expediente
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL [PUCRS] FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL (FAMECOS)
REITOR: IR. JOAQUIM CLOTET/ VICE-REITOR: IR. EVILÁZIO TEIXEIRA/ PRÓ-REITORA ACADÊMICA: SOLANGE MEDINA KETZER/ DIRETOR DA FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL: JOÃO GUILHERME BARONE REIS E SILVA/ COORDENADOR DO CURSO DE JORNALISMO: FÁBIAN CHELKANOFF THIER/ DISCIPLINA: PROJETO EXPERIMENTAL IV – JORNAL LIVRE/ PROFESSORES RESPONSÁVEIS: ALEXANDRE ELMI E VITOR NECCHI/ REPORTAGEM: ALINA OLIVEIRA, ANDRÉ PASQUALI, BRUNO CISCO, BRUNO RAVAZZOLLI, ÉVELYN CENTENO, FERNANDA PONCIANO, FRANCIELLY BRITES, IGOR GROSSMANN, JULIA FINAMOR, LUCAS ETCHENIQUE, CLARA SALVADORI, MARINA OLIVEIRA, MÊLANIE ALBUQUERQUE, PEDRO ABDALA, SHANA SUDBRACK, TIAGO MEDEIROS E VITHORIA VAZ/ COORDENAÇÃO DE FOTOGRAFIA: ALINA SOUZA/ DESIGN GRÁFICO: SHANA SUDBRACK E LAÍS CERUTTI SCORTEGAGNA/ DIAGRAMAÇÃO: ÉVELYN CENTENO, LAÍS CERUTTI SCORTEGAGNA, CLARA SALVADORI, SHANA SUDBRACK E VITHORIA VAZ/ REVISÃO GRÁFICA: ANNA CLÁUDIA FERNANDES Avenida Ipiranga, 6.681, Prédio 7 - Porto Alegre (RS), Brasil - www.pucrs.br/famecos
H673
Histórias para lembrar : relatos sobre a ditadura de 1964 / (org.) Alexandre Elmi, Vitor Necchi. – Porto Alegre : PUCRS, FAMECOS, 2013. 196 p. : il. Publicação produzida pelo curso de Jornalismo da Faculdade de Comunicação Social da PUCRS. 1. Brasil – História – Golpe Militar, 1964. 2. Jornalismo. 3. Memória. I. Elmi, Alexandre. II. Necchi, Vitor. III. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Faculdade de Comunicação Social. CDD 981.066
Ficha Catalográfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS
Hist贸rias para lembrar Relatos sobre a ditadura de 1964
Alexandre Elmi Vitor Necchi Organizadores
Famecos PUCRS
histórias para lembrar EDITORIAL QUEM ATUOU BONA GARCIA CARLOS ARAÚJO ÍNDIO VARGAS JORGE IGNÁCIO SZEWKIES LÍCIA PERES RAFAEL GUIMARAENS RAUL ELLWANGER RAUL PONT RICARDO CHAVES SUZANA LISBOA
8 10 12 18 22 28 34 40 46 52 60 66 70
QUEM VIVEU ARNILDO FRITZEN CARLOS ALBERTOS TORRES DAVI DOS SANTOS DIRCEU CHIRIVINO
72 78 84 90
JOÃO CARLOS GORDIN JOSÉ AVELINE NETO LINIANE BRUM LUCIANA GENRO LUIZ ABREU RALPH DIETER SILVANA PINEDA SONIA HASS
98 104 108 114 118 124 132 136 142 148 154 160
ANÔNIMO CHRISTOPHER GOULART LÚCIO DE CASTRO PEPE MARTINI ROBSON DUTRA
168 174 178 184 188
ENIO MENEGHETTI FERNANDO MONTEIRO GELSON DA COSTA IVO RIBEIRO
QUEM LEMBRA
Relatos da ditadura A ditadura militar é bastante recente – terminou há menos de três décadas. Teve como estopim o golpe, nos anos 1960, e um processo de fechamento demorado, na metade dos anos 1980. “A abertura política será feita de forma lenta, gradual e segura”, prometeu Ernesto Geisel, penúltimo general a governar o Brasil, tão logo assumiu o poder, em 1974. Em meados da década de 1970, o regime militar iniciado em 1964 passava por uma severa crise econômica, que acelerou a redemocratização. A partir daí, de forma lenta, começou a ser aberto espaço para o pluripartidarismo. Gradualmente, se pôs fim à tortura e ao extermínio de inimigos do Estado. E, de maneira segura, iniciou-se o processo de esquecimento de todas as atrocidades cometidas durante o período de exceção. A cautela de Geisel, no entanto, não seria suficiente para encobrir este capítulo da história brasileira. Os efeitos ainda podem ser vistos na sociedade e continuam impregnados nas vidas dos que sofreram com a linha dura. Em 2014, completam-se 50 anos do golpe. Mirando esta data, e tendo o objetivo de preservar memórias deste obscuro período, surgiu Histórias para lembrar, projeto editorial composto por esta publicação e pelo site que a complementa. Para realizá-los, fomos atrás de pessoas que atuaram politicamente, viveram durante o período ou apenas recordam acontecimentos da época.
A pergunta que lhes direcionamos foi a mesma: qual a memória mais significativa que você tem sobre a ditadura? Os depoimentos estão apresentados em primeira pessoa, com o intuito de transportar o leitor àquela lembrança. As fotografias distribuídas ao longo da publicação foram selecionadas por fotógrafos convidados e representam momentos expressivos da época. Histórias para lembrar é um projeto realizado no último semestre de um curso de Jornalismo em 2013. Os alunos envolvidos na produção cresceram em um Brasil redemocratizado e que tentava superar suas agruras. As gerações a partir da nossa não sabem como é viver em um país comandado pelo totalitarismo. Esperamos que os relatos aqui organizados ajudem a montar um panorama daquela época e de como os governos autoritários afetaram a vida das pessoas. No site, estão reunidos excertos em áudio das entrevistas. Em um dos depoimentos, concedido de forma anônima, o autor conta sobre a relevância de se debater este assunto: “O que não se fala é esquecido, e se é esquecido, pode acontecer de novo”. Historicamente, ditaduras têm raízes na Roma antiga. Em tempos de crise, nomeava-se um ditador temporário para agilizar tomadas de decisões e recuperar a estabilidade do Estado. No Brasil, o fenômeno, sem sua manifestação mais recente se enraíza na Legalidade, ocorrida no início da década de 1960.
Trechos dos áudios dos depoimentos estão disponíveis em www.eusoufamecos.net/editorialj/historiasparalembrar
Sob pretexto similar ao dos romanos, o Exército Brasileiro tencionou impedir que João Goulart, o Jango, então vicepresidente, assumisse a presidência do Brasil logo após a renúncia de Jânio Quadros, em 1961. A crise identificada pelos militares, no caso, foi a famosa “ameaça comunista” que viram em Jango. O movimento pela Legalidade, liderado por Leonel Brizola, garantiu que Goulart chegasse ao comando do país naquele ano, mas não pôde impedir o golpe que aconteceria menos de três anos mais tarde. João Goulart tinha propósitos alinhados à esquerda – reformas agrária, política e fiscal – e foi considerado um risco à segurança nacional. O governo que se seguiu durou 21 anos, nos quais se praticou regime de exceção, supressão das liberdades individuais, censura à imprensa e às manifestações artísticas, decisões arbitrárias, prisão, tortura e eliminação daqueles considerados inimigos do Estado. O Brasil teve cinco ditadores durante o regime militar. O marechal Humberto de Alencar Castello Branco foi o primeiro, seguido por Arthur da Costa e Silva, responsável pela instauração do Ato Institucional Nº 5 (AI-5) – tratado como um “golpe dentro do golpe”, visto que fortaleceu a linha dura. O período seguinte, de 1968 a 1973, paradoxalmente, costuma ser chamado de duas maneiras: os “anos de chumbo” ou a época do “milagre econômico brasileiro”.
Sob o comando do general Emílio Garrastazu Médici, a ditadura teve os anos mais duros. Em oposição, surgiram movimentos sociais, estudantis e grupos de luta armada. O AI-5 vigia, reprimindo a oposição. A boa fase econômica começou a declinar a partir do estouro da bolha especulativa. O Brasil entrava em crise e, com ele, o arbítrio. A reabertura política e o encerramento do regime militar começaram durante o governo seguinte, de Ernesto Geisel e sua redemocratização gradual. Em 1984, último ano do mandato de João Baptista de Oliveira Figueiredo, a população foi às ruas com o movimento Diretas Já, de grande importância na retomada da democracia, que culminou, em 1985, com a posse do primeiro presidente civil, José Sarney. Este, na condição de vice, assumiu no lugar de Tancredo Neves, eleito pelo Colégio Eleitoral, mas que faleceu antes da posse. Em seguida, houve a aprovação da Constituição de 1988 e as primeiras eleições diretas para presidente, em 1989. Procuramos contar a história sob o ponto de vista das pessoas afetadas, de alguma maneira, pelo governo autoritário daqueles anos. As memórias aqui compartilhadas podem não dar conta de tudo o que aconteceu naqueles dias de sufoco e violência, mas são cruciais para que não se deixe de falar sobre o assunto, para que se saiba o que de fato acontece quando um país é privado da democracia. (Tiago Medeiros)
Esperamos que os relatos aqui organizados ajudem a montar um panorama daquela época e de como os governos autoritários afetaram a vida das pessoas.
quem atuou
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BONA GARCIA ADVOGADO
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Economista e advogado, João Carlos Bona Garcia nasceu em 3 de junho de 1946, em Passo Fundo, Rio Grande do Sul. Foi preso em 14 de abril de 1970 e deixou o cárcere no final de 1971. Em 1979, com a Anistia, voltou ao Brasil com a sua família. É casado e tem três filhos com Célia Garcia. Escreveu o livro Verás que um filho teu não foge à luta. Sua história durante o regime militar inspirou o filme Em teu nome, dirigido por Paulo Nascimento.
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A gente ofereceu o que era mais caro: a nossa vida
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Depoimento a Francielly Brites em 25 de setembro de 2013.
O que mais vem, em termos de memória, era a falta de liberdade e a falta de poder, associadas à falta de se poder organizar, principalmente quando a gente militava. Ninguém sabia que você estava preso. Eles torturavam à vontade e, depois de um certo tempo, mostravam que você estava preso. Aí, todo mundo ficava sabendo. Foi um período que ficou muito marcado. Não só no Departamento de Ordem Política e Social (Dops), como na Ilha do Presídio, depois em quartel militar, no presídio. Isso aí carrega bastante na memória desse período. A volta do exílio ao Brasil marcou mais a minha vida, porque a nossa vida, digamos assim, da Célia, minha esposa, a minha vida e a dos filhos, dependia de trabalhar. Onde você chegava, a primeira coisa era arranjar emprego. Nós não tínhamos como sobreviver se não trabalhássemos. Por um lado, o Estado pressiona que você aprenda o idioma, consiga documentação e trabalhe, o que parece ruim, mas por outro lado, é muito bom. Fazia você se integrar à sociedade em que estava vivendo. Só tem um detalhe: com o passar do tempo, teu país vai ficando mais distante. Você vai perdendo um pouco os laços com o Brasil. Sabíamos que não podíamos ficar muito tempo. Isso se passou com algumas famílias de exilados, que foram com mais idade e com os filhos maiores. Os filhos já têm namorada no país, já casam e não voltam mais. Também, com uma certa idade, ele não pode mais voltar para o Brasil. Como é que você vai retomar a sua vida? Conseguir trabalho? É tudo mais difícil. Se ficássemos mais tempo, no caso da França, acabaríamos não voltando mais. Os filhos crescem, eles não falam mais seu idioma. Fica assim: você é brasileiro,
meu filho. ‘Não, não sou, sou francês.’ As coisas vão ficando cada vez mais distantes. Vai pegando os costumes e militando nos partidos de lá. Quando deu a Anistia, a gente ficou muito feliz. Até porque fui presidente do Comitê Brasileiro de Anistia na França. Na primeira oportunidade, largamos tudo. Conseguimos documentação brasileira. Como eu era banido, perdi a nacionalidade e voltamos ao Brasil. Aquele momento de volta também foi muito significativo. Mesmo que você estivesse perdido e tivesse de começar tudo de novo, ainda estávamos em uma meia idade e poderíamos recomeçar. Fui banido porque fui trocado por um embaixador. Como estava preso há quase um ano e já tinha vários processos por lutar contra a ditadura, me pediram em uma troca e quem saía perdia a nacionalidade. Também fiquei sem documento brasileiro nesse espaço de tempo. A prisão, principalmente naquele período aqui no Rio Grande do Sul, foi um momento diferente. Estavam aqui no Estado alguns especialistas em torturar e conseguir informação. Eles vieram do Rio de Janeiro e de São Paulo, um era Magalhães, outro, Cabral. Eram nomes fictícios. Faziam parte do esquadrão da morte. A tortura aqui ficou muito pesada. Quando fui preso, em uma emboscada, a gente ia pegar um carro que tínhamos em uma garagem para tentar sequestrar um outro cônsul e fomos encapuzados. Eles pularam em cima e não tinha como reagir. Levaram-me para o Dops e me deixaram com o capuz. Aí, começa qualquer tipo de tortura. Queimar com cigarro, bater e você não enxergar nada. Uma hora tiraram e olhei. A parede estava toda respingada de sangue.
O Departamento de Ordem Política e Social (Dops) foi um órgão do governo brasileiro, criado em 1924, utilizado durante o Estado Novo e o regime militar de 1964. Tinha como objetivo controlar e reprimir os movimentos políticos e sociais contrários às arbitrariedades da ditadura. Montou um sistema de espionagem, prisão e tortura.
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Maria Auxiliadora Lara Barcelos (Dodora) era casada com Chael Charles Schreider. Os dois militavam no Comando de Libertação Nacional (Colina), de Minas Gerais, que deu origem à Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares). Foi torturada e banida no país. Esteve exilada no Chile e depois na Alemanha. Em 1° de junho de 1976, atirou-se contra um trem, na estação Charlottenburg, em Berlim.
Fossa era a sala na qual havia um gerador elétrico manual, chamada pelo sistema repressor de Maricota, para dar choques elétricos. Conforme a velocidade da manivela, a voltagem ia subindo, até mais de 300 volts.
O nome original do lugar é Ilha das Pedras Brancas, que está localizada no Lago Guaíba. Durante a ditadura militar, serviu de cárcere para muitos presos políticos. O presídio que havia no local foi desativado em abril de 1983.
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Pensei: aqui é um matadouro, só que de gente. Lembrei de quando eu era menino e trabalhei em um matadouro. Tinha o Dops, que era a Polícia Civil, e junto tinha o Exército. Havia um torturador que se chamava Átila Rohrsetzer. Fomos barbaramente torturados por ele. Era uma pessoa completamente desequilibrada. Também tinha um médico para verificar se a pessoa não estava morrendo. Lembro-me de que o médico pegava e dizia assim: ‘Pode bater que o guri é forte, ele aguenta’. Levamos muito choque nas mãos, nos pés, nas orelhas. Ele dava choque que fazia a corrente passar pelo corpo todo. Choque de parede, choque de tudo. Isso escutando música clássica e falando da família dele, da mulher e dos filhos. Tiveram de parar porque a gente perdeu a condição de falar e não tinha mais o que fazer. Lembro quando alguns estavam sendo torturados. Saía faísca pelos cabelos. Não nos mataram porque realmente éramos fortes mesmo. Do coração, acho que sou bom. Batiam-nos muito. Sentíamos que estávamos ali abandonados e o que eles quisessem fazer conosco, fariam. Inclusive nos matar. A sala onde a gente ficava era ao lado da de tortura. Chamavam ela de fossa. Por mais que eles tivessem arrumado para não escapar som, escutávamos tudo. E era grito dia e noite. As meninas sofriam muito porque eles faziam horrores. Eles obrigavam o namorado a torturar a namorada. Torturadores chegavam a ter orgasmos, de tanta excitação que ficavam. Eles gritavam. Muita gente acabou tentando suicídio. Dos muitos que saíram depois, vários se mataram, se suicidaram. O frei Tito, que morou conosco no Chile, suicidou-se na França.
A Maria Auxiliadora, que era médica, jogou-se embaixo de um trem na Alemanha porque não aguentava. Era feito em nome do Estado. Uma criança que apanha já fica com um monte de sequelas pelo resto da vida, imagina ser torturado? Eles querem aniquilar como pessoa, quebrar a moral. Às vezes, mandavam ficar de pé. Aí vinha um e dava um tapa no ouvido, um soco. Tu caías, vinha outro, dizendo que não havia dito para ficar de pé. Tu ficavas sentado, vinha outro e dava um soco. Um dia tu enlouqueces. No início, quando estava preso, imaginava em estrangular o torturador. Com o tempo vai cicatrizando, mas fica a mágoa. Por outro lado, hoje temos o poder da denúncia. Podemos falar e tudo o que se escreve é importante. Esse torturador deve se sentir muito envergonhado, muito mal com ele mesmo, porque são pessoas doentes. Uma pessoa normal não faz isso. Como informação também é poder, o Dops não passava informação para o Exército, e o Exército não passava para a polícia. Cada um tinha a sua informação. Você apanhava de um lado e inventavam uma história. Ia para o outro lado, e as perguntas eram as mesmas. A polícia era um bando de marginal. Sei porque os móveis do meu apartamento estavam nas repartições, e o relógio que ganhei da minha mãe vi um inspetor com ele no pulso. Eles saqueavam. Com 23 anos, eu estava saindo da prisão e já namorava a Célia. Ela era bem nova, tentou me visitar várias vezes e foi na Ilha. Quando fui para o Chile, perguntei se ela queria vir e ela, quando fez 19 ou 20 anos, foi viver comigo. Lá, casamos. Também foi lá que nasceu nosso primeiro filho, o
Rodrigo. Depois, com o golpe no Chile, tivemos de fugir. Na Argélia, nasceu o segundo filho. O terceiro já nasceu no Brasil. Célia não participava da política, mas só pelo fato de ser casada comigo ficou marcada. Depois do golpe no Chile, conseguimos que o pessoal do Brasil a ajudasse. Ela conseguiu voltar, mas o Exército bateu na casa e ela teve de escapar para a Argentina com a criança pequeninha. Mais tarde, nos encontramos na Argentina e depois fomos para a Argélia. Não me arrependo de maneira nenhuma do que fiz, até porque eu acho completamente fora do contexto. A vida caminha e você não consegue retroagir. Naquela época, a situação do Brasil era aquela, o governo era completamente capacho do americano. Era um governo totalmente autoritário, bandido, assassino. A juventude ousou dizer não. Rebelaram-se e buscaram outros partidos, outras organizações armadas para enfrentar o regime. Acabamos enfrentando à nossa maneira. Mesmo que fosse desproporcional em quantidade de força, nós tentamos. Enfrentamos o Exército com poucas armas, sem conhecimento tático, sem uma organização forte, mas a gente ofereceu o que tínhamos no momento que era o mais caro para nós: a nossa vida. Eles se assustaram bastante. Fiquei preso por quase um ano. Primeiro, no presídio, e depois fui para a Ilha. Tentamos um plano de fuga, mas fomos delatados por um que dizia ser nosso companheiro. Tiraram da Ilha esse grupo que estava no plano e fomos para o quartel. No final, quando deu o sequestro, eu já estava em uma solitária. Ficamos ali quase um mês, no escuro. Quando saiu o sequestro, nos tiraram. Demorou uns 10 anos para eu poder ter uma vida quase normal. Emo-
ciono-me muito ao falar. Na 9ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul deste ano, eu me emocionei ao falar sobre a Ilha. Você revive aquele período de novo, que foi muito assustador. Não tem no que se agarrar e eles fazem o que querem com você. O evento contou com uma exposição coletiva na qual teve um espaço para discussões sobre a Ilha do Presídio. Fui convidado a relatar as minhas lembranças. A experiência de fazer o filme Em teu nome, com a minha história, foi maravilhosa. O diretor Paulo Nascimento me procurou e baseou-se na minha vida. Ele queria pegar o aspecto de como uma família se formou naquele momento e como viveu no Exterior. As cenas foram gravadas na minha antiga casa. Ele escreveu o roteiro em uma semana, até porque não tinha dinheiro. Mesmo assim, conseguiu criar o clima daquele período. Tiveram de reconstituir um pouco a Ilha. Foi gravado na África do Norte, porque não conseguiram entrar na Argélia, na França, no Brasil e no Chile. Não chegou a um mês de filmagens. Milhares de pessoas assistiram. Isso é bom porque divulga aquele período e mostra a realidade como era, já que não contam essa parte da história. Hoje as pessoas podem viver da maneira que querem.
”
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Carlos ARAÚJO ADVOGADO
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Filho de um conhecido advogado trabalhista e militante comunista, seguiu os passos do pai desde jovem. Fez parte da luta armada contra a ditadura com a presidente Dilma Rousseff, sua esposa na época, com quem criou a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares. Foi preso político e torturado. Depois, trabalhou na reabertura política no final dos anos 1980. Ajudou a recriar o Partido Trabalhista Brasileiro. Elegeu-se deputado estadual.
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Entre falar e morrer, tu preferes morrer, mas n達o te deixam
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Depoimento a Shana Sudbrack em 19 de setembro de 2013.
Para uma pessoa torturada e presa, não tem como dizer que essa não é a memória mais forte, mas na ditadura também conheci a Dilma. Os amores existem, apesar da ditadura. No período, conheci a dor profunda, a cadeia, o conhecimento profundo, conheci uma pessoa que amei, minha filha nasceu, meu pai morreu, eu sobrevivi. Foi um momento muito intenso, mas o que mais marca, individualmente, é a prisão, a tortura e a cadeia. Eu ia me encontrar de manhã cedo com uma pessoa perto do Estádio do Palmeiras em São Paulo. Na época, a gente não marcava mais um lugar específico, combinava em um quarteirão. Uma pessoa caminhava em um sentido, a outra no sentido inverso e só depois saíam caminhando juntas. Mas a pessoa com quem eu ia me encontrar já estava presa. Na tortura, ela não aguentou e falou. A maioria das prisões eram assim. Fui me encontrar com esta pessoa e havia sete ou oito militares que me pegaram, me atiraram em uma caminhonete C-14 e ali dentro mesmo já começaram o choque. A tortura começava logo, porque eles sabiam que a gente se comunicava muito rapidamente. Qualquer acontecimento, todo mundo sumia. Queriam respostas o quanto antes para conseguir prender os outros. Naquela noite, no auge da tortura, vi que não ia aguentar e decidi me matar. Ninguém está preparado para a tortura. No auge, tu percebes que não vai aguentar. Entre falar e morrer, tu preferes morrer, mas eles não te deixam morrer. Então, menti que tinha um encontro marcado com o Lamarca na manhã seguinte. Era uma das pessoas que eles mais queriam prender. Eles me seguiriam e
prenderiam ele, como foi feito comigo. No dia anterior, pensei: mas tu é tão covarde que vai chegar lá amanhã e não vai se matar. O ser humano não é fácil. Escolhi uma rua bem movimentada da Lapa [bairro de São Paulo] a qual passava muito carro. Sabia que os militares não deixavam os presos mais de cinco minutos nesses lugares. Eu estava lá, encostado em uma árvore junto ao meiofio. Passava ônibus, passava Jamanta. Era só jogar o corpo, e eu não me atirava. Então pensei: quem sabe eu me atiro contra um carro e não morro? Eu tinha um DKW em Porto Alegre e pensei que era um bom carro para me atirar em baixo, porque era alto. Passou um DKW, mas era pesadinho demais, iria me matar. Então decidi me atirar contra um Fusca. Passou um Fusca, mas era muito baixinho, iria me matar. No meio do meu dilema, vi um cara vindo com uma Kombi, dirigindo sozinho e me atirei. Primeira coisa que percebi é que não tinha morrido. Passa mil coisas na cabeça em uma fração de segundo. Percebi que tinha pouco sangue e pouca dor e pensei: tô fudido, vou voltar pra tortura. O motorista perguntava “por que logo comigo, moço?”. Vi os brutamontes chegando, empurrando todo mundo e gritando. Me atiraram na C-14, a mesma em que tinha sido torturado, e me levaram para o hospital. Não queriam que eu morresse. Um morto não é nada pra eles. Lá no hospital mesmo, começaram a me torturar de novo, e as freiras vieram correndo, gritando, “aqui não se tortura ninguém”. Os militares tiveram de ir embora.
”
Dilma Rousseff integrou a luta armada de oposição ao regime militar. Presa política e torturada, após o período participou da criação do Partido Democrático Trabalhista (PDT). Foi secretária da Fazenda de Porto Alegre, secretária de Minas e Energia do Rio Grande do Sul, ministra de Minas e Energia no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva e, mais tarde, ministra-chefe da Casa Civil. Afilhada política de Lula, assumiu a presidência em 1º de janeiro de 2011, depois de eleita com mais de 50 milhões de votos.
Ícone da esquerda brasileira e da oposição à ditadura, Carlos Lamarca foi considerado o principal inimigo do regime militar. Era capitão do Exército, até que em 1969 desertou e se juntou à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), guerrilha armada que combatia o regime. Comandou diversos assaltos a bancos e liderou o sequestro do embaixador suíço, em 1970, em troca da libertação de presos políticos. Foi morto pelos militares em 1971 no interior da Bahia.
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22 ÍNDIO VARGAS JORNALISTA
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Jornalista, professor de filosofia e advogado, Índio Brum Vargas nasceu em São Sepé (RS) em 1 de janeiro de 1938. Foi eleito vereador de Porto Alegre em 1968, com mais de 7 mil votos, e teve o mandato cassado 20 dias após assumir. Preso e torturado, permaneceu na Ilha do Presídio durante um ano e dois meses, sendo posteriormente transferido para o Hospital Militar e depois para o Presídio Central. Tem quatro livros publicados: Guerra é guerra, já dizia o torturador, A guerrilheira, Limites da sedução e Momentos perfeitos dos tempos da ditadura.
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Existe gente para tudo e gente que resiste a quase tudo
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Depoimento a Francielly Brites em 24 de setembro de 2013.
O que mais me chocou foi quem não levou a sério. Não encarar com gravidade os resultados de um golpe de Estado como o que eles deram, apoiados pelos Estados Unidos, dizendo que estava ameaçado pelo comunismo. Mas que comunismo brasileiro? Era um partidinho pequeno. Não tinha nada. Uma fantasia. O mal que eles causaram ao Brasil foi tão grande que eles não podem avaliar. Em todos os sentidos, até em questões de relações internacionais. Países como França e Inglaterra, como o próprio Estados Unidos, não fazem negócios de compra e venda e transações internacionais com países que têm atitudes débeis. O país foi atrasado. Vinte e cinco anos é uma geração! Os jovens daquela época faziam um movimento na faculdade. A UFRGS era o centro da irradiação de todo o movimento estudantil contra a ditadura, mas era uma repressão violenta. Ninguém fazia nada. Os jornais não publicavam notícias. O Estado de S.Paulo publicava na primeira página receitas de bolo, poemas de Camões. Isso porque ficava em branco o espaço censurado. Então, colocavam aquilo como protesto, quase ingênuo, suave. Como enfrentar as Forças Armadas que tinham tudo na mão? O Estadão era o jornal mais importante do Brasil. Eu estava lá em Brasília quando ocorreu o golpe. A gente sabia o que estava acontecendo. Fazia cobertura no Palácio do Planalto, no Congresso. Via que as coisas estavam muito mal. Naquele tempo, havia um grande entusiasmo pela reforma agrária no Brasil e eles, incluindo o Jango, tinham interesse muito grande pelo tema. Jango era um homem da vida agrária, era um produtor de carne e queria fazer. Tanto é que ele fez
o comício dia 13, na Central do Brasil, para consolidar o projeto. A reforma agrária era um grande trunfo, havia um interesse muito grande do governo. Isso me motivou muito para ir a Brasília. Fui convidado pelo presidente do Partido Trabalhista Brasileiro para trabalhar na reforma. Existia um órgão que se chamava Superintendência de Reforma Agrária, diretamente ligado à presidência. Eu lia Monteiro Lobato quando criança. Ele fazia um livrinho com efeito de propaganda, Jeca Tatu, que era um personagem brasileiro, não fazia nada, ficava sentado numa rede. Perto dele tinha um italiano que montou uma granja. Até televisão ele tinha, o que na época só havia nos Estados Unidos. Eu estava fazendo um livro para mostrar o que era a reforma agrária numa situação como esta, o pobre e o rico, o que tinha reforma agrária e o que não tinha. Sempre tive jeito para escrever e estava fazendo isso quando deu o golpe. Foi por isso que eu fui parar nesta história. Não fiz o livro porque não fazia mais sentido. Vim para Porto Alegre. Eles cassaram o mandato de muita gente. Todas as pessoas que eles achavam que não concordavam eram cassadas. O Jango não aceitou a resistência porque derramaria sangue. Até acho que ele tinha a razão dele. Também não queria ver derramamento de sangue, só se fosse louco. Notei que havia ficado um vazio na política, porque os principais políticos foram cassados. Aí, pensei: vou me candidatar. Disseramme assim: ‘Tu estás metido nesse negócio aí, tu deves concorrer’. Isso foi no ano de 1968, quatro anos depois do golpe. Coloquei meu nome lá, eles gostaram e me colocaram como candidato a vereador de Porto Alegre.
