentativas, com sucesso ou não, o suicídio ainda é um tabu. De acordo com o psiquiatra e psicotera-
peuta Lucas Spanemberg, cerca de 90% das pessoas que cometem o ato estão sofrendo algum tipo de transtorno mental, principalmente depressão, abuso de álcool e outras drogas. Quando ocorre, a vida de outras 10 pessoas é diretamente impactada, aponta o médico. Spanemberg, que também é professor do Curso de Especialização em Psiquiatria da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), salienta que, em alguns casos, é necessária uma internação em ambiente hospitalar. “Atualmente, mais de 50% das internações psiquiátricas realizadas no Hospital São Lucas da PUCRS são indicadas pela presença de ideação ou tentativa de suicídio”, conta. Como problema de saúde, o suicídio é um dos principais motivos da morte de jovens entre 15 e 35 anos. No Rio Grande do Sul, estado com maior taxa de suicídio por 100 mil habitantes, cerca de 20 pessoas tentam cometer suicídio todos os dias. Muitas fracassam e seguem vivendo com sequelas da tentativa desesperada, como se o ato deixasse sua marca para sempre. O Editorial J buscou encontrar pessoas que tentaram o suicídio e não obtiveram sucesso, além de terem ficado com sequelas físicas. Os três entrevistados – Monyque, Tânia e Elci – preferiram ser identificados somente com seus primeiros nomes. Monyque, 21 anos, sempre foi vaidosa. Quando enfrentou sérios problemas, não conseguiu se abrir com ninguém – nem mesmo
com a irmã, que é psicóloga. Duas tentativas de suicídio ocorreram. Na segunda vez, ela atirou contra si mesma, o que causou a paralisia dos membros inferiores. Desde então, vive em uma cadeira de rodas, mas ainda cuida bastante da aparência. A mala de maquiagem, trazida pela mãe durante a entrevista, continua sendo parte do seu cotidiano. Tânia, 52 anos, era professora. Trabalhou por 10anos na biblioteca da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) restaurando livros. Quando começou a lecionar em uma escola do interior da cidade, foi perseguida por um partido político – mas não quis falar muito sobre o assunto –, o que fez com que largasse o emprego e realizasse as tentativas, que a deixaram com sequelas. Na primeira vez, ateou fogo em si mesma. Na segunda, tomou soda cáustica, o que fez com que seu estômago tivesse que ser recolocado próximo ao pescoço. Elci, 73 anos, conta com a ajuda da esposa Celina. As atitudes dele, que muitas vezes o tornam agressivo, faz com que sua esposa abdique dos cuidados. Apesar disso, Celina participou ativamente da entrevista, muitas vezes falando de momentos que o marido não lembrava ou não conseguia contar devido às tentativas de enforcamento, que o deixaram com problemas respiratórios – asma e bronquite. Cada um lida de maneira distinta com as marcas deixadas. Os depoimentos dos três, porém, falam mais de vida do que de morte.
Elci 73 anos
Consequência: asma e bronquite
Participou da entrevista a esposa de Elci, Celina Elci – Sempre fiz muita coisa (...). Não sei quando foi. Celina – Faz uns dois anos. Mas isso já vem há muito tempo. Essa luta da gente acontece desde antes mesmo da nossa filha, que tem 26 anos agora, ter nascido. Elci – Sempre foi muito difícil. Me sentia mal e bem. Um dia, estava bem, no outro estava mal. E assim ia. Celina – É difícil para ele entender, além de ter problemas pra falar, por causa da tentativa [de suicídio], ainda tem problema de audição. Ele bebia, sempre bebeu. Elci – Todo mundo bebe. Mas fiquei doente quando trabalhava em uma olaria. Celina – Era véspera de Natal. Isso nunca entrou na minha cabeça. Estava trabalhando e cheguei em casa, avisei que tinha ganho um presente, um rancho, mas eu não podia ir buscar. Um senhor trouxe pra mim. Fui cozinhar. Quando apareceu meu filho Francisco, avisando que meu marido estava na rua chorando. O Rogé-
rio, meu outro filho, cortou a corda grossa que ele usou com uma faca de cozinha. Levamos ele para o hospital. Ele perdeu a pele do pescoço. Volta e meia dá isso. Vou ser sincera. A hora que eu achar ele se matando, vou deixar. Não vou gritar. Não vou chamar ninguém. Certo dia, meu filho dormiu aqui. Acordou, de madrugada, achou que eu estava subindo no sofá, próximo da janela. Não era 4 horas. Foi olhar e viu que era ele, o pai. Viu o pai com um arame, amarrando na estrutura. Se tivesse se enforcado, iria arredar ele pra avisar os vizinhos que o Capoeira [como Elci é conhecido] se enforcou. Não ia fazer nada, tá? Ele deixa todo mundo assim. Elci – Isso é de família... Celina – Ele não quer ir em lugares que podem ajudar. Não posso fazer nada. Depois das tentativas, fica muito agressivo, não respeita as pessoas. Volta e meia, está bem, mas levanta e cai. Acho que ele não se lembra [das tentativas].
