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Entrevista a Jorge Machado

Jorge Machado: a paixão pelo Circuito que atravessou três eras

Há pessoas que têm uma longa ligação com o Circuito Internacional de Vila Real. Pessoas que viveram de perto as emoções em criança e que se apaixonaram pela festa, pelo Circuito e por tudo o que as corridas traziam e trazem. Pessoas que viveram intensamente o Circuito e que ajudaram na sua organização. O Engenheiro Jorge Machado é uma dessas pessoas. Desde tenra idade que ficou fascinado com as corridas e desde então tem estado ligado às corridas de várias formas. Primeiro ajudando na Comissão Permanente, passado uns anos ao leme do Clube Automóvel de Vila Real e mais recentemente ligado à Associação Promotora do Circuito Internacional de Vila Real. São já décadas de amor a uma causa, de uma dedicação que nunca esmoreceu, de uma vontade de que as corridas sejam sempre melhores.

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As primeiras recordações do Circuito são as mais queridas e foi nessa altura que a paixão pelas corridas nasceu para o Eng.º Jorge Machado:

“Lembro-me de ir às corridas com o meu pai, ainda as bancadas eram de madeira, em frente ao parque florestal, onde posteriormente foram construídos os prédios com as arcadas. Todo o ruído, a cor, a azáfama, eram para mim um espetáculo maravilhoso e gostava sempre de andar por ali a ver o que se passava e o que se sentia. Isto nos inícios dos anos 60. A imagem que eu tenho mais antiga de um Fórmula 3 em cima de uma carrinha Volkswagen de caixa aberta. Toda esta envolvência era vivida ao longo do ano, quando comprava uns carrinhos e queria que eles ficassem o mais parecidos possível ao que eu via no Circuito.”

A vontade de ajudar nas corridas surgiu naturalmente e o acaso permitiu que o pudesse fazer de forma muito vincada:

“O dono da Garagem Loureiro era um tio meu e tínhamos uma grande cumplicidade, apesar da minha tenra idade. E o facto de ter aprendido inglês abriu-me a porta para um contacto muito mais direto com os pilotos e mecânicos que se instalavam na Garagem do meu tio. Eu era o intermediário levando e trazendo a mensagem, sempre perto daquele mundo que me fascinava. Uma história engraçada. Todos os anos tinha de convencer o meu tio a abrir as portas da Garagem. Dizia ele ́ este ano não vem ninguém para a Garagem´ numa espécie de brincadeira que já se tornava tradição. E eu tinha como missão tentar convencê-lo de que tinha de abrir as portas da Garagem, dada a sua localização privilegiada, numa altura em que não havia nem “Paddock”, nem boxes. ́Só vêm para cá se tomares conta disso ́. E ali ficava, encarregue de organizar tudo, gerindo o espaço, as pessoas que podiam entrar para ver, convidando os meus amigos que queriam muito ver aquele espetáculo de perto. Foi nessa altura que comecei a conhecer e criar amizades com as pessoas ligadas às corridas, mecânicos, pilotos, que depois posteriormente encontrei em Inglaterra. Mas ainda antes disso, com os meus dez anos, ia buscar os selos e as miniaturas dos cartazes ao Sr. Rodrigo Araújo e que tinha uma agência bancária ali perto da Capela Nova e que tratava das contas da Comissão Permanente. Ele tinha montanhas de selos e autocolantes, que ia buscar para os distribuir pela cidade com os meus amigos, que desafiava a acompanharem-me, colando os cartazes pela cidade ou pedindo às pessoas, se nos permitissem, de colocar um selo nas cartas que enviavam. Na minha adolescência, passava os dias na sede da Comissão Permanente, na Avenida. Quem lá estava a conseguir que o espetáculo se fizesse, uma pessoa que ficou algo esquecida na história