Comício da Central, ou Comício das Reformas, foi realizado no dia 13 de março de 1964, no Rio de Janeiro, na Praça da República, pelo presidente João Goulart. Cerca de 150 mil pessoas ouviram o anúncio das reformas que ele pretendia implantar no país. O decreto da Superintendência de Reforma Agrária (Supra), assinado no comício, provocou reação nos setores mais conservadores. A União Democrática Nacional (UDN) e o Partido Social Democrata (PSD) iniciaram campanha pelo impeachment do presidente. Três semanas depois, ele foi deposto.
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O Movimento Democrático Brasileiro (MDB) abrigou os opositores do regime militar de 1964. Organizado em 1965 e fundado no ano seguinte, era oposto à Aliança Renovadora Nacional (Arena). Esses dois partidos foram criados devido ao fim do sistema partidário democrático com o Ato Institucional Nº 2 (AI-2), que permitiu somente a existência de duas associações políticas. O bipartidarismo foi extinto em 1979.
A União Nacional dos Estudantes (UNE) é a principal entidade estudantil brasileira. A fundação da UNE ocorreu no 2º Congresso Nacional dos Estudantes, em 22 de dezembro de 1938, cujo patrono oficial foi o então presidente Getúlio Vargas. Participou da luta contra o regime de exceção.
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Tinha um programa do horário político que era destinado para os partidos divulgarem os nomes e os projetos das pessoas que concorriam pela sua legenda. Chegou o dia do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que depois transformou-se em PMDB. Nesse partido, ficaram as pessoas de oposição à ditadura e, na Aliança Renovadora Nacional (Arena), os a favor. Tudo bem demarcado. Fiz um comitê na Rua Dr. Flores [em Porto Alegre], mas tinha pouca gente. Meu nome era meio apagado. Fui para a televisão. Cheguei lá e pus um cartaz com o meu nome, o número e o partido. Comecei a falar ao microfone da TV Gaúcha, que dava sinal para outras duas. Eu disse assim: antes de iniciar a apresentação do meu nome como candidato a vereador, eu queria fazer uma denúncia para o público do Rio Grande do Sul. Ontem, em São Paulo, numa periferia, um lugar chamado Ibiúna, houve um congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), do qual participaram mais de mil alunos para a escolha do seu novo presidente. A UNE foi incendiada logo depois do golpe de 64 e agora eles querem refazer. A primeira coisa a se fazer é eleger o novo presidente, cujo nome é José Dirceu. O câmera disse assim para mim: ‘Tiraram do ar. E tem mais, agora, quando tu saíres, eles vão te prender. Toda a vez que tem horário político o Exército cerca aqui, e as pessoas que dizem algo que eles não gostam são presas’. Mas aí eu disse: E esta porta aqui? Não tem outra saída que não seja para a rua? Aí ele disse que tinha uma no fundo. Perguntei onde dava. Ele disse que saía na Vila Cruzeiro. Então é por aqui. Peguei minhas coisas, dei tchau e disse: estou indo. Fui e fiquei dois dias
sem aparecer em casa ou no comitê. No terceiro dia, fui ao comitê e tinha umas 50 pessoas lá. Pensei que havia mudado a situação. Fui um dos candidatos mais votados em Porto Alegre, com mais de 7 mil votos, em 1968. Eles achavam que eu ia derrubar o governo e não era nada disso. Fui empossado e assumi no dia 1º de janeiro. Vinte dias depois, fui cassado. Fiquei só 20 dias de um mandato de três anos e 11 meses. A partir daí, comecei a agir com mais rigor. Foi cassado meu mandato, tive os direitos políticos suspensos por dez anos e me tiraram do meu emprego público na Caixa Econômica Federal. Fiquei sem nada. Montei um curso pré-vestibular que funcionava na Rua Marechal Floriano. Foi ali, quando eu estava dando uma aula de filosofia, que fui preso. Muita coisa aconteceu. Para eles, era uma pessoa que só ia agir contra o regime. Acho até que eles tinham razão. Tudo por deduções de coisas que poderiam ocorrer. Não tem fato concreto nenhum. Não que eu seja um anjo, uma pessoa inofensiva, mas também não sou totalmente desfibrado. Essa é a minha história, bem resumida, isso tudo foi muito... Sou muito sensível. Isso tudo foi muito duro. A tortura é uma coisa terrível, não podes imaginar o que pode ser uma tortura. Eles fazem umas coisas incríveis. Existe gente para tudo e gente que resiste a quase tudo. A não ser quando é a hora mesmo, quando tem que entregar os pontos. Aí vem a morte, que é a única libertação total.
”
Mobilização pelas Diretas Já em Porto Alegre em 1984
“Este período, que precedeu as eleições diretas, foi de extrema importância para mim mais como cidadão do que como fotógrafo. Foi um período de intenso envolvimento com a possibilidade do retorno da democracia. Eu tirei proveito deste envolvimento atuando como repórter, pois juntei o útil ao agradável.” MARCO COUTO
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JORGE IGNテ,IO SZEWKIES PROFESSOR
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Nasceu em 23 de fevereiro de 1952 na cidade de Buenos Aires, Argentina. Veio para o Brasil em 1962, aos 10 anos. É médico graduado pela UFCSPA, especialista em psiquiatria pela UFRGS e doutor em medicina pelo Departamento de Psicoterapia da Universidade Ulm, na Alemanha. Foi professor de diversas disciplinas na área da saúde mental, na graduação médica e em pós-graduação. Atualmente é diretor do curso prévestibular especializado em medicina Fleming, criado por ele em 2003.
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A nossa geração fracassou
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Depoimento a Mêlanie Albuquerque em 26 de agosto de 2013.
Qualquer ditadura, seja ditadura política, seja doméstica, com pais muito autoritários, repressores, é muito ruim. Podemos tomar a ditadura como um exercício de poder do mais forte sobre o mais fraco. Sempre que isso acontece, em qualquer circunstância, é triste. A pessoa reprimida perde boa parte de sua capacidade criativa. A criação humana de todos os tipos requer necessariamente liberdade, seja de pensamento, seja afetiva. O exercício do poder sempre inibe a capacidade criativa. Particularmente, as ditaduras estabelecidas em regimes nacionais, sejam de direita ou de esquerda, provocam sequelas e empobrecimento da produção cultural do país, da produção de música, de teatro, literatura, artes plásticas. Nela, sempre se exige algo que se chama obediência, e quem obedece algo não tem liberdade para criar, amar, se expressar. A ditadura é uma tragédia. Mas se é uma tragédia, por que a maior parte das relações humanas se estabelece assim? Se tu fores pegar no mundo, as ditaduras geralmente são maiores que os regimes democráticos. Mais gente vive sob ditaduras do que sob democracia. Mais pais repreendem seus filhos, do que dão liberdade. Mais médicos e professores exercem poder, do que ajudam as pessoas a crescer espontaneamente. A ditadura se opõe a liberdade, e a liberdade é muito difícil para as pessoas. Pois quando tu és livre, és responsável pelos teus atos, não podes colocar a culpa em ninguém. A liberdade exige responsabilidade. E nós não queremos isso. A maior parte das pessoas prefere viver atribuindo as circunstâncias a terceiros. As ditaduras vingam justamente por isso. É fácil culpar o exercício do poder.
Eu participei de muitos atos, começando por 1968, nas manifestações, quando vivemos um período muito bonito. Misturou uma posição política contra o regime militar e, ao mesmo tempo, um grito de liberdade, de expressão jovem. A gente ia contra a ditadura, contra a Guerra do Vietnã. A minha aproximação com grupos de esquerda mais ligados à luta armada foi muito fugaz. Nunca acreditei efetivamente que houvesse qualquer chance de reverter a situação. Participamos da campanha das Diretas Já, mas isso aconteceu em outro momento do Brasil. Fiz toda a faculdade de Medicina sob regime militar, mas não tivemos problemas dentro da instituição. A Medicina sempre foi mais conservadora, não faltou um dia de aula. Havia uma preocupação de todos nós, mas a ditadura no Brasil teve uma característica diferente do que são as experiências da esfera socialista, como em Cuba, por exemplo. Tínhamos 99% de liberdade no Brasil, menos liberdade política, mas se podia fazer o curso que quisesse, trabalhar onde quisesse, viajar para fora do país. Porém, não se podia desafiar o regime. No Brasil, a minha geração paga um preço muito alto por ter acreditado, durante a ditadura, que a alternância de poder do governo civil, e principalmente do governo de esquerda, ligado às ideias socialistas, faria um país mais justo. E não trouxe. As mazelas, tirando a questão da liberdade de expressão, da repressão política, o Dops, os governos civis não se mostraram eficientes, nenhum deles, no sentido de mudar substancialmente a vida da população brasileira. E a vida da população brasileira só irá mudar com educação de qualidade. Nenhum governo, seja civil, militar, democrático ou através 31
de um golpe de Estado, se mostrou efetivamente decidido a ter uma população instruída, pois um povo mais educado se torna mais crítico, menos comprável por propaganda, nacionalismo barato ou Bolsa-Família. Esse é o drama do Brasil da minha geração. Esperávamos uma postura diferente. Essa ideia nos foi vendida e nós acreditamos. Não posso culpar ninguém, eu acreditei porque quis. Acreditei que haveria um novo modelo de governo, uma forma diferente de governar. E no que se transformou o Brasil hoje? Em um país onde se discute politicamente quem rouba mais. Eu diria que esta é a principal sequela da ditadura e das últimas décadas. O atraso de um processo. Estou muito cético em relação ao futuro do país como uma nação emergente, não só economicamente, mas como formadora de opinião, de expressão cultural. O meu ponto de vista final, e agora falo com os estudantes, é que espero que a tua geração tome a moralização da política brasileira. Vai chegar um momento em que o povo vai cansar. A juventude tem um compromisso de corrigir a minha geração. Nós estamos entregando a vocês um país muito complicado, onde não se pode andar na rua em segurança, onde quem não tem dinheiro não tem atendimento médico de qualidade. Vocês têm o compromisso de mudar isso. Temo que a nova geração volte a viver uma ditadura, não sei de qual tipo, mas em algum momento a população vai pedir mudanças. Nos foi prometido um país diferente, e não foi cumprido. Criem alternativas políticas honestas para evitar que a gente caia de novo em uma ditadura. A nossa geração fracassou.
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”
“A polícia não queria ser fotografada batendo nas pessoas. Eles quebravam máquinas e batiam nos fotógrafos, Os policiais não admitiam manifestos. Eu era maluco. Ia pra pauleira com uma grande angular. Ia com raiva. Mais que fotógrafo, era militante. A imprensa tradicional ficava com uma teleobjetiva, de longe.” EDUARDO TAVARES
Passeata da Panela Vazia, em Porto Alegre, 1980
34 LÍCIA PERES SOCIÓLOGA
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Nascida em 1940, é socióloga formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Foi a primeira presidente do Movimento Feminino pela Anistia/RS. Ex-integrante dos diretórios Nacional e Regional do PDT e do Conselho Político da Frente Democrática e Popular. Atualmente participa da Coordenação do Fórum Municipal da Mulher de Porto Alegre e integra o Conselho Diretor da THEMIS - Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero. É viúva de Glênio Peres, ex-vereador de Porto Alegre, cassado com base no AI-5.
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A Anistia não foi uma dádiva, mas uma conquista
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Depoimento a André Pasquali no dia 10 de setembro de 2013.
O que mais me traz recordações – claro que não são boas – é o clima pesado que a gente vivia. Isso para mim é muito marcante. Quando me casei com o Glênio Peres, que foi cassado pela ditadura quando denunciou as torturas, recém tinha feito o vestibular (nasci em Salvador) e me lembro do que era uma universidade, da dificuldade de conseguirmos livros. A gente tinha aulas permanentemente monitoradas pela polícia, que se infiltrava para tentar dedurar professores e alunos. Era um ambiente muito pesado. Só quem viveu na ditadura sabe o que é viver espionado, podendo ser preso a qualquer momento, sem expressar opinião. Os professores, que tinham obrigação de nos dar material para pensarmos – eu fiz Ciências Sociais –, até pode parecer cômico, mas havia alguns que faziam malabarismo verbais para falar nas aulas. Por exemplo, ‘classe dominante’ não podia falar na aula, tinha que ser ‘a minoria que está no topo da pirâmide social’ para o pessoal não entender. Livros indispensáveis à nossa formação só conseguíamos trazendo da clandestinidade. Alguns colegas viajavam até a fronteira para trazer livros. A gente vivia sem liberdade alguma de expressão. Também lembro daquela sucessão de atos, como o AI-5, que permitia tudo! Fechar o Congresso, prender sem você ter defesa. Era um ambiente muito pesado. Tinha uma coisa que contraria a natureza humana, porque o ser humano é um ser político, um ser pensante. A Hannah Arendt, durante o julgamento de Adolf Eichmann, percebeu que ele abriu mão de pensar e aí passou a obedecer e fazer as maiores atrocidades [como, principalmente, organizar a iden-
tificação e o transporte de milhares de pessoas para campos de concentração, a fim de serem exterminados]. E Hannah, como filósofa, observou aquilo. Então, o que na verdade o autoritarismo queria? A filosofia do autoritarismo era de que, se você não fizesse política, você não incomodava. Trabalhador é para trabalhar, estudante para estudar, mas sem sair da linha. Fazer política, não! Há uma diferença entre totalitarismo e autoritarismo. No totalitarismo, se exige a participação. Você praticamente é impelido a participar. São as grandes passeatas, muita capacidade simbólica, muitas bandeiras. O engajamento é praticamente obrigatório. Você fica sob suspeita se não se engajar, desde criança. E isso é tudo o que o autoritarismo não quer. Lembro primeiro daquele clima opressivo. As músicas censuradas, os jornais censurados. Às vezes os jornalistas publicavam receitas para ocupar os espaços. Então, na verdade, a informação quase não circulava, apenas o que eles achavam que devia. A censura é uma coisa terrível, porque você não pode saber o que está acontecendo. A gente só ouvia falar o que acontecia, que tinha gente desaparecendo. Então, para mim, o mais marcante, que me faz sentir um repúdio de pensar, é viver sem liberdade. Não acho que a vida tenha valor maior. Vale a pena viver em um regime sem liberdade? Você não consegue se expressar como um ser humano, com suas opiniões, com a sua forma de viver. Isso foi o que me levou a lutar no movimento da Anistia. Fui visitar o Brizola no exílio em 1976. Até então, havia militado muito no movimento estudantil. Nós íamos para as ruas protestar, subir em qualquer lugar e
Glênio Peres foi vereador em Porto Alegre em três legislaturas pelo MDB, cassado com base no Ato Institucional Nº 5, em 2 de fevereiro de 1977. Após a Anistia, em 1979, foi um dos fundadores do PDT, partido pelo qual Leonel Brizola reorganizou seu retorno à vida política do país. Conquistou seu quarto mandato de vereador pelo PDT e acabou eleito vice-prefeito de Porto Alegre em 1985.
Hannah Arendt nasceu em 1906 na Alemanha. De origem judaica, foi expatriada em 1933, por conta da perseguição de pessoas com ascendência israelita. Foi uma das mais importantes filósofas do século 20.
Adolf Otto Eichmann nasceu na Alemanha em 1906. Foi responsabilizado pela logística de extermínio no final da Segunda Guerra Mundial. No livro em que aborda o julgamento em Israel, Hannah Arendt retrata Eichmann como “alguém terrível e horrivelmente normal, cumpridor de ordens, com zelo, por amor ao dever, e sem considerações acerca do bem e do mal”.
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fazer um minicomício. A polícia vinha e espancava, não deixava. Quando a Dilma [Rousseff] saiu da prisão [1972] e veio estudar aqui [em Porto Alegre], perguntou a algumas pessoas quem poderia dirigir o movimento da Anistia. Quando ela conheceu o Glênio Peres, veio aqui em casa e perguntou se eu assumiria o movimento. Aí lembrei que no ano anterior [1971] eu tinha conhecido várias mulheres do MDB e na universidade, então disse que aceitava. Então, marquei uma reunião com várias amigas e fizemos um primeiro encontro na ARI [Associação Rio-grandense de Imprensa] e constituímos uma executiva. Fui eleita presidente e a Mila Cauduro, vice. Começamos de uma forma muito simples. Íamos às portas de mercados, feiras, igrejas e pedíamos assinaturas, explicando o que era a Anistia e dizendo que era o direito das pessoas viverem a sua pátria. Tínhamos milhares de exilados, todos os políticos importantes e progressistas estavam no exílio, para não serem mortos. E nós dizíamos o contrário do que dizia a ditadura, que dizia ‘Brasil, ame-o ou deixe-o’. Dizíamos que lugar de brasileiro é no Brasil. Tenho orgulho que as mulheres levantaram a bandeira da anistia no Brasil. O primeiro núcleo foi em São Paulo e o segundo, aqui. Quando o CBA [Comitê Brasileiro pela Anistia] se organizou e deu um grande impulso, já estávamos juntos há três anos. E aí o CBA veio e engrossou de verdade a luta e fomos mobilizando a consciência nacional. A gente pensava que a Anistia seria uma base do movimento de democratização. Enquanto não tivesse, não haveria democracia. A gente ouvia das pessoas que ainda 38
esperavam os seus entes queridos que desapareciam e não voltavam. Essa sombra ainda está no Brasil, porque alguma resposta tem de ser dada. Não é possível que o direito de velar os seus mortos seja negado às famílias. A Anistia não foi uma dádiva, mas uma conquista de uma mobilização que tocou a consciência nacional. Publiquei um texto, chamado Desmemória, que identificava que uma quantidade imensa da população de jovens nunca tinha ouvido falar no AI-5. Não era possível as pessoas não saberem da história do seu país, que teve um ato que permitia à polícia fazer qualquer coisa, silenciar qualquer pessoa, invadir e cassar mandatos de eleitos pela população. Não é possível que as pessoas não saibam, e fiquei muito abalada com isso. O terrorismo de Estado não é uma expressão. O terrorismo de Estado existiu. A tortura não foi algo que só malucos sofriam. Todos os que caíam eram torturados.
”
“Com esta foto, fui o primeiro fotojornalista a receber o Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos (SP) de fotografia. Para flagrar o encontro da uruguaia Lílian Celiberti com sua filha na saída da prisão, o repórter Mauro Silveira e eu, ambos de Zero Hora, ficamos três dias circulando de limusine pela capital uruguaia.”
Lílian Celiberti se reencontra com a filha ao sair da prisão em Montevidéu, em 1983
“Estávamos vestidos com camisas floreadas e fumando charuto. Nos disfarçamos de milionários para evitar que as forças repressivas locais nos impedissem de flagrar a libertação. No dia D, usamos a limusine para levar a menina ao presídio, onde ela se reencontrou com a mãe.”
ANTONIO CARLOS MAFALDA
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RAFAEL GUIMARAENS JORNALISTA
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Nascido em 1956, é jornalista formado em 1980 na Faculdade de Comunicação Social (Famecos) da PUCRS. Nos anos 1970, iniciou a profissão como repórter, e depois foi editor e secretário de redação da Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre (Coojornal). Entre outras publicações, em 1986, editou o livro Legalidade – 25 anos e, em 2011, coordenou a edição da publicação Coojornal – um jornal de jornalistas sob o regime militar. Desde 2004, tem a editora Libretos, voltada a publicações jornalísticas, relacionadas à preservação da memória.
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Foi um período também de muita corrupção no Brasil
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Depoimento a Marina Oliveira em 9 de setembro de 2013.
Eu e um colega jornalista, Ivanir Bortot, que mora em Brasília, escrevemos o livro Abaixo a repressão! Movimento estudantil e as liberdades democráticas, que trata especificamente sobre o ano de 1964. Por meio dele, procuramos falar sobre a nossa geração, da década de 1970. Uma juventude que não chegou a pegar a implantação da ditadura no Brasil, nem a parte mais pesada do ano de 1968, quando culminaram todas aquelas manifestações por causa do AI-5, o Ato Institucional Nº 5, que radicalizou a ditadura no Brasil. Naquela época, já existiam as perseguições, mas foi a partir do AI-5 que a coisa acirrou-se muito. Muita gente foi morta. Muita gente desapareceu. Os grupos que faziam a oposição à ditadura, dentro da institucionalidade, acabaram tendo de ir para a clandestinidade. Foram criados grupos de luta armada e de guerrilha urbana. Não havia espaço para se fazer a oposição, do ponto de vista institucional. Pegamos esta coisa toda já consolidada. Era o início do milagre econômico. A radicalização da ditadura promoveu uma propaganda para seduzir as camadas médias da população. O tal do milagre econômico era, nada mais, nada menos, uma conjuntura econômica muito favorável. Fez com que o dinheiro entrasse no Brasil de forma muito barata. O Brasil se aproveitou deste momento. Criou-se toda uma rede de consumo da classe média, de aquisição de casa própria, de bens e de carros. O próprio governo realizou uma série de obras. Algumas eram de grande importância, mas outras eram faraônicas. Foi um período também de muita corrupção no Brasil. Isso não se falava, porque havia toda uma
situação de censura, de repressão. Eu entrei na faculdade com toda essa situação, numa época em que a ditadura já estava se enfraquecendo e a situação econômica revertendo-se. Em 1974, houve a Crise do Petróleo, e, a partir daí, os juros subiram e a dívida externa do Brasil explodiu e começou a haver uma insatisfação muito grande. Nesse período, eu já era estudante, envolvido no movimento estudantil. Em 1975, no primeiro ano de faculdade, tive a sorte de trabalhar na Cooperativa de Jornalistas, a Coojornal, que estava se formando e lançando o jornal que seria muito importante. Eu atuava nesses dois espaços. Quando entrei na faculdade, morreu o jornalista Vladimir Herzog. Foi um episódio demarcador, porque foi a primeira vez em que houve uma reação muito grande das pessoas contra o governo, contra a brutalidade que existia. Eu era muito jovem, sem muito conhecimento da política, recém começando a aprender o jornalismo, mas já estava envolvido. Cheguei a ser presidente do Centro Acadêmico da Famecos, da Faculdade de Comunicação da PUC [Pontifícia Universidade Católica], ao mesmo tempo em que trabalhava no Coojornal. Lá trabalhei primeiro como arquivista e depois como repórter. E foi um período muito intenso. A repressão era muito violenta. A gente vivia com medo, vivia fazendo esquemas de segurança nas situações mais aguçadas. Era um tempo em que tínhamos até um sistema de segurança para as pessoas não irem sozinhas para casa. Mas não existia tanta perseguição ao movimento estudantil da PUC. Ele era muito atrasado em relação ao da UFRGS
O Ato Institucional nº 5 (AI-5) foi emitido em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do general Costa e Silva, marcou o endurecimento do regime militar brasileiro, dando poder aos governantes de plantão para punir os que fossem considerados ou se manifestassem inimigos do regime. Vigorou até dezembro de 1978.
A Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre foi responsável por fazer circular, entre 1975 e 1982, o Coojornal, um jornal produzido e administrado por jornalistas, com linguagem visual ousada e reportagens, cujos temas enfrentaram a ditadura militar.
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Em 1977, a equipe do Coojornal edita o texto sobre a cassação do líder do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) na Câmara Federal, José Alencar Furtado. A matéria seria publicada no jornal alternativo Ex, porém o jornal foi fechado pelo regime. O Coojornal a publica sob o título: “4.686 é o número total de cassados em 13 anos de revolução”
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[Universidade Federal do Rio Grande do Sul], então não chegava a ser um líder muito importante. Em toda esta luta, nos sentíamos protagonistas de um processo de mudanças. Todos nós, quando nos reuníamos. Agora na faixa dos 50, 60 anos, temos este orgulho, esta lembrança. São amigos que a gente fez para sempre. A gente passou por coisas muito difíceis juntos. O Coojornal era um jornal de jornalistas. E o jornalismo que precisava ser feito na época era o de falar de assuntos que a imprensa grande não falava, ou porque estava sob censura, ou porque praticava a autocensura. Então, ele passou a ser também usado para tratar destes assuntos não tocados, que estavam sempre ali, no fio da possibilidade. Em 1977, fizemos uma matéria sobre o número de cassados no Brasil. Ela teve uma grande repercussão, que despertou a primeira reação da ditadura em relação ao jornal. O pessoal da Polícia Federal chegou a visitar os anunciantes, orientando-os a não anunciar mais. Isso foi o primeiro sinal amarelo. Opa, nós estamos sendo vistos. Em 1979, dois anos depois, chegaram até nós dois relatórios sobre operações de combate à guerrilha. Um, era de 1969, que é a chamada Operação Registro, foi uma ação do Exército de repressão ao foco de guerrilha que acontecia no Vale da Ribeira, em São Paulo. Na época, havia um grupo, o pessoal da luta armada, fazia o foquismo, como diziam. O foco de guerrilha no sentido de uma tática. Se aquele foco fosse bem sucedido, iria gerar outros, e assim, criar uma população organizada contra a ditadura. O outro relatório era de 1971, sobre a Operação Pajuçara, que foi a persegui-
ção ao Carlos Lamarca. Ele, depois do Marighella, foi o principal líder da luta armada. Foi o capitão do Exército Brasileiro que virou guerrilheiro e principal líder da Aliança Libertadora Nacional. Naquele ano, havia uma repressão muito grande, que havia dizimado os grupos de guerrilha. E o Lamarca já estava muito enfraquecido, todos os seus companheiros tinham sido presos ou mortos. E o Lamarca fugiu. Então, este relatório é sobre a perseguição ao Lamarca que, ao final, foi morto no interior da Bahia. Segundo o relatório, meio a sangue frio, meio sem nenhuma chance de defesa. Quando esses dois relatórios chegaram até nós, discutiu-se muito dentro da cooperativa, se deveríamos publicar ou não. Dar atenção ou não. Primeiramente, nos certificamos se eram autênticos. E eram. Era o período do presidente Ernesto Geisel. Havia uma briga interna do governo entre um grupo que tentava fazer uma abertura, ainda que lenta, e a linha dura, que achava o contrário, que a ditadura precisava se consolidar ainda mais. Então, no meio dessa situação, estávamos com estes relatórios, tentando imaginar que tipo de reação poderia ter o Exército diante da publicação desse material. Resolvemos publicar na edição de fevereiro de 1980. Deu uma repercussão enorme. A primeira manifestação veio do Ministério do Exército, que publicou uma nota. Era a primeira vez que se publicavam relatórios do Exército sobre combate à guerrilha. Aliás, até hoje esses relatórios ainda não são de amplo domínio. Estamos falando de 30 anos atrás. Nesse período, embora o Brasil tenha consolidado a democracia, ainda algumas partes resistem. A nota publicada pelo ministério
questionava a autenticidade dos documentos. Dizia que iriam nos processar, porque eram documentos confidenciais, que pela Lei de Segurança Nacional, em vigor, não poderiam ser divulgados. Então, houve o processo contra quatro de nós: Elmar Bones, Osmar Trindade, Rosvita Saueressig e eu. Um ano depois, fomos condenados a seis meses de prisão. Eu e Trindade acabamos presos, porque havia uma interpelação judicial contra nós em função de outra matéria relacionada ao sequestro dos uruguaios, Lilian Celiberti e Universindo Díaz. Embora tenha sido só uma interpelação, eles acharam que eram maus antecedentes e não nos deram direitos de apelar em liberdade. O Elmar e a Rosvita puderam apelar em liberdade. Ficamos presos acho que 20 dias, se não me engano. Fomos soltos com habeas corpus. Posteriormente, fomos de novo condenados pelo Superior Tribunal Militar, quando apelamos para Brasília. Ficamos mais cinco dias. Saímos com habeas corpus de novo. Recorremos ao Supremo Tribunal Federal, em 1983, mas acharam que não era mais o caso de processar jornalistas, pois o clima do Brasil era outro, e o processo acabou prescrevendo. Passou o tempo que deveria ser julgado. Mas foi todo esse processo que levou ao fechamento da cooperativa, porque o Exército fez tudo que é tipo de pressão. Acabou afugentando os anunciantes e os clientes. E a cooperativa, além do jornal, produzia muitos boletins e jornais para terceiros. Eram dessas atividades que saíam os recursos para manter a cooperativa e sustentar o jornal. As pessoas foram sumindo, desaparecendo, e a cooperativa teve um final
muito triste. O jornal também. O jornal, enfim, foi perdendo a qualidade. E a cooperativa se esfacelando, começando a acumular dívidas e a atrasar o salário das pessoas. Não se podia mais pagar colaboradores. Então, o jornal já saía enfraquecido. A qualidade caiu muito e, às vezes, até não se conseguia fazer um por mês. O jornal parou de circular no final de 1982, e a cooperativa em seguida também se desfez. O Coojornal deu uma contribuição e foi de extrema importância, pois tratou de coisas que não eram tratadas. O jornal até hoje é reconhecido pela sua importância, no contexto de imprensa alternativa. Pasquim, Movimento, Opinião e Em Tempo, além de outros, eram os jornais que continuavam mantendo esta linha de contestação. Continuavam falando das contradições da ditadura, denunciando as falsidades e os mitos que se criaram. Em 1976, eu tinha 20 anos. Fui adolescente na época da ditadura. Hoje, as pessoas têm liberdade. Então, às vezes, os jovens não sabem muito bem a importância disso. Na minha adolescência, tudo era muito duro, medo permanente e censura. A nossa geração foi muito afetada pela ditadura. Por um lado, tivemos esta experiência ruim, mas levamos para o resto da vida como lição, por termos lutado. Por outro lado, poderíamos ter vivido a infância, a adolescência e o início da vida adulta com outras preocupações, que não envolvessem estar fazendo uma coisa básica, que é combater a ditadura. Mas eu escolhi o lado certo.
