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Breno William

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Copyright © Breno William Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma e por qualquer meio mecânico ou eletrônico, inclusive através de fotocópias e de gravações, sem a expressa permissão do autor. Todo o conteúdo desta obra é de inteira responsabilidade do autor. Editora Schoba Rua Melvin Jones, 223 - Vila Roma - Salto - São Paulo - Brasil CEP 13321-441 Fone/Fax: +55 (11) 4029.0326 | 4021.9545 E-mail: atendimento@editoraschoba.com.br www.editoraschoba.com.br CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ S578a Silva, Breno William de Souza Arquivos : contaminação / Breno William de Souza Silva. - 1. ed. - Salto, SP : Schoba, 2013. 188 p. : 23 cm ISBN 978-85-8013-241-0 1. Ficção infantojuvenil brasileira. I. Título. 13-1475. CDD: 028.5 CDU: 087.5 06.03.13 11.03.13

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A todos que lutaram comigo em cada batalha. A meus pais e minhas irm達s malucas por todo o apoio. A minha linda Aline por me ouvir todos os dias. Ao pessoal da Schoba por me darem essa oportunidade. E a Deus, por me guiar. Obrigado a todos que fizeram esse sonho se realizar.



Sumário

prólogo do caos.....................................................................9 a invasão................................................................................13 de policial a protetor..........................................................27 recriação da semente do mal..............................................39 guerra declarada.................................................................43 a resistência..........................................................................57 solidão...................................................................................69 motores ligados. hora do show!.........................................87 mar de mortes.....................................................................107 hospital lar.........................................................................115 herdeiros de adão..............................................................123 suor e metal........................................................................131 visitante .............................................................................135 alerta vermelho.................................................................147 elias......................................................................................151 o mal no coração de um herói..........................................167 vivo para mais batalhas......................................................179 repaginado..........................................................................181



Prólogo do Caos

Meu nome é Michael Rodrigues, e sou mais conhecido como policial Rodrigues. Trabalho na polícia local da cidade de Aracaju/Sergipe, no Nordeste brasileiro. No ano em que vivo, em 2050, já possuímos a cura para o câncer, AIDS, e muitas outras doenças. Restauração de membros e órgãos é coisa normal. Temos até robôs nos ajudando em tarefas importantes, como construção totalmente automatizada de veículos, maquinários etc. Nossas máquinas até podem ser removidas e reinstaladas por comando de voz. A clonagem ainda é proibida, mas só se você não tiver dinheiro para isso no mercado negro. Marte está sendo colonizada há seis anos e logo estará em condições de habitação. A maior diferença mesmo é que o Brasil é o centro do mundo. Pois é, caro leitor, o Brasil tornou-se a maior potência do mundo. Mas não porque temos a maior economia do mundo, ou melhores tecnologias etc., mas por causa de um pequeno ato de “covardia”. Em 2015, um meteorito caiu em território africano, trazendo com ele um fóssil alienígena muito cobiçado por todas as nações, com um cristal com capacidades energéticas fantásticas. Todos queriam pôr a mão nas maravilhas alienígenas. Isso gerou, obviamente, a Terceira Guerra Mundial. Nossa presidente decidiu

