CADERNO ESPECIAL | ORGÂNICOS
AGOSTO/SETEMBRO 2015 • FAMECOS/PUCRS WWW.PUCRS.BR/FAMECOS/EDITORIAL J
Por que o Brasil resiste ao alimento verde POR Cândida Schaedler (8º sem.) e Helena Rocha (4º sem.)
Uma das potências agrícolas do planeta, o Brasil vacila quando o tema é produzir alimentos verdes. Além de ter se transformado em campeão mundial no uso de agrotóxicos, o setor
primário do país ainda não é capaz de plantar e distribuir orgânicos a preços atraentes. Por quatro meses, a equipe de reportagem do Editorial J mergulhou no universo agrícola
para entender os motivos de tamanha resistência. Uma vertente de apuração focou nas razões para o ampliação do uso de venenos, em nome da produtividade, sabendo-se que há
tecnologias sustentáveis. A segunda linha de investigação levou ao mercado de orgânicos para compreender a diferença de preços entre o que é vendido em feiras e supermercados.
“
A
se reproduzindo dentro da União. O Ministébolir agrotóxicos é um aprendizado rio da Agricultura, Pecuária e Abastecimento diário”, resume o produtor rural (Mapa), presidido pela ruralista Kátia Abreu, Eliseu da Silva Rosa, conhecido defende o uso de químicos e, após a avaliação por Juca, que há 18 anos não utida Agência Nacional de Vigilância Sanitária liza químicos na lavoura. Ele é um homem do (Anvisa) e do Instituto Brasileiro de Meio campo que decidiu mudar a rotina ao perceber Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis os malefícios da aplicação de venenos e foi um (Ibama), é responsável pelo registro deles. Endos primeiros em Porto Alegre a abandonar o quanto isso, o Ministério do Desenvolvimento cultivo tradicional. “No início, o produtor tem Agrário (MDA) promove diversos programas que ter acompanhamento, senão desiste e volque incentivam o cultivo orgânico e agroecota a aplicar os produtos”, enfatiza, lembrando lógico focados na agricultura familiar. Assim, que o mais difícil é acostumar o solo, o que é difícil chegar a um acordo político. pode levar dois anos. Tudo leva tempo – inNa discussão, os transgênicos também são clusive a mudança de mentalidade que pode apontados como vilões. Criados para resistir a derrubar resistências. pragas, com o tempo as pestes desenvolvem Ainda hoje, porém, Juca é minoria no Braresistência aos produtos aplicados. Os agrosil: o país é o maior consumidor mundial de tóxicos perdem efeito. Como consequência, agrotóxicos desde 2008, quando ultrapassou ambientalistas estimam que cada brasileiro os Estados Unidos, o campeão global de proconsome, por ano, 5,2 litros de agrotóxico. Endução de alimentos. A saúde dos brasileiros, quanto nos últimos 10 anos o mercado muncomo consequência, preocupa, pois ambiendial desse setor cresceu 93%, no Brasil essa talistas garantem que os venenos contaminam expansão foi de 190%, de acordo com dados o alimento e a terra, podendo se espalhar por da Anvisa. No meio desses lençóis freáticos e rios. Juca embates, quem perde é o comercializa sua produção consumidor, que ingere toda semana em uma feira venenos sem ficar sabendo de Porto Alegre e é um Leia a reportagem completa e, quando deseja consumir exemplo bem-sucedido publicada no Medium produtos orgânicos, é obridos benefícios da valorizagado a desembolsar um vação da agricultura familiar lor alto no supermercado. agroecológica e orgânica e Juca tem 72 anos e do incentivo de vendas em mora no bairro Lami, no mercados curtos – como extremo-sul de Porto Aleas feiras, onde o agricultor gre. Cultiva alface, beterracomercializa diretamente ba, berinjela e outras culo que produziu. Mas por turas sazonais respeitando que o Brasil ainda é o maior o ambiente, a saúde dos consumidor mundial de consumidores e a de sua agrotóxicos e por que o família. A área não é grande: um hectare. Em mercado de orgânicos segue elitizado? quantidade, produz menos sem agrotóxicos, As respostas são complexas e envolvem mas ganhou em qualidade ao diversificar. Fiquestões históricas, econômicas, políticas e nanceiramente, a troca também compensou, até mesmo culturais. O aspecto político tem além de tê-lo feito abandonar a monocultura. dimensão de curto prazo. Em um país no Quando planta, Juca já sabe por quanto vai qual a balança comercial e o Produto Interno vender a produção. “Quando era produtor Bruto (PIB) são sustentados pelo agronegócio, convencional, produzia para competir pelo colocar em risco a produção em larga escala, preço”, explica. “Hoje, foco na qualidade”. majoritariamente formada por