”
O sequestro dos uruguaios é como é conhecido o episódio em que os ativistas uruguaios Lílian Celiberti e Universindo Díaz, e seus dois filhos, foram sequestrados por militares uruguaios, com a colaboração de colegas brasileiros, em Porto Alegre. Este caso é exemplo de cooperações entre os serviços secretos das ditaduras do Cone Sul, que recebeu o nome de Operação Condor.
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RAUL ELLWANGER MÚSICO E COMPOSITOR
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Raul Ellwanger nasceu em Porto Alegre no dia 17 de novembro de 1947. É músico e compositor. Iniciou sua carreira em 1966. Identificou-se com grupos que, mais tarde, viriam a formar a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares. Com o endurecimento do regime, foi condenado pela Lei de Segurança Nacional por militância em organização proibida, passando à clandestinidade. Suas canções mais conhecidas são: Pialo de sangue, com 30 gravações em cinco países e quatro idiomas, Cigana tirana, Praia do Rosa e Eu só peço a Deus.
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A mem贸ria mais triste s茫o os torturados e os mortos
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Depoimento a Bruno Ravazolli em 23 de setembro de 2013.
Minha lembrança mais importante não é da repressão, é da nossa vontade de resistir, da nossa doação, da nossa mistura de coragem e maluquice, da nossa indignação contra o que a gente via no plano político. A repressão, o distanciamento da liberdade, não poder se reunir, não poder ter cabelo comprido e também a opressão econômica. Os trabalhadores eram muito diminuídos economicamente, e a política educacional destruía a universidade. A memória mais triste são os torturados, os mortos e, especialmente, os desaparecidos. Isso é uma chaga que não cura. Enquanto não tivermos justiça em todo esse assunto, enquanto os torturadores estiverem caminhando pela Rua da Praia [como é conhecida a Rua dos Andradas, em Porto Alegre], recebendo salário pago por nós, o país não vai descansar. Isso nós sabemos da Alemanha nazista, da Sérvia e da Argentina. É inaceitável. Eu até me emociono de falar. Não bate uma coisa com a outra. A maldade, a perversidade. As palavras não são suficientes. Minha música não era uma coisa muito direta, não. Isso foi piorando. A primeira apresentação que fiz foi no curso de Direito da PUCRS [Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul], em 1966. Fui me destacando naturalmente. Tinha alguma virtude, algum dom como compositor e a gente se inspirava muito no festival da TV Record com Chico Buarque, Sérgio Ricardo e Gilberto Gil. Fazia- se na música um pouco de protesto, mas não era uma coisa obrigatória, muito direcionada, no meu caso pelo menos, porque nunca gostei muito de música panfletária. Gosto de música linda, bonita, romântica, amo-
rosa, bem construída, com harmonia, com melodia que possa ser cantada no banheiro, no salão e na igreja. Não gosto de música política. Uma frase minha que ficou marcada: pros milicos trago estrago, pros inimigos outro balaço. Isso em julho de 1968, transmitido por todas as televisões do Estado e o ginásio repleto aqui na Capital. Foi algo que desagradou, mas também eu estava no meio de uma música, foi um pouco espontâneo, inconsciente. Era um movimento estudantil, crescentemente hostilizado, e a música dos universitários era parte desse movimento. A casa onde eu morava passou a ser vigiada, filmada, hostilidade, telefonemas. Tenho aqui uma coleção de músicas censuradas com carimbo e tudo. Proibiram-nas em festivais, proibiram-nas de incluir em discos. Então teve vários episódios desses que nem transcendem, nem tem uma importância pública, mas vão incomodando a vida do compositor. Sem falar que minha carreira, que estava começando muito bem, deixou de existir por 10 anos. Fui perseguido, condenado, foragido, exilado. Na volta, fui perseguido, negaram minha transferência de volta para a música da UFRGS. É todo um espectro de coisas que faz parte do trabalho da tirania pra oprimir, diminuir, amedrontar o cidadão que se opõe à ditadura. A primeira vez que cantei em solidariedade foi na semana do 7 de setembro, de 1971, em Santiago no Chile. Criamos um conjunto e fizemos um show contra a ditadura brasileira. De lá pra cá, tenho feito isso todo esse tempo. Serão 42 anos em que canto solidariamente pra sindicatos, campanha das Diretas Já, campanha Fora Collor, justiça pela democracia no 49
Uruguai, Argentina, El Salvador e Nicarágua. Estou sempre nesse ambiente. Nos últimos anos, com a criação da Comissão da Verdade pela presidenta Dilma, surgiram muitos comitês. No Brasil, são mais de 50. Eu participo do Comitê Carlos de Ré do Rio Grande do Sul. É um coletivo voluntário de veteranos, jovens de todas as tendências políticas, humanistas, que buscam justamente: Memória – para não esquecer; Verdade – para saber o que houve; Justiça – para que todos os brasileiros sejam iguais perante suas leis. Ontem mesmo [23/9/2013], no Rio de Janeiro, teve um grande ato. Finalmente, conseguiu se entrar no quartel Barão de Mesquita, que deve ter sido o maior centro de tortura da história do Brasil. Conseguiu-se ontem. Ano: 2013. A solidariedade, o apoio, a cumplicidade, a amizade e o carinho. Começa na família, passa pelos amigos, vai para os companheiros de estudo e trabalho, vai para os camaradas de militância, passa pela clandestinidade, pelos presos, as mães lutando, o movimento da Anistia; tudo isso é maravilhoso. O exílio também teve seu lado positivo de aprendizado, crescimento, de descoberta de novos mundos e culturas. Esse é um lado todo que nos permite sorrir e olhar com confiança para frente. Muitos de nós estamos vivos ou não estamos mutilados, aleijados ou sequelados, porque outros nos protegeram, nos defenderam, sofreram tortura, foram solidários, cúmplices no bom sentido. Isso tudo é um jardim florido que nos permite acreditar no nosso país, na nossa juventude, na militância e nos companheiros de todos os tempos.
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”
“Esta foto foi no ano de 1976, durante um protesto contra o corte de uma árvore em frente à UFRGS. Ambientalistas foram varridos abaixo de cassetete. Fazer essa documentação sempre foi de altíssimo risco. Nós, fotógrafos, sempre éramos alvo.” JORGE AGUIAR
Protesto contra o corte de uma รกrvore na frente da UFRGS em 1976
52 RAUL PONT POLÍTICO
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Atual deputado estadual do Rio Grande do Sul, Raul Pont nasceu em Uruguaiana em 1944. Veio para Porto Alegre aos 18 anos. Estudou História na UFRGS e trabalhou como bancário. Depois de formado, atuou como docente por mais de 20 anos – grande parte deles como professor de História na Unisinos. Em 1979, participou do movimento pró -PT e da fundação oficial do partido em 10 de fevereiro de 1980. Em 1982, candidatou-se ao Senado. Em 1985, à prefeitura de Porto Alegre. Foi eleito em 1986, pela primeira vez, deputado estadual – o primeiro de quatro mandatos. Prefeito de Porto Alegre entre 1993 e 1996, não pretende disputar cargos eletivos novamente.
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Tínhamos confiança que aquilo não seria eterno
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Depoimento a Clara Salvadori em 3 de outubro de 2013.
As lembranças são muitas. Algumas mais pessoais, pois perdi meu emprego, fui perseguido e preso por me opor à ditadura – que não foi só militar, foi cívico-militar. Se os militares foram o instrumento de derrubada do governo legalmente eleito, eles não estavam sozinhos. Tiveram apoio inclusive de partidos políticos, como a UDN, o PSD e o PDC, que apoiaram abertamente o golpe militar. As lembranças, do ponto de vista pessoal, remetem também à consequência de todo regime militar, autoritário ou ditatorial: medo, temor. Aquela angústia permanente, principalmente para nós, que tínhamos acabado de ingressar na universidade, participávamos do centro acadêmico e militávamos no movimento estudantil. Para nós, isso era natural, legal e necessário, inclusive, para a nossa formação acadêmica. Então, a minha primeira reação à ditadura foi como estudante. Ingressei na UFRGS no mesmo ano do golpe. Estudava História de manhã e trabalhava como bancário para poder me sustentar em Porto Alegre. Praticava esportes, tinha uma vida como qualquer jovem. E, como bancário, tinha atividades ligadas ao sindicato. O golpe militar ocorreu em Brasília e chegou às universidades com a cassação de professores, o fechamento do centro acadêmico e a suspensão do seu presidente – que era um colega como os outros para nós e estava ali porque fora eleito. Não havia nenhuma razão para tirá-lo. Lembro de professores – os melhores – sendo cassados sem explicação. Esse é o problema de uma ditadura. Depois da Lei de Anistia, muitos desses professores puderam voltar para o seu trabalho; outros já haviam morrido. Enquanto isso, o Sindicato dos
Bancários também começava a ficar sob pressão para não fazer greve e manifestações. O prefeito de Porto Alegre na época, Sereno Chaise, foi cassado, assim como vereadores e deputados também foram – bastava um ato arbitrário. As maiorias no parlamento não reagiram nem impediram as cassações. O todo poderoso Judiciário, sempre com seu ar de imparcialidade e neutralidade, calou a boca diante da ditadura. A instituição acabou silenciando-se com o golpe, que prometia ser curto e rápido, com promessas de que logo teríamos novas eleições e de que o Congresso voltaria a ser respeitado. Um ano depois, saiu o AI-2, que fechou todos os partidos políticos. A ditadura, por sua vez, impôs dois partidos: Arena ou MDB. As pessoas tinham de ir pra um ou pra outro, pois seus partidos de origem estavam dissolvidos. A Arena servia para legitimar o governo, e o MDB era uma oposição consentida, para que pudessem dizer que havia oposição. Essa é uma primeira lembrança. Logo fui tomando consciência e compreendendo melhor o que estava acontecendo. O golpe em 1964 foi uma espécie de epílogo do que já havia começado três anos antes, em 1961: as mesmas pessoas que dirigiram o golpe já haviam tentado impedir a posse de João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros. E essas mesmas pessoas estavam envolvidas na crise que levou Getúlio Vargas a cometer o suicídio, dez anos antes, em 1954. O golpe militar não foi um raio em céu azul. Havia um movimento crescente de oposição de alguns setores da sociedade, principalmente os grandes empresários, a cúpula da Igreja
Em 1965, o AI-2 foi elaborado para ampliar o poder da ditadura e controlar a oposição. Ele legitimava a intervenção do governo federal em Estados e municípios, assim como o fechamento do Congresso Nacional, entre outras definições divididas em 33 artigos. Ele vigorou até 1967.
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Católica e alguns partidos políticos que eram contrários à orientação política de Getúlio – um pouco retomada no governo de Juscelino Kubitschek, cujo vice-presidente era João Goulart, do PTB. Depois de Juscelino, houve a eleição e a renúncia de Jânio Quadros, com João Goulart novamente de vice. Aqui está uma situação muito particular: o movimento golpista de 1964 tem uma direção clara contra as reformas de base que o país precisava fazer. Por exemplo, a reforma agrária. Esse problema não nasceu com o MST. Naquela época, esse problema grave já existia. Também podemos citar a política de defesa da economia nacional. No caso, o Estado cumprir a função dos investidores privados nos setores em que eles não tinham interesse. Foi o que aconteceu com a Petrobras, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica, empresas siderúrgicas etc. Naquele momento, a política tanto de Getúlio Vargas quanto de João Goulart apontava que o Estado devia entrar na atividade econômica, já que não existiam empresários dispostos a fazer investimentos nos negócios que não eram interessantes aos capitalistas. Por outro lado, as empresas diziam que esse era o primeiro passo para o socialismo e que João Goulart, apoiado por comunistas, daria um golpe no país. Essas questões justificaram a derrubada do governo. Nós, estudantes, reagíamos. Fazíamos passeatas, manifestações, denunciávamos a ditadura. E existiam informantes dentro na própria sala de aula, nunca sabíamos quem estava do nosso lado. Nem o professor sabia quem era quem. Imagina estudares em um país onde tu não podes expressar nenhuma 56
opinião; onde pegava muito mal fazer uma pergunta considerada subversiva ou crítica. O professor dizia que não podia falar sobre aqueles assuntos, ou se sentia constrangido porque precisava se posicionar. Ora, quando há assuntos que não se pode falar em uma faculdade, é preciso fechá-la. Não serve pra nada. E o clima foi piorando. Comecei a ser visado. Eu e outros. Como fazíamos manifestações, não havia como não aparecer. Em 1966, prestei vestibular na UFRGS para Economia em função do meu trabalho no banco e passei. Logo depois, fui demitido. Fiz concurso pra trabalhar na Petrobras, fui aprovado e, quando fui trabalhar, impediram-me porque eu já tinha uma ficha na polícia política. Consideravam-me perigoso. Por pior que o clima ficasse, não era correto silenciarmos. Foi uma opção pessoal. Comecei a agir à altura. Como apanhávamos nas manifestações, começamos a fazer outras ações, como pichamentos noturnos em que denunciávamos a ditadura. Fazíamos comícios-relâmpago inesperados, marcando com grupos fechados e confiáveis. Não tínhamos força para derrubar o governo, mas tínhamos força para dizer que aquilo tudo era ilegítimo. Não queríamos ser heróis, mas não queríamos ser vítimas de um regime ditatorial. Sentíamos que precisávamos reagir. Em várias oportunidades, fui preso e detido. Normalmente, em atos públicos. Em 1968, alguma legalidade era respeitada e ainda havia o direito ao habeas corpus. Com o AI-5, houve a retirada dos direitos individuais. Não era mais prisão e, sim, sequestro. Acabei sequestrado em São Paulo durante
a Operação Bandeirantes (Oban), operação financiada por grandes empresários que davam dinheiro por fora do orçamento para a polícia e o Exército, e eles formavam grupos irregulares. Fiquei preso um ano e meio. Eu tinha um encontro marcado com outro companheiro em um shopping center. Mas, quando cheguei, ele já havia sido preso. E, sob tortura, confessou onde iríamos nos encontrar. A polícia cercou um andar inteiro do shopping. Fui identificado e sequestrado por pessoas com metralhadoras e sem farda. Ninguém me apresentou um mandado judicial ou me ofereceu a possibilidade de contatar um advogado. Fiquei na Operação Bandeirantes por 20 dias, quando acontecia a fase do interrogatório e da tortura. Todos que passavam por lá passavam pelo tratamento do pau-de-arara e de choques. Depois, fui para o Dops para a fase cartorial, onde o preso voltava a ser gente e era identificado. Fui trazido para o Rio Grande do Sul com um grupo de outros presos políticos e fiquei na custódia do Dops. Foi a primeira vez em que pude entrar em contato com alguém da minha família e dizer que estava vivo. Depois, fui levado para a ilha [Ilha das Pedras Brancas, onde havia um presídio], onde passei a maior parte deste um ano e meio. Fui preso aproximadamente em agosto de 1971 e liberado no fim de dezembro de 1972, após ser julgado. O julgamento foi uma farsa. Nós denunciamos que todas as acusações do promotor eram fruto de um inquérito falso, obtido sob tortura. Não havia como sustentar acusação, ninguém me viu roubar um banco ou distribuir panfletos. Conheci a atual presidenta, Dilma
Rousseff, quando fui levado de volta para São Paulo por um curto período de tempo. Fiquei no Presídio Tiradentes, onde havia um andar de presos comuns e outro para presos políticos. Podia me encontrar com o [Carlos] Araújo, companheiro dela na época, na hora do sol. O presídio era dividido em ala feminina e masculina. Certa vez, tive um problema de dente e, já que a prisão não tinha serviço de dentista para os presos, uma companheira dentista se dispôs a me atender. Quando fui ser atendido, a Dilma estava na mesma sala. Nós éramos estudantes e militantes comuns. De certa forma, pude ter uma formação antes de estar preso. Tínhamos certa organização política e uma preparação para enfrentar a prisão. Sabíamos que ser preso era uma possibilidade, sabíamos do risco, mas nem todos que foram presos estavam preparados. Eu presenciei situações de detenções por engano. Certa noite, prenderam um homem pensando que fosse eu. Ele foi torturado e só depois conseguiu explicar que era um mal entendido. Passou o fim de semana chorando, preocupado com a mãe que morreria de desgosto. Inclusive, ele achou que havia sido sequestrado por subversivos, pois os policiais pareciam bandidos. Identificamos alguns dos nossos interrogadores. O comandante da Operação Bandeirante, na época, chama-se Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel aposentado. Tenho colegas que estão desaparecidos até hoje, outros foram mortos. Presenciamos a morte de alguns dos nossos colegas de prisão, quando não resistiam depois de uma sessão de tortura. Mas nós tínhamos confiança, pelo conhecimento da história, que aquilo não seria eterno.
”
A Operação Bandeirantes foi financiada por empresários e banqueiros que se sentiam ameaçados pelos militantes que consideravam subversivos. A Oban era ancorada pelo Exército e especialista em identificar, localizar e capturar os integrantes dos grupos opositores. Posteriormente, a operação foi substituída pelo DOI-Codi (Destacamentos de Operações de Informação – Centros de Operações de Defesa Interna).
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Protesto de estudantes na UFRGS em 1977
RICARDO CHAVES
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ricardo chaves fotÓgrafo
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Ricardo Chaves nasceu em 1951, em Porto Alegre. Mais conhecido como Kadão, começou a atuar na área de fotojornalismo em 1969, no jornal Zero Hora. Trabalhou para a sucursal do Jornal do Brasil, nas revistas Veja e IstoÉ e na Agência Estado. Em 1992, voltou para a ZH e ocupou o cargo de editor de Fotografia até 2012. Atualmente é responsável pelas colunas Reflexo e Almanaque Gaúcho nesse veículo. Seu pai, Hamilton Chaves, foi um dos perseguidos nos primeiros anos do regime ditatorial.
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Meu objetivo era denunciar a repress達o
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Depoimento a Alina Souza em 3 de setembro de 2013.
Para mim, a ditadura tem um significado, talvez, diferente do que para outros fotógrafos. Ela começou antes de eu ser fotógrafo, porque meu pai [Hamilton Chaves] foi um cassado do regime, do golpe. Meu pai era vereador em Porto Alegre, foi cassado e preso. Ele era muito ligado ao governador Brizola. Quando o Brizola era governador aqui [Rio Grande do Sul], meu pai era o secretário de Imprensa. Ele foi um dos organizadores da rede radiofônica da Rádio da Legalidade em 1961, que deu sustentação ao movimento que permitiu a posse do Jango, quando o Jânio quase renunciou. Então, ele era muito visado, alinhado aos perdedores de 1964. Ele era secretário municipal de Educação e Cultura, na época do prefeito Sereno Chaise, e também vereador eleito. Foi expurgado do serviço público. Teve os direitos políticos cassados por dez anos e acabou preso. Lembro de visitar o meu pai na cadeia. Ele passou o aniversário, dia 17 de maio, naquele lugar. Ele ficou preso por uns 30 dias. Naquela época, não tinha muito esse negócio de tortura ainda, de presos políticos. Tinha, mas não muito. Ele não apanhou. Isso foi em 1964 mesmo. Foi bem no início. Ele fez parte da segunda lista de cassação. Na primeira lista, acho que foram só quatro pessoas. Depois teve uma lista enorme, ele já estava entre os primeiros. Em seguida, foi preso. Claro, tortura no Brasil sempre houve nos presos comuns. Enfim, isso é uma coisa que todo mundo sabe, mas naquela época não era tão forte como veio a ser a partir do momento da luta armada, da resistência à ditadura no âmbito militar ou, digamos, para-militar. Aí o bicho pegou bravo mesmo, e a tortura veio a milhão. Mas, naquela época, tinha alguns
maus tratos. Meu pai não apanhou. Lembro de eu visitando ele na cadeia. Lembro de a gente chegando lá, dia 17 de maio. Ele até ganhou um filhote de cão de uma amiga. A gente chegava e colocava garrafa térmica de café. Os agentes penitenciários cheiravam para ver se não era gasolina, sei lá, essas coisas. Ele estava preso no que é hoje um pavilhão desativado da Fase [Fundação de Atendimento Socioeducativo], no Morro da TV, em cima do asilo Padre Cacique. Hoje o pavilhão está todo em ruínas. Tinha muitos outros presos lá. Havia um pátio onde eles tomavam sol. A gente o visitava na cadeia e via um monte de presos no sol. Era o horário de visita em um pátio aberto. Aberto eu digo “sem teto”, cercado de muros com guardas e policiais nas esquinas. Eu tinha uns 12 anos. Isso me marcou bastante. Outra coisa que lembro também: nossa casa foi invadida pelo pessoal do Dops [Departamento de Ordem Política e Social]. Meu pai mesmo sugeriu que a gente saísse de casa porque isso estava acontecendo. Na casa do Brizola, por exemplo, eles arrancaram até os tacos do parquê para procurar dinheiro, armas e outras coisas. Foram muitas demonstrações de violência. Nossa casa foi invadida também, nós morávamos no Centro, na Fernando Machado. Meu pai trabalhava durante o dia na Secretaria de Educação. Durante o dia, ele trabalhava, e à noite, sumia. Ele era uma das poucas pessoas que sabia o que estava acontecendo com o Brizola, o Brizola não tinha saído ainda do Brasil nos primeiros dias. Então, ele tinha medo que o espancassem. À noite ele sumia, dormia na casa de um conhecido, de outro. Ficava sempre um Jeep esperando a saída dele. Tinha toda uma
Leonel Brizola, um dos fundadores do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), foi prefeito de Porto Alegre, deputado estadual, federal e governador do Rio Grande do Sul. Também eleito deputado federal pelo extinto Estado da Guanabara e duas vezes governador do Rio de Janeiro. Comandou a resistência civil (Legalidade) às pretensões dos militares que queriam impedir a posse de João Goulart, em 1961.
No dia 10 de novembro de 1963, Sereno Chaise, então filiado ao PTB, foi eleito prefeito de Porto Alegre. O mandato, iniciado em 2 de janeiro do ano seguinte, foi interrompido quatro meses depois, devido ao golpe militar. Ele teve os direitos políticos cassados por 10 anos. Só os recuperou durante a Anistia, em 1979.
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estratégia de ele sair do trabalho e subir no carro. Ele, não aguentando as coisas, disse para a gente sair de casa. Ele ficou em uma tia por uma época, mudou mais uma vez de endereço também. Uma vez eu e a minha mãe estávamos em casa e catamos todos os livros que falavam em comunismo e socialismo, que possuíam capa vermelha. Colocamos esses livros em um saco e fizemos um buraco no chão. Enterramos os livros. Tu vês que é uma coisa meio de filme. Quem tivesse esse tipo de livro era taxado de subversivo, comunista. Então, a mãe mesmo tomou a iniciativa de pegar o que ele tinha de livros. Meu pai era jornalista, gostava de ler, tinha muitos livros em casa. Então, fizemos um buraco no chão, enrolamos em um plástico e enterramos em um quadrado de área, desses da criança brincar. Logo em seguida, recolhemos, porque achamos que lá não era um lugar muito seguro. Acabou o próprio Dops pegando os livros porque encontrou no porta-malas do carro do meu pai. Em outra circunstância, eles pegaram o motorista do meu pai e os livros estavam no porta-malas. Esse motorista chegou a apanhar, levou uns tabefes, não muita coisa. Queimaram o bigode dele, que era grande, com ponta de cigarro. Fizeram algumas atrocidades com o motorista. Chamava-se Seu Vargas. Motorista não do meu pai, motorista oficial da secretaria, que trabalhava para o meu pai. São memórias muito fortes para mim. Depois, já estudando na escola técnica, lembro que... isso é uma coisa engraçada. As pessoas não têm muito essa noção. Hoje a Dilma [Roussef] na presidência; um dia ela estava na luta armada. E agora todo o pessoal de esquerda, de alguma 64
forma, é reconhecido como o pessoal que está ao lado da luz, da verdade, do país mais justo – o que é, em minha opinião, correto e verdadeiro –, mas o que a gente esquece é que logo depois do golpe não era esse glamour todo ser de esquerda. Ser de esquerda significava subversivo, traidor da pátria, vendilhão, como se quisesse vender o país aos comunistas. Era mal visto. Meu pai era tratado por esses termos. Ele e os amigos. As pessoas que conviviam com a minha família eram todas taxadas de subversivas, terroristas. Ele era militante, não era ligado ao Partido Comunista porque nunca foi comunista. Ele era trabalhista, brizolista, getulista, mas era um cara de esquerda, sem dúvida. Foi muito duro. Para se ter uma ideia, uma professora resolveu que não daria aula enquanto minha irmã estivesse dentro da sala, porque ela era filha de um comunista. A professora era de direita, casada com um político famoso de direita. E ela disse: “Não vou dar aula para essa menina”. Minha irmã tem um ano a mais do que eu, devia ter uns 14 anos. Depois, já trabalhando, aos 18 anos, na Zero Hora, havia um amigo do meu pai, chamado Índio Vargas [ver depoimento na página 22], que tinha participado de uma tentativa de sequestro do cônsul americano em Porto Alegre. E o Índio foi preso, ele e outras pessoas envolvidas nessa ação. Ele, claro, cumpriu pena longa na Ilha do Presídio e esteve preso no Palácio da Polícia durante muito tempo. Eu ficava com medo de, como fotógrafo, ser destacado para fotografar um cara que, praticamente, era como um tio meu. Meu amigo até hoje, amigo do meu pai. Meu pai já morreu, mas o Índio está vivo. Era um cara do círculo de ami-
zade íntima do meu pai. E, de repente, o cara estava preso porque tinha tentado sequestrar um cônsul. E a imprensa tratava esses caras como terroristas, como pessoas perigosas para a sociedade. E eu poderia ser destacado para fotografar o meu tio, para uma notícia contra ele. Uma notícia dizendo que ele era um cretino, um bandido. Não gostaria de fazer esse papel. Eles foram apresentados à imprensa assim como é apresentada uma quadrilha de bancos que foi presa. A imprensa toda apoiou o golpe de 1964. A ditadura, para mim, começa desse jeito. Depois, claro, já trabalhando, havia o temor de ter de fotografar alguma pessoa da minha relação. Termina com a gente na rua, fotografando o pau pegando. Gente sendo agarrada pelos cabelos, sendo metida dentro de camburão, gás lacrimogênio, no ano de 1977. Não estou falando em 1964, porque em 1964 eu ainda não era fotógrafo. Do início ao final dos anos 1970, o que aconteceu na cidade, eu fotografei. Em 1977, quando deu um grande quebra-pau na frente do Restaurante Universitário na avenida João Pessoa, eu estava lá como fotógrafo da revista Veja. Até ganhei um prêmio com as fotos que fiz. Aliás, todo mundo que trabalhou lá ganhou prêmio. Nunca achei que eu era a notícia. Não ia lá para bater em polícia, ia fotografar, me proteger e tentar fazer o meu trabalho. É claro que eu achava que os estudantes estavam do lado correto, eram os caras que gozavam da minha simpatia e do meu apoio. Mas, quando eu estava trabalhando, tentava não apanhar e não ser visto pela polícia como alguém posicionado ao lado dos estudantes. Então, eu ficava me mantendo, na medida do possível, com a neutralidade suficiente
para não apanhar e conseguir trabalhar e fotografar, denunciar a repressão. Era o meu objetivo, denunciar a repressão, que era violenta. Gente agarrada pelos cabelos... Em 1977, teve uma menina que, diante de uma linha de brigadianos com escudos, ela segurou uma bandeira, coisa muito simbólica na época. Uns amigos meus de São Paulo mandaram a foto para o Exterior. Chegou até a ser publicado em um cartaz, mais de um até, falando sobre a luta pela democracia no Brasil, em uma universidade americana. Ganhei prêmio com a foto, acabei viajando para a Europa por causa da foto. Mas não foi só eu. Outros fotógrafos que fotografaram essa mesma cena ganharam prêmio, porque a cena era forte. A ditadura era isso, e depois... Depois, continua. A história nunca acaba. Esse papo que a história acabou é conversa mole.
”
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SUZANA LISBOA MILITANTE
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Foi casada com Luiz Eurico Lisboa, militante político brasileiro preso em 1972. Desde lá, ele ficou desaparecido. É uma das líderes na busca pelos corpos desaparecidos da ditadura. Em 1979, o Comitê Brasileiro pela Anistia conseguiu localizar o corpo de Luiz Eurico, enterrado com o nome de Nelson Bueno, no Cemitério Dom Bosco, em São Paulo. Dentre os desaparecidos políticos do período da ditadura militar, ele foi o primeiro que teve o corpo encontrado.
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É uma luta que não está nem perto de terminar
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Depoimento a Fernanda Ponciano em 30 de outubro de 2013.