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22 anos
Consequência: paralisia dos memb
“
“Sempre fui tranquila, nunca tive problemas. De repente, em umas duas semanas, comecei a ficar ruim e não abri a história para ninguém. Não contava para ninguém. Nessa mesma semana, já tinha tentado uma vez: tentei me enforcar. Contei apenas para minha irmã, e ela me acalmou. Ela me ligava todos os dias, perguntava se eu estava bem. Eu dizia que sim, mas não estava. Ela não mora comigo, por isso, ficou mais difícil. Tudo para mim parecia que estava dando errado. Estava bem frustrada com a minha vida. Família, desentendimentos, pressões. Fui só piorando. Não aguentei a pressão psicológica. E tentei. Peguei a arma e (...) mil coisas passaram pela minha cabeça no momento. Achei que estava morrendo, mas fiquei lúcida o tempo inteiro. Ouvi as pessoas gritando, a minha família em desespero. Foi horrível, traumatizante. É terrível lembrar desse dia. Depois, comecei a entender que sempre pode piorar. Pessoas das quais tinha me afastado antes
reviveu ao desespero O silêncio perigoso
Tânia 52 anos Consequência: problemas psicológicos e danificação no estômago
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“Não quero lembrar. Tenho certeza de que não existe nada pior do que passar por uma tentativa de suicídio. Pensava assim: ‘viver dessa forma não quero’. Então, acabei tentando. Na primeira vez, sabia que queria morrer. Enquanto, na segunda tentativa, não tinha isso na minha cabeça claramente. Comprei a soda cáustica, tomei e me deu todas aquelas sequelas. Tive que fazer várias cirurgias para recuperar. O meu estômago está ligado até o pescoço. As pessoas acham que é o bócio e dizem ‘opera isso, tira isso’, mas eu tô muito feliz assim, pode deixar. É a minha vida, é a minha realidade. Tenho de viver ela de maneira mais fácil, porque assim mais fácil vai ser para superar, para passar por cima de tudo isso. (...) Agora lido bem. Faz mais ou menos um mês, estava ouvindo muitas vozes, então falei pro médico e ele aumentou meu remédio. Aliviou. Tenho muito pensamento ruim. É horrível. Ninguém pode imaginar quanto
é ruim. Não tem explicação, não consigo descrever em palavras o que é que se passa na minha cabeça. Quando fiz a segunda tentativa, não tinha clareza. É que não queria mais viver, sabe? A primeira vez, tinha consciência de que queria realmente morrer. Tanto que fiz cinco coisas, mas nenhuma deu certo. Mas foi pra valer. Enquanto, na segunda vez, não sei de nada. Só me lembro de ter tomado soda cáustica. Hoje, tomo muitos remédios. E, por isso, vejo a vida de outra forma, mas foi muito doloroso e difícil. Sofri muito. A coisa que mais chama atenção é que Deus não quer que eu morra. Esse final de semana, minha fé aumentou, porque Deus me provou mais uma vez que todos os sentimentos ruins que tenho e tive devem passar. Me agarro nos meus filhos e agradeço por ter um marido de ouro. Ter fé é minha base. Creio muito. Isso me mantém com um nível de vida melhor.”