monoculturas, é um movimento que o governo não se dispõe a fazer. Também não há consenso sobre o assunto. De um lado, entusiastas da agroecologia garantem que seria possível o Brasil manter um volume de produção sem o uso Com receio de perder toda a produção por de pesticidas e, o mais importante, alimentar conta de pragas ou do clima, é comum que a população mundial – uma vez que hoje o o produtor que se concentra em apenas um problema está na distribuição. Com pontos de produto recorra ao uso de agrotóxicos. “Quanvista opostos, políticos, integrantes do goverdo tu és produtor convencional, te impõem no e técnicos dizem que abolir os agrotóxicos a quantidade. Temos que deixar de querer não é viável. colher um caminhão, mas colher menos e Sintonizados com as razões que sustentam melhor”, propõe o agricultor. Juca controla o predomínio do agrotóxico estão os motivos as pragas por meio de predadores naturais e que travam a expansão da oferta dos chareforça que só molha a lavoura quando nemados alimentos verdes. Com a ascensão da cessário. O resto cabe à natureza. Ele também demanda pelo saudável, o discurso ecológico produz o insumo para adubar o solo sem comdeste tipo de alimento é vendido a preços altos posto animal. Segundo especialistas, 80% da nos supermercados. Os orgânicos não são produção de orgânicos é proveniente da agricaros, o que é caro é comprar o orgânico no cultura familiar e somente 10% de empresas. supermercado — este é o principal argumenO agricultor lembra que começou a utilizar to dos produtores da Feira de Agricultores agrotóxicos na década de 1960, durante a chaEcologistas (FAE), em Porto Alegre, ponto de mada Revolução Verde, quando o governo inencontro de consumidores que já transformacentivou o uso como estratégia para alavancar ram a compra de alimentos limpos em rotina. a produtividade. Além disso, só se conseguia Para começar a entender a persistência financiamento e empréstimos no banco se dos agrotóxicos no Brasil vale associar o debafosse comprovada a aplicação de agrotóxicos te à polarização ideológica que se observa no na lavoura. Desde então, criou-se uma cultura país em inúmeros temas. As divergências, que em que os produtores rurais, tanto familiares estão tão cristalizadas na sociedade, acabam quanto latifundiários, apelam a venenos, em
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muitos casos, como primeira alternativa, por pensarem que é mais fácil do que recorrer a estratégias naturais como o controle biológico. O lado que condena o uso argumenta que eles envenenam os consumidores. É o que afirma, por exemplo, o agrônomo aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Sebastião Pinheiro, que atuou no Mapa entre 1976 e 1989. Ele explica que as substâncias foram criadas a partir dos venenos das guerras mundiais e aponta a sobrevivência dos princípios químicos que eram lançados em batalhas. “Todos os agrotóxicos são inventos militares. Foram feitos para matar gente”, define. Ele enumera muitos motivos para ser contra os venenos nas lavouras, entre eles a perda de nutrientes dos alimentos e o fato de sempre restarem resíduos que contaminam o produtor e o consumidor. Ele garante que o termo “defensivo agrícola” é equivocado. Outra crítica é disparada contra a indústria que domina a alimentação mundial. “Antigamente o agricultor produzia alimentos. Hoje ele produz matéria-prima para a indústria de alimentos”, compara o agrônomo, que já publicou livros como a Máfia dos Agrotóxicos. Pinheiro afirma que estruturas abrangentes, como a própria Organização Mundial do Comércio (OMC), impediriam o Brasil de restringir a aplicação, alegando que seria um ataque à ideia de livre mercado. Há produtos fabricados na Europa que, devido à periculosidade, já foram proibidos por lá há mais de uma década. Na direção contrária, o Brasil segue utilizando o que foi banido do outro lado do oceano, pois, segundo os críticos do uso de substâncias químicas, em algum lugar eles precisam ser vendidos. Os fabricantes reagem, recorrendo a uma espécie de escudo semântico para proteger o significado combatido da palavra agrotóxico. Para Antônio Carlos Moreira, gerente de comunicação da Agência Nacional de Defesa Vegetal (Andef), entidade que representa empresas como Monsanto, Bayer, Basf, Syngenta, Dow e Dupont, o termo agrotóxico não é errado, mas o correto seria “defensivo agrícola”. Ele define esses produtos como “o remédio das plantas”. “O remédio que o homem toma, por