É muito importante falar na ditadura, porque, por incrível que pareça, tem gente que diz que tem saudade dela. Quem diz que tem saudade da ditadura não sabe a metade do que ela foi, não só para os opositores, mas para toda a população. A ditadura permanece até hoje, com o abismo entre a população miserável desse país e os ricos. O que ficou da ditadura foram os crimes, os assassinatos, os desaparecimentos. Havia pena de morte no país, mas a ditadura optou por matar na clandestinidade. Ela prendeu, torturou, executou, dezenas ou centenas de militantes. Restou disso 160 desaparecidos políticos, que até hoje os familiares buscam para saber onde estão, quem matou, como morreram e a punição dos responsáveis. E é importante que fique claro: não é uma questão pessoal, que envolva os familiares e os governos que se sucedem. É uma questão entre a população brasileira e o Estado brasileiro. É uma luta para que nunca mais aconteça. Faço parte desta luta desde a época da Anistia. O corpo do meu marido Luiz Eurico Lisboa foi encontrado. Fizemos a denúncia do corpo dele, que foi o primeiro dos desaparecidos que encontramos morto. Apesar de a ditadura dizer que
ele estava vivo, encontramos ele morto, enterrado com nome falso. Essa denúncia foi feita no dia da votação da Anistia em 1979, no Congresso Nacional. De lá pra cá, localizamos três corpos dos 160. Então é uma luta que não está nem perto de terminar. Vou lutar até o fim dos meus dias. É claro que dói e vai doer sempre. Se já é difícil conviver com a morte, imagina conviver com morte nas circunstâncias em que foram mortos os nossos familiares. E aí, não é só uma questão minha, pessoal, com o Luiz Eurico. É questão de uma geração que foi dizimada. Você tem ideia do quanto pode doer ver a foto dos cadáveres mutilados? Muitos eles não deixaram, eles jogaram óleo, deceparam orelhas, cortaram cabeças. Não estamos falando de séculos atrás, mas do século 20. Feito a mando dos dirigentes do país e dói muito. A impunidade dói muito. A impunidade desses crimes é o que alimenta casos, por exemplo, como o desaparecimento do Amarildo, que virou símbolo atual de luta. Foi morto e desaparecido da mesma forma que foram mortos e desaparecidos os nossos familiares. Isso tudo dói muito.
”
Luiz Eurico Lisboa foi um militante brasileiro. Em março de 1969, casou-se com Suzana Keniger Lisboa. Em outubro do mesmo ano, foi condenado a seis meses de prisão. O casal optou pela clandestinidade. Os dois viveram alguns anos em Cuba e retornaram ao Brasil em 1971, na tentativa de reorganizar a Ação Libertadora Nacional (ALN) em Porto Alegre. Foi preso em circunstâncias desconhecidas em São Paulo, na primeira semana de setembro de 1972, e desapareceu em 1979.
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quem viveu
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ARNILDO FRITZEN PADRE
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Nasceu no interior do munícipio de Sarandi (RS) em 2 de outubro de 1942. Filho de pequenos agricultores, viu desde cedo a exploração e optou pelo sacerdócio a fim de tornar-se uma liderança para os homens da terra. Em plena ditadura militar, tornouse um dos principais idealizadores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra incentivando o assentamento de desabrigados no interior do Rio Grande do Sul. No ano de 2012, foi eleito personalidade da região pela Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo (CDHPF).
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A revolução prendia exatamente quem pensasse diferente
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Depoimento a Lucas Etchenique em 26 de setembro de 2013.
Nasci em 2 de outubro de 1942, no interior do município de Sarandi, local hoje pertencente a um município novo, chamado Nova Boa Vista. Sou filho de pequeno agricultor, e minha família sempre trabalhou na produção de alimentos, enfrentando, portanto, todas as dificuldades que se pode imaginar longe da cidade. Neste meio, sempre percebi, desde minha infância, como todos pequenos agricultores eram muito explorados. Explorados no resultado da sua produção, pois, quando vendiam os produtos, ganhavam sempre o mínimo. Trabalhavam muito e também tinham muita doença. Para poder sobreviver, gastavam tudo o que conseguiam na vida por meio do trabalho. Vi essa experiência na minha própria família. Meu falecido pai, na época, continuamente vivia nos hospitais. O que nossa família fazia no trabalho ia tudo para hospital e médicos. Eu observava que era a realidade de todas as famílias, não só a da minha. Não tinha nenhuma assistência, nenhum amparo ao trabalhador da roça. Esta situação fez com que, desde a minha infância, me revoltasse muito. Ninguém fazia nada para melhorar a situação. Não havia político que se interessasse, não havia autoridade que fizesse alguma coisa, nem sindicato que defendesse os pequenos agricultores. Um líder que as pessoas admiravam na nossa região era o padre. Era o líder da comunidade, e este sim poderia fazer alguma coisa em benefício do povo. Não fazia no momento, mas eu sabia que ele podia fazer. Daí vem minha opção de assumir a vida de sacerdote. Havia o preço de renunciar a varias coisas, mas nesta renúncia fui amadurecendo em nome deste ideal.
1964 foi exatamente o ano em que fui para Porto Alegre, estudar no Seminário de Viamão [município vizinho da Capital]. Entrei em cheio, em março, na revolução, mas claro que, como um jovem do Interior, não entendia o que estava se passando. Na verdade, consegui progressivamente entender, porque colegas do próprio seminário foram presos, perseguidos. Fui entendendo o porquê de eles serem presos. Devagar, entendi que a revolução prendia exatamente quem pensasse diferente do que se pensava na época, especialmente as leis e as normas que os militares enfiavam. Percebi essa perseguição e fui entendendo um pouco da revolução. No movimento estudantil, também fui perseguido. Fui sentindo na carne a dureza da perseguição da ditadura militar. Escondemo-nos durante um mês, mais ou menos, e colegas meus ficaram muito mais tempo, porque participavam da União Nacional dos Estudantes (UNE), foram ao Rio de Janeiro e a Curitiba. Permaneci em Viamão e, portanto, não fui um dos presos e torturados, como foram alguns colegas meus. Em 1971, no auge dos atos institucionais, voltei. Já havia sido ordenado padre. Trabalhei em Carazinho dois anos e fui percebendo o sofrimento dos que vivem na cidade, nas favelas, nos bairros e a dureza da perseguição do regime militar. Quantos aqui também foram torturados, presos. Eram do Grupo dos 11. Principalmente nesta região, a terra do Leonel Brizola. Eram todos adeptos dele. A ditadura militar tinha horror do Brizola, do João Goulart e dos seguidores deles. Em 1976, fui trabalhar em Ronda Alta, região de pequenos agricultores, na beirada das áreas indígenas de Nonoai
O Grupo dos 11 consistia na organização de unidades com “onze companheiros” (como em um time de futebol) ou “comandos nacionalistas” liderados por Leonel Brizola, em fins de novembro de 1963. Para Brizola, estes grupos deveriam se constituir, mais tarde, nos núcleos de seu futuro exército, o Exército Popular de Libertação (EPL).
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José Augusto Amaral de Sousa nasceu em Palmeira das Missões em 1929. Foi um influente político brasileiro e exerceu o mandato de governador do Rio Grande do Sul entre 1979 e 1983 durante o final do regime militar. Seu governo foi o último não eleito democraticamente. Faleceu em Porto Alegre no dia 13 de junho de 2012.
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e Planalto. Em 1978, os índios dessas áreas, depois de trabalhar, negociar com o governo e não conseguirem suas áreas livres, tomaram a iniciativa de tirar de dentro da área todos os pequenos agricultores, que tinham sido introduzidos lá pelos políticos da Arena, na época do governo militar. Esta gente ficou à beira das estradas. Em Ronda Alta, onde eu tinha residência e trabalhava na igreja, muita gente vinha à procura de apoio, de ajuda, de comida, abrigos, roupas e assim por diante. E foi aí que abriguei uma boa turma em casa. Em uma noite de chuva e frio, lembro bem, cedi todas as dependências da casa pra eles poderem se ajeitar um pouco. Umas 30 a 40 pessoas. Dormiram no chão, com as crianças. Nessa noite, não dormi, evidentemente, e fui encontrar na Bíblia um texto que me inspirou muito e depois se tornou iluminador de toda caminhada em busca da terra, da terra prometida. No outro dia de manhã, depois de tomar café, perguntei para o grupo se podia ler um texto da Bíblia, que tinha me marcado durante a noite. Eles concordaram e lemos Êxodo, capítulo 3, dos versículos 7 a 12, um trecho no qual Deus fala a Moisés: ‘Eu vi o clamor do meu povo sofrido no Egito, eu desci até eles, vi quem os oprimia, ouvi seus clamores, seus choros, sua tristeza e decidi intervir na história e libertar esse povo da escravidão do Egito’. E completou dizendo: ‘Vai você Moisés negociar a libertação do povo com o Faraó’. Lemos o texto de manhã. Minha maior surpresa foi ver as pessoas dizendo ‘Isso aqui é a nossa situação, está retratada na Bíblia’. Eles foram dizendo quem eram os que oprimiam, quem estava
expulsando eles da terra, não os índios, mas os grandes proprietários. Foram dizendo o nome das pessoas, e a conclusão daquela conversa foi de que deveríamos nos organizar de tal forma que os Moisés que deveriam ir de encontro ao Faraó éramos nós, aquelas pessoas que estavam lá comigo. Deveríamos organizar o povo para ir buscar a terra prometida. Assim começa a surgir um movimento que depois, bem mais adiante, é reconhecido em uma assembleia e se dá o nome de Movimento do Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O nascimento do Movimento Sem Terra foi exatamente nesta reflexão, de uma iluminação bíblica. Foi então que decidimos nos organizar, que uns iriam a Nonoai, onde estavam muito dos que tinham sido expulsos. Outros iriam para Planalto. Eu e mais uma turma ficaríamos encarregados de organizar o povo em Três Palmeiras. Portanto, em três pontos, para juntar devagarinho uma boa parte de quem tinha sido expulso e estava jogado na beira de estrada ou morando na casa de parentes. A partir disso, fomos a Porto Alegre, lotamos um ônibus. Fomos lá à Assembleia Legislativa, em uma audiência com o governador Amaral de Souza, na época, e foi lá nossa primeira tentativa de negociar para ele ceder áreas do Estado que estavam aqui na região do Sarandi e Ronda Alta, terras chamadas Macali e Brilhante, duas áreas do Estado que estavam arrendadas a particulares. Negociamos com o governador, e ele, em uma demonstração de demagogia, falou que em 30 dias resolveria o problema. Foi um lance bem demagógico. Voltamos de Porto Alegre sabendo que ele não ia cumprir. Então, a gente foi se organizando para que, quando passasse
os 30 dias, ocuparíamos essas duas áreas do Estado, já que o governador falou que, em 30 dias, ele iria resolver. Passaram 30 dias, e a decisão em assembleia foi de a gente ocupar a Macali e a Brilhante. Foi assim a primeira ocupação, no dia 7 de setembro de 1979. Ocupamos a Macali. Lá então foi hasteada a bandeira e cantado o Hino Nacional. Fizemos uma celebração de libertação, solene, como que saindo da escravidão para a terra prometida, como dizia na Bíblia. Foi muito bonito. Uma celebração no meio da ditadura militar, sabendo que nada se podia fazer e que quem discordasse do governo era perseguido e torturado. Depois do dia 7, baixou a Brigada Militar de Passo Fundo, fomos cercados, ameaçados de prisão. Houve um esquema de perseguição muito grande. Ao mesmo tempo, tínhamos encaminhado alguns que estavam na liderança para ir a Porto Alegre e dizer para o governador: “O senhor tinha prometido, não cumpriu. Nós cumprimos com a sua palavra, nós ocupamos a terra”. Foram 15 dias de ameaça, de perseguição. Íamos ser despejados, e o governador ficou sem resposta. O momento mais duro foi quando se ameaçava despejar todo o acampamento. Foi quando começou a organização das mulheres, que faço questão de ressaltar, porque elas intervêm na história, como as que garantem a terra para o povo. Elas se organizaram, cercaram o acampamento e, quando se anunciava a vinda do Exército para tirar aquele povo de lá, elas cercaram o acampamento com seus filhos. Quando os soldados chegaram para fazer o despejo, tiveram de enfrentar as mulheres. E elas disseram: “Para vocês baterem em nossos maridos, têm de passar por cima de nós e
por cima de nossas crianças”. Foram palavras vitais, definitivas, porque calaram a prepotência. Os soldados recuaram e não tiveram coragem de passar por cima das crianças e das mulheres. Foi o que garantiu a permanência do povo na terra, liberando 1,6 mil hectares de terra que o governador se obrigou a liberar. Quando apareceram os sinais de que poderíamos ficar, organizamos os demais que ainda estavam espalhados pela região para fazer uma segunda ocupação, a da Brilhante, que era lindeira da Macali e também do Estado. Foi no final de setembro de 1979. A luta ali já foi bem mais dura, houve mais dificuldade, mais sofrimento, mais perseguição, porque o governo militar começou a dizer que era uma revolta contra o Estado, contra o governo. Enfim, começou uma perseguição que endureceu muito mais a luta. Para poderem liberar essa terra, foram praticamente oito meses de sofrimento e negociação. Novamente as mulheres interviram e enfim conseguiram liberar esta terra. Posso dizer com todo carinho, muita alegria e gratidão: sou um privilegiado por poder participar da caminhada, desta luta do povo para sair da escravidão de uma forma organizada, ordeira, perseverante. Animados pela fé e pela Bíblia, jamais foram para o enfrentamento com os militares. Eram provocados de toda forma. Pela motivação interior, pela fé, por esperança e com organização, jamais se deixaram levar pelas provocações e conseguiram desencadear um processo que se juntou ao movimento operário, especialmente dos metalúrgicos de São Paulo. Conseguiram desencadear o processo que, enfim, em 1985, levou à derrubada da ditadura militar.
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CARLOS ALBERTO TORRES EX-JOGADOR DA SELEÇÃO
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Nascido em 1944, foi capitão e lateral-direito da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1970. Autor do último gol na vitória de 4 a 1 contra a Itália na final. Sob seu comando, o Brasil ergueu a taça Jules Rimet pela terceira vez e conquistou-a em definitivo. Carioca, foi revelado pelo Fluminense em 1963 e encerrou a sua carreira no New York Cosmos, em 1982. Foi treinador de futebol entre 1983 e 2005. Na política, é filiado ao Partido Democrático Trabalhista. Elegeu-se vereador no Rio de Janeiro em 1989.
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Não vi qualquer influência do governo
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Depoimento a Évelyn Centeno em 13 de setembro de 2013.
As pessoas, depois de passados tantos anos, ainda se preocupam com essa coisa do momento político da ocasião, achando que interferiu no trabalho da Seleção Brasileira que jogou na Copa de 1970. Naquela época, não existia a mídia que se tem hoje, redes sociais, internet, enfim, essa série de facilidades de em um segundo todo mundo saber o que está acontecendo. Para dar um telefonema para a família, do México para o Brasil, por exemplo, a gente demorava três ou quatros dias. Hoje você pega o telefone celular ou um computador e se comunica com o mundo inteiro em questão de segundos. Muita gente acha ainda hoje que o governo militar, com o qual a gente não tinha a mínima ligação, interferiu no trabalho da Seleção. Se não fossem os jogadores com seus talentos, a capacidade que nós tínhamos, o Brasil, com governo militar ou governo que não fosse militar, com ditadura ou sem ditadura, não ganhava a Copa do Mundo. Este é um mito que a gente definitivamente tem que terminar. Não conhecia ninguém como meus companheiros. Não tínhamos a mínima ligação, mínimo contato com as pessoas do governo, como não se tem até hoje. Você vê hoje em dia, os presidentes da República recebem a Seleção quando ela é campeã do mundo. Depois que passa, pouco se fala, pouco se vê os jogadores com políticos. Como era naquela época, acredito que continua sendo hoje. Nós nos preparamos profissionalmente porque ali estava o futuro dos jogadores. Se ganhássemos aquela Copa do Mundo, depois do insucesso da Copa da Inglaterra, em 1966, seria a recuperação total do futebol brasileiro. E foi. A partir dali, o futebol brasileiro passou a ser respeitado de uma forma grandiosa
no mundo inteiro. Até mesmo para nós, particularmente, jogar aquela Copa e ganhar seria importante, independente do momento pelo qual passava o país. Hoje o país passa por outra situação. Há tanta manifestação no dia a dia que a gente nem sabe mais para que, e daqui a pouco tem a Copa do Mundo, aí se o Brasil ganhar é por causa das manifestações? Não. O jogador se prepara profissionalmente para ganhar a Copa do Mundo. Naquela época, a gente passou pela mesma coisa. Estávamos visando ao futuro de cada um, até financeiramente, para ter alguma coisa, garantir o futuro da família, um apartamento que pudesse ser alugado mais pra frente, por exemplo. Não comparando com aquilo que é hoje, porque as épocas são distintas, mas financeiramente hoje o futebol é muito melhor do que era na nossa época. Jogamos a Copa do Mundo única e exclusivamente visando àquilo que poderia servir para cada um, no sentido de a gente fazer contratos melhores, como é em qualquer profissão. Hoje os grandes artistas ganham muito dinheiro, os grandes médicos, os grandes políticos... O intuito nosso era esse. Logicamente sabíamos da dificuldade que o país passava naquele momento, a dificuldade política. Não tinha nenhum jogador que era engajado na política partidária, não tinha deputado, nem nada. Hoje tem vários jogadores que são deputados. Mas, naquela época, não. A nossa única preocupação, realmente, era nos prepararmos da melhor maneira possível para ter condições de jogar bem a Copa do Mundo e, se possível, ganhar, como acabou acontecendo. Nós tínhamos consciência do momento que o país atravessava, sabíamos 81
do sofrimento e da luta das pessoas. Aquela vitória servia de alguma forma para aliviar o momento difícil que o país atravessava. Trouxemos o povo para as ruas, de forma pacífica, festejando a vitória da Seleção. O dia em que chegamos do México, lembro até hoje, o país inteiro saiu às ruas para festejar e receber com carinho extraordinário a Seleção que tinha acabado de conquistar o título. Acho que trouxemos de alguma forma a alegria para o povo brasileiro. Esse era o nosso grande objetivo: dar alegria ao torcedor. Independente do momento que o país passava. O futebol é a alegria do povo. Quem joga nos grandes clubes e na Seleção sabe que cada vitória é a alegria que a gente leva para as pessoas, que vão para as ruas extravasar este sentimento. O futebol é o ópio do povo, é o alívio, é como a gente descarrega as tristezas. O futebol brasileiro, depois que nós perdemos o título na Copa de 1966, entrou numa recessão, pois todo mundo esperava que o Brasil fosse ganhar, pela terceira vez consecutiva, o título mundial. Mas foi um trabalho reprovado na época. Não foi o trabalho ideal para que se pensasse em ganhar a Copa do Mundo. A Seleção entrou em descrédito total. Em 1967 e 1968, pouca gente acreditava na Seleção brasileira. Como agora, recentemente. Pouca gente acreditava que a Seleção fosse ganhar a Copa das Confederações deste ano. Aí houve um trabalho, na época, da CBD [Confederação Brasileira de Desporto], ao trazer o João Saldanha, que era uma figura muito famosa. Ele era jornalista e, no meio do futebol, era apreciado por todos, pela torcida. Os programas que ele fazia eram líderes de audiência. As crônicas que ele escrevia no jornal eram lidas por todo mundo no 82
meio do futebol. Era muito engraçado e muito inteligente. E quando o João Havelange convidou o Saldanha para ser técnico, em 1969, a CBD conseguiu unir o povo em torno da Seleção. No dia em que seria confirmado o nome dele como novo treinador, ele anunciou o time titular da disputa das eliminatórias para a Copa do Mundo de 70, chamando todos de “as feras do Saldanha”, porque ele queria feras, jogador que suasse a camisa. E a Seleção Brasileira foi muito bem nas eliminatórias. Trouxemos a confiança de volta à Seleção por parte dos torcedores. Foi uma campanha extraordinária. Pela primeira vez, e única até hoje, na história de Copa do Mundo, a Seleção Brasileira se classificou invicta, sem empates. Foi um trabalho muito interessante que o Saldanha fez, quando ele conseguiu unir o povo com a Seleção. A Seleção, que estava desacreditada, voltou a contar com a simpatia e a confiança dos torcedores, o que foi muito importante na época para que a gente conseguisse recuperar o prestígio do futebol brasileiro. Tiveram problemas em 1970 na formação da Seleção. O time não se acertava. Alguns jogadores que estiveram nas eliminatórias em 1969, como o Rizzo e o Djalma Dias, sequer foram convocados, e a Seleção custou a se entrosar no início dos trabalhos em 1970, já visando à Copa do Mundo. Tivemos alguns jogos amistosos com equipes fracas, de resultados negativos, e a imprensa passou a criticar muito o trabalho. Houve algumas divergências do Saldanha com os treinadores que passaram a criticar o seu trabalho frente à Seleção. Tornou-se insustentável a permanência do João Saldanha, e o João Havelange resolveu mudar o comando, dispensando o Saldanha e entregando o
comando para o Zagallo. O Zagallo era um ex-companheiro, ainda muito jovem quando assumiu a Seleção. Havíamos jogado com ele anteriormente, tínhamos ele mais como um colega mais velho, não tanto quanto um treinador. E ele conseguiu definir uma equipe. Trouxe tranquilidade, novamente todos se uniram em torno da Seleção, fomos para o México e conseguimos alcançar nosso objetivo, que era ganhar aquela Copa. O que falam é que o presidente Médici teve influência direta na troca de treinadores, mas nós que estávamos lá, vivendo o dia a dia da Seleção, não sentimos ou ouvimos qualquer tipo de influência de fora para dentro. Teve vários casos envolvendo o João Saldanha, desavenças com treinadores, e isso estava tumultuando o trabalho da Seleção. O tempo estava passando, e a equipe não se ajeitava. Faltava menos de dois meses para o início da Copa do Mundo, não tínhamos sequer um time titular escalado, esse foi o motivo da queda. Agora, se houve essa influência do presidente, acho que a única pessoa que pode responder é o Havelange, que era o presidente da CBD na época. Ele que comandava, escolhia o treinador. Posso garantir que não vi em momento algum, dentro da concentração da Seleção, qualquer coisa relativa a uma possível influência do governo na escalação da Seleção ou do treinador. Dou minha palavra de honra.
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Mario Jorge Lobo Zagallo trabalhou em vários momentos na Seleção Brasileira, sendo tetracampeão mundial de Futebol. Atuou como jogador, na ponta-esquerda, nas Copas de 1958 e 1962. Treinou a equipe que conquistou o torneio no México, em 1970, no auge da repressão praticada pela ditadura militar. Integrou a comissão técnica em 1994, quando o Brasil se sagrou vencedor nos EUA.
A Copa de 1970 teve a final disputada no México e foi utilizada com ufanismo pelo regime militar. O Brasil acabou ganhando o torneio de maneira invicta. A partida final ocorreu em 21 de junho de 1970, no Estádio Azteca, na Cidade do México. O Brasil venceu a Itália por 4 a 1, com gols de Pelé, Gérson, Jairzinho e Carlos Alberto.
Médici foi o terceiro general a governar o Brasil a partir de 1964. Emílio Garrastazu Médici (1905-1985) nasceu em Bagé e ocupou o cargo entre 30 de outubro de 1969 e 15 de março de 1974. Com o poder discricionário permitido pelo AI-5, presidiu o país no período mais duro da repressão política e buscou capitalizar politicamente o resultado da Copa do Mundo.
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DAVI DOS SANTOS ESTUDANTE
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Natural de Porto Alegre, Davi dos Santos nasceu em 1989 e é estudante de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Era estagiário no Arquivo Central do Tribunal de Justiça do Estado quando, junto com Graziane Righi, fez a descoberta do acobertamento do assassinato de Ângelo Cardoso da Silva pelo regime militar. Ângelo era preso político no Presídio Central de Porto Alegre quando foi morto pelos militares. O caso tem grande similaridade com o assassinato de Vladimir Herzog.
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A luta dos que morreram continua
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Depoimento a Tiago Medeiros em 11 de setembro de 2013.
Minha participação na descoberta do assassinato do Ângelo Cardoso da Silva é, com certeza, a memória mais significativa que tenho em relação ao período do regime de 1964. Não apenas por ter me envolvido diretamente, mas porque, apesar da similaridade, o acobertamento do assassinato do Ângelo aconteceu antes do Caso Herzog. O que nos leva a pensar que isso possa ter sido uma prática contínua durante a ditadura. A partir do Caso Ângelo, a Comissão Nacional da Verdade reabriu os processos de 44 suicídios do período. A descoberta aconteceu no Arquivo Central [do Tribunal de Justiça do Estado]. Eu era estagiário e estávamos realizando uma busca de documentos do período militar. O trabalho estava em etapa inicial quando encontramos as fotos do enforcamento do Ângelo. Elas estavam em uma caixa que continha registros de suicídios de todas as épocas no Estado. Segundo o Carlos Guazzelli, coordenador da Comissão Estadual da Verdade, não é comum que este tipo de caso esteja arquivado no Tribunal de Justiça, o que reforça a tese da tentativa de acobertamento. Em seguida foi feito contato com os familiares. Isto ficou a cargo da Suzana Lisboa e do Enrique Padrós [professor da UFRGS], que possuem mais tato pra tratar do assunto. Precisa de muito cuidado pra abordar esse tipo de coisa com os familiares. Apesar de ter sido uma descoberta realizada profissionalmente, não encaro esse caso como trabalho. A ditadura é uma coisa tão recente que a pesquisa afeta diretamente os nossos sentimentos, e vejo isso nos meus colegas da História também. Nó nos envolvemos pessoalmente neste caso. De outra forma, não
se iria tão fundo em certas pesquisas e análises, mas precisamos ter cautela. Às vezes, é difícil não chorar ouvindo certos depoimentos, e olha que não sou tão chorão. Todos que ouviram relatos de pessoas que sofreram na ditadura sentem-se comovidos. A gente fica pensando: “Como que eles conseguiram suportar? Será que teríamos a mesma força?”. Acho que muitos de nós não teriam nem metade dessa força. É difícil perceber o quão bárbara foi a nossa ditadura. Mesmo que digam que ela não foi tão pesada quanto a da Argentina ou a do Chile, é inadmissível aceitar que tais coisas tenham sido feitas com um ser humano. E pensar que estas coisas foram feitas pelo Exército e pela polícia, que, teoricamente, existem para proteger, servir ao povo. É de se pensar e avaliar até onde podemos chegar com a maldade e com ações contra pessoas de quem divergimos ideologicamente. É complicado falar sobre a importância do Caso Ângelo. Mais relevante que isso, pra mim, foi a luta dele. A resistência contra um governo autoritário e desigual, colocando, muitas vezes, a própria vida em risco. Não sei se alcançamos a democracia que ele e o [Carlos] Marighella reivindicavam, mas o importante é não deixar a luta deles morrer. Continuar combatendo as desigualdades e lutar por um bem maior. É o maior legado do Ângelo e de todos que estiveram com ele: lutar contra o que é errado. O Brasil perdeu muitas coisas com o período ditatorial e vai demorar para alcançarmos uma equiparação social. Então a luta dos que morreram nas cadeias, no Araguaia e na militância continua. Ainda temos muito que correr para preencher os ideais que eles buscavam.
”
Ângelo Cardoso da Silva foi um taxista e militante de esquerda, cujo nome consta no Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos. Foi encontrado enforcado em uma cela do Presídio Central de Porto Alegre em abril de 1970. Na época, o caso foi registrado como suicídio e estava esquecido até ser descoberto por Davi dos Santos e Graziane Ortiz Righi em 2011. Nas fotos encontradas pelos estudantes, Silva estava com um lençol no pescoço e pendurado em uma janela a 1,30 metro do chão.
Nascido na antiga Iugoslávia e naturalizado brasileiro, Vladimir Herzog era jornalista e militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) durante o regime militar. Em 1975 foi preso, torturado e assassinado pelo Exército. Sua morte, na época, foi registrada como suicídio, em uma tentativa de acobertamento de seu assassinato. Três anos mais tarde, em sentença jurídica, a responsabilidade pela morte de Herzog foi atribuída ao governo federal. A foto que forjava seu enforcamento tornou-se famosa e guarda grande semelhança com a que registrou o falso suicídio de Ângelo Cardoso da Silva.
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Protestos de estudantes na UFRGS em 1977
“A menina resolveu enfrentar a polícia escudada pela bandeira. Nem por isso foi poupada. Todo mundo recuou e, quando os militares chegaram pra cima dela, bateram. Vieram com fumaça, escudo. Ela, no último momento, saiu correndo também. Esta foto é bem simbólica da época. Representa a resistência.”
“É a frustração dos caras tentando reprimir a manifestação que pede liberdade democrática. Estão lá os estudantes com a faixa ‘Pelas liberdades democráticas’, e os bombeiros sem pressão na água... Com a água totalmente brocha, caída quase nos pés deles. Impotentes diante do clamor por democracia.” RICARDO CHAVES
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DIRCEU CHIRIVINO ARQUIVISTA
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Dirceu Chirivino nasceu em 1942 e tinha 22 anos quando o golpe militar ocorreu. Ele era responsável pelo arquivo fotográfico do jornal Última Hora, onde viu a redação ser fechada pela ditadura, pois tinha um viés de esquerda. Dirceu testemunhou a fundação da Zero Hora, ancorada no que restou da Última Hora. Hoje, Chirivino comanda o acervo de fotografias do jornal Correio do Povo, onde também edita a coluna “Há cem anos no Correio do Povo”. Também é colaborador da revista Amanhã.
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Antes do golpe, eles já monitoravam a redação com binóculos
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Depoimento a Igor Grossmann em 24 de setembro de 2013.