Monyque
bros inferiores, causada por tripidação da medula começarem a vir aqui em casa. Vi e senti o amor que sentiam por mim. E percebi que a vida pode sempre ser melhor. Na rua, há ainda o julgamento pelo meu ato. As pessoas começaram a me apontar, por ter atirado em mim mesma. Não saio de casa. Sem contar que a acessibilidade é horrível [Monyque ficou paraplégica e depende de cadeira de rodas para se locomover]. A tentativa me afetou muito, pois já estava mal e triste. Naquele momento, o que eu queria era morrer e não sobreviver a isso. Então, quando me vi assim, viva e com um problema maior do que antes, foi horrível. Só consegui aguentar tudo graças ao apoio da minha família e amigos. Apesar de tudo, tento não pensar no que perdi. Penso só nas coisas boas. Sobrevivi a um tiro no peito. Já é motivo para ficar feliz. As pessoas devem pensar sempre antes de fazer qualquer coisa. É muito pior tentar algo contra tua própria vida, porque depois tu vais perceber que as coisas são sempre
melhores do que imaginas. Acho que se tivesse me tratado um pouco antes, tivesse descoberto o que tinha, talvez não teria acontecido. Sempre temos uma resistência em ir em psicólogo, todo mundo pensa que quem vai a psicólogo é louco. Ainda existe essa mentalidade antiga. Minha lição de vida é que não devemos colocar nossos problemas à frente de tudo, pois problemas todo mundo tem. E que, por mais triste e frustrante que eles sejam, por mais que pareçam não ter solução, sempre haverá um meio, um jeitinho que fará tudo dar certo de novo. É só acreditar e pensar nas coisas boas da vida, em tantos momentos felizes que já passamos e nos outros que ainda virão. Devemos chutar para bem longe tudo o que nos faz mal. A vida é linda. Quando as pessoas estiverem tristes, elas devem procurar se abrir com alguém, procurar ajuda. Não devem se fechar em uma bolha como fiz. Sempre haverá alguém que pode ajudar.”
POR Alexandre Elmi (Coordenador do Núcleo Impresso do Editorial J)
É lição que se ouve nos primeiros dias da faculdade de Jornalismo: a imprensa evita falar de suicídio, pois poderia incentivar a prática de por fim à própria vida. Na dúvida, muitos jornalistas repetem mecanicamente esta ideia, com base em uma suposição que até pode ser considerada legítima: se uma só pessoa desesperada cometer o ato extremo, estimulada pelo que leu, ouviu ou viu, já terá sido algo a lamentar, pois nada é mais importante do que a manutenção da vida humana. Apesar deste compromisso velado da nossa atividade profissional, o que positivamente começa a prevalecer, na prática, é uma linha que tende a encarar o suicídio a partir de um enfoque mais realista – como tópico de saúde pública. Deve ser tratado com cautela, mas contornando o silêncio habitual. Os principais veículos de comunicação do Brasil não seguem uma linha uniforme de tratamento do tema. Embora já tenha produzido reportagens relevantes sobre o fenômeno, o Grupo RBS recomenda cautela em suas normas internas de conduta. Vale reproduzir o que prevê o seu Guia de Ética e Autorregulamentação Jornalística: “Atos de suicídio ou de automutilação só devem ser noticiados quando envolverem pessoa pública, caracterizarem o comportamento de determinado segmento social ou tiverem provocado forte impacto na comunidade”. O documento admite que, mesmo nestes casos autorizados, ao jornalista cabe manter a sobriedade e a sensibilidade – uma postura de prevenção e orientação do público. Outro exemplo é o da Folha de S.Paulo. O Manual da Redação é direto, claro: “Não omitir o suicídio quando for a causa da morte de alguém”. Não há, portanto, nenhuma indicação no sentido de reforçar qualquer tipo de tabu ou de incentivar algum cuidado adicional, adotando uma linha de ação estruturada em torno da ideia de naturalidade diante de um assunto tão delicado e devastador. Evidentemente, a recomendação do documento não deve ser lida isoladamente, pois ela se entrelaça a outras orientações do jornal, como evitar os sensacionalismos, valorizar o interesse público e respeitar a privacidade. O fato é que se instala um desconforto nas redações ao surgir a necessidade de mexer no assunto. Entretanto, a própria