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manter o país longe da confusão, alguns viram isso como a maior prova de covardia nacional, eu, após anos dessa decisão, vejo isso como a maior cartada de mestre. Logo que a coisa começou a ficar apertada, para todas as nações, bombas atômicas foram lançadas, disparadas umas contra as outras, e o mundo entrou em caos. No fim da guerra, não houve um lado vencedor, apenas morte, fome e miséria. E adivinha quem tinha os recursos para financiar a recuperação desses países?! Pois é, leitor... O dinheiro caiu aos montes no Banco Nacional. Nosso país financiou parte da recuperação de todo o mundo, pois tínhamos estoques não só de alimentos, mas de matéria-prima para toda a recuperação. Quando o país não quis mais ajudar, fechou as fronteiras para as outras nações. No início de 2030, éramos a maior nação do mundo. Éramos uma superpotência, e o único país com recursos financeiros para estudar os “presentes” alienígenas. Homúnculos foi o nome dado ao fóssil responsável por parte do desenvolvimento científico do país, e graças a ele, conseguimos curar e salvar mais de 1,5 bilhões de brasileiros desde então. O cristal, nomeado de Gênesis, foi usado para criar tecnologias eletrônicas, ilimitadas e não poluentes. Com o país em tamanha ascensão, criou-se um forte caráter nacionalista. Não havia mais preconceitos internos entre as regiões do país, apenas um grande orgulho de ser brasileiro. Por causa disso, ninguém mais era bem-vindo ao nosso país, aceitávamos apenas os nascidos aqui. Foi o começo para a desgraça da nação, e posteriormente, do mundo.

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As outras nações iniciaram ataques aleatórios às muralhas erguidas em nossas fronteiras. Eu, jovem e emotivo, com o orgulho nacional inflamando meu sangue, me alistei, e fui parar no exército. Combati por longos anos, até um acidente com uma granada de treinamento mandar meu braço esquerdo “para Marte”, e enviar o meu irmão para a cova. Inválido, saí do exército e fiquei vivendo de pensão militar. Foram os dois anos mais deprimentes da minha vida. Perdi minha mulher e filha num divórcio. Mas por sorte o programa de reconstrução física se tornou mais popular. A própria empresa responsável fez a boa ação de pagar metade do procedimento como teste, e assim pude ter um novo braço. Agora, após um ano de reabilitação com o meu novo membro, fiz o concurso para policial, fui aprovado, e ingressei na polícia de minha cidade natal. O problema é que, mal comecei a trabalhar, já entrei em outra guerra. Mas dessa vez a guerra não era contra países revoltosos... Era contra coisa muito pior.

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A Invasão

7 de maio de 2050

A

o me arrumar, às seis horas da manhã, vestindo o meu uniforme da polícia, esqueci-me de ligar para a minha ex-mulher, avisando-a que não poderia levar Melanie ao GRD, e isso martelou em minha cabeça ao entrar na velha caminhonete, mal adaptada a energia elétrica. Dificilmente eu me lembrava de carregar o celular, que era um hábito que tinha graças à vida militar. Devido às broncas de Isadora, eu mantinha o computador de mão no Por questões de banco do carona, mas ele só iria carrepreservação amgar em duas horas, então, avisar-lhe que biental, e devido à chegada do cristal não levaria nossa filha à ginástica seria alienígena Gênesis, impossível. Eu sabia que ela voltara retodos os veículos centemente da Amazônia, mas não daforam adaptados ria para quebrar esse galho para ela. a energia Dirigi vagarosamente. Saí do conelétrica, que a partir de então se domínio onde morava, o “Vilas de Portornou gratuita. tugal”. Enquanto entrava na Av. Maranhão, observei o trabalho do pessoal da Emsurb, colhendo as folhas das árvores 15


que dividiam a avenida. Um funcionário limpava a placa que dizia: “Aracaju. Capital da qualidade de vida do Brasil”. Cheguei à Av. São Paulo, onde o enorme edifício despontava. Não levei sequer cinco minutos para chegar lá. O trânsito estava moderadamente calmo. O edifício tinha 14 andares. Apresentava a pintura ligeiramente desgastada. No prédio, o enorme brasão da polícia esvoaçava numa bandeira gigante. No subsolo do prédio, o estacionamento e a guarita de armas, onde estacionei, mirando o elevador. Desci do carro apressado. Subi Devido a uma onpara o 10º. andar pelo elevador, sem da de violência em cumprimentar ninguém, não por fal2032, pela insatisfata de educação, mas por desconfiança. ção de grupos antinacionalistas, todos Ninguém na polícia gostava de milios modelos de autotares, era como se fôssemos de raças móveis passaram a inimigas ou coisa do gênero. Chamar ser feitos de aço rea atenção para mim, um ex-militar, forçado, com vidros era suicídio profissional. Quando enà prova de bala. trei no departamento de crimes leves, o policial Sanches me chamou, de trás de sua bancada. – Você que é o policial Rodrigues? – Perguntou-me. Respondi que sim, após bater continência. Ele gargalhou, achando graça da maneira formal que o tratara. – Deixa disso, homem! Aqui é a polícia, não o exército! Sorri, constrangido. – Pegue seus equipamentos padrão, sua mesa é a 17. Entregou-me uma pistola 40mm, um distintivo com a insíg16


