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O conceito de Uma só Saúde

NO INÍCIO DA DÉCADA PASSADA, COM A EMERGÊNCIA DE BACTÉRIAS MULTIRRESISTENTES, UM NOVO ALERTA DE PERIGO PARA A HUMANIDADE SOOU UM POUCO POR TODO O MUNDO.

Autor: Helena Ponte, Médica-Veterinária, Mestre em Saúde Pública Veterinária e Doutorada em Farmacologia

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Declarada a luta contra a antibiorresistência, hastearam-se bandeiras de cunho político e de compromisso internacional, catapultando para a esfera pública o conceito de “uma só saúde”, como pilar fundamental para a sustentabilidade do uso, com eficácia e eficiência, dos medicamentos antimicrobianos ainda disponíveis. Na sua vasta maioria, os mesmos que se administram aos seres humanos e aos animais. Recomendando-se empenho, contenção e responsabilidade na planificação de todas as medidas necessárias para que em cada país se diminuísse, criteriosamente, os seus consumos com base na relação estatística entre as quantidades de antimicrobianos usados e a pressão de seleção de resistência exercida sobre as bactérias. Apelando assim à implementação de planos de ação nacionais apropriados que integrem todas as sinergias necessárias e possíveis, consoante os eixos estratégicos delineados para cada realidade nacional, necessariamente assente no conceito de uma só saúde. À data, a preocupação da antibiorresistência é transversal à escala mundial, embora não no mesmo grau e proporção. Em certos países esbate-se, inevitavelmente, pela inexistência de regulamentação e pelas condições precárias de vida das populações desprovidas de cuidados de saúde básicos e de condições básicas de sanidade, enquanto noutros ainda, onde grassa a doença e a fome, a antibiorresistência pode até ser uma ilustre desconhecida pela falta de acesso a antibióticos A preocupação da e pela curta esperança de vida. antibiorresistência é transversal à Mas nos países ditos desenvolescala mundial, vidos, com legislação específica, embora não no designadamente para prescrição, mesmo grau e venda e utilização, a realidade é proporção outra.

Este é o enquadramento do problema à escala mundial, onde a realidade económica e de políticas de saúde é cruelmente versátil e onde o fenómeno da resistência, já por si natural, é potenciado pelo mau uso dos antimicrobianos, além do abuso no seu uso, sobretudo nos países onde o acesso do ponto de vista económico é mais fácil.

Às bactérias, basta pulularem sem fronteiras, com maior rapidez e a distâncias cada vez maiores, suportadas pelo fenómeno da globalização, também caracterizado pelo acréscimo de movimentações de homens, animais e alimentos.

Por isso, é nos países ditos desenvolvidos que se conhecem os números de desgraças causadas por bactérias resistentes - enquanto noutros nem tanto - pelo que se exige uma ação coordenada e de interajuda internacional, nacional, regional, local e profissional. Sendo aqui que se ajusta, como uma luva, o princípio do conceito de uma só saúde. Centrado no uso responsável dos antimicrobianos e na preservação destes medicamentos “sociais”, como património da humanidade. Envolvendo todos os profissionais de saúde humana e animal pela mesma causa, que é, a de viver com saúde em ambiente saudável.

Tal desígnio, porém, independentemente de questões de desenvolvimento socioeconómico, parece não ter surtido o impacto esperado no nosso país. Ou porque não precisamos de plano algum para a nossa luta, O conceito de uma só saúde é tão antigo quanto a profissão médico-veterinária, que desde sempre tratou os animais para que, também, não fossem fontes de transmissão e disseminação de doenças para os seres humanos, garantindo ao mesmo tempo que deles proviessem alimentos nutritivos e saudáveis, em quantidade compatível com as necessidades, e com qualidade

ou porque o conceito de uma saúde que já tínhamos nos chega, e talvez por isso nada tenha trazido de novo e de inovador. Facto é que nada mudou, entretanto, ou, se mudou, pouco ou nada se tem notado! Em boa verdade, o conceito de uma só saúde é tão antigo quanto a profissão médico-veterinária que, desde sempre, tratou os animais para que também não fossem fontes de transmissão e disseminação de doenças para os seres humanos, garantindo ao mesmo tempo que deles proviessem alimentos nutritivos e saudáveis, em quantidade compatível com as necessidades, e com qualidade, não apenas organolética, mas do ponto de vista da segurança alimentar. Para que os alimentos de origem animal não sejam fontes de contaminação biológica e química para os seus consumidores, decorrente do uso de medicamentos.

Vocação que desde sempre sustentou a profissão médico-veterinária, do clínico ao inspetor sanitário, a qual vem evoluindo a par da crescente consciencialização da dignidade dos animais e dos seus direitos, das regras de bem-estar animal, dos planos de saúde animal, incluindo proibições - designadamente nos animais de produção pecuária - de utilização de substâncias promotoras de crescimento, como aditivos antibióticos através das rações e, mais recentemente, a administração a animais de antibióticos criticamente importantes para salvar a vida dos seres humanos. É dizer que o conceito de uma só saúde para a medicina veterinária não é novo. Está na génese das ciências veterinárias.

A sua abordagem é, inclusive, no dia a dia de qualquer médico-veterinário, tão indissociável da sua atividade profissional que - orientados por um ciclo de benefícios, com conta peso e medida, para os animais, seres humanos e ambiente - foi com grande expetativa que estes profissionais ficaram a aguardar a inovação resultante da integração, e esforço conjunto de outros profissionais de saúde, no conceito de uma só saúde. Agora reconhecido com pompa e circunstância, como se fosse uma novidade, e desta feita com todos os profissionais dos vários ramos da saúde a remarem no mesmo sentido.