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medicina vem recomendando maior transparência, como mostra o trabalho de reportagem executado por Eduarda Endler Lopes nesta edição do Editorial J. Em uma cartilha de orientação, a Organização Mundial de Saúde (OMS), intitulada Preventing Suicide, são listados equívocos que precisam ser combatidos com o melhor dos remédios: fatos e informação. O documento aponta como mito a seguinte formulação: “Falar sobre suicídio é uma ideia ruim e pode ser interpretado como encorajamento”. A própria OMS alerta que não há evidência científica sobre a validade deste argumento. Na direção oposta, o caminho é falar abertamente, pois tal atitude pode dar opção ou tempo a uma pessoa psicologicamente fragilizada, a ponto de ela repensar sua decisão. É a primeira vez, como coordenador desta experiência de Laboratório de Jornalismo, que sinto a necessidade de escrever um texto para explicar uma reportagem. E por quê? Porque eu mesmo, num certo sentido, fui acometido pela falta de naturalidade jornalística para tratar do suicídio. O incômodo alimentou esta precaução editorial que não adotei até aqui com qualquer outro assunto. Esta espécie de carta do editor, então, é sintoma do peso simbólico da temática, mas tem a missão de esclarecer por que resolvemos contar as histórias que estão nestas páginas: os casos dramáticos de pessoas que decidiram acabar com a própria vida, mas sobreviveram e são obrigadas a conviver com sequelas físicas e psicológicas. Estimulamos, no laboratório, uma visão de jornalismo que não interdita debates ou censura fenômenos; uma postura que valoriza a condição humana. A melhor maneira de tratar um tema, qualquer um, ainda é a transparência, adotando todos os cuidados possíveis, em nome do interesse público. Foi o que a Eduarda buscou fazer, dando voz a quem passou pela experiência extrema, que estraçalha vidas e famílias. No caso desta reportagem, a decisão por fazê-la partiu de uma ideia relativamente simples, mas poderosa: quem sabe mostrar as consequências de três tentativas fracassadas de suicídio possa ajudar alguém a pensar melhor quando parece que não há mais saída? Se uma só pessoa ler o texto da Eduarda e mudar de ideia já terá valido a pena.
trânsito
Medo de pegar o táxi CAS OS D E VI O L Ê N C I A E S E NS AÇÃO DE INS E GURANÇA A LIMENTA M ENTRE MULHERES EST R ATÉ G I AS DE P ROTE ÇÃO PARA CONTORNAR TE MOR DE CRIMES COMO ASSÉDIO P O R Eduarda Endler Lopes (3º sem.), Juliana Baratojo (4º sem.), Maria Antonia Fiorini (2º sem.) e Virgínia Fernandes (3º sem.)
Annie Castro (3º sem.)
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medo de sofrer assédio ou alguma ação violenta por parte de alguns motoristas de táxis em Porto Alegre tem provocado reações extremas em mulheres da Capital. Além do caso da estudante de Jornalismo que, em no dia 6 de outubro de 2015, resolveu se jogar do carro em movimento temendo ser atacada pelo taxista que tomou uma rota que ela não conhecia para fazer o trajeto solicitado e questionado não respondeu, outras mulheres revelam medo de usar este serviço de transporte em Porto Alegre. O temor revelado pela estudante da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) é compartilhado por diversas mulheres que relatam terem vivido situações de medo e que as desencorajam a usar o serviço de táxis. Débora Quadros, estudante de História, conta que, em novembro de 2014, saiu sozinha de uma festa e embarcou em um táxi. No caminho, o motorista começou a assediá-la e pediu seu contato. Devido ao medo de recusar, a moça pegou o número dele e disse que mandaria uma mensagem – o que nunca fez. Débora ainda lembra as características do taxista. “Essa situação me deixou muito triste, me senti invadida por não poder contratar esse serviço com segurança”, desabafa. Além de assédios, há motoristas que ultrapassam limites. Luiza Rocha, estudante de Relações Públicas, afirma que certa vez pegou um táxi até a casa de um amigo, cujo pai é general. Em frente ao prédio, o motorista avistou soldados armados e questionou a presença deles. A moça explicou e o taxista reagiu como se ela estivesse ali para fazer programa. Ele citou lugares que contratavam garotas de programa de luxo e que ele já tinha levado várias meninas. Devido ao medo, algumas mulheres passaram a adotar táticas que as fazem se sentir mais segurança. Anotar o prefixo do veículo, avisar que está chegando e dizer a localização, ter conhecimento do caminho antes de embarcar e enviar a alguém de confiança os dados do taxista (número de telefone, modelo de carro, placa, prefixo, etc) que aparecem em aplicativos são formas de proteção usadas. Uma estudante universitária, que preferiu não se identificar, utiliza várias dessas estratégias para se sentir mais segura. Ela conta que sempre pede táxi por aplicativos e salva os dados do motorista.