das corridas, o que considero uma injustiça, que foi o Sr. Francisco Teixeira. E eu estava lá todo o dia a mandar e receber e traduzir telexes e a falar com grandes pilotos, como David Piper, Vic Elford, Dave Walker, entre outros grandes nomes da altura, o que me enchia de orgulho. O que tinha em troca era uma braçadeira velhinha da Comissão que me permitia ir para onde queria, desde que o fizesse em segurança. Mas isso permitiu-me viver momentos únicos e histórias que vou sempre recordar. Lembro uma vez em que tive de ir à polícia porque o Dave Walker tinha sido preso, porque se excedeu um pouco na bebida e implicou com os polícias que por lá passavam. Tive de convencer o Comandante para soltar o piloto que ia correr no dia seguinte, no seu GRD semi-oficial.” O Eng. Jorge Machado ajudou na Comissão Per-

manente, esteve no CAVR e na APCIVR, mas não esquece a contribuição de quem tratava das estradas, onde posteriormente trabalhou: “As corridas em Vila Real só se realizaram e realizam, porque existiu uma JAE, uma Estradas de Portugal. Isto quer dizer que foram feitas coisas em Vila Real a pensar nas corridas que não são normais fazer noutros locais. Não é normal, por exemplo, termos as sobrelevações que o circuito tem, como é o caso da Araucária, o que numa estrada normal não existiria, pois a sobrelevação daquela estrada é brutal. Mesmo a pavimentação tinha um cuidado específico. E na altura havia na Direção de Estradas havia dois engenheiros que eram os irmãos “Borginhos” que tinham uma grande paixão pelas corridas de Vila Real e tudo o que podiam fazer pelo circuito, eles faziam. Chegamos a ter cantoneiros a varrer os sete quilómetros do circuito e os lancis a serem caiados de branco. Isso revela o cuidado e a paixão pelas corridas.” Jorge Machado enaltece os feitos e a importância de todas as organizações que trabalharam para tornar o Circuito uma realidade, mas relembra com especial carinho a Comissão Permanente: “Cada uma delas organizações tiveram um papel importante. Fazer corridas em 1931 deve ter sido uma coisa assustadora, tal como foi nos anos 50. As dificuldades foram sempre muitas, até pelo acesso à cidade e às limitações nas fronteiras. Afetivamente, a Comissão Permanente é muito importante para mim. O Francisco Teixeira passava o dia inteiro a ligar para as empresas a tentar encontrar patrocinadores para a prova. Foi uma pessoa importantíssima, ao conseguir trazer os pilotos que vieram para cá nos anos 70. Não entendo porque ele está, de alguma forma, esquecido e é até algo injusto. Mas tal como ele, havia um conjunto de pessoas que eram os motores deste evento. Há uma história que relembro que mostra a forma como a Comissão Permanente trabalhava. Houve um piloto que veio cá e que trouxe um Chevron B16, bege com uma faixa verde a meio. E ele foi a Inglaterra para ir buscar um motor. Entretanto teve uma apendicite e não pode regressar, mas o carro estava cá. Os mecânicos e a mulher dele estavam cá e os mecânicos levaram o carro sem motor para a grelha de partida, para poderem receber o prémio de presença e a Comissão honrou o compromisso da Presença.”

Depois dos tempos da Comissão Permanente, Jorge Machado saiu de Vila Real, mas regressou alguns anos mais tarde e, inevitavelmente voltou a ligar-se às corridas, a sua grande paixão:

“Estive fora durante alguns anos e as corridas também terminaram nessa altura e só quando o Clube Automóvel foi criado é que voltamos a ter corridas em Vila Real. Quando regressei em 85, para a Direção das Estrada de Portugal, voltei a ficar mais próximo das corridas. E há uma história engraçada que vivi com o José Lopes, amigo meu de infância e que estava também ligado às corridas, tentando sempre a minha colaboração, já como membro da Direção de Estradas. A certa altura, a segurança do circuito necessitava de uma atualização, pois ainda se usavam sacos de areia e fardos de palha. Mas já se utilizavam as guardas de metal e que nós não tínhamos. Num ano, foram atribuídas umas guardas metálicas para uma determinada estrada, para o incremento da segurança. E foi nessa altura que o José Lopes veio falar comigo para ver o que se podia arranjar, pelo menos colocando prote-