A memória mais significativa foi a repressão violenta que ocorreu no período, quando vários colegas foram presos. Havia uma censura muito violenta nos jornais e outros meios de comunicação, como o rádio. Isso me parece o mais significativo. Evidente que tiveram outras questões, como o cerceamento das liberdades, aquele clima de tensão que se instalou no país. A gente tinha que cuidar o que falava e todos os movimentos que se fazia. Isso foi o que ocorreu de mais grave neste período. Foram fatos graves que ficam marcados na memória. Dificilmente se esquece. Eu via censores dentro do Correio do Povo. No início, bastava ir à redação para ver. Depois, se criou um hábito entre os redatores que já sabiam o que podiam ou não publicar. Em 1972, houve a apreensão de uma edição inteira do Correio do Povo junto com uma da Folha da Manhã, no Rio Grande do Sul, e uma d’O Estado de S.Paulo, por causa de uma notícia sobre o ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, que o governo militar tinha proibido que se publicasse. E o diretor do Estadão, Ruy Mesquita, em contato com Breno Caldas, que era o diretor do Correio do Povo, resolveu publicar a notícia e pagar para ver o que ia acontecer. Em suma, as edições dos jornais foram apreendidas. Isso é um exemplo da censura que ocorreu. Mesmo o Correio do Povo tendo sido um jornal com linha editorial conservadora sofreu essas penalizações. Os jornais de esquerda muito mais ainda. Isso ajudou a formar uma consciência política sobre o que é bom e o que é ruim dentro de um regime político de um país. Como tudo funciona, os malefícios que trazem como falta de liberdade individual, falta de liberdade de expressão. Às
vezes se sabia de coisas, mas o jornal não podia publicar porque ia ter problema. Isso marcou muito. No dia em que o golpe foi dado, eu trabalhava na Última Hora, que era um jornal de extrema esquerda. Um jornal que dava apoio muito forte para um candidato que era apoiado pela esquerda, que por sinal era um marechal, o Henrique Teixeira Lott. Eu trabalhava nesse jornal e estudava no Colégio Júlio de Castilhos, que também era reconhecido como uma instituição que concentrava jovens que se identificavam com a esquerda. Em 1º de abril de 1964, eu estava saindo do colégio e indo pra casa e fui abordado por uma viatura da Polícia Civil onde se encontrava, além dos policiais, um fotógrafo da Última Hora que tinha a intenção de não deixar que levassem todo o arquivo fotográfico do jornal, que era o que a polícia queria fazer. Então, ele foi na minha casa me buscar pra eu ajudar aquele pessoal a tirar as fotos que eles julgavam necessárias tirar do arquivo. Eu fiquei toda a madrugada lá. A redação da Última Hora era na rua Sete de Setembro, num prédio onde embaixo era o Cinema Rex. O arquivo ficava ali, junto à redação. Eu fiquei a madrugada toda tentando sonegar o que eu podia de fotos que eles queriam. Para chegar às fotos, era através de um arquivo remissivo. Eu consegui omitir este arquivo remissivo. Tinha um monte de policial lá dentro. Na verdade, eles estavam muito mais interessados em retirar fotos que os comprometiam do que fazer uma busca de material, na visão deles, subversivo. Eles estavam muito mais preocupados com a imagem deles do que com movimentos contrários ao golpe naquele momento.
As edições de 20 de setembro de 1972 dos jornais Correio do Povo, O Estado de S.Paulo e Jornal da Tarde foram recolhidas pela censura do regime militar devido à publicação de um telegrama do diretor do Estadão e do Jornal da Tarde, Ruy Mesquita, para o então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, demonstrando seu descontentamento com os rumos que o país tomava por conta do regime de exceção.
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Nessa madrugada, vi alguns colegas serem presos. Escapei porque, no meio daqueles policiais, tinha um inspetor de polícia que era amigo da minha família lá em Uruguaiana. Quando ele me viu, chegando no meio daquele pessoal que foi me buscar, ele me abraçou e disse ‘esse guri aqui é dos nossos’ – tinha 22 anos na época –, e aí aliviou um pouco o meu lado. Quando encerrou a sessão de busca, eles se ofereceram para me levar em casa. Agradeci e disse que não. Disse que pegaria um bonde no Mercado [Público] e iria pra casa. Mas o outro colega que estava ali, que era o José Antônio Ribeiro, era repórter de polícia. Trabalhava numa editoria muito visada pelos policiais, porque a editoria de polícia era quem divulgava tudo o que de ruim eles faziam. Então pegaram e quebraram ele. Deram um pau. Coitado do cara, ficou todo quebrado. Assim foi o primeiro dia do golpe militar para mim. A maioria daquele pessoal, que tinha um comprometimento muito forte com a esquerda – alguns eram comunistas mesmo e militavam no Partido Comunista –, a maioria desse pessoal acabou saindo, desaparecendo, e procuraram se esconder. Alguns foram recolhidos ao lugar onde hoje é a Fase, próximo ao estádio Beira-Rio. Foi feito um presídio político, e o pessoal que eles prendiam eles levavam para ali. É desses paradoxos que acontecem na vida: na redação da Última Hora, tinha um sujeito muito decente, que se chamava Godoy Bezerra. Ele era da UDN, partido que fechava integralmente com o golpe, e ele tinha uma coluna de esporte e era amigo de todo mundo. Então, ele passava alguns recados dizendo ‘olha, vocês se cuidem que hoje pode aconte94
cer isso’, e o pessoal ficava esperto. Eram atitudes leais. Ele mostrava que, antes de ser um político, tinha uma relação leal com aquele pessoal com quem convivia diariamente. Mas o jornal Última Hora parou. Imediatamente parou. Ele só voltou a circular no dia 4 de maio de 1964, quando foi fundada a Zero Hora. A fundação da Zero Hora eu assisti. O último diretor da Última Hora não estava engajado politicamente com a esquerda, então ele reuniu algum capital e fundou a Zero Hora onde antes era a Última Hora. A Zero Hora já começou como um jornal descomprometido politicamente. Era um jornal que não tinha aquele viés de esquerda que a Última Hora tinha. Aí a Zero Hora começou a progredir e se firmou no mercado. Começou a fazer algumas parcerias. Fez parceria com a Rádio Gaúcha, que consistia no compartilhamento do serviço de teletipo que veiculava todos os informativos das agências de notícias. E a Rádio Gaúcha colocou dentro da redação da Zero Hora um estúdio e um locutor para transmitir notícias. Aí o Maurício Sirotsky [Sobrinho] investiu capital, tornando-se sócio do Ary de Carvalho, que tinha fundado a Zero Hora. Mas o Ary de Carvalho resolveu ir para o Rio de Janeiro e acabou comprando da família Chagas Freitas o jornal O Dia. Então o Maurício Sirotsky comprou a parte do Ary de Carvalho na Zero Hora. Aí a Zero Hora passou a tomar corpo e deslanchou. A implantação da emissora de televisão Guaíba teve um custo muito alto para a Caldas Junior na época. Isso daí foi uma das coisas que contribuiu para que a Zero Hora assumisse a liderança do mercado e que o Correio do Povo acabasse fechando em 1984. Um dia o Ary de Carvalho
reuniu os remanescentes na redação da Última Hora e nos comunicou que o jornal ia se chamar Zero Hora, que ele tinha conseguido um aporte financeiro com alguns empresários e colocou o jornal a circular em seguida. O Última Hora foi impedido de circular. O Exército chegou lá e foi traumático, quase que uma tomada militar juntamente com a Polícia Civil. Lembro do dia em que cheguei e não sabia se estava detido, se estava preso ou só tinha sido convidado a participar de uma busca. Lembro que cheguei na redação da Última Hora e embaixo funcionava o Cinema Rex. Quem estava comandando aquela missão no jornal era um delegado com sobrenome Barbedo. A primeira coisa que ele fez quando cheguei com os policiais e o fotógrafo Assis Hoffmann foi mandar me revistar. Então comecei a ficar assustado. Era um guri. Casualmente estava terminando uma sessão no cinema e fiquei pagando mico com as mãos na parede, como se fosse um marginal sendo revistado pelos policiais. Isso antes de subir para a redação e o arquivo. Na noite anterior, existia um clima de tensão no ar porque as notícias chegavam muito truncadas no Sul, e havia uma incerteza do que ia acontecer, do que estava sendo tramado. E parece que foi algo relâmpago. Os militares se articularam a partir do centro do país e no Sul não se sabia nada. Quando eles chegaram aqui, já estava tudo resolvido. Os quartéis já estavam dominados e aconteceu o golpe. O pessoal com um comprometimento maior com a esquerda tratou de salvar sua pele, normal. E aqueles que eram politicamente indiferentes ficaram e continuaram trabalhando. Eu tinha algum engajamento, mas não era, como
vou dizer... Como eu era um gurizão, não era uma pessoa marcada. Até porque trabalhava num arquivo fotográfico. Não tinha nenhuma influência, não podia fazer nada. Tinha as minhas ideias e convicções políticas, mas não era uma pessoa marcada. Ao passo que tinham pessoas muito conhecidas no jornal, como o João Aveline, que era um líder da esquerda no Estado e chegou a ser preso. E outros menos conhecidos do público em geral, mas que eram conhecidos pela inteligência, pelo exército e pelo Dops, que era a Delegacia de Ordem Política e Social que fazia o monitoramento de todos os movimentos políticos. Tinha um hotel na frente da redação, do outro lado da rua, e os policiais, antes do golpe, já monitoravam a redação da Última Hora com binóculos de dentro dos quartos desse hotel. Tinha um janelão bem grande, e eles ficavam ali cuidando o movimento do pessoal. Tipo um monitoramento à curta distância. Então eles acompanhavam a atuação de quem assinava artigos, dos menos conhecidos até pessoas do naipe do João Aveline, que era um líder e era um cara que vendia A Tribuna de Imprensa na rua, um jornal do Partido Comunista. A maioria ali era muito engajada politicamente. A gente via a presença e a vigilância deles. Era um negócio ostensivo. Eles não se escondiam. Parece que faziam uma guerrinha de nervos. Parece que tinham a intenção de que a gente ficasse sabendo que estavam nos olhando, nos vigiando. Naquela época, o país estava – guardadas as diferenças de hábitos e costumes – vivendo uma situação como há poucos dias a gente viveu agora. Só que as manifestações eram pacíficas, não havia turbulências, não tinha nada de violento 95
e de quebra-quebra. Mas existia muita paralisação, muita greve. As categorias e os sindicatos eram muito organizados. Os sindicatos da época era muito atuantes, até porque o governo facilitava. O presidente João Goulart era um político que dava muito apoio para o sindicalismo, para o trabalhismo. E ele era o vice-presidente quando Jânio [Quadros] renunciou. Existia um clima de protesto e de manifestações políticas muito forte. A polícia, em contrapartida, agia para manter a ordem pública seguindo o que eles acreditavam. Então existia esse antagonismo entre a polícia e a sociedade civil ativa, que participava de protestos, manifestações de ruas e greves. O país estava vivendo um momento propício para aquele golpe. Assim como as classes trabalhadores se manifestavam, a classe média-alta também se manifestava contra aquele estado de coisas que existiam, as greves, os protestos de esquerda. O movimento mais significativo nesse sentido que existiu, e que os historiadores assinalam como uma senha para os militares agirem, foi a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que aconteceu no Rio de Janeiro. Essa marcha reunia a classe média-alta, pessoas que estavam bem acomodadas, não tinham problema de ordem nenhuma e estavam querendo se manifestar contra as reformas propostas pelo governo do Jango. Historiadores apontam como uma senha dada aos militares como ‘bom, nós temos o apoio de parte da sociedade, nós podemos agir’.
”
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Enterro do Jango em S達o Borja em 1976
LUIZ ABREU
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ENIO MENEGHETTI ADMINISTRADOR
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Enio Meneghetti nasceu em Porto Alegre no dia 25 de maio de 1957. É administrador de empresas. Tem cursos de especialização em marketing e mercado de capitais. Liberal convicto, atuou nas esferas pública e privada. Foi chefe de gabinete do vicegovernador Paulo Afonso Feijó. Autor do livro Baile de Cobras – a verdadeira história de Ildo Meneghetti (Editora AGE), lançado em maio de 2012. O livro narra a biografia do ex-prefeito e ex-governador Ildo Meneghetti, seu avô.
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Esse epis贸dio de 1964 virou fonte de renda pra muita gente
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Depoimento a Bruno Ravazzoli em 22 de outubro de 2013.
Primeira coisa que acho importante ser ressaltada: diferenciar os motivos que levaram à derrubada do governo deposto com o que aconteceu depois. Infelizmente ocorreram excessos. Os próprios protagonistas do que é chamado de ditadura se deram conta de que ficaram muito tempo no poder. Mas é muito importante, e pouco destaque é dado, aos motivos que levaram à deposição do governo Jango. O Brasil, como o resto do mundo, enfrentava o período da Guerra Fria. Hoje, especialmente, é dado muito destaque aos americanos e nenhum ao outro lado que existia na época. É evidente que o grupo que foi alijado do poder, que cercava o governo, é o grupo que está no poder hoje. Não é por outra razão, e se vê muitas críticas nesse aspecto, que a Comissão da Verdade, na verdade, é a Comissão da Meia Verdade. Não discuto esses pontos. A reforma agrária do Jango era completamente contrária do que dispunha a Constituição de 1946. Estavam sendo formados os Grupo dos 11. Foram descobertos campos de guerrilha, em Goiás, financiados por dinheiro cubano. Isso é história, não sou eu que estou afirmando. Isso está em livros, inclusive em autores de esquerda. Acho muito interessante o livro de Jacob Gorender, que é um historiador de esquerda, que escreveu o clássico Combate nas trevas. Outro livro que deve ser lido é do Samuel Wainer, o fundador da última hora [Minha razão de viver]. Ele diz que percebeu, em um dado momento, que setores ligados ao governo tramavam um golpe. Samuel Wainer era compadre do Jango, era o detentor da rede de jornais, a única de apoio explícito ao governo. Ele diz isso em suas memórias.
Apenas assisti à continuidade do governo militar, que era um governo autoritário. Não me afetou em absolutamente nada, assim como para muitos que eu conheço. Infelizmente, havia a censura, naquele período. Acho que isso é um erro, porque era uma panela de pressão. Não é com proibição de novela da Globo que se vai mudar alguma coisa. Acho que nesse aspecto não me afetou em nada. Fui adolescente dos anos 1970 e simplesmente não tomava conhecimento da existência do governo militar. Acho muito interessante lembrar o que disse o ator Mário Lago. Já faleceu há alguns anos, era militante do Partido Comunista do Brasil. Ele dizia: ‘Meu filho, sempre que for preso, diga que apanhou’. Não estou dizendo que todos inventaram, mas também acho que esse episódio de 1964, ditadura, virou fonte de renda pra muita gente. Muita gente se fez de vítima. Há alguns anos, um amigo da minha idade me disse que sofreu na carne. Eu disse: mas que idade tu tens? Tu militavas em organização de esquerda aos 14 anos? Então existe uma tendência das pessoas glamourizarem muita coisa que não existiu. Houve gente que lutou? Houve gente. Houve gente que mudou de lado também. Então, tem muita fantasia. Lembro que José Serra, que era presidente da UNE, em 1964, deu uma declaração dizendo: ‘Perto do que houve no Chile, o que aconteceu no Brasil foi um chá de senhoras’. Foi o José Serra que falou. Nasci em 1957. Meu interesse em estudar o assunto foi pelo fato de o meu avô ter sido governador em 1964. De tudo que se possa ser a favor ou contra o meu avô, era uma pessoa absolutamente pacífica e avessa a qualquer forma de violência.
”
Guerra Fria é o nome do período histórico de disputas estratégicas e conflitos indiretos entre os Estados Unidos e a União Soviética, competindo por hegemonia política, econômica e militar ao redor do planeta. O período se iniciou no pós-Segunda Guerra Mundial, em 1945, e se estendeu, simbolicamente, até 1989, com a queda do Muro de Berlim. Embates ligados à Guerra Fria ajudam a explicar diversas ações políticas e militares pelo mundo na segunda metade do século 20, incluindo o Golpe de 1964 no Brasil.
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Protesto contra a repress達o policial em 1977
“Os manifestantes protestavam sobre o fato de colonos serem espancados. Não sei se os manifestantes eram ligados a algum grupo político, até porque, na época, era muito discreta a participação de grupos. Uma repressão ferrenha, era muito raro alguém expor qualquer bandeira.” “Este período, que precedeu as eleições diretas, foi de extrema importância para mim mais como cidadão do que como fotógrafo. Foi um período de intenso envolvi'mento com a possibilidade do retorno da democracia. Eu tirei proveito deste envolvimento atuando como repórter, pois juntei o útil ao agradável.” JORGE AGUIAR MARCO COUTO 25
104 FERNANDO WAGNER CORRETOR IMOBILIÁRIO
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Corretor imobiliário nascido em 1956, Fernando cresceu em uma família tradicional com os pais e a irmã caçula em uma casa na zona sul de Porto Alegre, afastado de regiões urbanas. Durante o regime militar, deixou de ser criança, fez faculdade, começou a trabalhar e saiu de casa. Casado, com dois filhos, relembra o período em que foi criado e como foi crescer neste período da história brasileira.
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Aquilo era absurdo, e, na ĂŠpoca, a gente achava normal
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Depoimento a Shana Sudbrack em 22 de setembro de 2013.
Meu pai sempre falava que não podia comentar nada. Não podia falar mal dos militares com ninguém, porque tu não tinhas como saber se as pessoas eram a favor ou contra o regime. Tinha muito militar na rua, e eles estavam sempre presentes, então a ordem era não comentar. No comecinho dos anos 1970, eu tinha 14 anos, a gente morava na Ponta Grossa [Porto Alegre]. A casa ao lado da minha estava vazia há algum tempo. No meio do terreno, havia uma casa de hóspedes. Então, um dia, começou a aparecer lixo na frente, e a gente começou a desconfiar que tinha algo errado. A casa estava desabitada, mas todo dia pela manhã aparecia lixo na frente. Meus pais comentavam que um casal estava escondido ali para fugir dos militares. A gente não os via durante o dia, pois eles só saíam à noite, mas vivíamos naquela tensão. Eles eram primos do dono do terreno, e eu conhecia a mulher. Eles moravam onde hoje é o Shopping Bourbon Wallig, na Zona Norte, e vieram se esconder no outro extremo da cidade. Ficaram na casa durante um mês. Depois, não sei o que aconteceu com eles. Apenas desapareceram, tão rapidamente quanto surgiram. Na época, não entendia o porquê daquilo, de todo o mistério, mas para mim era normal, era comum. Depois, com o tempo, com a reabertura política, compreendi. Me lembro do passado e vejo como aquilo era absurdo, e, na época, a gente achava normal.
”
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108 GELSON DA COSTA ADVOGADO
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Nascido em Porto Alegre em 1948, tem formação intelectual marista e jesuítica. Estudou Economia e Direito, durante os tempos do regime militar. Ao longo dos anos, acompanhou as mudanças que aconteceram em termos legais no país, da supressão dos direitos individuais à volta da democracia. Funcionário público aposentado, trabalhou 35 anos em diversas áreas e tem mais de mil petições aforadas no Fórum Central de Porto Alegre. Trabalha como advogado.
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Havia uma escurid達o em termos de direitos individuais
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Depoimento a Clara Salvadori em 3 de setembro de 2013.
Como diria Winston Churchill, a democracia é o pior regime, exceto todos os outros. Mesmo com as suas imperfeições, a solução ainda é a democracia. Hoje, se tu fores preso por ter sido confundido com um criminoso, por exemplo, terás o direito de chamar um advogado automaticamente. Ele entrará com um pedido de habeas corpus e, possivelmente, conseguirá a tua liberação. E, se uma autoridade comete uma arbitrariedade contra quem quer que seja, ela estará sujeita a responder por abuso e quaisquer outros crimes que tenha cometido. No tempo dos militares, isso não acontecia. Sumiam com as pessoas. O habeas corpus – que é uma segurança fundamental do ser humano – estava suprimido. Isso é o pior em uma ditadura, tanto de direita quanto de esquerda: a supressão dos direitos e garantias individuais do cidadão. Tenho admiração pela disciplina das Forças Armadas. Não obstante, assim como o militar é subserviente aos seus superiores, ele é arrogante com quem está abaixo dele. O grande perigo em uma ditadura militar é a exasperação de pessoas que não estão acostumadas a ter poderes supralegais, ou até extralegais. Quem irá fiscalizar o guarda da esquina? Pois o guarda da esquina se arvora em um poder tal que tu não sabes o que ele pode fazer contigo em um regime de exceção de leis, sem garantias e direitos individuais. Quanto às minhas lembranças da ditadura, lembro que não sofri – nem meus colegas universitários sofreram – qualquer repressão. A minha universidade não foi invadida. Talvez, porque a nossa preocupação era estudar, ter uma boa formação intelectual, formar-se, encaminhar o futuro, formar uma família
e não se preocupar em implantar um projeto diferente daquele que estava ali. Até porque a ditadura vinha atendendo os nossos anseios. Tínhamos segurança para andar nas ruas. Andávamos a pé, pegávamos o bonde e os ônibus. Tínhamos uma vida em sociedade tranquila. Íamos às reuniões dançantes, existia um convívio social em ebulição – com segurança. Tínhamos condições de acesso a estágios e trabalhos. Na saúde pública, pelo fato de a população ser mais proporcional à oferta de serviço na área, não havia o caos de hoje. Desde então, a população cresceu, mas a oferta de serviço não. Quanto à educação, não havia a oferta de hoje. Todavia, a qualidade da formação intelectual do estudante que ingressava no Ensino Superior anos atrás era incomparavelmente superior à atual. Hoje, qualquer atividade é curso superior, e a maioria é analfabeto funcional. Por exemplo, um sujeito escreve 15 linhas com mais de 20 erros. Uma balconista humilde em uma loja não sabe multiplicar se não tiver uma calculadora. E assim são os estudantes de uma maneira geral, embora alguns colégios tradicionais continuem. Mas, evidentemente, nem todo regime só traz benefícios. No círculo social bastante extenso em que eu vivia nos anos da ditadura, jamais vi alguém da minha comunidade sofrer repressão. Mas preciso dizer: nenhuma dessas pessoas pegou em armas. Elas não queriam derrubar o regime. Agora, evidentemente, quem estava no poder iria reagir à altura contra quem pegasse em armas – ou com mais violência ainda. O que está claro é que aqueles que sofreram represálias foram contra o regime. Queriam implantar o deles. 111
Hoje, como advogado, vejo que vivemos indubitavelmente em um Estado de Direito, democrático. Naquele tempo, além do AI-5, editado no fim de 1968, tínhamos a supressão dos direitos individuais. Legalmente, tudo mudou da noite para o dia. Havia uma escuridão em termos de direitos individuais. Ainda assim, o direito é dinâmico: tem de acompanhar a sociedade. A lei não precisa necessariamente mudar com a sociedade. Já a interpretação da lei, sim. Visto isso, há uma mudança gradativa que o profissional acompanha diariamente na sua carreira. À medida que a interpretação da lei vai sendo mudada, a postura dos profissionais e operadores do Direito, magistrados ou membros do Ministério Público também vai mudando. Inclusive, há um novo elemento nos jornais hoje: a figura do suposto – talvez, por terem suprimido tanto tal direito lá atrás. Um homem pode ser filmado matando outro homem ou roubando uma carteira e, ainda assim, será chamado de ‘suposto’ assaltante ou ‘suposto’ assassino nas notícias. Há pouco tempo, a imprensa julgava antes da Justiça e, por isso, começou a ser responsabilizada civilmente pelos tribunais. O que isso significa? As pessoas prejudicadas, depois de absolvidas, entravam com uma ação contra o veículo que noticiou a história e pediam ressarcimento por danos civis. Por isso que a mídia está usando muito – até demais, para o meu gosto – o suposto. É a sociedade em que estamos vivendo: uma sociedade de transição, mas com garantia dos direitos individuais, que é a melhor coisa que existe. É essa a garantia da cidadania. 112
”
“Este registro foi bem marcante, de um momento que é extremamente emblemático de todas as consequências que a ditadura teve sobre as pessoas, sobre a democracia, sobre um presidente eleito democraticamente.”
LUIZ ABREU
Enterro do Jango em S達o Borja em 1976
114 IVO SOARES APOSENTADO
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Ivo Ribeiro Soares nasceu em 13 de novembro de 1930, no município de Rio Pardo, interior do Rio Grande do Sul. Era tropeiro quando ocorreu o golpe militar em 1964. Com gosto pela política, fez parte de partidos como Arena e posteriormente PPB, atual PP. É casado há quase 60 anos, tem cinco filhos e permanece na mesma cidade em que nasceu. Ainda que a idade dificulte, participa ativamente de discussões políticas.
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A ditadura militar foi o melhor tempo que tivemos no paĂs
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Depoimento a Vithoria Vaz em 21 de setembro de 2013.
A ditadura militar foi o melhor tempo que tivemos no país. Foi uma época de respeito, na qual não tinha essa bandidagem nas ruas. As autoridades mandavam realmente, não eram desrespeitadas como são hoje. Ninguém roubava, ninguém matava. Essas drogas, essas porcarias que há por aí, não tinha nada. Foi, de verdade, o melhor tempo que houve. Posso falar da educação também. Os militares criaram muitas escolas para educar todo mundo. Eles fizeram um programa para ensinar a ler e a escrever quem era mais velho e não era alfabetizado. Como a minha mulher mesmo, que foi educada pela ditadura. Ela não sabia nada, nunca tinha ido para um colégio e aprendeu a escrever o nome dela numa dessas escolas que os militares construíram. Não é que os outros presidentes não fizessem, mas eles levantavam um colégio no meio do campo, onde ninguém podia ir. No governo militar, não houve este desperdício. Eles construíam o que desse certo. A saúde também era melhor que agora. Eles fizeram muitos hospitais que funcionavam. Nós podíamos ir até fazer tratamento em outros Estados, de graça. Hoje é para poder fazer, também, dizem, mas nada funciona. Todo mundo morre esperando por esse SUS [Sistema Único de Saúde]. Antes dava certo. Além desse monte de coisa boa, que eles fizeram em todo o país, lembro ainda da visita do Castelo Branco a Rio Pardo. Foi uma festa! Ele prometeu muitas obras para a cidade e cumpriu todas. O município teve várias melhorias graças ao Castelo Branco. Até mesmo esses asfaltos que temos para o interior, devemos aos militares. Naquela época, a maioria das estradas federais era de terra.
Eles que melhoraram isso tudo e fizeram os asfaltos. Na verdade, o governo militar não foi bom só para Rio Pardo, foi importante para todo o Rio Grande do Sul. Os militares iluminavam as cabeças de todos os governadores do Brasil também, mas aí, se não fizesse correto, eles tiravam do governo. E estavam certos! Teve também os cargos biônicos. Inclusive o Octávio Omar Cardoso, que é rio-pardense, foi senador biônico. Ele foi casado com a Ana Amélia Lemos, que hoje é senadora também. Octávio era muito meu amigo, nasceu na mesma época que eu. Ele é de setembro de 1930 e eu, de novembro. Mas já é falecido. E sobre esses assuntos de morte, só lembro que violência havia antes de os militares assumirem o comando do Brasil. Antes teve até a história do homem da capa preta, que saía por aí com uma metralhadora matando todo mundo de noite. Mas depois que teve o golpe, acabou tudo isso. Dizem que tinha morte, mas era tudo acidente. Muitas pessoas se acidentavam de carro e avião por aí, mas acidente é acidente, né? O que a gente pode fazer? Sobre tortura, não sei. Dizem que teve, mas nunca vi. Para falar bem a verdade, gostaria que eles voltassem ao poder. Como cidadão rio-pardense, sei que deveriam voltar. Para quem tinha vergonha na cara, aquele tempo foi muito bom. As senhoras podiam sair às ruas e não eram assaltadas e mortas, como são hoje. O que se espera de um país assim, que até deputado preso tem? Essa roubalheira no governo. Ninguém respeita mais nada. Isso é uma vergonha. Com os militares não seria assim.
”
Senador biônico foi o nome com que ficaram conhecidos os parlamentares eleitos indiretamente por um Colégio Eleitoral durante a ditadura militar. Octávio Omar Cardoso foi nomeado primeiro suplente do senador biônico Tarso Dutra em 1978, sendo efetivado em 1983, após a morte do titular. Permaneceu no cargo até 1987.
Primeiro presidente do regime militar, Humberto de Alencar Castelo Branco iniciou sua carreira na Escola Militar de Rio Pardo, região central do Rio Grande do Sul, em 1918. Em 1964, no mesmo ano em que assumiu a presidência do Brasil, visitou o município, com objetivo de rever colegas e professores, de acordo com a historiadora Sônia Nara Aguiar.
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JOÃO CARLOS PALMA GORDIM
CAPITÃO APOSENTADO DO EXÉRCITO BRASILEIRO
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Gaúcho nascido em 1933, em São Borja, conterrâneo de Getúlio Vargas e João Goulart, Gordim é formado pela Escola de Sargentos das Armas, em Bagé, no ano de 1952, onde permaneceu durante 12 anos. Apesar de militar, era contra o golpe e tentou avisar o presidente João Goulart, que os militares estavam se organizando. Foi afastado do Exército Brasileiro cassado em 1964, mas anos depois recorreu e conseguiu o posto de capitão. É secretário da Associação de Defesa dos Direitos Pró-Anistia “AMPLA” dos Atingidos por Atos Institucionais.
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O esquema militar do Jango subestimou as reações
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Depoimento a Évelyn Centeno em 23 de setembro de 2013.