Táticas como anotar placa e prefixo dos veículos se somam à procura por motoristas do sexo feminino homem, e ainda tem receio de que suas Antes de entrar no táxi, verifica se o mopreocupações vão provocar no motorista. torista tem licença. Depois disso, manda Uma das alternativas para as passaos dados para o namorado e liga para ele, geiras é chamar mulheres avisando onde está e quanto motoristas. Agna Brzezinktempo levará para chegar no si atuou como taxista por local desejado. Com spray de cinco anos. Há dois meses, pimenta na mão, conversa o míO que parou de trabalhar por ter nimo possível e sempre escolhe me choca é sido agredida por outros o caminho que quer fazer. três taxistas homens em A estudante salienta que a falta de uma noite na Cidade Baixa, é uma grande complicação controle da devido a sua orientação para conseguir táxi e chegar sexual. no lugar desejado e que fica EPTC.” Ela conta que já sofreu chateada por ter que fazer tudo Fernanda assédio por parte de moisso. Ela afirma que tem muito Melchiona toristas homens e clientes. medo, pois já sofreu assédio, Agna afirma que muitas meniespecialmente de noite e sainnas ficam vulneráveis após festas do de alguma festa ou bar. A e dá alguns conselhos. Ela orienta as menijovem conta que não sai mais sem um nas a não andarem sozinhas de táxi, olhar homem para dividir táxi de noite devido à o prefixo do taxista, analisar suas caracinsegurança. Isto é, a jovem precisa de um terísticas, chamar pelo rádiotaxi, verificar homem em que confia por medo de outro
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se dentro do veículo há cheiro de bebidas alcoólicas ou drogas e entrar em contato com alguém de confiança informando sua localização. Um projeto foi protocolado na Câmara de Vereadores de Porto Alegre, depois de um caso grave, em que um taxista tentou arrombar a porta do apartamento de uma mulher. A vereadora Fernanda Melchionna (PSol), presidente da Comissão de Direitos Humanos, explica que o projeto prevê que 20% da frota de taxistas seja composta por motoristas mulheres e pede por mais fiscalização dos órgãos públicos. Ela afirma, sobre o caso que fez o projeto nascer, que a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) apenas aplicou uma multa ao taxista que segue trabalhando. Segundo dados da empresa, o maior número de reclamações sobre o serviço é contra os motoristas, com quase 119 por mês.
comportamento
Maçonaria pop E M B U S C A DE N OVOS INTE GRANTE S, IRMANDADE A LTERNATIVA A PELA PA RA A N Ú N C IOS E M JORNAIS E ABRE S UAS PORTAS A MULHERES P O R Aristoteles Junior (3º sem.)
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stampado na contracapa do caderno Donna, da Zero Hora, em 16 de agosto, um anúncio de vagas abertas para a Maçonaria chama a atenção. Ao contrário do que se costuma imaginar a respeito da instituição, cujas atividades passam a imagem de serem secretas, a publicidade faz um convite surpreendente: interessados podiam telefonar para o número divulgado e candidatarem-se a membros da sociedade secular. O anúncio levou o Editorial J ao bairro Tristeza, em Porto Alegre, onde fica a sede da loja maçônica que o publicou. O templo está localizado em uma rua calma da zona sul da Capital. A construção não é nada discreta, como a postura dos administradores: assemelha-se a um pequeno castelo, construído com pedras grés. No momento da visita da reportagem, o lugar estava ocupado majoritariamente por mulheres, outra diferença em relação à Maçonaria tradicional. A ausência de convite direto, requisito para entrar na irmandade, é explicada com poucos detalhes, sem esclarecer propósitos e motivos de funcionamento