ções nas zonas mais críticas. Então, conversei com o diretor da altura, tentando-o convencer que precisávamos dessas guardas para as corridas. E como havia guardas disponíveis para a dita estrada, que só seriam instaladas depois do evento, pedi-lhe se podíamos usar aquelas, que já estavam cá e que depois seriam desmontadas do Circuito e instaladas na estrada a que foram atribuídas. O Diretor aceitou, na condição de tirar tudo quando terminasse. Então começamos a colocar as guardas pelo circuito, de tal forma que o José Lopes me dizia para não colocar mais porque depois os pilotos iriam pensar que as guardas iam ficar para o ano seguinte e havendo a obrigatoriedade de as retirar, seria uma complicação. Mas como tínhamos possibilidade de as colocar, aproveitamos e foi um assombro de guardas metálicas pelo perímetro todo do circuito. Ao mesmo tempo, ia insistindo para que nos enviassem mais guardas. Afinal não custava nada pedir. E o diretor, com muito charme, com muita corrida pelo meio, com muita necessidade, com a importância das corridas para o turismo e para a região, conseguiu que viessem mais guardas, essas sim instaladas na tal estrada onde já estava previsto e aquelas que foram instaladas no circuito mantiveram-se. Desta forma, conseguimos melhorar o nosso circuito, sem colocar em causa a segurança das estradas nacionais.”

A sua passagem pelo CAVR permitiu-lhe voltar a viver por dentro a organização de um evento daquele calibre, tentando sempre melhorar e tornar o espetáculo melhor:

“Em 1987 convenceram-me a candidatar-me a presidente do CAVR e nessa altura estava cada vez mais ligado às corridas. Acedi e tornei-me presidente do Clube, mas com um projeto. Queria que aquele fosse um momento de viragem. E a minha filosofia era muito simples: ou se faz, ou não se faz. O pior que pode acontecer é ficarmos a meio caminho. Queríamos um projeto que fosse levado até ao fim, com todo o empenho. Mas só assim valeria a pena. Eu sempre vi as corridas como um espetáculo e pretendia que fossem tratadas como tal. Foi criada uma equipa para fazer as corridas, com as pessoas certas para os lugares certos, independentemente das cores políticas ou de qualquer tipo de ligação extra. O foco eram as corridas. Pela primeira vez fizemos o circuito por duas vezes no ano, uma em abril e outra em julho. Fizemos pela primeira vez a Rampa Porca de Murça. Mas também fizemos coisas mais pequenas, com uma exposição no átrio do Governo Civil de cartazes, fotografias de todas as eras do circuito, com a ajuda, entre outros, do Senhor. Magalhães que tinha um espólio incrível de fotografias. Esta entre outras pequenas atividades que nos fazia viver as corridas durante o ano.”

Anos mais tarde, Jorge Machado acabou por estar também ligado aos primeiros momentos da APCIVR, fazendo questão de tentar implementar a mesma filosofia… com ambição, mas com os pés bem assentes na terra:

“Quando se criou a APCIVR, o plano inicial era chamar-se APCVR. Mas fiz questão de dizer que só fazia sentido se fosse Circuito Internacional, uma forma de mostrar ambição. Tínhamos de ter a ambição de o conseguir. Admito que não esperava que acontecesse tão cedo, mas tinha a convicção que iríamos ser capazes de fazer corridas internacionais. O WTCC foi uma feliz coincidência por vários motivos e agora, tenho a convicção que não devemos temer sombras. Se conseguirmos capitalizar apoios, o que temos vindo a conseguir até agora creio que podemos continuar a cimentar a nossa posição e mesmo que surjam outros circuitos a nível nacional podemos encontrar sinergias para que todos possam conviver.”