nia da polícia e um Taser. Fiz sinal positivo, sem poder bater uma segunda continência. Peguei o equipamento e prendi-o ao cinto. Na mesa 17, uma papelada me esperava. Transcrevi uma centena de arquivos de pequenos furtos para o sistema, até que o relógio indicou 12 horas. Fiquei observando uma moça ser arrastada para a sala de interrogatório, e logo soube, ela era durona. Trabalhei por mais de uma hora, alimentado por um copo de achocolatado quente e biscoitos salgados, atendi a dois telefonemas de ocorrência, até ser desafiado. – Você que é o Rodrigues? Era um policial com cara de durão, no uniforme estava: Policial Carvalho. Respondi que sim. – O coordenador Alencar está lhe chamando na sala de interrogatório. E saiu sem esperar minha resposta. Bufei, mas obedeci. Na porta da sala de interrogatório Com a nova ordem um cara, parecendo uma morsa, me política, a Polícia esperava com um sorriso desafiador. Militar e Civil foram Era careca, com um grande e espesso unidas, tornandose una. Militares bigode ruivo. Tinha uma papada flácie policiais criaram da, que combinava perfeitamente com rixas a partir de ena barrigona. Mas era um coordenador, tão, já que a polícia e eu lhe devia respeito. perdeu totalmente – Senhor? Mandou me chamar? – sua ligação com as questões militares Questionei, só por educação. do governo. – Sim, rapazinho –, começou ele, afagando os bigodes. Chamar-me de rapazinho era provocação, e até mesmo 17


ofensa. Eu já tinha 35 anos de idade na época, e meu rosto barbado e cabelo grisalho mostravam claramente isso. – Dei uma olhada no seu histórico... Militar não é? – Sim, senhor. – Respondi. – Saiu por quê? – Invalidez, senhor. Perdi o braço esquerdo num treinamento para recrutas. Lembrei-me do breve segundo em que meu irmão apertara o botão de ativação da granada, que explodiu em suas mãos, matando-o e arrancando o meu braço no processo. O coordenador olhou para o meu braço esquerdo, novinho. – Milagre científico, não? – Sim, senhor. Mostrei-lhe o braço, ligeiramente esbranquiçado. O homem ergueu as sobrancelhas, admirado. – Interessante... Interessante mesmo. – Ele olhou para trás. – Tenho um caso para você... Uma moça, ladra de lojas de conveniências. Furtou uma lixa de unha e uma acetona. O caso é que ela tem uma ficha criminal gigante, e apesar de ser maior, ainda mora com os pais, que não puderam mandar o advogado. Filhinha de empresário rico... – Ele deu de ombros, despreocupado. – Enfim... Quero que fique de babá dela... Só até o advogado chegar. Senti uma pontada de raiva. O coordenador Alencar queria me fazer de idiota, talvez por ele ter inveja de mim, por eu ser exmilitar, ou talvez porque eu era, modéstia parte, uma dezena de vezes mais bonito que ele. Os caras da polícia queriam tirar sarro comigo. Ficar de babá?! Eu era policial, não baby-sitter. – Babá de uma cleptomaníaca? – murmurei. Certo... – Converse com ela, passe o tempo, não sei. Você é ex-mili18