pelo grupo inovador. “Estamos livres para convidar o público. O anúncio no jornal não deixa de ser um convite. Não possuímos distinção de cor, religião, posição social ou sexo”, alega Liciane Coelho, grã-mestra adjunta, no primeiro contato. Ela entrou no movimento há apenas um ano. A idade mínima para ingresso também difere da exigida pela sociedade secular: enquanto a original requer a idade mínima de 21 anos, a nova proposta aceita membros de 18. Os interessados em participar, além da aprovação dos diversos mestres do templo, precisariam pagar uma joia, ou taxa, de R$ 1,6 mil. O pagamento inclui todos os materiais e livros utilizados dentro da loja (com exceção das roupas, necessariamente pretas). Também é cobrado do pretendente uma mensalidade de R$ 80 para a manutenção do templo. O pagamento é feito apenas se o candidato for aceito no movimento. Além disso, é preciso crer em uma força superior – ou deus. A Grande Loja Maçônica – organização que congrega as demais lojas tradicionais no Estado –, no entanto, explica que as mulheres não fazem parte do movimento
Apesar da diferença nos processos de maçom por um fator cultural. A sociedarecrutamento, há semelhanças na forma de, que se mantém praticamente intacta de funcionamento das duas modalidadesde sua criação em 1717, na Inglaterra, des: a cobrança de taxas de iniciação e levava em conta o fato de a mulher ter a manutenção. Conforme a Grande Loja, função de cuidar da casa à época de funque congrega cerca de 200 unidades no dação. “Na maçonaria, o cuidado com a Estado, cada loja maçônica família é muito importante. tem a liberdade de escolher Como somos uma instituição suas próprias taxas. Heron tradicional, os valores foram admite que a instituição não mantidos”, esclarece Heron Estamos opina oficialmente sobre a Aldo Silva, administrador da quarta potência maçônica, Grande Loja. livres para mista, para não dar maior Um dos representantes da convidar o visibilidade a este movimenGrande Loja Maçônica gaúcha, to. No entanto, reconhece: Francisco Blando, explica os público.” “Estamos receosos que este critérios normais de admisLiciane grupo, que anunciou vagas são partem de um convite. Coelho nos jornais, seja o mesmo “Existem pessoas, que são exque surgiu no Mato Grosso -maçons, que estão vendendo aplicando golpes envolvendo o títulos de Maçonaria. Estes ranome da instituição maçônica”. mos não são reconhecidos por A partir da ponderação dos coornós, da Grande Loja, já que a única forma de denadores maçônicos no Estado, o Editoingresso no movimento é através de um conrial J retornou ao templo, na zona sul de vite”, diz Blando. Ele ressalta que só existem Porto Alegre, em busca de respostas sobre três potências maçônicas reconhecidas no a crítica feita a respeito dos anúncios púpaís: a Grande Oriente do Brasil, as Grandes blicos. A reportagem não foi recebida pelo Lojas Brasileiras e a Grande Oriente do Esgrão-mestre. tado do Rio Grande do Sul.
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Annie Castro (3º sem.)
Na zona sul de Porto Alegre, construção de inspiração medieval abriga loja maçônica com política de adesão mais flexível OUTUBRO/NOVEMBRO DE 2015 • PÁGINA 9
funcionalismo
A reação pelos salários C R IS E F I N A N C E I RA LE VA GOVE RNO D O E S TADO À DECISÃ O DE PA RCELA R A R E MUN E R A Ç Ã O DO S S E RVIDORE S, GE RAND O ONDA DE MANIFESTA ÇÕES E PA RA LIS A ÇÕES Juliana Baratojo (4º sem.)
POR Gabriel Gonçalves (6º sem.) Kamylla Lemos (4º sem.), Nicole Oliveira (2º sem.), Juliano Barañano (2º sem.), Leonardo Sá (4º sem.), Annie Castro (3º sem.) e Bibiana Garcez (4º sem.)