exemplo, não é chamado de ‘humanotóxico’”, compara. “Ou o produtor usa os remédios ou não vai ter a colheita esperada”, completa. Questionado sobre os agrotóxicos terem surgido de remanescentes químicos da guerra, responde: “Prefiro comer alimentos que tenham usado agrotóxicos certificados pela Organização Mundial da Saúde e pela FAO do que orgânicos que não foram certificados por essas entidades”. Completa afirmando que a terra tem bactérias e que o fertilizante de produtores orgânicos é esterco de vaca. Para ele, um agricultor familiar consegue encontrar alternativas de combate às doenças, o que se torna mais difícil quando o cultivo é em larga escala. O Editorial J entrou em contato com o Mapa, que não quis falar sobre suas políticas em relação ao uso de agrotóxicos. A assessoria de comunicação divulgou apenas uma nota assinada por Décio Coutinho, técnico de Defesa Agropecuária, informando que “o Brasil é o país que tem as leis ambientais mais rígidas do planeta”. Ainda de acordo com o texto, o uso de agrotóxicos no Brasil obedece normais e leis rigorosas. Uma das dificuldades para a mudança de
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mentalidade está na compreensão dos conceitos e das técnicas alternativos. O agricultor familiar é dono de uma pequena propriedade, de onde retira sua renda, e utiliza mão de obra da própria família. Como é constantemente argumentado por defensores de práticas sustentáveis, a agricultura familiar garante boa parte da segurança alimentar do país. Segundo o censo de 2006, o último, elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o modo de produção familiar ocupa uma área pequena com lavouras – cerca de 17,6 milhões de hectares –, o equivalente a 22% da extensão dedicada à agricultura. Ainda que a área ocupada seja pouca, ela é a maior produtora de alimentos como mandioca, feijão e milho. O percentual é ligeiramente superior ao observado com a agricultura latifundiária, que é voltada para o setor de exportação. Segundo Denis Monteiro, secretário executivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), para que exista a possibilidade de produzir de maneira orgânica em larga escala, é necessário que, em uma grande área de terra, cada família agricultora ocupe um espaço e se responsabilize por cultivar determinado alimento. “O somatório de famílias por área, produzindo de maneira ecológica, pode produzir tanto quanto a agricultura convencional”, assegura.
Há entraves políticos e econômicos que também influenciam na manutenção do consumo de agrotóxicos. O PIB do Brasil em 2013 dependeu em 22,5% do agronegócio, segundo dados do IBGE. A balança comercial em 2014 foi composta em 43% por exportações do setor. Defensores dos controles químicos apontam que qualquer ação para diminuir o uso de venenos poderia incorrer na redução da produtividade e, consequentemente, na arrecadação do país, enquanto outros setores do governo se empenham em políticas para alterar o quadro atual. O secretário-executivo da Comissão Interministerial de Agroecologia e Produção Orgânica, Cássio Trovatto, grupo ligado a 10 ministérios, mas administrado pelo MDA, afirma que já há uma massa crítica de Todo oposição ao uso. “Temos feito esforços para reduzir o uso sem agrotó reduzir a produção. Ser o país são inv que mais consome venenos é uma medalha que a gente não tos mil quer”, expõe. tares. Outro ponto está enraizado na questão do preço final e do Sebastião retorno financeiro que dá aos Pinheiro agricultores. Segundo o agricultor ecológico há 23 anos e presidente da Associação de Agricultores Ecologistas, Vilson Stefanoski, a venda direta ao consumidor proporciona um preço justo. Uma pesquisa realizada pelo Editorial J mostra que os alimentos comercializados na feira de orgânicos do bairro Bom Fim, em Porto Alegre, têm diferença de preço de até 111% em relação aos supermercados da Capital e às lojas especializadas em orgânicos. Um fator que também influencia é o marketing verde – a apropriação do discurso ecologista por corporações da alimentação. De acordo com Edimar Santos, autor da
“
As contradições do plantio Números mostram crescimento no uso de produtos químicos nas lavouras e preços que ainda assustam os consumidores na hora de comprar alimentos orgânicos
Venda de venenos
Quanto o Brasil produz
Comportamento do consumo de agrotóxicos
Produção brasileira por safra aumenta 333% em três décadas
2012
1977/78
2014/15
204,5
46,9 1976/77 2000/01 2014/15
Soja
Milho