tar, vai dar um jeitinho. – Ele esboçou um sorriso sarcástico. Concordei com a cabeça, desgostoso. Entrei na sala. O lugar era escuro, com cara de filmes de interrogatório. Na sala apenas uma mesa, meio iluminada por um abajur fraco. Na mesa, apenas duas cadeiras, uma de frente para a outra. Em um lado, uma cadeira puxada, com um arquivo holográfico de ficha criminal aberto sobre a mesa. Do outro, a mulher que eu vira ser arrastada momentos atrás. Ela parecia uma modelo. Tinha seus 25 a 27 anos, cabelos pretos ondulados até a altura do quadril, corpo moreno torneado, olhos castanhos claros, blusa social preta de mangas curtas e decote saliente, que realçavam seu busto 93, calça jeans comprida e gladiadoras cor de vinho. Ao seu lado, sobre a mesa, uma bolsa de marca, que custava uns R$ 7.000,00 ou mais, que combinavam com seus brincos e pulseiras de ouro. Ela me fitou, irritada, mas não falou nada. Sentei-me na cadeira à frente dela. – Então... Quer conversar? Ela meneou a cabeça negativamente. A resposta já era previsível. – Sabe, Srta... – Olhei a ficha sobre a mesa. – Srta. Clara Ribeiro... Acho que você precisa ser ouvida... – Ouvida? – Questionou-me ela. Sua voz era doce, apesar dos olhos irritados. – Sou rica... Se quiser conversar com alguém, pago um psicólogo. – Sei disso, Srta. Clara. – Concordei, sorrindo. – Mas acho que não funcionaria... Você precisa de um ombro amigo... Não de um profissional que vai lhe encher de respostas ainda mais confusas. Nada contra os psicólogos, mas o que você precisa é de19


sabafar, conversar descontraidamente, sabe, sem forçar a barra... Essas coisas... Ela arqueou as sobrancelhas. Um sorriso fraco preencheu os seus lábios. – E por que você acha isso, policial? – Ora... É uma jovem rica, bonita e, a julgar pelo que vejo em sua ficha criminal, cursa o último ano de Biologia. Você é uma mina de inveja – declarei. Ela cruzou os braços, indiferente, mas ouvinte. – Você é muito cobiçada entre os rapazes, mas não é pelos motivos que gostaria, por isso não tem namorado. As outras mulheres têm inveja de você, por suas roupas caras e sua inteligência, e se afastam de você. E seus pais não ligam para o que você faz da vida, porque estão sempre ocupados com os negócios da família. E isso é o que mais lhe incomoda. Estar sozinha sempre. Ela inclinou a cabeça, ligeiramente séria. Eu acertara em pelo menos metade do que dissera. Ela me mostrava isso com os olhos. – Olha... Cometer crimes para chamar a atenção de seus pais só vai lhe prejudicar. Sei que é difícil para você, mas já percebeu que não deve se autodestruir por causa deles. Ou por causa de qualquer pessoa? – As palavras deixaram-na paralisada, me fitando com um olhar triste e ligeiramente surpreso. Eu acertara no ponto fraco. – Você é linda, inteligente, e está a um passo de se formar. Se tiver uma ficha criminal maior que essa, ninguém vai querer se aproximar de você. Clara se enterrou na cadeira. Mordeu o lábio, os olhos fixos em mim com certa raiva. – Cabeça para a frente, menina. O mundo é grande demais para você perder tempo se preocupando em como se autodestruir 20