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as primeiras horas da segunda-feira que encerrou o mês de agosto, o governador do Rio Grande do Sul, José Ivo Sartori, anunciava o parcelamento dos salários de 347 mil servidores estaduais. Iniciava, ali, uma das semanas mais turbulentas para a atual gestão, marcada por greves de funcionários públicos, pelo anuncio do bloqueio das contas do Estado pelo governo federal e diversas formas de manifestações, na capital, contra as medidas de austeridade fiscal do governo. Neste período, o Editorial J reportou com imagens e textos protestos, passeatas e outras consequências do parcelamento salarial dos servidores estaduais, durante os dias de maior tensão entre governo e população em 2015 - um prenúncio do que ainda pode acontecer em função da crise financeira em que o Estado mergulhou. Terça-feira (01/09). “O jeito é pedir esmola”. A frase, que poderia ser de um morador de rua da Capital, foi proferida pelo sargento da Brigada Militar (BM) Alceu Mendes, de 60 anos. Em tom irônico, o servidor estadual estendia um chapéu, pedindo arrecadações para quem passava em frente ao Palácio Piratini. O protesto de Mendes ocorreu no primeiro dia após o anúncio do aquartelamento de agentes da BM, também em reação aos salários parcelados. Quarta-feira (02/09). Dois dias após a comunicação do parcelamento salarial, as ruas de Porto Alegre amanheceram com menos policiais e sem escolas estaduais. “Vou ter que pedir ajuda até para comprar o papel higiênico”. O relato da diretora da Escola Estadual de Ensino Fundamental Rio de Janeiro, Adriana Becker Rushel, ilustrou o alcance
da medida, 22 dias após o governo federal bloquear R$ 60 milhões das contas do Estado. A instituição de ensino foi mais uma, entre as escolas gaúchas, que não tiveram aulas no terceiro dia de greve dos professores estaduais, em protesto pela divisão do pagamento dos salários. Quarta-feira (02/09), 8h. Na mesma manhã em que os portões das escolas gaúchas permaneceram fechados, centenas de professores da rede estadual de ensino foram às ruas de Porto Alegre, em protesto contra as medidas de austeridade do governo. A equipe do Editorial J flagrou parte do grupo de manifestantes, quando a passeata passava em frente ao
Viaduto Obirici, no bairro Passo da Areia. Quarta-feira (02/09), 12h. Com parte dos servidores estaduais em greve, restaurantes localizados próximo ao Centro Administrativo de Porto Alegre, que concentra diversos escritórios e autarquias, diminuíram o número de demanda durante a semana. Foi o caso do proprietário do restaurante Prato do Dia, Zelmar Kologesky. “Antes, servíamos 200 almoços por dia. Agora, servimos entre 100 e 110. Hoje, foram servidos 103 pratos”, afirmou o empreendedor. O proprietário relatou ter percebido queda no número de clientes, desde o parcelamento salarial e das greves de servidores.
Quinta-feira (03/09), 8h. Quem passou em frente do Palacio Piratini na manhã de quinta-feira, horas antes do grande protesto marcado contra o governo Sartori, encontrou um homem preso por uma corrente em um poste localizado em frente à sede do governo estadual. Era Carlos Alberto Osorio, 53 anos, antecipando o clima de insatisfação que se afunilaria nas horas seguintes. “Sou mais uma vítima da ditadura e agora, da democracia. Hoje estou fazendo o que deveria ter feito anos atrás”, disse. Quinta-feira (03/09), 14h. Ao final de uma das semanas mais turbulentas para população e governo neste ano, cerca
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de 1,5 mil servidores estaduais reuniram-se em frente ao Palácio Piratini, no principal ato organizado por funcionários públicos contra o parcelamento salarial do Estado. O protesto teve início às 14h, na Praça da Matriz, e reuniu diversas categorias contrárias às medidas de austeridade do governo estadual. “Nesse momento em que o governo não está repassando verba para as escolas, nós, mesmo recebendo apenas R$ 600, estamos tirando dinheiro do nosso bolso, como sempre fazemos, para ajudar a nossa escola, que não tem dinheiro nem para comprar papel higiênico”, explicou a professora Adriana Lucena, durante a manifestação.
Juliana Baratojo (4º sem.)
Juliana Baratojo (4º sem.) Wellinton Almeida (1º sem.) Annie Castro (3º sem.)
Praça da Matriz, em frente ao Palácio Piratini (E), se transforma em epicentro da revolta dos funcionários públicos estaduais. Indignação diante da incerteza foi expressa com cartazes, pinturas e atos extremos, como pedir esmola
+ Confira o especial do Editorial J sobre as manifestações publicado no Medium:
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Lâminas especiais C U T E L E IRO E M PORTO ALE GRE FABRICA PEÇAS COM T É C N I C A ARTE S ANAL QUE CH E GAM A CUSTA R R$ 2 MIL P O R Nicole Oliveira (2º sem.)