Ditadura sempre houve. Depois da Segunda Guerra Mundial, o mundo ficou dividido. No início dos anos 1960, começaram as ditaduras de cunho ideológico. Começaram a preparar o Brasil para o golpe de 1964. Os norte-americanos faziam intervenções aqui na América, nas eleições. Procuravam eleger parlamentares que fossem simpáticos, financiando as campanhas. Depois, com a renúncia do Jânio Quadros, teve o problema para a posse do Jango [vice-presidente da República], que estava no Exterior. Houve a ameaça de que não assumiria. O Leonel Brizola detonou a Legalidade pela posse. Eu servia em Bagé e sentia que vinha uma preparação para o golpe de 1964. Houve erro dos subalternos. Nas Forças Armadas, não pode haver manifestação política. Pode votar, mas não podem tomar partido. Na Marinha, a CIA [agência norte-americana de inteligência] se infiltrou para agitar o sindicato. O embaixador americano, Lincoln Gordon, trabalhava dentro do país pelo golpe. Houve o Comício das Reformas. O Jango propôs as reformas de base e agrária. O descontentamento era geral nas Forças Armadas. Houve manifestação dos sargentos em Brasília, porque um sargento foi eleito deputado estadual e foi negada a posse. Aquilo favoreceu muito o golpe. Houve manifestação popular dos sargentos e de suas famílias. Em São Paulo, o governador Ademar de Barros preparava a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Em Minas Gerais, o governador Magalhães Pinto também. Até que em março detonou. Depois do comício, ficou difícil segurar. Dia 25 de março, em São Paulo, o general Amaury Kruel exigia que Jango dissolvesse os sindicatos. Só que Jango disse: ‘Não fico com o governo, marcho contra’.
Até que o general Amaury Kruel marchou de Minas Gerais até o Rio de Janeiro. Não teve adversário. O Jango estava no Rio de Janeiro, onde ficava o Palácio das Laranjeiras. Lá, ele consultou os comandos militares e viu que não tinha apoio. Lincoln Gordon telefonou e disse que haveria muitas perdas, não adiantava resistir. Abelardo Jurema era ministro da Justiça e queria apoio em uma manifestação de sargentos no Automóvel Clube do Brasil. Depois disso, o Juscelino Kubitschek telefonou para o Jango e disse que os Estados Unidos não iam permitir, que o país iria regredir e que generais que eram legalistas, estavam perdendo posições. O Jango solicitou à Varig – a FAB já era dos militares contrários – um avião. Foi para Brasília, fez as malas, voou para São Borja e foi para o Uruguai. O governo foi considerado vago. Ranieri Mazzilli era o presidente da Câmara e foi empossado. Antes do comício das reformas, do dia 13 de março, o Jango passou por Bagé. O prefeito da época, Luiz Maria Ferraz, nos convidou para a recepção na prefeitura. Eu já tinha falado para o prefeito que estavam treinando o golpe. Eu estava dentro do regimento e sabia de tudo. Quando o Jango ia subindo as escadas da prefeitura, o prefeito disse: ‘Presidente, um conterrâneo seu de São Borja’. O presidente parou e me perguntou qual era a minha família, disse que conhecia meu irmão. O prefeito falou que eu tinha coisas para dizer, e o Jango me mandou falar com o general Assis Brasil. Conversei com o general que estavam treinando o golpe e ele me disse: ‘Não te preocupa que, se eles botarem a cara, nós vamos dar de pelego neles’. Isso é um fato importante, de como o esquema militar do Jango subestimou as reações.
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Polícia Militar contém população em enterro do Jango
“Este período, que precedeu as eleições diretas, foi de extrema importância para mim mais como cidadão do que como fotógrafo. Foi um período de intenso envolvi'mento com a possibilidade do retorno da democracia. Eu tirei proveito deste envolvimento atuando como repórter, pois juntei o útil ao agradável.” LUIZ ABREU MARCO COUTO 25
124 JOテグ AVELINE NETO FUNDADOR DA REVISTA G00OL
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Nascido em 1950, é filho do jornalista João Baptista Aveline (falecido), um dos principais líderes comunistas do Rio Grande do Sul, e de Asdilla Seixas Aveline. Aveline Neto e os três irmãos sofreram com perseguições, tensão, dor e saudade nas vezes em que o pai foi preso. Segue, há 30 anos, a profissão do pai. Fundou a revista esportiva Goool, na qual é diretor e editor. Nos anos 1970, trabalhou na CRT e, depois, nas revistas Programa e Abril Cultural, na área de publicidade.
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A gente se perguntava: ‘Por que o pai foi preso?’
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Depoimento a Marina Oliveira em 28 de agosto de 2013.
Meu pai, João Baptista Aveline, foi um homem muito voltado para a família, dedicado aos filhos, à cultura, ao bom senso, à humanidade e ao respeito ao próximo. Era uma pessoa muito simples, amigo de todos, e sempre foi um lutador contra regimes totalitários. Nunca se deixou levar pelos capitalistas, pelos poderosos e, especialmente, pela ditadura militar. Por longos anos, trabalhou na condição de jornalista e, paralelamente, foi ligado ao Partido Comunista Brasileiro, o Partidão, onde participava desse movimento no sentido de derrubar os militares. Nunca foi a favor da luta armada. Sua batalha era pelo diálogo. Foi várias vezes preso, e isso simplesmente deixava a nossa família sempre em uma situação ruim. Nunca passamos fome, mas passamos por dificuldades. Entre os meus seis e dez anos, eu e meus três irmãos víamos muitas coisas ruins, pois foram muitas as vezes em que meu pai acabou na prisão. Uma das coisas que mais me marcaram aconteceu quando nós morávamos no Partenon, na Rua Paulino Azurenha [em Porto Alegre]. Morávamos em uma casa modesta, mas era uma das melhores no bairro. Lá, concentrava-se uma vila de moradores, pessoas humildes e sofridas. Meu pai via aquela situação difícil e se revoltava perante a desigualdade social existente. Nesse período de luta, ele sempre teve algumas dificuldades nos lugares onde trabalhou. Eram problemas econômicos, porque não se ganhava muito bem, mas ele conseguia com o trabalho manter a família. Na época, ele trabalhava no jornal Última Hora, que hoje é a Zero Hora. Trabalhou também no A Tribuna e em vários outros jornais. Muitos sentiram a repressão na área
jornalística, na imprensa. Mas ele [o Aveline] teve um apoio extraordinário do seu patrão, o Maurício Sirotsky Sobrinho, já falecido, que era um dos diretores da Última Hora e depois da Zero Hora. Ele, um empresário da comunicação, era quem dava cobertura para os comunistas. Dava cobertura, porque eram os comunistas que escreviam contra o sistema da época. Contra a ditadura. E aquilo, de certa forma, era maravilhoso para o patrão, porque a população comprava muitos jornais. Eram os jornalistas que escreviam o que realmente estava acontecendo no país: uma ditadura ferrenha e terrível. O Maurício não era contra nem a favor, mas dava liberdade para eles escreverem o que bem entendessem. Era uma maneira de interessar o povo, que queria ver uma transformação no país e estar bem informado. Quando falo ‘patrões’ é porque tinham outros da área da comunicação, e o Maurício Sobrinho ganhava muito dinheiro com isso. Então, com certeza, ele queria a permanência dos comunistas. Tinham muitos comunistas nos jornais, mas um dos mais visados era o meu pai. O Maurício escondia ele quando a polícia chegava. Olha, não foi nem meu pai que contava, foram os amigos dele no passado. O Dops chegava armado na frente do jornal Última Hora para prender os comunistas que estavam lá dentro. Levavam uns, levavam outros, mas o meu pai era o protegido do Maurício. Os jornalistas que lá trabalhavam, e eram envolvidos com o Partidão, conseguiam se esconder do Dops e, assim, também ficarem livres para realizar suas reuniões clandestinamente nos lugares onde a polícia não chegava.
O Partido Comunista Brasileiro (PCB), também conhecido como Partidão, foi fundado em 25 de março de 1922, no município de Niterói, no Estado do Rio de Janeiro.
O jornal carioca Última Hora foi fundado em 12 de junho de 1951, pelo jornalista Samuel Wainer. O periódico surgiu em um período de efervescência política e social. Era um jornal de apoio ao governo de Getúlio Vargas. Chegou a ter edições em São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Recife, Niterói, Curitiba, Campinas, Santos, Bauru e no ABC Paulista.
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Meu pai tinha o respeito do dono do jornal. Os militares chegavam nele, faziam o que tinha que fazer, mas sempre com cuidado especial. Tanto é que quando ele esteve muito doente por causa da prisão, foi a própria polícia militar que o colocou no hospital. Deram remédios e cuidaram dele, para que não viesse a morrer ou coisa assim. Outra coisa que me marcou, quando era pequeno, foi o lugar onde morávamos. Eu me relacionava com outros jovens e crianças na rua. À tarde, meu pai saía para o trabalho, e eu ficava brincando com a meninada, jogando bolita e brincando de pega-ladrão. Às vezes, ele chegava em casa e a polícia o prendia. Encapuzavam-no e o levavam para dentro de um camburão. Isso me marcou muito. E a gurizada pegava no meu pé, gozavam de mim, diziam que meu pai era ladrão de galinha. Eu era ingênuo, uma criança, um menino. E ficava muito chateado. Me doía muito e a meus irmãos. Mal as crianças sabiam que ele era um homem que lutava por uma boa causa, pelo término da ditadura. As crianças não sabiam, mas eu sofria com aquilo, porque me sentia humilhado. Faziam bullying comigo, mas eu não entendia muito. Para uma criança, aquilo foi um pesadelo. Passei um período muito triste na minha vida. O bom é que, com o tempo, fui vendo que não era nada daquilo. Tínhamos um pai maravilhoso. Um pai que sempre lutou pelas boas causas. Quem mais falava em política eram o meu pai, a minha mãe, a minha vó e o meu tio Tony Aveline, já falecido. Éramos pequenos e não entendíamos nada. Para nós, aquilo ali era como se estivessem falando inglês. Mas a gente se 128
perguntava: ‘Por que o pai foi preso? Por que o pai saiu algemado? Por que o pai foi colocado num camburão? Por que encapuzavam o pai?’. Íamos dormir tristes, chorando. E minha mãe dizia: ‘Não, levaram teu pai para conversar sobre política’. Minha mãe sempre encontrava uma maneira para não nos deixar sofridos. Era uma coisa muito dolorida. Muito forte. Depois, com o passar dos anos, a gente foi acompanhando e entendendo tudo. A minha avó dizia ao meu pai: ‘Não te envolve em política. Não te mete em política. Isso não dá camisa para ninguém. Não vai perder teu emprego. Tu tens que sustentar a família. Tu podes perder toda a tua família. Tu podes morrer’. A minha avó era radicalmente contra a luta do meu pai. Ela era a favor das ideias, mas não queria que ele se envolvesse. Ele respondia: ‘Eu sou comunista, porque acho bonito o Partidão, a luta do partido em defesa dos trabalhadores, as cores, a foice e o martelo da bandeira’. Para nós, e para seus alunos da faculdade, ele falava: ‘Olha, acho muito bonito, mas é uma utopia. Tudo isso é uma utopia, porque na verdade o comunismo está extinto’. Para ele, o lugar onde verdadeiramente existe o comunismo era nas tribos dos índios, onde todos caçam e pescam pra toda a comunidade. Então, ele pregava o socialismo decente. Usava a bandeira do partido como modelo de vida que ele queria, mesmo ciente de que seria impossível. O comunismo é utopia no Brasil, inclusive em outros países e continentes. Ele sabia que era utopia, mas pregava um socialismo correto, digno e decente. Uma das coisas que ele sempre procurou ao longo dos anos, princi-
palmente quando éramos crianças, era não nos colocar para participar com ele na batalha, na luta. Ele e os companheiros do partido procuravam sempre se isolar, proteger a família. Mas, no decorrer dos anos, eu e meus irmãos fomos acompanhando, aprendendo, nos interessando mais pelas questões de tudo que estava acontecendo. Ele começava a bater papo a respeito conosco. Trocava ideia e falava sobre vários aspectos e todas as lutas. Algumas coisas íamos captando, observando, analisando, e concluíamos que o nosso pai lutava pelo término da ditadura. Por outro lado, também ficávamos numa situação difícil, porque a minha avó era contra a participação do meu pai na militância. Não sabíamos se o que meu pai estava fazendo era certo. Nos perguntávamos: ‘Será que a minha avó está certa ou é o meu pai que está errado?’ Mas aderimos a favor da luta dele. Ele não falava nada do que acontecia com ele, que davam socos no seu rosto, por exemplo, e era por isso que aparecia em casa com dentes quebrados. Meu pai perdeu uns três ou quatro dentes com socos que ele levava dos militares no Exército. Olha só, no Exército e no Dops de Porto Alegre. Na Polícia Civil, ele também apanhou muito. Levou muitos socos no estômago. Meu pai sofreu um monte. Claro que em relação a outros, ele era especial. Eles batiam nele, mas sempre com cuidado, porque sabiam que ele era da imprensa. Era um homem que tinha uma coluna no jornal. Lembro quando ele era preso e a minha mãe passava dias, semanas e meses sem notícias. A sorte é que tinha a minha avó. Se tivéssemos dificuldade econômica, tinha a nossa avó para nos dar aquela
manutenção necessária. Ela nos ajudava a manter os nossos estudos. Meu pai faleceu e falamos dele com muito orgulho. Ele deixou um legado muito grande para a família e para seus colegas da imprensa gaúcha. Muitos de seus companheiros foram mortos, e ele sentia muito. No período em que trabalhava no Última Hora, escrevia uma coluna. Depois, tiraram a coluna dele, porque achavam que, se ele continuasse com ela, o jornal poderia ser prejudicado. Ele também poderia ser preso. Era aquela censura. Mas ele nunca se deixou levar. Queria terminar com esse mundo ditatorial que tinha no passado. Seu livro, Macaco preso para interrogatório, foi lançado antes de ele morrer. A história conta uma das coisas que ele e seus companheiros fizeram. Foi na Praça da Alfândega [em Porto Alegre]. Eles pegaram alguns macacos e colocaram em seus pés papéis com escritas: abaixo à inflação, abaixo à ditadura, coisas assim. E soltaram meia dúzia de macacos nos jacarandás da praça. A polícia foi avisada. Os bombeiros, avisados, foram lá para prender os macacos. E os macacos pulando de galho em galho. Os bombeiros colocavam aquelas escadas altas para pegar os macacos, mas não tiveram sucesso. Levaram um dia inteiro para prendê-los. As rádios noticiavam, a imprensa noticiava os macacos soltos na Praça da Alfândega. Os macacos fazendo protesto. Depois de muitos anos, foram saber que era o meu pai um dos envolvidos.
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Enterro do Jango em S達o Borja em 1976
LUIZ ABREU MARCO COUTO 25
132 LINIANE BRUM
PUBLICITÁRIA E PROFESSORA
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Gaúcha de Porto Alegre, nasceu em 1971. Formada pela PUC, atuou como publicitária e professora universitária. Foi produtora, editora e roteirista em dezenas de produções para cinema e televisão. Vive em São Paulo desde 1995. Trabalhou como editora da TV Cultura e hoje é educadora no Instituto Criar de Cinema, TV e Novas Mídias. É autora de Antes do passado - o silêncio que vem do Araguaia, livro da Arquipélago Editorial premiado com a Bolsa Funarte de Criação Literária.
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É a marca do Estado em uma famĂlia
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Depoimento a Julia Finamor em 24 de setembro de 2013.
É um pouco difícil falar das minhas lembranças, porque elaborei muito sobre a ditadura militar, então não tenho mais uma imagem que seja tão pura, é mais uma cicatriz de memórias. Nasci em 1971, quando era ditadura militar no Brasil. Talvez até tivesse passado como um período normal na minha vida, se não fosse o fato de ter crescido ouvindo a história de que meu padrinho e tio, Cilon Cunha Brum, foi visto pela última vez no meu batizado em 1971 e depois desapareceu. Essa é a imagem que tenho, que remete à sensação de vácuo, de vazio e de dor que ele deixou. Eu captei a história da minha vida, quando ainda era criança, depois ela foi elaborada e digerida quando cheguei à maturidade. O que tenho hoje é uma imagem já muito elaborada. Se eu não tivesse tentado entender na adolescência e ter pesquisado sobre o assunto, até escrever um livro, o Antes do passado [Arquipélago Editorial], talvez não tivesse nenhuma marca. A marca é muito familiar, é a marca do Estado em uma família. Uma memória bem genuína é que na escola eu tinha uma amiga bem próxima que era filha de militares. Essa amizade causava uma sensação estranha na família e eu não sabia o porquê. Outra imagem interessante que tenho são os casarões do bairro Petrópolis [Porto Alegre] que eram guardados por militares do Exército. As histórias sobre ele [Cilon] vieram bem depois, pois meus pais não sabiam muito bem o que tinha acontecido. Sabíamos que estava envolvido em atividades da esquerda. Tinha uma sensação nítida de vigília sobre a família. Isso criou um bloqueio de não se falar dentro da própria família. Depois pes-
quisei e tentei entender mais racionalmente o que era aquela época e vieram histórias como a de alguns ouvintes do Estado, que iam até o trabalho do meu pai perguntar notícias e insistiam que estávamos sendo espionados. Era uma sensação de tensão constante. Hoje em dia, o que sei sobre meu tio são coisas incertas. Desde que houve a Anistia, em 1979, sabe-se que ele foi um desaparecido político no que se convencionou chamar de Guerrilha do Araguaia. Ele saiu de Porto Alegre e foi estudar economia na PUC de São Paulo e trabalhar em uma agência de publicidade. Na capital paulista, aderiu ao movimento estudantil, que se relacionava com partidos de esquerda e socialistas, os partidos clandestinos e resistentes, e logo se originou a guerrilha. Ele foi com um grupo escolhido pelo Partido Comunista do Brasil. Eles se engajaram ao movimento que fazia parte da estratégia do partido comunista, o PC do B, na época. O objetivo era estimular a população campesina para uma possível revolução socialista. O que realmente aconteceu lá, a gente não sabe. Depois fui pesquisar o que teriam sido os últimos dias dele. Ele acabou fugindo do Exército, depois pegou malária, foi preso e, logo em seguida, morto. Isso mudou tudo na minha vida. Eu seria outra pessoa se não tivesse essa vivência. Não foi uma vivência que escolhi. A realidade estava dada para mim, nasci nesse contexto. Se fosse outra pessoa, talvez não teria sentido tanto. Mas marcou minha vida e por isso fiquei determinada em contar essa história. Essa pesquisa fui fazer muito nova. Com 15 anos, deparei com relatos de tortura. Esses relatos interferiram totalmente na pessoa que sou.
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A Lei da Anistia Política foi promulgada em 1979, no governo do presidente João Baptista de Oliveira Figueiredo, para reverter punições aos cidadãos brasileiros que, entre os anos de 1961 e 1979, foram considerados criminosos políticos pelo regime militar. A lei garantia o retorno dos exilados ao país, o restabelecimento dos direitos políticos e a volta ao serviço de militares e funcionários da administração pública, excluídos à força de suas funções.
A Guerrilha do Araguaia foi um movimento guerrilheiro que se organizou na região amazônica brasileira, ao longo do Rio Araguaia, entre fins da década de 1960 e a primeira metade da década de 1970. Criada pelo Partido Comunista do Brasil (PC do B), tinha por objetivo fomentar uma revolução socialista, a ser iniciada no campo, baseada nas experiências vitoriosas da Revolução Cubana e da Revolução Chinesa. Foi reprimida pelo regime militar.
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136 LUCIANA GENRO POLÍTICA
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Iniciou sua trajetória política aos 14 anos no Colégio Estadual Júlio de Castilhos, de Porto Alegre. Convive com política desde criança, por meio do pai, Tarso Genro, que se exilou no Uruguai logo após o nascimento da filha, e do avô Adelmo Genro, cassado pela ditadura quando era vice-prefeito de Santa Maria. Elegeu-se deputada estadual e federal. Em 2011, tornou-se advogada e membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RS. Fundou a ONG Emancipa, que oferece cursos para jovens de baixa renda se prepararem para o Enem e o vestibular.
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A ditadura, desde cedo, esteve presente na minha vida
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Depoimento a Pedro Abdala em 16 de setembro de 2013.
Tenho 42 anos. Era uma criança quando houve a parte mais dura do regime. Tinha 13 dias de vida quando meu pai [Tarso Genro] foi exilado durante esse período, em 1971. Ele foi embora pra não ser preso. Antes de sair do país, foi chamado pela polícia para dar um depoimento, porque existia a suspeita de que ele era uma figura procurada pela ditadura. Ele era estudante e militava no Movimento Sindical dos Ferroviários Quando chamaram o meu pai para o depoimento, ele negou que tinha qualquer envolvimento. Ficaram na dúvida, mas no fim o liberaram, sendo que deveria voltar na segunda-feira. Foi quando ele fugiu. Eu era recém-nascida, mas me contaram tantas vezes a história que ela faz parte das minhas memórias sobre a ditadura. O que mais me marcou foi o Comício das Diretas em Porto Alegre. Estudava no Colégio Maria Imaculada, localizado na frente do Beira-Rio, e o ambiente lá era muito pouco politizado em 1984. Eu, por toda a minha família, já trazia de casa a carga da política e, nesse dia, a professora de matemática falou para os alunos na sala de aula a importância do que estava acontecendo para o Brasil e do comício que iria ter no final da tarde. Eu tinha 13 anos e essa é minha lembrança mais viva. O comício foi histórico. Não teve as dimensões dos comícios de São Paulo e do Rio de Janeiro, mas, para os padrões de Porto Alegre, foi uma grande mobilização popular. Foi quando comecei a ter uma maior militância. Existia um movimento constante no Colégio Júlio de Castilhos, que é onde fui estudar depois do Maria Imaculada. A política sempre permeou minha vida desde a infância. Meu pai era muito
presente nesse aspecto. Eu via um político falando na televisão e perguntava para o papai: ele é MDB ou Arena? Então, a ditadura, desde cedo, também esteve presente na minha vida. Em 2012, lancei um livro [Direitos humanos: Brasil no banco dos réus] que trata sobre a justiça de transição, que é um mecanismo da troca de um governo ditatorial para outro regime, seja ele melhor ou pior. E o Brasil, na América Latina, foi o país que menos avançou no conjunto desses fatores. No fator da justiça, o avanço foi praticamente nulo. Aqui houve uma colaboração muito estreita entre a Justiça e o governo militar. Como a Justiça respondia de uma forma muito adequada aos interesses da ditadura, o nível de judicialização daquele período foi bastante forte. Isso refletiu na transição. A própria Justiça ajudou a bloquear as possibilidades de se avançar no quesito punição dos torturadores. O mais recente episódio disso foi a decisão do STF [Supremo Tribunal Federal] que considerou que a Lei de Anistia vale também para os torturadores. A transição no Brasil foi muito controlada politicamente, e a figura que mais expressa esse controle é o José Sarney, que era um personagem da ditadura militar e acabou sendo o primeiro presidente da transição. Até hoje ele ainda tem muito poder. Foi se adaptando. Primeiro aderiu ao governo militar, depois ao governo Collor, depois ao do Fernando Henrique e acabou sendo parte do governo do Lula. Isso prova que a transição foi muito controlada. Tudo isso também se relaciona com as características das mobilizações populares no Brasil, como no caso das Diretas Já, que acabaram derrotadas no Con-
José Sarney é um personagem emblemático da política brasileira. Assumiu a presidência do país, interinamente, em 15 de março de 1985 e, definitivamente, em 21 de abril do mesmo ano. Permaneceu no cargo até 15 de março de 1990. Político contraditório, ele havia apoiado o regime militar, votando contra a emenda Dante de Oliveira, que garantiria eleições diretas em 1985. Assumiu um Brasil com índices de inflação altíssimos, elevadas taxas de desemprego e dívida externa e interna herdadas do período militar, mas não equacionou estes problemas.
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A Comissão da Verdade, instalada em 2012, tem como objetivo a investigação de violações dos direitos humanos por agentes do Estado que ocorreram entre 1946 e 1988 no Brasil. Formada por sete membros, nomeados pela presidenta Dilma Rousseff, a comissão atuará durante dois anos. No final desse período, publicará um relatório das principais revelações, que poderá ser público ou enviado apenas para a presidente da República ou o ministro da Defesa.
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gresso sem ter condições de uma reação diante disso. Os próprios líderes das lutas contra a ditadura acabaram conduzindo esse movimento de uma forma também conciliatória. Como resultado, o Brasil teve uma transição incompleta, que não chegou a investigar a fundo tudo o que aconteceu. A Comissão da Verdade pode revelar algumas respostas, mas a parte de se responsabilizar os torturadores, mesmo que não colocando eles na cadeia, mas no sentido de apontar, já seria uma punição importante. A [Rede] Globo lançou uma nota de autocrítica, em minha opinião, fazendo uma tentativa de se passarem por ingênuos naquele processo. Espero que a Comissão da Verdade apure que grandes empresas financiaram a ditadura e não existe qualquer possibilidade de apontar os culpados. Assim, a tortura, que foi uma marca da época, continua presente hoje. Eu não diria que nós vivemos numa ditadura, vivemos numa democracia muito falha, mas é uma democracia, onde as pessoas não são presas por manifestarem suas opiniões, embora sejam muitas vezes presas por se manifestarem, como foi visto nas recentes manifestações. O Estado, seguindo a definição do marxismo, é em última instância um braço armado pra proteger os interesses da classe dominante. Então, quando a hegemonia ideológica não funciona, eles partem para o cacete, literalmente. Por isso que a tortura ainda está presente mesmo no âmbito da nossa democracia, nas prisões, nas delegacias, nos extermínios, nas execuções sumárias da polícia contra jovens. Hoje o alvo mudou, não é o militante de esquerda, são os pobres, os marginalizados. Esse alvo da tortura mudou, mas a impunidade ainda reina.
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“Nessa foto, um homem queria encontrar os outros colonos na estrada, e os capangas da fazenda o jogam por cima da cerca.”
LUIZ ABREU
Conflitos agrários ocorriam à revelia do Estado
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142 LUIZ ABREU FOTÓGRAFO
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Nasceu em 1946, em Santiago, no Rio Grande do Sul. Veio para Porto Alegre na época do decreto do Ato Institucional N° 5. Iniciou a carreira de fotógrafo em 1974, no jornal Folha da Manhã. Em 1977, passou a fotografar para o Coojornal. Foi freelancer nas revistas Visão, Manchete e IstoÉ. Entre 1999 e 2002, trabalhou como coordenador do Departamento de Fotografia do governo do Estado do Rio Grande do Sul. Atualmente desenvolve projetos na área de fotografia documental.
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Era fascista, não tinha nada de revolução
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Depoimento a Alina Souza em 12 de setembro de 2013.
Vim de Santiago para Porto Alegre, para estudar, no auge da ditadura militar, em 1968, quando ela assumiu o caráter duro, repressivo, violento e truculento, a partir do Ato Institucional Nº 5. Eram fortes as manifestações. Eu me recordo das manifestações na Esquina Democrática [cruzamento da Rua dos Andradas com Avenida Borges de Medeiros], daquelas correrias da Brigada Militar atrás dos manifestantes e das reações. Naquela época, se reagia bastante. A ditadura foi um golpe duro na democracia das liberdades individuais. Era um regime autoritário, fascista, que não tinha nada de revolução. Existia uma instalação no poder, um apossamento no poder em nome de interesses. Hoje a gente sabe mais claramente que os Estados Unidos estavam por trás. Eles foram patrocinadores do golpe. Foram os articuladores, os incentivadores, apoiadores com grana, com propaganda e tudo o mais. Deu no que deu. Foram esses 20 anos de escuridão no Brasil. Mas, nessa época, eu estava chegando, havia passado no vestibular, não fotografava ainda. Nem participei ativamente. Comecei a fotografar em 1974, na Folha da Manhã. A gente fotografava muita coisa na rua, mas nunca tive grandes problemas. Uma situação bem comum era o fotojornalista fotografar violências da polícia, e a polícia tentar tirar o filme ou espancar. A Brigada Militar era muito truculenta. Se a gente fotografasse alguma situação comprometedora, eles tentavam tirar o filme. Felizmente, isso nunca me aconteceu, mas, com muitos colegas, sim. Eles resistiram, brigaram com a polícia, levaram porretada. Mas, realmente, não vivi isso. Embora fotografando algumas situações de rua,
manifestações de greve, não foi nada que envolvesse a minha integridade física. Para mim, esse período reforçou mais uma convicção de esquerda. Na verdade, era a esquerda que estava sendo combatida pelo regime. Essas forças de esquerda eram muito presentes no imaginário jovem da gente na época. A partir do momento em que tu começas a trabalhar em jornal, com a ideia de que queres estar na rua, participar, testemunhar, cada vez ficava mais clara a tua opção por uma posição de esquerda, que não tinha a ver com o poder instituído na época pelo golpe e o poder que sempre houve no Brasil – um poder de elites, determinando os rumos do país. Sempre houve o poder do dinheiro, o poder capitalista, que ainda é bem forte. Essa opção por uma visão mais à esquerda, humanista, do mundo, se fortaleceu, cresceu e tomou mais corpo. E me fez renegar a grande mídia, que era de direita, comprometida com o poder, comprometida com os negócios do dono da empresa. Tem uma coisa bem marcante para mim... E hoje me dou conta de que tenho esse material guardado. Fotografei quando estava saindo da Folha da Manhã, em 1976. Foi o enterro do Jango, o presidente deposto. Teve que sair do Brasil, se refugiou no Uruguai e só conseguiu voltar para a pátria, morto, com suspeita de que tenha sido assassinado pelos agentes da ditadura ou seus cúmplices no Uruguai. Esse retorno dele morto foi uma coisa muito triste. Tudo o que ele representava, em termos de avanço democrático, em avanço popular... Não era uma maravilha de esquerda, mas foi um cara avançado. Fez reformas de base, falou em nacionalismo. Muito mais que os
Folha da Manhã era um jornal publicado pela Companhia Jornalística Caldas Júnior, em Porto Alegre, de 1969 a 1980. Entre os anos 1974 e 1978, foi dirigido pelo jornalista Ruy Carlos Ostermann, que instituiu a prática de grandes reportagens investigativas de enfrentamento à ditadura.