Trigo
0,989 2,32
100,3
823.226
em 12 anos
7,296 12,499
162%
2,68 7,011
313.824
81,811
Salto de
14,017
96,222
2000
9,726
dissertação Produção Orgânica e Estratégia de Comercialização e Marketing Verde em Supermercados, desenvolvida na Faculdade de Engenharia Agrícola da Universidade de Campinas (Unicamp), o fenômeno ganha espaço nas prateleiras dos supermercados. Em consequência da crescente preocupação com a questão sócio-ambiental, as empresas são desafiadas a se relacionar de maneira responsável e ambiental, tanto com o produto que vendem quanto com o consumidor. “Uma vez que o produto orgânico tem crescido em média 35% ao ano, aumenta o número de empresas nacionais e internacionais que se interessam não só pelo produto como pelo consumidor, que normalmente é pertencente às classes A, B e C”, afirma Santos. Conforme a dissertação de Edimar e a pesquisa realizada por Glauco Schultz, agrônomo e doutor em agronegócio do Centro de Estudos e Pesquisas Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), para ser mais acessível ao consumidor em geral, é preciso que a alimentação não dependa somente dos supermercados. Ele sugere que se fortaleçam os canais diretos para o consumidor, como as feiras e os pequenos mercados. Vencer a resistência aos alimentos verdes também significa fazer com que eles cheguem de forma mais rápida e menos custosa às prateleiras. Um dos caminhos seguidos pelos orgânicos se dá por via das cooperativas, que sustentam a relação entre produtor e mercados. A Cooperativa de Produtores Ecologistas de Garibaldi (Coopeg) é exemplo desse sistema associativo, que conta com 48 agricultores no Rio Grande do Sul. O abastecimento é realizado para restaurantes, supermercados e lojas especializadas em produtos orgânicos. Nas suas propriedades, os cooperados embalam os produtos com o selo da cooperativa. Todo o material destinado para as embalagens é fornecido pela própria COOPEG. Os agricultores, ao se associarem, contribuem com um percentual de 7% da sua produção para manter a associação. Essa colaboração melhora as condições econômicas do agricultor. Foi o caso de Ivan Bergamine. Para cada R$ 10 de tomate que vendia, ficava com R$ 6,15. A diferença ajudava a cooperativa a fazer com que o produto chegasse ao os os destino, além de custear outras necessidades logísticas. Segunóxicos do Bergamine, há vantagem em venser membro de uma entidade para fornecer a compradores lide maior porte. Os motivos de sua saída da Coopeg foram a pequena quantidade de pedidos e a dificuldade de o transporte chegar a sua fazenda. De acordo com o presidente da Associação Gaúcha de Supermercados (Agas), Antônio Longo, o custo dos orgânicos nas prateleiras desses grandes estabelecimentos é 40% maior do que os convencionais devido à escala de produção. Além disso, segundo Longo o consumo, atualmente, foi prejudicado com a crise econômica. “As pessoas que consomem orgânicos são fiéis a estes produtos, mas a migração de novos consumidores para esta categoria ficou prejudicada, no momento, pela perda no poder de compra sofrida pelo consumidor”, informou em entrevista por e-mail.
Arroz Algodão
(Em toneladas de produto comercial)
(Em milhões de toneladas)
Fonte: Dossiê Abrasco
Fonte: Companhia Nacional de Abastecimento (Conab)
Diferença de preços nas prateleiras Feira
Supermercado
Lojas especializadas
Alface
R$ 2,00
R$ 3,75
R$ 3,00
Couve
R$ 3,00
R$ 3,58
R$ 3,00
C. Manteiga
R$ 3,00
R$ 6,25
R$ 2,50
Brócolis
R$ 4,00
R$ 7,98
R$ 4,00
Couve-flor
R$ 4,00
R$ 8,25
R$ 6,00
Aipim
R$ 4,50
R$ 9,49
R$ 6,00
Repolho
R$ 3,00
R$ 5,37
R$ 6,00
Tomate
R$ 8,00
R$ 9,28
R$ 10,00
111% foi a maior diferença de preço entre produtos orgânicos, encontrada na venda de aipim em feiras e supermercados
Fonte: Editorial J (julho/2015)
Onde se vende o orgânico Raio-X dos locais onde se pode comprar alimento verde em Porto Alegre
Lojas
Mercados
Restaurantes
Nº de locais
33
11
17
Tipos de produtos vendidos
Mais de 10
Mais de 50
Até 10
Espaço para produtos orgânicos
Entre 10% e 30%
Menos de 10%
Entre 10% e 30%
Oferta de produtos orgânicos (total)
1194
83
196
Espaço para produtos industriais
Mais de 70%
Mais de 70%
Mais de 70%
Média de anos em operação
6,84
27
9,23
Fonte: Grupo Pescar (Pesquisa em Sistemas Cooperativos e Agroalimentares) AGOSTO/SETEMBRO DE 2015 • PÁGINA 3
Annie Castro (3º sem.)
Helena Rocha (4º sem.)
Helena Rocha (4º sem.)
Cândida Schaedler (8º sem.)
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Juliana Baratojo (4º sem.)