só para chamar a atenção dos outros. – Terminei o sermão. – Não perca seu tempo com eles. Não vale a pena querer a companhia de alguém que não lhe dá valor. Clara balançou a cabeça, abismada. Ela descruzou as pernas e os braços. – Deus do céu... Como você...? – Questionou-me. Lágrimas brotaram nos cantos de seus olhos. Ela sorriu, enxugando os olhos com as costas da mão. – Você é mesmo policial? Ou algum tipo de psicólogo do Governo? – Sou apenas velho. – Respondi, brincalhão. Ela correspondeu com um belo sorriso de modelo. – Só quero o seu bem... Não posso ver uma jovem tão magnífica se arruinar. Sei o valor que tem. É meu dever como policial fazê-la ver isso. Ela sorriu, baixou os olhos rapidamente, e quando os voltou a mim, estava parecendo outra pessoa, mais viva, radiante e charmosa. – Somente por dever policial? – Brincou ela sugestivamente, num misto de infantilidade e sensualidade. Sorri encabulado. Continuamos a conversa pelos 15 minutos estipulados pelo coordenador Alencar, e devo ressaltar, foi a melhor conversa que já tive com uma pessoa do sexo oposto. O assunto fluiu tão naturalmente que parecia que éramos velhos amigos, ou algo mais. Ela era parecida comigo em tantas coisas que chegava a assustar. Praticara todo tipo de esporte radical, somente para ter um pouco da atenção dos pais. Aprendera a fazer ligação direta em veículos para poder “pegar emprestados” os carros luxuosos do velho Sr. Ribeiro. Fizera cursos de direção perigosa, proteção pessoal e até sabia usar armas de fogo de pequeno calibre. Aquela mulher era magnífica, e apesar da diferença de idade, 21


éramos semelhantes demais. Eu não pude deixar de me sentir atraído por aquela moça, uma loba solitária como eu. E a julgar pelo seu olhar fascinado e belo, o sentimento foi recíproco. Os meus, digo, nossos quinze minutos viraram meia hora, e comecei a me preocupar. O advogado de Clara estava se demorando demais. Eu fiquei com a pulga atrás da orelha. A conversa estava sendo ótima, mas não queria que ficássemos numa sala daquelas por mais tempo, afinal, sabe-se lá quem podia estar nos ouvindo. – Clara... Pode me dar um minuto? – O tempo acabou, né? – Ela suspirou, desanimada. – Meu advogado já chegou? – Não é isso... Já era para ele ter chegado mesmo. Há bastante tempo. Estou encucado. – Sorri. – Mas podemos tomar um café ou achocolatado após o expediente se preferir continuar está conversa. Pelo que vi, temos muita coisa pra conversar. – Ela sorriu, e fez muxoxo, brincalhona. – Prometo que volto em um minuto. Deixei a morena na sala e fui até a porta. Quando a abri, vi-me numa cena de filme de horror. Todos os meus colegas de trabalho estavam mortos, mutilados, espalhados pelo chão ensanguentado. Todos mortos brutalmente. Quase congelei. Meus instintos de soldado me fizeram sacar a pistola, e mudá-la para o modo automático. Pus-me em posição de combate, os olhos e ouvidos caçando todo e qualquer movimento. Ajoelhei-me às pressas, avaliando o cadáver mais próximo. Não havia marcas de tiro, nem faca, nem qualquer objeto cortante. Era como se um animal selvagem feroz tivesse atacado a todos eles sem dar sequer tempo para sacarem suas armas. – Ai, meu Pai do céu! – Clara praguejou às minhas costas. 22


Atônita, abraçou-me por trás. Não baixei a guarda mesmo em sua presença. O medo inflamava as veias de um velho combatente. Meus instintos e sentidos se aguçavam mais e mais. Além do choro abafado de Clara, nenhum som era audível. Tomei as devidas providências, antes que algo acontecesse. – Clara... Preciso que seja forte. – Comecei a orientá-la. – Quero que recolha toda a munição que sua bolsa possa carregar. Seja lá quem fez isso, não deve estar muito longe, e vamos precisar estar prontos para qualquer coisa. – A jovem bióloga fitou-me enervada. – Pegue uma pistola e mantenha-a em mãos. E NÃO abaixe a guarda! Nem por um segundo... Clara balançou a cabeça positivamente. As lágrimas corriam por seu rosto desesperado de modelo. Ela me obedeceu sem vacilar. Recolhi quatro pentes de bala e os entreguei a Clara. Tínhamos sete pentes extras, além dos que estavam em nossas armas. Clara sabia usar a arma, e não foi necessário uma aula de como usar o equipamento. Caminhamos cautelosamente pelo corredor. As paredes e o chão estavam manchados de sangue, como se alguém tivesse sido arrastado vivo com sangramentos horríveis. Corpos aqui e ali me enchiam de terror. Não conhecia nada que pudesse ter feito tal massacre sem usar sequer uma arma, e muitos menos em tão pouco tempo. Chegamos em frente ao elevador. Ao nosso lado estava a porta para a escadaria. – Escadas. – Comandei. Clara fitou-me preocupada. – O elevador é muito mais rápido... Por que nós não... – Ela começou a se pronunciar, mas eu a interrompi. 23