“Só que, para que tal acontecesse, era preciso estratégia e coordenação, o que até à data ainda falta em Portugal. Isto apesar de já ter passado uma década desde o primeiro plano de ação emanado pela Comissão Europeia, no âmbito da luta antimicrobiana, com ramificações a todos “As profissões que segundo o conceito de uma só saúde deveriam estar mais unidas que nunca — coordenadas numa estratégia conjunta, movidas pelos mesmos objetivos e partilhando a responsabilidade do bom uso dos antimicrobianos, cada um na sua esfera de ação, esforçando-se e lutando pela vida, humana e animal, contra a crescente resistência microbiana — nem sequer se conhecem!”

os seus estados-membros, com o firme propósito de se preservarem os antibióticos como armas terapêuticas imprescindíveis à vida, a par de recomendações explícitas em matéria de uma só saúde. Porque, para as bactérias, não há fronteiras nem de espécies, nem de territórios ou nações.”

Embora em Portugal tudo continue como dantes. A remarmos contra a maré, queremos acreditar, mas cada um por si! Vamos sabendo da progressiva redução das quantidades de vendas de antimicrobianos veterinários no conjunto dos estados-membros da União Europeia nos últimos anos, se, quem quiser saber, se der ao trabalho de consultar os relatórios anuais do ESVAC (European Surveillance of Veterinary Antimicrobial Consumption) publicados na página eletrónica da Agência Europeia do Medicamento (EMA). Pese embora continuemos sem saber exatamente onde e em que espécies animais essa

diminuição de consumos se verifica, e continuemos sem capacidade de estabelecer quaisquer comparações com os consumos de medicamentos antimicrobianos de uso humano, para os devidos efeitos. Que é como se costuma dizer, quando não sabemos muito bem “o que fazer depois”.

Porque para sabermos “o que fazer depois” havíamos de ter um plano conjunto de ação, humano e veterinário, o qual tanto quanto sei, ou julgo saber, não existe. E sem planificar, não há comunicação, não há estratégia, não há objetivos, não há metas, não há indicadores, muito menos resultados.

Arriscaria dizer, que os médicos veterinários não sabem o que andam os restantes profissionais de uma só saúde a fazer, como tenho a certeza de que estes desconhecem também em absoluto o que fazem os veterinários.

As profissões que segundo o conceito de uma só saúde deveriam estar mais unidas que nunca - coordenadas numa estratégia conjunta, movidas pelos mesmos objetivos e partilhando a responsabilidade do bom uso dos antimicrobianos, cada um na sua esfera de ação, esforçando-se e lutando pela vida, humana e animal, contra a crescente resistência microbiana - nem sequer se conhecem! Como se pode esperar que se articulem, então, proficuamente entre si? Tal desinformação é tão ou mais caricata que, quando calha a falar-se do assunto, fala cada um ao calhas! Meio em tom de crítica, meio com aspirações de mudança, ainda se “A mais-valia do novo conceito de uma só saúde, indo além do saber de cada profissão de saúde, é passar da intenção à ação. Um conceito, renovado, que teria de se originar, como numa espécie de geração espontânea, da implementação de um Plano de Ação Nacional, unificado, plural e singular, integrando todos e cada um”

estendem além da comunidade científica pela publicação de artigos, a partilha de conhecimento é nula.

A mais-valia do novo conceito de uma só saúde, indo além do saber de cada profissão de saúde, é passar da intenção à ação.

repisa nas hormonas e antibióticos para engorda de animais, se debatem experiências de amigos, vizinhos, familiares e histórias da televisão sobre consultas e unidades de saúde, e se descasca forte e feio nas farmácias quando vendem tudo ou não vendem nada. Dos enfermeiros não se fala e dos enfermeiros veterinários nem se sabe que existem. Um conceito renovado que teria de se originar, como numa espécie de geração espontânea, da implementação de um Plano de Ação Nacional, unificado, plural e singular, integrando todos e cada um. Das instituições estatais, às entidades privadas, passando pela sociedade civil.

O meio ambiente é paisagem…

Será esta a perceção da sociedade civil, que deveria ser também ativamente envolvida no conceito de uma só saúde, e não o é, apesar de reconhecido o papel social do medicamento antimicrobiano?

Não basta juntarem-se - volta não volta, por carolice - representantes destas profissões a dar palpites sobre o assunto que, feliz ou infelizmente, coincidem na preocupação, quando depois cada um vai para seu lado a pensar que a coisa está pior do que se pensa.

Salvo as relações académicas - mais pessoais que académicas - que alguns cientistas entusiasmados com os seus achados mantêm entre si, mas que raramente Só assim se conduz o combate à resistência microbiana sem outras pretensões que não as de servir a causa pública, no caso a saúde e a vida.

Em 2017, e pela segunda vez, a Comissão Europeia adotou um novo plano de ação de luta contra a antibiorresistência, prevendo que cada estado-membro atualizasse o seu, nos respetivos territórios, à luz do conceito de uma só saúde e experiência adquirida.

Três anos passados, ainda não perdi a esperança de virmos a ter o nosso Plano Nacional. Afiançando a minha total colaboração, mesmo que como simples cidadã. •

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