João Goulart morreu, oficialmente, vítima de um ataque cardíaco, no município argentino de Mercedes, na província de Corrientes, em 6 de dezembro de 1976. O enterro aconteceu no dia seguinte, no município de São Borja (onde nasceu), no Rio Grande do Sul. Seus restos mortais foram exumados em novembro de 2013, com o objetivo de investigar a causa da morte e esclarecer a suspeita de que ele possa ter sido assassinado pela ditadura militar.
A equipe de João Goulart propôs mudanças estruturais nos setores educacional, fiscal, político e agrário, com o objetivo de diminuir as desigualdades sociais no Brasil. As reformas de base foram discutidas pelo Partido Trabalhista Brasileiro em 1958, mas foi somente com a chegada de Goulart à Presidência (1961) que elas ganharam maior consistência.
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milicos, que assumiram em 1964 com uma bandeira nacionalista e não foram nacionalistas. Foram patrocinados pelos americanos, com uma fachada de nacionalismo, verde e amarela. Pela Folha da Manhã, fotografei o enterro do Jango. Aquilo me impressionou muito, mais ainda o apossamento no momento em que foi conduzido o caixão. A população realmente se apossou do caixão e estava extremamente emocionada. Fiquei muito tempo em torno do caixão e das expressões das pessoas. Me atraiu bastante aquela força. Lembro de agentes da ditadura, devia estar cheio de agentes do Dops, se acercando. Então, quando eles viram que eu estava muito interessado na manifestação das pessoas, nas reações de emoção, de raiva e de repúdio, eles começaram a se aproximar, a me cercear, a me perguntar ‘por que não vai fazer outra coisa?”. Eu disse: quero fazer isso aqui. Aquele era um momento público, mas se eles pudessem, iriam me reprimir, até tentar tirar filme ou achar que eu estava incentivando a revolta das pessoas. Esse registro foi bem marcante, registro desse momento que é extremamente emblemático de todas as consequências que a ditadura teve sobre as pessoas, sobre a democracia, sobre um presidente eleito democraticamente. Toda a perversidade de um sistema de força, que se impõe pela força. Uma fachada de nacionalismo que é tudo papo-furado. Não dá para dizer que não houve corrupção. Houve corrupção, só que não aparecia. Os jornais não podiam falar. Os milicos foram extremamente corruptos e venderam o país.
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Enterro do Jango em S達o Borja em 1976
LUIZ ABREU7
148 RALPH DIETER RAHN EMPRESÁRIO
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Nascido em 1956, é sócio da Intercâmbio Eletromecânica, empresa familiar que opera com consultoria, representação e instalação de produtos para medição de energia solar e eólica. O negócio foi fundado pelo seu avô e vem, há quatro décadas, sendo prioritariamente comandada por familiares e amigos. Formado em Engenharia Elétrica pela PUCRS, Ralph também cursou o CPOR. É casado e tem filhos. Quando está em férias, costuma viajar para a Alemanha para visitar sua família.
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E a histรณria jรก mostrou que nรฃo estava errado
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Depoimento a Bruno Cisco em 9 de outubro de 2013.
Acho que [minhas principais lembranças] são ordem e progresso, duas coisas que hoje não tem. Como fui militar, acho que a hierarquia, o respeito, ficar enquadrado, é uma coisa necessária a vida inteira. Desde os egípcios a coisa já era assim. Deveria continuar assim. Portanto, progresso porque existia muito menos roubo, muito menos desvio da coisa pública. Claro que tinha, mas muito menos. E o pessoal tinha um pouquinho de medo de apanhar. Hoje, ninguém tem medo de apanhar. Inclusive, fecha a cara pra bater e pra quebrar as coisas que não são suas. Primeiro [momento que lembro] foi em 1964, dia 1º de abril. Meu pai abriu a loja da nossa empresa, na Rua Pinto Bandeira, no centro de Porto Alegre. Abriu e fechou, porque tinha vândalos entrando a milhão porque era o golpe de 1964. Exatamente no dia em que abrimos a loja e fechamos na mesma hora. Segundo foi em 1976. Eu estava na PUC fazendo Engenharia Elétrica e fui convidado a participar de uma manifestação, pra sentar no chão no pátio. Ficamos lá umas três horas. Nem sabia o que estava acontecendo. Depois, contando em casa, meu pai e minha mãe choraram de medo porque eu poderia ter sido preso, poderia ter sido espancado e tudo mais, pelos militares. Nada disso aconteceu porque era dentro do Campus da PUC. Essas foram, pra mim, as duas grandes coisas: ter um pouco de medo se fosse baderneiro e segurança pra quem era gente séria, decente. Nossa querida presidenta que me desculpe, mas pegar em armas e pegar pessoas e hoje fechar ruas porque está fazendo protesto, pra mim, é o fim da picada, dá vontade de
ir pra Alemanha e não aparecer mais aqui. Realmente tenho raiva disso, dessa liberdade, dessa libertinagem que está acontecendo aí. A gente ouvia muito e falava dos caras que faziam protestos e recebiam a maior pancadaria nas delegacias. Mesmo que eu tivesse 16, 18, 20 anos, mas sabia que quem era contra o sistema apanhava. Não tenho nem dúvida. A pergunta era se o sistema estava errado ou não. E a história já mostrou que não estava errado, pro meu entender, pelo menos, como todo bom milico. Gosto de ordem, gosto de enquadramento, gosto de vergonha de errar pra fazer certo, não vergonha de errar de ter medo de errar. É ter vergonha, pensar duas, três vezes antes de começar alguma coisa pra ver se está planejado o suficiente. E isso se faz na vela, se faz no avião e se deveria fazer na empresa, pra não quebrar, e na vida. Medir as consequências antes, e não dizer ‘ah, desculpa, fiz sem querer, fiz sem pensar, falei sem pensar’. Uma baita babaquice, isso é coisa de infantilóide, de débil mental. Pessoas normais abrem a boca porque o cérebro manda, e não porque se está com fome. Falo isso porque não tive, em nenhum momento, medo da ditadura, do Exército. É uma coisa muito estranha a gente aliar o Exército à força bruta. Muito pelo contrário. Então, a falcatrua, esse negócio todo, vamos dizer assim, é óbvio se falar em termos de jeitinho, de pagar propina. Isso já existia na época pra se obter liberações e coisa parecida, se conseguiria através de pagamento a um funcionário público. Estranho, não mudou nada. Não foi o regime que fez, são as pessoas que são erradas nos lugares errados. Então, não vejo nenhuma diferença entre a dita151
dura e o que acontece hoje, sinceramente. A diferença é que existia uma estabilidade mental dos políticos. O que significa isso: o que tinha sido dito, era honrado, tanto de um lado como de outro. O que um militar fala, o que um militar planeja, o próximo militar vai continuar levando isso a sério. Enquanto que aqui, quando troca o governo, de um lado pra outro, as coisas mudam 180 graus. E isso não é estabilidade comercial, nem política. Nem, sei lá, da sociedade, que já não respeita professor, não respeita pai, não respeita condomínio, não respeita coisa nenhuma. Então, eu vejo a ditadura militar como sendo uma coisa boa. Ao contrário de muita gente, não tenho dúvida. Sou muito enquadrado. Como militar, também já fui escoteiro, já fui lobinho com seis, sete anos, já estava sentado um atrás do outro, de pé na fila, entrava no colégio com fila indiana, tudo organizadinho, usando uniforme que não faz mal nenhum. E quando se passa a infância cumprindo ordens, não quer dizer que tu não sejas um ser pensante. Tu só estás enquadrado. E outra, quando se vai pra Alemanha ou países desenvolvidos, eles te dão liberdade. Mas essa liberdade fica dentro. Tu só não notas que está enquadrado. Mas vai fazer bobagem na Alemanha pra ver se não baixam um cassetete. Vi policiais alemães espancarem, a ponto de quebrar com o cérebro do desgraçado de um russo, bêbado, quebrar o vidro do carro da viatura da polícia, batendo com a cabeça do cara contra o vidro. Vi na Suíça os caras baixarem o sarrafo em plena praça pública que tinha manifestantes bobalhões quebrando coisas. Os caras vieram e acabaram, mas acabaram na porrada. Suíça, Alemanha, é tudo 152
bonitinho? É, desde que todo mundo se comporte. Porque na hora em que tu sais fora, fecha o pau. E aqui não tem nem polícia pra isso. Quando se é da classe média, vamos combinar... A classe baixa, pobre, as vilas, tanto num lado como no outro, estão apanhando. A diferença é que antigamente tu ligavas pra tal da rádio patrulha e vinha gente. Hoje não tem gasolina, não tem carro, está estragado. Então realmente não sei o que é melhor. A disciplina, o compromisso, ou seja, se eu saio de casa às 6h e volto às 20h, e não fico jogando tênis, golfe ou fazen do academia, estou perdendo algumas horas da minha vida, obviamente. Em compensação, minha firma está funcionando. E ela é de 1942. Então já é a quarta geração. E se tu não tens disciplina ou compromisso, se tu não levas a coisa a sério, ou brinca de ser empresário, a coisa não vai. E também não adianta só ser um empresário, tem que se qualificar pra isso, obviamente. Então, ser analfabeto, perder um dedo ou ser general que estudou pra chegar lá... Estudou mesmo, não tem brincaderinha, não tem Senai, Senac ou cursinho que faz um cara virar general. O cara tem que ter conhecimento. Assim como outros presidentes tinham conhecimentos civis. Realmente custo a acreditar que vou ser comandado por uma pessoa analfabeta. Uma pessoa que teve curso, teve conhecimento, está mais qualificada a comandar do que uma pessoa que não estudou. ‘Ah, porque é líder’. O Hitler também era líder. E também era cabo raso, não era grande coisa. E o pessoal foi atrás dele e deu no que deu. Babaquice, né?
”
“Acho que foi uma das minhas melhores fotos, se não a melhor, que para mim e para muitos simboliza a luta pelas eleições diretas e, por conseguinte, o fim da maldita ditadura que pegou minha geração bem em cheio.”
Fafá de Belém participou em Porto Alegre do comício da campanha pelas Diretas Já
LUIZ ACHUTTI7
154 SILVANA PINEDA
PROFESSORA DE HISTÓRIA DO COLÉGIO MILITAR DE PORTO ALEGRE
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Professora de História do Colégio Militar de Porto Alegre desde 1996. Antes lecionou em escolas públicas e particulares da capital gaúcha e também na PUCRS. Nascida em 1962, Silvana cresceu durante o período da ditadura militar. Criticou material didático pró-ditadura usado pelos alunos do Colégio Militar e foi afastada. Depois de ação judicial, reassumiu a função.
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Continuo enxergando o Médici na televisão
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Depoimento a André Pasquali em 26 de setembro de 2013.
Nem sei por onde começar porque, como eu nasci em 1962, toda a minha infância, adolescência e início da idade adulta, além do meu encontro para me tornar um ser político, foi dentro da ditadura. Então, as minhas mais remotas lembranças de infância sobre a ditadura são, por exemplo, com os meus irmãos. Às vezes, quando eu chegava em casa, eles estavam encostados na parede do prédio sendo revistados. O meu pai tinha um grande pavor quando eles, que eram mais velhos, saíam de casa. ‘Por favor levem os documentos e não fiquem de bolinho na esquina’, dizia. Outra coisa eram os programas na televisão e as imagens do [general Emílio Garrastazu] Médici, que não terminavam de passar. Eu era também aluna de escola pública, então a minha vida escolar foi muito marcante durante o período militar. Havia algumas marcas evidentes, por exemplo, nós tínhamos Educação Moral e Cívica na escola, uma ritualização do cotidiano que era muito impregnado por aquele ufanismo que a ditadura imprimiu no momento. Lembro que, na Semana da Pátria, nós éramos levados para o Gigantinho [ginásio esportivo situado ao lado do Estádio Beira-Rio, em Porto Alegre] para participar das cerimônias e cantar Este é um país que vai pra frente e aquelas coisas todas. Foi bem marcante a minha infância pelo contexto de ter uma história familiar de militância e, por isso, minha família se assustava muito com a ditadura. A família do meu pai era espanhola e recebia amigos que fugiam da ditadura franquista, que estava no fim, mas ainda era complicado. Ao mesmo tempo, estudava em uma escola que ensinava que aquilo
tudo era uma maravilha e que o Brasil estava crescendo. Lembro também da música. Nas minhas remotas lembranças da infância, lembro do Chico Buarque, com Roda vida, e os meus irmãos cantando em casa. Lembro dos festivais, do Geraldo Vandré, porque meus irmãos eram adolescentes quando eu era criança, então se vivia muito isso em casa. Vivi muito o gosto de uma geração um pouco mais velha por causa deles. Outra coisa que também me marcou, quase na vida adulta, quando eu tinha 17 e recém havia entrado na universidade, era que não tinha o que ler nas bibliotecas, porque elas eram absolutamente peladas de qualquer bibliografia referente a qualquer movimento um pouco mais de esquerda, e não precisava ser nada de muito grande. A gente não encontrava livro algum e tínhamos que pedir para algum amigo trazer as leituras do Uruguai. Quando chegava alguém com um livro diferente na universidade, todo mundo corria para ver o que era. Então foi uma geração que teve uma formação profissional numa época em que falar de política era muito complicado. Atividades sindicais eram praticamente proibidas, e talvez por isso também as campanhas das Diretas Já foram muito marcantes e envolveu muito a minha geração. O civismo que a ditadura tentava impregnar foi muito marcante. Lembro muito da minha irmã na universidade voltando para casa e contando que o professor ficava desesperado, trancando as portas, porque a polícia invadia procurando alguém, e contando dos colegas que sumiam. São relatos que eu, que não vivi na universidade no pior período,
Regime político aplicado na Espanha entre 1939 e 1976, durante a ditadura do general Francisco Franco, baseado no fascismo. Prevalecia a unidade nacional espanhola (nacionalismo de estado), o catolicismo e o anti-comunismo.
Músico paraibano, Geraldo Vandré escreveu Pra não dizer que não falei de flores, música que se tornou um hino da resistência estudantil que fazia oposição à ditadura.
Diretas Já foi um movimento civil de reivindicação por eleições presidenciais diretas no Brasil ocorrido em 1983-1984.
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Getúlio Vargas foi presidente brasileiro durante dois períodos (1930-1945 e 1951-1954). Adepto do populismo, Getúlio era conhecido como “pai dos pobres”. Suicidou-se em 1954.
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tenho, porque meus irmãos viveram. Quando entrei na universidade, não era mais o período Médici, então já não estava tão difícil. E é interessante porque vivi até o início da minha vida adulta na ditadura, mas o período que mais me marca é o do Médici, porque é justamente quando meus irmãos eram adolescentes, e o terror em casa era muito grande. Todo mundo sentia muito medo o tempo inteiro. Então esse é o período que mais me marca, embora tenha vivido outras situações depois, porque, em termos de vida familiar, foi muito difícil. Esse pavor constante dos meus pais, de que um dos filhos não voltasse pra casa. Enxergo o Médici na televisão sempre porque havia aquelas propagandas todas do governo e da Copa do Mundo, aquela folia toda. Isso é muito presente como um momento de muito medo de que algo acontecesse em casa. Meus irmãos não foram presos e nem levados, mas chegaram a entrar em camburão. Lembro perfeitamente da cena de chegar em casa e eles estarem encostados no paredão do prédio onde a gente morava, sendo revistados sem nada de carinho. E não era por nada. Em 1969, 1970, se tivesse um bolo na esquina, era motivo para a polícia chegar perguntando e encostando todo mundo. A minha irmã estudava no Julinho [Colégio Estadual Júlio de Castilhos], escola que tinha uma história de militância muito grande. Meus irmãos também estudaram ali, então eles estavam no olho do furacão. O meu pai era bancário, gerente do Banrisul [Banco do Estado do Rio Grande do Sul], na época em que a guerrilha urbana estava fazendo assaltos a bancos. Foi muito complicado para nós. Ele se aposentou porque, embora nunca tenha
militado como o meu avô, havia suspeita de que ele, como filho de um militante anarquista, quem sabe podia facilitar não sei o quê. Foi muito difícil para ele conviver com a possibilidade de suspeitarem de que tivesse alguma coisa a ver com a militância. De tudo que vivi da ditadura, e foi um tempo longo, esta fase foi muito marcante, porque muita coisa aconteceu e sentimos muito em casa. Na época entendia mais ou menos que o mundo se explica pela História. Não sei ter outra explicação sobre o mundo que não seja essa. E há uma necessidade fundamental para mim. Sempre gostei muito de História. Lembro que, quando era pequena, adorava filmes antigos, e aquilo já era uma relação de gostar de coisas que lembrassem o passado. Então gostar de História é uma coisa minha desde sempre. E ser professor não era uma coisa muita assombrosa, nesse ponto de vista. Através da História, consigo entender como as coisas acontecem. Meu pai nunca foi militante até pela questão familiar. Meu avô teve de sair de Porto Alegre diversas vezes na época do Getúlio. Então meu pai sempre receou a militância em função de ter tido uma vida muito complicada. E os irmãos participaram de centos acadêmicos, DCE [Diretório Central dos Estudantes], mas nada de militar em algum partido. Eles eram estudantes bem comuns. Então, tu imaginas o que significou para aqueles que efetivamente eram militantes. Mas qualquer estudante com um discurso um pouco político não precisava nem ter abordagem muito sofisticada que já era considerado perigoso. O mundo político parecia não existir porque não se falava disso. Não tinha discussão nenhuma em lugar nenhum que a gente ia.
”
Enterro do Jango em 1976 em S達o Borja
LUIZ ABREU7
160 SONIA MARIA HASS PUBLICITÁRIA
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Publicitária, nasceu em 5 de maio de 1958. É irmã do desaparecido político João Carlos Haas Sobrinho, que nasceu em 24 de junho de 1941 em São Leopoldo e desapareceu na Guerrilha do Araguaia em 30 de setembro de 1972. Médico formado pela UFRGS em 1964, ele era ligado ao Partido Comunista do Brasil. Foi para a região a fim de lutar pelo seu ideal, onde enfrentou a ditadura militar e morreu aos 31 anos. Seus restos mortais provavelmente se encontram no cemitério de Xambioá, município de Tocantins.
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Sempre pensei que ele fosse voltar
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Depoimento a Francielly Brites em 9 de outubro de 2013.
Visto que eu era uma criança em 1964, tinha seis anos de idade, vivi a história da ditadura militar muito de perto. O meu irmão [João Carlos Haas Sobrinho] se envolveu com política e teve uma trajetória que acabou com a sua morte. Isso marcou a minha vida de uma forma totalmente diferenciada das outras crianças. Meu irmão saiu de casa quando eu tinha sete anos e, a partir daí, começamos a viver um período de poucas informações, de falta de contato, de angústia por não saber onde ele estava, de vazio. Isso foi se acumulando. O que me marca da ditadura é a perda. Minha vida ficou muito diferente, inclusive tomou outros rumos, devido ao desaparecimento do meu irmão. Éramos duas pontas da família, eu era pequena e ele, grande. Ele era o ídolo da gente, nossa referência, nós o admirávamos. Ele fazia Medicina e morava na Capital, era um cara alegre. Ele tinha uma coisa bonita, era um adulto realizado. Ele saiu de casa e depois não voltou mais. Fomos saber da morte dele com a abertura política em 1980. Ficamos muitos anos vivendo a angústia de não saber o que havia acontecido. A nossa família não tinha ligação com partidos de esquerda, não tínhamos amigos da clandestinidade que pudessem nos dizer alguma coisa sobre o João Carlos. Foi muito difícil viver isso. No início, deixou marcas profundamente significativas, tanto que me propus a procurar por ele sempre e a seguir as pegadas, procurando resgatar a história e a trajetória bonita dele de escolhas. Foi uma perda que deixou um rombo muito grande na família e em mim. A última cartinha dele veio em julho de 1968, e ele tinha saído de casa em 1966.
As cartas eram sempre muito curtas, praticamente bilhetes, sempre muito genéricos, dizendo que estava bem, realizado, fazendo o que acreditava que tinha que fazer, mas não sabíamos que isso se referia à política. No final de 1979 e 1980, começaram a surgir reportagens em jornais de esquerda falando sobre o movimento que estava ocorrendo contra o governo. Começou a se falar, então, da Guerrilha do Araguaia. Entre 1980 e 1981, foi lançado o primeiro livro de Fernando Portela, que relata a guerrilha. Aí tivemos maior conhecimento sobre o que estava acontecendo e vimos que ele [João Carlos] estava envolvido com o Partido Comunista do Brasil e que provavelmente havia morrido. De 1968 a 1980, ficamos sem saber onde ele estava. Em 1981, teve um congresso em Salvador, na Bahia, onde moro hoje, do Partido Comunista do Brasil. A minha prima, Marisa Haas, já falecida, que era muito amiga do João Carlos, procurava muito por ele. Ela conhecia algumas pessoas em Porto Alegre que conheciam ele e acabou tendo contato com Elza de Lima Monnerat, dirigente do PC do B que atuou no Araguaia. Elza confirmou, com outras pessoas do partido que tinham conhecido João Carlos, que ele realmente estava lá, que foi do comando militar da Guerrilha e que morreu em setembro de 1972. Tivemos que encontrar formas de acreditar e de assimilar aquela nova verdade. Até existia um pensamento de que ele poderia estar morto, mas era a última opção, porque não queríamos morte. Imaginávamos que ele teria fugido do país ou que estava em qualquer outro lugar escondido. Eu viajava muito pensando: onde que ele está? Ele está em algum
A saga do Araguaia é o primeiro livro do jornalista Fernando Portela, foi editado pela primeira vez em 1979 e teve nova edição em 2002. Seu trabalho já havia sido publicado no Jornal da Tarde em 1978.
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lugar de férias e vai voltar? Ou foi numa missão impossível, mas vai voltar? Com nove anos, ia ao cinema e lembro que, quando havia multidões, ficava procurando. Imaginava: será que ele não está perdido nessa multidão? Eu vou achar. Isso marcou muito a minha infância. Andava nas ruas e às vezes achava alguma pessoa parecida. Sempre pensei que ele fosse voltar. Quando era bem pequeninha, ficava andando de bicicleta no quarteirão da nossa casa esperando para ver por qual rua ele chegaria, porque ele vinha de ônibus. Fiz isso por muito tempo, mesmo ele não vindo. Pensava: quem sabe ele vem e, me vendo, vai pra casa? Foi um assunto que ficou muito velado dentro da nossa casa. Ficamos tentando assimilar, engolindo aquela nova realidade que era tão dura, tão cruel. Pouco falávamos sobre esse assunto porque doía muito. Nossos pais tinham dificuldade também de conversar conosco. Eles tinham seis filhos, e a relação familiar não era como hoje, que os filhos têm espaço para dar opinião e participar de todas as conversas. Para mim, particularmente, que na época já era moça, foi um baque muito grande e uma tristeza enorme. Uma vontade de não acreditar. A partir desse momento, quis muito ir atrás dele para encontrá-lo, mesmo que fosse dessa forma, no final da vida dele, morto. Onde pudesse resgatar a dignidade dele e trazê-lo para São Leopoldo. A partir desse momento, tive pulso para ir procurar a história dele e trazer coisas que pudessem confortar os nossos pais. Foi aí que comecei a minha luta, digamos assim. Foi um trabalho muito doloroso. Passei por várias situações de confirmações. Pessoas dizerem e documentos prova164
rem. Matérias de jornal, de revistas, pessoas do partido, mas cada vez que uma pessoa confirma, a morte dói de novo. O momento mais forte para mim foi quando fui pela primeira vez no Araguaia, que naquela época era uma viagem que ninguém imaginaria fazer. Ninguém passeava, fazia turismo, pescava no Araguaia. O Araguaia era lá no canto do Brasil, no sul do Pará. Juntei forças com a minha prima e com o meu ex-marido. Fomos de avião e depois pegamos um carro em Marabá, no Pará, e fomos a região do Araguaia. Foi muito forte passar e navegar pelo rio Araguaia. Chegar à cidadezinha que se chama Xambioá, que pertence ao estado de Tocantins, onde houve a guerrilha e onde supostamente João Carlos esteja enterrado. Pisar em Xambioá, olhar para os lados, ver pessoas, sentir o cheiro da mata, o barulho do rio, o azul do céu. Pra mim, foi muito grande. Senti João Carlos ali e, ao mesmo tempo, a perda. Muito forte. Encontrei pessoas que conheceram ele, gravei vários depoimentos, estive no cemitério pela primeira vez, onde supostamente ele está enterrado, mas até hoje não encontramos as ossadas. Um dos primeiros poemas que escrevi, com nove anos, só depois de certo tempo entendi que foi por causa da perda do João. Falava de rio, uma coisa muito maluca. Acho que só 30 anos depois que fui me dar conta de que, com nove anos de idade, escrevi um poema sobre um rio que secava, um rio que abandonava o seu leito. Era um poema triste para uma criança. Depois de muitos anos, entendi que isso era a minha dor e que estava sentindo a ausência do João. Só que eu não sabia que tinha rio na história.
”
Protesto de estudantes na UFRGS em 1977
RICARDO CHAVES
quem LEMBRA
A
168 ANテ年IMO
FILHO DE TORTURADA
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O estudante de 26 anos prefere se manter no anonimato. Quando tinha 15 anos, descobriu que a mĂŁe foi torturada inĂşmeras vezes durante a ditadura.
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A ditadura deixou muita gente viva, mas com vazios
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Depoimento a MĂŞlanie Albuquerque em 30 de outubro de 2013.
Minha mãe tem 68 anos. Ela é professora e formada em duas faculdades. Quando tinha 17 anos, ainda em Santa Maria, se envolveu com movimentos estudantis, referentes à ditadura. Eu nunca soube muito bem o que houve com ela, até porque nunca foi falado abertamente pra gente. Mas ela foi presa, torturada. Minha mãe tem cicatrizes pelas costas. Nunca vi ela usar biquíni, maiô ou vestido que mostrasse as costas. Sempre escondeu muito essa parte do corpo, porque tem vergonha das marcas que carrega. Nunca sentamos para conversar sobre esse assunto, mas ela sempre deixou vestígios do que passou. Fiquei sabendo que ela sofreu torturas através da minha irmã mais velha. Era possível desconfiar do que aconteceu pelo modo como ela fala sobre esse tempo. Ela evita tocar no assunto. Não é algo que comente, mas, ao mesmo tempo, é muito apegada ao material cultural que foi gerado naquela época. Cresci ouvindo muitas das mais lindas músicas da época. Conheço as letras por causa da minha mãe. Ela cantava as músicas que falavam dos desaparecidos, da opressão. Quando tinha 15 anos, queria saber o porquê daquelas marcas. Então ela falou: durante a ditadura, foi presa, mas não me contou o modo como foi a tortura, o que exatamente fizeram com ela. A única coisa que disse é que a machucaram muito, que ela tem marcas físicas, mas o pior de tudo foi o que tiraram dela. Ela quis dizer que tiraram a esperança, a força dela. As marcas que ela tem nas costas são muitas, cicatrizes fundas e gritantes. São feias, mas é lógico que ela carrega muito mais do que isso, é um medo constante. A maior de todas fica na parte de trás do ombro. É possível colocar um dedo ali.
Ela sempre diz que um dia vai fazer uma plástica para tirar. Além disso, ela tem o nariz quebrado, mas sei como aconteceu. Foram uns oito anos envolvida na militância. E só se afastou depois que um amigo foi morto, um cara que ela visita o túmulo em Santa Maria uma vez por ano. Foi horrível descobrir isso. Logo em uma época em que eu estava envolvido com questões políticas. Eu era filiado ao PSTU, já tinha levado tiro de borracha nas costas por causa de aumento da passagem de ônibus, que naquele tempo ia para R$ 1,60. Fui parar em delegacia. Quando descobri isso, me dei conta de que tudo o que ela sofreu ainda acontece. A ditadura matou muita gente, deixou mães sem filhos, filhos sem os pais, mas a ditadura deixou muita gente viva, e muita gente que ficou com vazios, fases inteiras de uma vida que são negadas ou que são lembranças horríveis. No início desse ano, quando houve todos esses protestos em Porto Alegre, e grupos no Facebook diziam que o Brasil precisava de uma nova ditadura, ela sentou comigo e com meus irmãos e disse: ‘Se acontecer qualquer coisa no Brasil, a gente vende tudo e vocês saem daqui. Vocês não vão viver isso’. Pela forma como ela se resguarda em relação a esses assuntos, acredito que ela tenha sido abusada nesse período. Minha mãe é tão fechada em relação a isso que nem filmes sobre o assunto ela assiste. Ela passa mal vendo, sofre junto. Uma vez fomos ao cinema ver um desses filmes e ela saiu no meio da sessão, porque não aguentou. Desde pequeno ela me ensinou a nunca baixar a cabeça para um policial, porque eles estão servindo a gente, e não a gente servindo a eles. Mesmo com medo, ela sempre tentou
Em junho de 2013, a Capital presenciou o ápice dos protestos que reivindicavam o aumento da passagem de ônibus. O valor custaria R$ 0,20 mais caro. Milhares de pessoas foram às ruas da cidade durante a onda de manifestações. Elas também pediram melhorias na saúde e na educação do país.