– Entregaria nossa posição. – Expliquei. – Vamos pela escada, devagar e em silêncio. Certo? Clara concordou, cegada pelo desespero, apenas me obedecia. Ela sabia que NAQUELE momento eu era o mais apto dos dois a dar as ordens. Com o coração pulsando a mil, abri a porta. O metal ligeiramente oxidado rangeu penosamente. A escadaria estava parcialmente ensanguentada, mas sem nenhum corpo ou ruído. Era a nossa oportunidade de fuga. Desci com Clara, às pressas, mas com o máximo de cautela para não fazer qualquer tipo de barulho. O “toque-toque” do salto da Srta. Ribeiro estava me deixando nervoso, mas não podia forçá-la a tirar o calçado e andar sobre poças de sangue. No quinto andar, encontramos um homem, apoiando-se numa das paredes. Seu corpo roliço, cabeça careca e respiração ofegante me revelaram sua identidade. Era o coordenador Alencar. – Coordenador, o que está acontecendo aqui? – Questionei-o, assustado. O coordenador virou-se para mim, vagarosa e penosamente. De seus olhos e boca escorriam sangue, vermelho escarlate e pegajoso. Os olhos vibravam desfocados. O pescoço estalava a cada centímetro que o rosto se virava para mim, como se o osso estivesse rachando a cada segundo. Aquela visão de horror me fez congelar. Eu jamais sentira tanto medo em minha vida. Não era uma brincadeira com o calouro, como no ensino médio ou faculdade. Aquilo era real. O coordenador era a visão plena de algo demoníaco. Algo que fez cada milímetro do meu corpo arrepiar de pavor. Ele avançou em minha direção como um relâmpago. Tentei reagir, mas meu corpo não respondeu a tempo. O velho roliço derrubou-me nos degraus. Com uma força desumana, agarrou24


me os braços, incapacitando-me de reagir, por mais que eu estivesse usando toda a minha força. Ele avançou em meu pescoço, a boca aberta, como se fosse uma serpente que desloca o maxilar para engolir toda a presa. Por sorte, eu não estava sozinho. Clara puxou o gatilho um segundo antes de eu ser mordido bem na aorta. A bala de 40 mm explodiu a cabeça do meu superior, sujando-me com o sangue e miolos. Clara soltou a pistola e vomitou sobre o corpo do sargento. Acostumado com vísceras e sangue sobre o meu corpo, apenas limpei os pedaços do corpo, enojado. Minha mente trabalhava ferozmente a cada segundo. O coordenador enlouquecera. E eu era o próximo se não mantivesse a cabeça fria. Primeiro. Algum tipo de coisa o havia feito enlouquecer, isso era óbvio. Segundo. Estávamos sob ataque, independente do que fosse. E terceiro. Ninguém era confiável. O primeiro que desse um passo em minha direção ou de Clara receberia um tiro de 40 mm no meio da testa. Ajudei Clara a se recuperar. Já ouvia o som de passos na escadaria, e podia ter certeza que nossas companhias indesejáveis estavam vindo atrás de nós. Sem me preocupar em fazer silêncio, só podia dizer uma coisa para a minha jovem bióloga. – Corra! Os últimos cinco andares passaram rápidos. A adrenalina nos consumia. Chegamos ao térreo, mas eu sabia que não podíamos sair ainda. Os gritos desesperados do lado de fora eram claros. As pessoas morriam aos montes. Carros batiam. Tiros e mais tiros zumbiam em total confusão. A cidade estava em caos. Desci para o subterrâneo. Clara nem percebeu que havíamos 25