Apesar de ter vivido o Circuito desde os anos 60, Jorge Machado tem a mente aberta quanto a mudanças que se possam fazer. Não usa de uma visão fixa de manter o que está em prol da herança do passado, mas olha para o Circuito como um palco que pode e deve ser mudado para melhorar o espetáculo:

“É possível alargar o circuito. É possível alargar o troço de Abambres até a rotunda de Mateus. Se queremos manter o circuito, é necessário

encontrar soluções que nos permitem melhorar o espetáculo. E há muitas soluções por esse mundo fora que podem ser aplicadas nessa zona e que nos permitiram ter uma zona mais ampla que proporcionem um melhor espetáculo. Eu inclusivamente até admito que o circuito se faça em sentido contrário. Com isso a chicane da Araucária desapareceria, a chicane de Mateus talvez devesse ser refeita. Seria necessário fazer uma chicane na descida para Abambres, antes da passagem de nível, mas aí temos espaço para fazer uma chicane em condições. E no final da descida, teríamos uma escapatória natural excelente. Entendo que a tradição tenha de ser mantida, mas eu não descarto totalmente essa possibilidade. Mas também a ideia do François Ribeiro de fazer uma “Joker Lap” aqui em Vila Real parecia demasiado louca e quando aplicada, permitiu melhorar o espetáculo. Se inicialmente não se podia, por todos os motivos e mais alguns, depois de aplicada, toda a gente concordou que era um incremento ao espetáculo.”

Tendo vivido várias épocas memoráveis do Circuito de Vila Real, desafiámos o Eng. Jorge Machado a escolher uma. Tarefa impossível e explicada de forma clara:

“Ninguém pode dizer que estes são os anos de ouro. Sabemos que tivemos o WTCC e temos o WTCR. O que eu acho é que todos os anos são anos de ouro para o Circuito de Vila Real. Nos anos 50 em que começou a projeção do Circuito de Vila Real para fora, foram os anos de ouro. Nos anos 60 com a Fórmula 3 também ninguém pode dizer que essas edições não tiveram brilho. Os anos em que tivemos os Sport Protótipos que vinham das grandes provas de endurance também tiveram brilho. Não se pode dizer que as corridas TT não tinham tido brilho. Escolher os anos de ouro é muito relativo. Mas acredito que todo este percurso do Circuito é de ouro.”

Para alguém que viveu o passado e vive o presente do Circuito, faz sentido olhar para o futuro, que pode ser risonho se a união se mantiver e se todos remarem para o mesmo sentido:

“Tenho algum receio que alguns egos impeçam que o Circuito caminhe como o deve fazer. É preciso minimizar esse risco. É preciso encontrar convergências, feitas com união, com o entrosamento de todos. Ninguém pode hostilizar ninguém. Pode ser difícil de fazer, mas acredito que é fundamental para o sucesso deste evento. O futuro das corridas depende do que o país vai querer para o futuro. Se queremos mobilizar o interior e fomentar fatores de crescimento, então as corridas de Vila Real têm de ser aposta. As corridas de Vila Real podem ser um dos expoentes máximos da região. O facto de as guardas metálicas ficarem durante o ano é uma marca da cidade, é algo que prova que somos uma cidade das corridas. Além de tornar o processo mais flexível e mais barato, é algo que nos diferencia. É preciso maximizar o potencial humano e é provável que no futuro a exigência motive uma profissionalização. E as corridas trazem muito à região. Até os mais céticos agora admitem que as corridas trazem muitas coisas positivas. E é com esse olhar que devemos focar-nos no futuro. Olhando para um evento que nos diferencia e nos pode trazer tanto de bom.”

O Eng.º Jorge Machado é um de muitos que viveu e vive intensamente este gosto pelas corridas e esta paixão pelo Circuito de Vila Real. Vê o passado com carinho e olha para o futuro com pragmatismo. No entanto, é um acérrimo defensor da importância deste evento que traz tanto a esta região. E que pode trazer ainda mais.

NDR – o nosso ilustre entrevistado enriqueceu a história do Circuito Internacional de Vila Real também pelo registo de belas imagens, como as que ilustram esta entrevista! Como curiosidade refira-se que a partir de 1968, ano de construção da bancada permanente na atual “Avenida Aureliano Barrigas”, o Eng.º Jorge Machado ocupava sempre o “seu” lugar nessa bancada – era sempre o mesmo lugar, talvez o único lugar cativo da bancada – fazia- o independentemente da sua condição ser a de mero espetador ou parte integrante da equipa responsável pela Organização do Circuito. Esse facto permitiu, também, a captação de registos fotográficos que inspiraram cartazes como o que reproduzimos, respeitante a 1988.

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