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passar valores, para que não fôssemos temerários. Ironicamente, a minha mãe é casada com um militar, que serviu durante a ditadura. É estranho, porque da mesma forma que ela não fala disso, por ter sofrido a pior parte dessa história, o meu pai fala muito pouco também, porque ele era um burro de carga. Muitos militares tentam alegar inocência, dizer que não sabiam o que estava acontecendo, mas, vendo o meu pai, sei que, de fato, muitos não sabiam. Tenho plena noção de que eles eram peões de uma armação. Meu pai sempre comenta que soube das perseguições, das torturas e das mortes depois de elas terem acontecido. Ele nunca torturou ninguém e, mesmo assim, se envergonha muito. O meu pai é o protetor da minha mãe. Não que ela seja uma mulher frágil, mas ele faz questão de ser quem a protege de tudo e de todos. Ao contrário da minha mãe, ele acha importante debater o assunto, pois, na opinião dele, o que não se fala é esquecido, e se é esquecido, pode acontecer de novo. Ambos carregam isso como algo que serviu para a formação, de maneiras diferentes. É bem dúbio ter um pai militar e uma mãe militante, mas ele não é nada do que se imagina de um militar da época da ditadura. Um homem caridoso, que se importa com as pessoas. Meus pais apoiam os protestos. Acreditam que a população tem de se voltar contra o governo e exigir o que é de direito. Eles têm bem claro que tudo o que aconteceu não pode existir de novo. Essa fase horrorosa não pode voltar.
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”
“Os protestos na frente da prefeitura foram tímidos, até que um maluco (manifestante), na tentativa de escapar da prisão, pulou sobre a fonte. Quando fiz a foto, realmente fiquei trêmulo, porque sempre éramos alvos de retaliações, e nem sempre as fotos eram publicadas, pois os militares as censuravam.”
Protesto em frente Ă prefeitura de Porto Alegre em 1979
JORGE AGUIAR 7
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CHRISTOPHER GOULART NETO DE JANGO
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Neto do presidente João Goulart (1918-1976). Em 2012, Christopher foi candidato a vereador e ficou como suplente pelo PDT. Ele lutou pela exumação dos restos mortais do seu avô deposto no golpe militar de 1964 e morto durante o exílio. O procedimento aconteceu dia 13 de novembro de 2013 em São Borja, no Rio Grande do Sul. O objetivo é esclarecer se Jango morreu de ataque cardíaco, como consta na documentação oficial, ou se foi assassinado por envenenamento.
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A ditadura sujou a imagem do meu av么
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Depoimento a Fernanda Ponciano em 17 de setembro de 2013.
Nasci em 5 de outubro de 1976, na Inglaterra, no exílio. A minha mãe é uruguaia. O fato de eu ter ficado com três nacionalidades foi justamente pela perseguição política que a minha família sofreu. Todos os países perseguiam o meu avô na época, porque ele era presidente deposto, representava a queda da democracia. E tinha uma força representativa muito grande, imponente. Então o [Juan Domingo] Perón, que era presidente da Argentina, convidou o meu avô para morar no país, em função dessa perseguição. E meu avô foi. Mas no final de 1975, o Perón faleceu e assumiu a Isabelita Perón. Veio outro golpe militar, do general [Jorge Rafael] Videla. Foi a ditadura mais sangrenta. Na Argentina, houve mais de 30 mil mortos e desaparecidos. No ano em que nasci, sequestraram e mataram muitos políticos e amigos do meu avô. E então se descobriu um possível sequestro dos meus pais. Meu avô mandou meu pai para Londres, porque era um lugar seguro, onde não tinha perseguição. Fiquei dois meses lá. Meu avô faleceu e meu pai voltou às pressas pra cá. Ficamos aqui. E isso tudo teve reflexo na minha vida. Mesmo quando tu não tens relação com alguém da ditadura, esse legado político chega até ti pelo sofrimento dos teus familiares ou dos teus pais. Indiretamente, sempre chega. Sempre tem alguém que fala do nome do meu avô pra mim. Falo disso com muito orgulho, porque é o meu nome, é a minha família. E isso não é fácil porque a ditadura sujou a imagem do meu avô. Ele foi investigado de todas as formas, inclusive por corrupção, sendo que nunca nada foi comprovado. Der-
rubaram o presidente e não havia um argumento forte pra isso. Tinham de colocar um rótulo e colocaram o do comunismo. Até hoje, temos de desmitificar isso e não é nada fácil. Aprendi no decorrer da minha caminhada: é muito mais difícil se reerguer depois de uma grande queda, do que começar uma atividade do zero e subir. E o meu caso foi esse: estou reiniciando depois de uma grande queda. O Ministério Público Federal investiga a morte do meu avô, sobre a qual paira uma dúvida, desde os primeiros momentos. Em 1985, era inviável levantar esse tipo de assunto. Agora, nos últimos anos, começaram a surgir testemunhas que dizem claramente que participaram da operação que matou o meu avô. Sempre digo que foram dois assassinatos que têm a mesma importância: um foi o assassinato político, e o outro, o assassinato físico. Então, nós estamos atuando nesse processo para eliminar as dúvidas, as incertezas, para que prevaleça a verdade em ambos os casos. Na minha família, tenho essa aproximação maior, talvez por ter sido o único neto que ele conheceu. Nasci e depois de dois meses ele morreu. E sem constrangimentos, me sinto fruto direto da história política do Brasil. Iniciei minha carreira política em 2008. É preconceito das pessoas dizerem que sou neto de um ex-presidente da República e estou me promovendo. Isso é normal. Se eu estivesse do outro lado, também acharia. Por mais que me orgulhe de toda essa história, tento me desvincular um pouco. E não é fácil. Não teve um dia da minha vida, e tenho 36 anos, que não ouvi alguém lembrar o nome do meu avô pra mim.
”
Jango foi chamado de comunista por quem era contra seu governo e a favor do golpe militar. O presidente deposto não era comunista e não queria implantar o regime no país. Pequenos grupos que o apoiavam gostariam de implantar o comunismo no Brasil, mas sem força no Congresso ou influência direta na presidência. As guerrilhas de inspiração comunista começaram a agir depois do início do período militar.
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178 lĂşcio de castro
Jornalista e historiador
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Formado em História e Jornalismo, nasceu em 1969. Repórter e comentarista do canal esportivo ESPN Brasil. Produziu e dirigiu o documentário Memórias do chumbo: o futebol no tempo do Condor, exibido em 2012 no canal esportivo. O projeto relata fatos ocorridos nas ditaduras instauradas pelos militares brasileiros, chilenos, uruguaios e argentinos e a relação dos regimes com o futebol. Seu pai, Marcos de Castro, também é jornalista e sofreu com o governo militar.
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Tinha um torturador dentro daquela delegação
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Depoimento a Évelyn Centeno em 17 de setembro de 2013.
Há muitas coisas escondidas debaixo do tapete e uma das funções do jornalista é colocar o pé na porta dessas memórias, que estão fechadas porque ninguém quis abrir ou porque interessa a alguém mantê-la fechada. São estes dois interesses básicos que permearam a vontade de produzir o documentário: gerar memória e luz sobre algo escurecido. A vida inteira escutei: ‘As ditaduras usaram o futebol’. É um fato. Mas 40 anos já se passaram, e a gente não conseguiu sair desta lenda. Isso me incomodava muito. E uma das coisas que move a nossa profissão, o jornalismo, é isso, ser inquieto. As ditaduras usaram o futebol, mas como? Só metendo a mão na massa. A ideia era fazer o documentário e derrubar um desses chavões, pois era óbvio que as ditaduras influenciaram no futebol. Começou um trabalho de investigação, muito cansativo. Primeiro lugar foi ir aos arquivos estaduais do Rio de Janeiro, de São Paulo e aos arquivos nacionais de Brasília e Rio de Janeiro. Esse era um trabalho menos glorioso, porque fiquei meses dentro de um arquivo, vendo pilhas de documentos e sem achar nada. Enquanto isso, na redação, as pessoas falavam que eu estava na praia ou viajando, mas é este trabalho que permite dar o pontapé inicial para contar uma história. Eu ficava dias, semanas, sem encontrar nada, mas, de repente, encontrei um documento que está lá, escondido, há 40 anos, que nunca ninguém pegou e que abriu o caminho do meu objeto. Um dia, no arquivo de São Paulo, me programei para ficar ali das 10h às 16h. Lá pelas três e pouco da tarde, depois de ver milhares de documentos, pastas, encontro um depoimento do Pelé, em 1970, onde ele se
prontifica a colaborar, se a ditadura assim desejasse. Que ele ia depor a favor da ditadura. Nessa hora, quase saí correndo do arquivo, sem acreditar que aquele depoimento estava na minha mão, depois de 40 anos e ninguém tinha visto aquilo. A partir daí, comecei a percorrer alguns caminhos, comecei a ter pistas para isto. Dentro desta busca, comecei a entender como se deu essa ligação do futebol com a ditadura. Na verdade, é importante a gente sempre frisar que os governos democráticos também usam muito o futebol como arma de propaganda. Claro que as ditaduras, por serem menos totalitárias, são mais efetivas. Naquele momento da história do Brasil, se tinha controle sobre todos os elementos da sociedade, e o futebol, a gente começa a ver depois de conhecer estes documentos, estava altamente sob controle. Podia ser do Inter, do Grêmio, do Flamengo, do Palmeiras, nem um síndico no prédio era aprovado sem passar pelo crivo da ditadura, quanto mais o presidente de um clube popular. Por exemplo, o Fluminense tinha um candidato a presidente, o nome dele devia ser entregue a um órgão do governo militar, para que fosse feito um levantamento da vida do cara e ver se ele podia ou não ser presidente daquele clube. Isso são coisas que a gente sabia que existiam naquele momento, mas esta ligação do futebol não estava tão clara. Comecei a desatar alguns nós, de como é que a ditadura usou e controlou o futebol. Todos os clubes estavam sob este controle. E a gente conseguiu provar. Uma das coisas que a ditadura usou muito foi a técnica de infiltração. Os clubes tinham pessoas infiltradas no vestiário durante a ditadura militar.
Memórias do chumbo – o futebol nos tempos do Condor é o documentário produzido pelo jornalista, que buscou investigar a relação entre o futebol e a ditadura militar em países da América do Sul (Argentina, Brasil, Chile e Uruguai). Foi exibido em dezembro de 2012 pelo canal ESPN Brasil.
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Às vésperas da Copa de 1966 na Inglaterra, a equipe estava indefinida, com 47 jogadores convocados, que se revezavam em quatro times. Foi a segunda pior campanha da Seleção Brasileira em Copas do Mundo. Ganhou apenas o primeiro jogo, contra a Bulgária, por 2 a 0, com gols de Pelé e Garrincha.
O plano de explodir o Gasômetro, também conhecido como Caso Para-Sar, foi um plano terrorista de extrema-direita arquitetado em 1968 pelo então brigadeiro João Paulo Burnier, com o objetivo de desacreditar os oposicionistas ao regime militar e intensificar a repressão.
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Umas das coisas que me chama muito a atenção é que passei a vida inteira achando que a Copa de 1970 foi o grande momento da ditadura no futebol. No entanto, pesquisando, descobri que em 1966 o uso da Seleção Brasileira foi muito mais pensado do que em 1970, e isso, para mim, foi uma grande novidade. Descobri que o marechal Castelo Branco dividiu a Seleção em quatro grupos, distribui esses grupos em centro de treinamentos no país inteiro, como propaganda do governo. É claro que a preparação para a Copa de 1966 foi um caos, pois não é possível que se acredite que um time vai se preparar descentemente dividido dessa maneira. O princípio do futebol é ganhar conjunto. Foi um caos. Sessenta e tantos convocados e um fracasso na Copa de 1966. O governo ficou escaldado para usar o futebol. Tanto que, em 1970, essa comoção do Pra frente Brasil começa com um governo mais tímido. Conforme iam ganhando, as coisas iam acontecendo. A gente tem duas questões fundamentais: a Seleção naquele momento, na preparação para a Copa de 70, tinha um técnico sabidamente comunista, o João Saldanha. E sempre ficou essa questão de por que o João caiu. Fica bem claro que o governo militar tinha medo da independência do João Saldanha, um cara destemido, valente, tanto que era o João Sem Medo. O governo tinha pavor da independência dele. Havia o temor de o Brasil ser campeão do mundo e o João se pronunciar, dizendo que no Brasil tinha tortura, que no Brasil se matava. Um pouco antes da Copa, o governo decide que não podia correr este risco. Uma coisa que eu pensava também, dentro dessa estratégia de infiltração
da ditadura militar: achava impossível que, no meio da delegação de 1970, não tivesse ninguém da repressão infiltrado. E comecei esta busca. Foi um dos momentos mais trabalhosos. Existia um torturador dentro da delegação de 1970. Descubro o nome e começo a levantar as informações. Descobri um sobrinho, porque o infiltrado já morreu. É um momento muito tenso, pois obviamente ele não responde pelos erros do tio. Ele aceita falar. Durante três semanas, mais ou menos, fica no desiste e aceita. Depois de muitas conversas, acaba se convencendo e grava um depoimento para mim. A dimensão disso é para comprovar que tinha um torturador dentro daquela delegação. Um homem que dois anos antes era um dos envolvidos no plano de explodir o Gasômetro no Rio de Janeiro. O papel desse cara era blindar a Seleção, ter a garantia de que dali nada iria sair, vigiando os jogadores. Se alguém fosse dar uma entrevista, evitar que falasse da ditadura. No documentário dedicado à ditadura militar brasileira, há uma lacuna que, no final, me incomodava, mas que eu chamei de silêncio eloquente. Se você for ver, não tem nenhum depoimento de jogadores brasileiros, porque nenhum falava sobre isso. Dificultava e não falava. Sempre dizem que não sabiam de nada. Achava importante que eles se manifestassem, nem que fosse para dizer que não queriam que isso nunca mais acontecesse. Isso para mim é muito significativo.
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Registro da luta pela terra no Brasil
jacqueline joner7
184 PEPE MARTINI JORNALISTA
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Felipe Martini, mais conhecido como Pepe Martini, nasceu em 21 de agosto de 1989, em Porto Alegre. Jornalista, trabalha no jornal Tabaré e como garçom no Comitê Latino-americano. Também já deu aulas de inglês e espanhol. Esteve presente na maioria das manifestações que ocorreram em Porto Alegre em 2013. Algumas vezes, propôs alguns dos protestos. Foi detido durante uma manifestação contra o corte de árvores na Capital, com outras 26 pessoas.
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A ditadura foi s贸 uma ferramenta do capitalismo
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Depoimento a Vithoria Vaz, em 26 de setembro de 2013.
É difícil dizer exatamente uma coisa sobre a ditadura, até porque estamos falando de uma ditadura específica, a última que aconteceu. Lembro de várias imagens, que nós vemos nos colégios, na mídia, que são da época e mostram a situação. Acho importante falar sobre a ditadura, pois muitas vezes ela fica esquecida. Não é um processo isolado, não se deu porque algumas pessoas queriam. Acredito que havia um motivo muito forte para se fazer uma ditadura, que era barrar os movimentos sociais que estavam começando a tomar vulto, como a reforma agrária. É interessante as pessoas terem claro isso: a ditatura não veio como um fim, mas como um meio de manter o sistema que se tinha até então. E nisso ela foi muito eficiente. Pois, mesmo com a dita redemocratização, em 1985, o sistema continuou o mesmo. Não somente o do governo militar, mas o de antes do golpe. Há uma oposição muito forte entre a ditadura e o período atual, mas não é bem assim. Nosso sistema, dito como democrático, é carregado de autoritarismo e outras coisas que aconteciam naquela época, negando vários direitos. Gostaria de deixar claro que não acho que vivemos num sistema tão perverso, numa situação política tão complicada quanto aquela. Temos alguns direitos que hoje são mais assegurados, como a liberdade de expressão, mesmo que a imprensa seja de meia dúzia. Além de outras conquistas judiciais, que também nos dão um pouco mais de segurança do que naquela época. Não estou dizendo que vivemos numa ditadura, mas acho que democracia é uma palavra muito complicada de se usar hoje, se analisar-
mos a etimologia. O distanciamento histórico que existe hoje para o golpe militar não permite que as pessoas realmente vejam o que foi a ditadura. Aquele período não afetou muito uma parte da população. Na minha família, que é mais humilde, a ditadura não fez praticamente diferença alguma. Na vida particular do meu avô, por exemplo, também, porque ele não vivia num meio de contestação. Mesmo naquela época, a maioria da pessoas não se dava por conta do que era realmente aquele sistema. Daqui a 50 anos, pelo menos, tenho essa esperança. Vamos continuar tendo avanços e as pessoas irão perceber que o período anterior tinha deficiências que, no futuro, serão absurdas. As pessoas não têm compreensão, não têm interesse sobre a realidade política, e isso também não é gratuito. Nenhum conhecimento parte do nada. Não existe incentivo. As escolas, com poucas exceções, não influenciam os alunos a realmente pensarem nesses assuntos, e os meios de comunicação continuam sendo muitíssimo concentrados nas mãos de poucos. A mídia, em geral, cumpre o papel de naturalizar as relações de poder, e a maioria dos receptores não contesta. Para mim, a ditadura foi só uma ferramenta do capitalismo, necessária naquela época para impedir algumas mudanças sociais que começavam a acontecer. Os militares foram apenas o instrumento utilizado para garantir que o sistema não mudasse. Quando a ditadura não era mais necessária, quando era até incômoda para o poder, acabou. Não foi que a ditadura perdeu para a oposição política. Ela não perdeu, mas se aliou. Ela acabou quando parou de ser interessante para os criadores dela.
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188 ROBSON DUTRA FILHO DE TORTURADOR
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Nasceu em 1981, em Porto Alegre. Historiador formado, suas memórias evocam a vida de seu pai, Luiz Carlos Dutra Lima, que era major do Exército. Luiz Carlos foi comandante da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, durante o AI-5, onde era responsável por formar altos oficiais e ensinar técnicas de torturas. Na década de 1970, Luiz Carlos foi internado em uma clínica psiquiátrica no Rio de Janeiro, onde ficou dois anos em tratamento e cantava o Hino Nacional enquanto torturava insetos.
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Meu pai formava torturadores
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Depoimento a Igor Grossmann em 15 de outubro de 2013.
Até me arrepio em falar. A minha relação com a ditadura é sui generis, muito pessoal. E é uma relação. Ninguém sabe o que aconteceu. Todo mundo pensa que a ditadura – pelo menos os meios de comunicação batem nisso – encerrou-se em 1985 e pronto, acabou. Só que as pessoas não sabem que tem uma geração que nasceu na ditadura e que, mesmo vivendo na pós-ditadura, viveu a ditadura. Essa é a minha história, porque nasci em 1981. Não vi o final da ditadura. Não vi as Diretas Já. Não vi a eleição do José Sarney. Não vi a morte do Tancredo Neves. Lembro da primeira eleição que vi, quando criança, a do Collor. Lembro das pessoas com a camiseta do PT apanhando e sendo presas durante o sequestro do Abílio Diniz. Mas a relação da ditadura comigo se dá por causa do meu pai, que era um major do Exército, aposentado em 1972 por insanidade. Meu pai pirou torturando pessoas. Ele ficou dois anos numa clínica no Rio de Janeiro. Quando saiu de lá, encontrou minha mãe e constituiu uma nova família. Mas meu pai pirou durante a ditadura. Ele treinava oficiais do Exército para torturarem. Esteve na Escola das Américas na década de 1950, em treinamento, no Panamá. Lembro que era pequeno, devia ter uns 11 anos, minha família estava jantando e entrou uma matéria no Jornal Nacional [telejornal da Rede Globo] falando sobre o fim da União Soviética. Era algo inédito. Aí o repórter entrou falando ‘neste exato momento, Gorbachev anuncia o fim da União Soviética’. Não sabia o que era aquilo, estava mais preocupado com o Chaves e com o Chapolim. Meu pai, na mesa, começa a chorar. Eu não entendo. Ele começa a chorar e entra em desespero. E a minha mãe pergunta para
o meu pai: ‘Luiz, o que foi que houve?’. Ele responde: ‘Acabou a minha vida. Acabou a minha vida’. Lembro disso. Ele parou de jantar e foi pro quarto. Meu pai voltou a beber. Já estava aposentado do Exército havia muitos anos. Depois atuou como corretor de imóveis e tinha uma fábrica de picolé, sorvete e algodão doce, em que nós trabalhávamos com ele. Dali em diante, essa fábrica começou a degringolar, começou a afundar, porque meu pai começou a beber. Virou pródigo e passou a beber, beber, beber, até que nós o interditamos no final dos anos 1990 e ele veio a falecer. O sentido da vida do meu pai acabou ali, e eu não entendia o porquê. Entendi muitos anos depois, quando fui saber quem era o meu pai, o que ele tinha feito e qual era o significado. Entendi porque a vida do meu pai foi pautada pela luta contra o comunismo, como oficial e como militar. Ele era um cara bem conceituado dentro da elite do Exército, alinhado ao pensamento da direita. E quando acabou a União Soviética, acabou a vida do meu pai. A consequência disso foi a entrega dele à bebedeira e à morte alguns anos depois. Se tem uma memória que me remeta diretamente à ditadura é essa. Acho que foi a primeira vez que o vi chorar. Foi a única vez também que não vi o meu pai terminar uma janta e ir para o quarto mais cedo. Ali foi o fim da ditadura para o meu pai e talvez tenha sido o fim da ditadura na minha casa. O início de um outro momento, que foi a doença dele até a morte, interditado numa clínica, com 40 quilos, consumido por um câncer e pela esclerose múltipla. Marca um guri de 11 anos ver o pai chorar como uma criança e não conseguir entender.
Diretas Já foi um movimento civil de reivindicação por eleições presidenciais diretas no Brasil. Ocorreu de março de 1983 a abril de 1984. A possibilidade da realização destas eleições para a presidência da República ganhou força com a votação da chamada Emenda Dante de Oliveira pelo Congresso. Entretanto, a proposta foi rejeitada. Ainda assim, os adeptos do movimento conquistaram uma vitória parcial, em janeiro do ano seguinte, quando Tancredo Neves foi eleito presidente pelo colégio eleitoral.
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A eleição do Collor contra Lula ocorreu em 1989. Fernando Collor de Mello, ex-governador de Alagoas, e Luiz Inácio Lula da Silva, então presidente do PT, foram os candidatos na disputa do segundo turno na eleição presidencial brasileira de 1989, a primeira direta depois do fim da ditadura. Collor venceu.
Movimento da Legalidade foi um levante civil e militar brasileiro de 14 dias, que ocorreu após a renúncia de Jânio Quadros da presidência do Brasil, em 1961. Foi liderado por Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul e cunhado do então vice-presidente, João Goulart, e pelo general José Machado Lopes. Naqueles dias de resistência, diversos políticos e setores da sociedade defenderam a manutenção da ordem jurídica, que previa a posse de João Goulart.
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Muitas coisas marcaram a minha vida. Lembro da eleição do Collor contra Lula. Eu era criança e totalmente próCollor, porque o meu pai era pró-Collor e eu não sabia daquilo. Não tinha noção. Meu pai dizia pra mim: ‘Olha, se o Lula ganhar, nós vamos perder a nossa casa’. Pra mim, aquilo era um absurdo. Imagina perder a casa. Ele dizia que comunista era tudo ladrão e assassino. Meu pai está dentro de um contexto da ditadura, é um filho da ditadura. Ele era um apoiador, embora se dissesse getulista, mas era uma confusão que ele mesmo fazia, porque os próprios militares tentaram um golpe em 1954. Mas ele era um getulista, tradicional, filho da ditadura, homem branco e preconceituoso. Ele participou do golpe em 1964. Em 1961, quando Leonel Brizola fez o Movimento da Legalidade, meu pai não estava no Rio Grande do Sul. Queria ter matado o Brizola ali. Assim que se encerra a Legalidade, os militares passam a preparar o golpe, e o meu pai volta para o Rio Grande do Sul. Quando estoura o movimento, ele estava em Caxias do Sul com toda a artilharia dele em frente a uma escola, porque havia boatos de que o Brizola estava escondido lá. O Brizola nem era mais governador do Estado. Meu pai contava essa história: ia bombardear a escola. Ele deu o prazo até o meio-dia para o Brizola. Se não, ia bombardear. Era um cara alinhadíssimo com a ditadura. Depois do fato da escola, meu pai, dentro do Exército, ficou bastante visado. Tornou-se alguém muito leal ao regime. Foi enviado ao Rio de Janeiro como capitão do Exército para comandar a EsAO [Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais], porque já tinha preparação na
Escola das Américas. Seria responsável por treinar os jovens oficiais do Exército. Quando o cara sai de tenente para capitão, ele vai para a EsAO no Rio de Janeiro, onde faz um curso de formação de um ano. Meu pai era responsável por parte desse curso: ensinar aquilo que ele aprendeu com os americanos na Escola das Américas, a tortura. De 1964 a 1972, a loucura pro meu pai foi tão grande que, mesmo alinhado ao governo, ele pirou. São minhas memórias de infância. Ele conta que, durante dois anos, ficou numa cela, em um hospital psiquiátrico no Rio de Janeiro, cantando o Hino Nacional e torturando insetos. Ele saiu deste local e acabou conhecendo a minha mãe. Voltou para Porto Alegre e constituiu uma nova família. Ele tem uma história, que não se rasga assim. De certa forma, ele transmitiu isso pra nós, uma mensagem preconceituosa, racista, de direita, quase fascista. Cresci escutando isso, sendo muito tradicional: o homem tem que trabalhar para sustentar a família, a mulher tem que ficar em casa para cuidar dos filhos. Todo esse conceito de Deus, pátria e família. Tudo isso era muito vivo dentro da minha casa. É até incrível, porque hoje sou totalmente de esquerda, mesmo com esta formação. Meu pai me ensinava como torturar pessoas. Tinha oito, nove anos, e sabia algumas técnicas de tortura sem saber que eram técnicas de tortura. Ele tinha uma fábrica de picolé e de algodão doce e me obrigava a trabalhar com ele. Quando eu não estava produzindo com a minha mãe, estava percorrendo os depósitos com o meu pai para entregar picolé e sorvete. Então, às vezes, eu ficava cinco horas com ele, num único dia, andando de carro pra cima e pra baixo.
A nossa conversa no carro era sobre técnicas de tortura. Ele falava sobre o método da graxa, de fazer o cara tomar óleo, e da uretra quente. Quando meu pai discutia com os caras do depósito que não queriam pagar, ficava tão brabo que começava a contar como era bom e fácil fazer as pessoas contarem. E que, se tivesse poder, faria de novo o que ele fazia antes. ‘Tu pega um fio de cobre, fininho, tu colocas pela uretra da pessoa e queima, com maçarico ou isqueiro a ponta do fio. Daí tu vê o calor se aproximar da uretra.’ Eram coisas que ele me contava. Era o meu bê-a-bá. Eu ficava curioso: o que era aquilo de que ele tanto falava e por que ele falava tanto? Técnicas de afogamento, das mais variadas possíveis. Não lembro de muita coisa, porque era muito novo, mas essa da uretra me chamava muito a atenção. Acho que quando ele queria torturar alguém pra ter uma confissão, essa era técnica a preferida dele. Depois, se envolveu com álcool e teve problemas. Vivia bêbado, batia na minha mãe, dormia na rua, batia na gente. Chamava todo mundo de maconheiro. Maconheiro pra ele era algo absurdo no mundo. De botar na parede e fuzilar. Ele chegava cinco, seis horas da tarde, e deixava o carro na entrada do portão de casa. Era o código: estava bêbado. Se ele não estava bêbado, colocava o carro na garagem. Meu pai entrava, sentava à mesa, começava a bater e a xingar, quebrava as coisas. Lembro de uma frase que ele usava muito e levou até o leito de morte: ‘Porque a minha lei é minha ordem, porque minha lei é minha ordem’. Um bando de crianças e minha mãe, semianalfabeta, ouvindo isso. Ele pegava a minha mãe e arrebentava ela. Às vezes,
passávamos a noite inteira fugindo dele. Ou se escondendo dentro de casa, na casa de vizinhos ou na rua, esperando ele dormir. Cansei de dormir na calçada da minha casa, no colo da minha mãe. Eu e a minha irmã. Nós dormíamos na rua, direto, passávamos noites fugindo. Às vezes, achávamos que ele estava dormindo, entrávamos e ele estava acordado. Ele ligava a luz e gritava: ‘Seus filhos da puta’. Era aquele horror. Pegava-a pelo cabelo e a jogava pra fora de casa na porrada. Esse era o meu dia a dia de menino.
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Imagens: Alina Souza (páginas 23, 29, 47, 61, 67, 99, 109 e 143), André Pasquali (35 e 155), Bruna Roberta Toso (73), Caroline Corso (91), Cassiana Martins (179), Claudio Fachel (175), Daniel Boucinha (125), Flávia Drago (119), Guilherme Testa (13), Iata Anderson (79), Luiz Abreu (3), Marcelo Min (133), Tiago Medeiros (85), Vicente Carcuchinski (53) e Arquivo pessoal (19, 161, 189, 185, 41, 149, 105, 115 e 137). 1