ultrapassado o limite antes deliberado por nós. Lá, no subsolo, chegamos ao arsenal da polícia. A sala já havia quase sido esvaziada. Recolhi uma escopeta Coiote 74-K, semiautomática, com seis balas na agulha, um par de coletes, um para mim e outro para Clara. Prendi uma faca militar ao meu colete, com a munição de pistola. Dei a Clara um Taser, um spray de pimenta e duas granadas de acionamento a distância. E por último, prendi um lançagranadas Tifão Z-66 às costas. Pegamos a minha caminhonete no estacionamento, aproveitando o caos que nos camuflava. O vidro traseiro estava quebrado, e a lateral arranhada. Mas funcionava perfeitamente. O estacionamento estava desolado, como se fosse um cemitério de carros. Acelerei ao máximo nas ruas. As pessoas gritavam desesperadas. Vi de relance pessoas como o coordenador Alencar devorando civis nos becos e cantos das casas. Passei pela calçada, devido ao bloqueio de carros abandonados nas ruas. Passei por cima do retorno na Av. Maranhão e entrei no condomínio, quase atropelando meia dúzia de vizinhos que fugiam desesperados. Estacionei a caminhonete às pressas. Atirei para cima. As pessoas que fugiam prestaram atenção em mim, assustadas. – Para dentro! É mais seguro! Alguns me ouviram. Seguido por Clara, subi os degraus às pressas. As pessoas nos acompanharam, desesperadas. – Quem mora no prédio pegue o máximo de alimentos possíveis! O meu apartamento é o 301, estarei esperando na porta! Clara e eu chegamos ao apartamento. Os pulmões estavam inflados. Abri a porta com comando de voz. A porta blindada se abriu ao meu comando. Clara entrou e foi direto ao banheiro. Pude ouvi-la chorar debaixo do chuveiro. 26


Corri para a porta. As pessoas chegavam com caixotes de papelão cheios de comida e suprimentos médicos. Entreguei uma pistola automática ao meu vizinho Carlos Andrade, e desci correndo. No térreo, a confusão se instalara. Alguns civis devoravam os moradores dos apartamentos vizinhos, e eu até hoje não compreendi como fui tão frio, ou louco. Corri para cima dos monstros. No primeiro tiro de escopeta, três dos civis caíram, debatendo-se, a uns três metros de mim. Um grupo de 15 civis avançou em minha direção. Descarreguei a escopeta neles. Na última cápsula, ainda restavam três deles, saquei a pistola e foquei na cabeça, o ponto mais sensível da fisiologia humana. Foram os três tiros mais precisos da minha vida até então. Entrei na caminhonete. Estacionei na porta do apartamento, bloqueando a passagem. Até hoje me pergunto por que peguei o computador de mão e carregador e subi para o meu andar. A pistola automática estava firme nas mãos. O prédio estava limpo, mas eu já podia ouvir o som da lataria da caminhonete sendo arranhada e amassada. Aqueles monstros iriam entrar no prédio em minutos. No corredor, peguei um machado de emergência, dois extintores e um botijão de gás em um apartamento qualquer. Pus o envoltório explosivo na escadaria do 2º. andar pela ponta da escada, certificando-me de esquivar no momento da explosão. A escada ruiu com o estouro. Usei os extintores para apagar as chamas que subiam pelas paredes, ameaçando queimar os andares superiores. Ouvi o meu carro ser virado. Eu já sabia que aquelas coisas já estavam vindo. Subi para o meu andar. Carlos me esperava. Os olhos arregalados. 27


Entramos em meu apartamento. Tranquei a porta blindada.

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