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A tradição gaúcha, de acordo com Silva, proporciona um trabalho qualificado por parte dos cuteleiros do Estado. “A gente tem um padrão alto de cutelaria no Rio Grande do Sul hoje, principalmente porque a gente tem uma cultura de fazer isso”, comenta. Segundo ele, a fabricação baseada em materiais nobres e dedicada à construção de facas, tanto de cozinha como de luta, demanda constante habilidade e precisão. “Tenho preocupação em manter esse rigor técnico”, pontua. A respeito do mercado, Silva garante que há procura e que muitas vendas acontecem pela internet, algumas delas para países como Chile, Argentina, Uruguai, Espanha, Estados Unidos e Portugal. Ele relata o interesse de colecionadores que procuram ferramentas antigas e bem feitas. O trabalho é compartilhado por meio de grupos no Facebook - que atingem a marca de 10 mil pessoas falando sobre cutelaria diariamente. Existe também a Associação Gaúcha de Cutelaria, que se reúne no segundo sábado de cada mês no shopping DC Navegantes e realiza uma feira com diversidade de produtos no final do ano. Segundo Silva, as feiras integram cuteleiros de todo o Brasil, o que permite a troca de ideias, técnicas e a compra de materiais. “As feiras
são uma festa de cutelaria. Lá se elegem o melhor damasco, a melhor faca de cozinha, de caça, entre outros. Nesses eventos tem colecionador que pega a faca e a olha com uma lupa”, fala. O trabalho desenvolvido na construção das facas depende do empenho, do estilo e, principalmente, da técnica utilizada pelo cuteleiro. Os colecionadores certamente desejam adquirir um material único, resistente e de boa qualidade. “A gente valoriza o que faz através dos materiais exclusivos e difíceis de conseguir e fazendo uma coisa bem feita. Observo e estudo as facas para fazê-las”, completou.
Tom Silva/Arquivo pessoal
aço tudo do início ao fim, o forjamento, a montagem do cabo, a bainha, porque cada faca é única. Em cada faca, vou fazer alguma coisa diferente”, conta o cuteleiro Tom Silva, que trabalha profisssionalmente desde 2011 com a fabricação de facas especiais na empresa Tom Cutelaria. O webdesigner explica que se dedica à produção da mesma forma com que elas eram feitas quando industrializadas. O trabalho para construir as peças dura de 60 a 150 horas e, por mês, ele produz cinco facas que terminam com o custo médio de R$ 2 mil reais. O diferencial da cutelaria para a indústria está no processo de produção e na escolha dos materiais. “A indústria trabalha com metal laminado. Eles pegam uma chapa de metal, recortam uma faca, o metal é endurecido para poder fazer o fio e é colocado um cabo. Um processo bem diferente do que faço. Pego uma barra de ferro e martelo até que ela fique no formato da lâmina. Então, consigo deixar ela mais durável e mais confortável para a pessoa segurar”, relata Silva. Em sua artesania, utiliza materiais nobres como o marfim de mamute, ébano e canela de girafa com o intuito de manter a qualida-
de em alto nível. “Aproveito o que tenho de diferente dos meus colegas: um pouco de conhecimento de história da arte e de design”, diz Silva. A maior parte das ferramentas encontradas na cutelaria foram construídas pelo próprio cuteleiro, que dispõe de uma forja, lixadeira e uma prensa hidráulica, entre outras. A relação dele com as facas é antiga. “Cresci vendo o meu pai ter uma faca de churrasco que ninguém podia tocar”, relembra. Ao se mudar, Silva encontrou uma espada no forro da casa que era do tio e resolveu procurar maneiras de recuperar a ferramenta sem estragar. “Terminei achando um tutorial de forjamento [operação com esforço de compressão sobre um material dúctil, que pode ser manejado] o que levou à construção de uma forja”, comenta. Nesse período, descobriu que os dois maiores cuteleiros do mundo são gaúchos e estavam com um curso aberto. Rodrigo Sfreddo e Luciano Dorneles foram seus professores em 2006. Cinco anos depois, Tom largou o emprego de designer gráfico e passou a dedicar o seu tempo às facas artesanais. Uma vez por ano ele abre um curso com duração de uma semana, para até três pessoas, durante o qual os alunos produzem uma faca, do forjamento à bainha.
Juliana Baratojo (4º sem.)
Silva forja as próprias facas e utiliza materiais especiais no processo, como marfim de mamute. Acima, detalhe de uma peça pronta