Copyright © Letícia Mello Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma e por qualquer meio mecânico ou eletrônico, inclusive através de fotocópias e de gravações, sem a expressa permissão do autor. Todo o conteúdo desta obra é de inteira responsabilidade do autor. Editora Schoba Rua dos Andradas, 834 – Centro – Itu – São Paulo – Brasil CEP: 13.300-170 Fone/Fax: +55 (11) 2429.8990 E-mail: ola@publischoba.com www.editoraschoba.com.br
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Mello, Letícia Hasselmann de Do for love / Leticia Mello. -- São Paulo : Schoba Editora, 2016. 260 p. ISBN 978-85-8013-491-9 1. Ásia – Descrição de viajem 2. Trabalho voluntário – Ásia 3. Mulheres viajantes - Ásia 4. Camboja – Descrição de viagem 5. Tailândia – Descrição de viagem 6. Vietnã – Descrição de viagem I. Título CDU 910(5) 16-0502 CDD 915.04 Índices para catálogo sistemático: 1. Ásia – Descrição de viagem – trabalho voluntário
“A minha eterna gratidão a todas as pessoas que acreditaram nesse projeto junto comigo, desde o princípio! Ele é feito de pessoas do bem e de muito amor.”
1. Veja o invisível, acredite no inacreditável, conquiste o impossível
Em menos de 24 horas da minha chegada a Bangkok, eu já estava na delegacia tailandesa, aos prantos. Eu nunca havia sido furtada, mas nunca imaginei que a primeira vez ocorreria no primeiro dia de uma viagem de um ano, sozinha, pelo Sudeste Asiático. Sem passaporte, dinheiro ou cartão de crédito, eu estava mais próxima de me autodeportar do que de continuar qualquer plano de voluntariado como professora de inglês por terras carentes. Eu vim até aqui com as melhores intenções e não estava achando nada justa essa recepção tailandesa. Afinal, alguém vir pelas suas costas enquanto você caminha pela área mais turística da cidade e cortar a sua bolsa silenciosamente para retirar a sua carteira lá de dentro, estava longe de qualquer expectativa para o meu primeiro dia. Talvez todas aquelas pessoas que me disseram (ou pensaram) que uma garota sozinha, loirinha, de 24 anos – mas com jeito de 19 – não deveria se achar capaz de fazer uma viagem dessas, estivessem certas. O melhor que eu poderia fazer era resolver a situação o mais breve possível. Então, respirei fundo, enxuguei as lágrimas e me lembrei de que tudo acontece por alguma razão e comecei os procedimentos. Fiz o boletim de ocorrência com direito a uma foto parecida com aquela que os criminosos tiram antes de serem presos, segurando uma placa com meu nome, dados e motivo da ocorrência. Confesso que, nessa hora, meu estado de humor mudou, afinal, essa seria uma foto que poucos turistas tirariam em Bangkok. Cancelei os meus cartões de crédito e descobri que só poderia ir a Embaixada Brasileira no próximo dia, já que hoje era domingo. Cogitei a hipótese de dormir na delegacia, uma vez que seria bem difícil sair dali sem nada de dinheiro. #doforlove 7
Mas, mexendo no meu bolso, eu achei 300 baths e me lembrei que, quando estava desesperada e chorando no meio daquela muvuca tailandesa com pessoas do mundo inteiro tentando encontrar seu caminho em meio a barracas de comida a céu aberto, cachorros famintos, cheiro de frutas exóticas misturado a frituras, alguns dos tailandeses que estavam trabalhando naquelas barracas de rua juntaram um pouco de dinheiro cada um e me deram. Meus pais sempre me ensinaram a negar e agradecer esse tipo de gentileza. Naquele momento eu não pude fazê-lo, pois eu realmente precisava de ajuda, e ver que aquelas pessoas simples, que trabalham duro para dar sustento as suas famílias, foram os que me ajudaram, me deu força para acreditar que tudo ficaria bem. Agradeci da melhor maneira que eu pude e pedi aos céus que abençoasse essas pessoas. Então agora eu tinha 300 baths, o que equivalia a aproximadamente 9 dólares que deveriam ser gastos com cautela. Era final de junho de 2013, época de muita chuva na cidade, mas fazia um sol quente que, agregado à umidade super alta, tornava impossível fazer matemática do lado de fora. Sentei em um banco na delegacia mesmo e fiquei fazendo cálculos. Enquanto isso, vi um menino loiro que deveria ter mais ou menos a minha idade passando pelo mesmo procedimento que eu acabara de passar. Olhei para ele e perguntei em tom de empatia: “Oi! E aí, qual a sua história?”. “Estava em um bar ontem à noite e não me lembro de mais nada. Acordei hoje deitado em um banco sujo, na frente de um hospital, sem meu celular e o dinheiro que eu tinha”. “Já verificou se está tudo bem com você? Sabe que tem muito lady 1 boy por aqui, né?”. Ele riu, meio descrente do que havia acabado de escutar. “Já verifiquei tudo. Intocável.”. – respondeu ele, em tom de deboche, à minha piadinha infame. Foi assim, na delegacia, que fiz a primeira amizade da minha viagem. Doug era um cara muito tranquilo, de sorriso doce e sincero, um alemão que já havia sido obeso e hoje tinha um porte de atleta. Essa transformação fez com que ele acreditasse que tudo o que ele quisesse seria possível. Por 1. Lady boy é uma gíria comumente utilizada na Tailândia que se refere aos transexuais asiáticos.
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isso, viajava por terras desconhecidas, para realizar um sonho antigo que antes o menino gordinho se encarregava de afundar junto com cada guloseima que devorava. Era uma pessoa serena, mas determinada e isso nos uniu em uma irmandade de três dias. Saímos da delegacia amigos até no Facebook das pessoas que trabalhavam lá! Pegamos carona com o carro da polícia que nos levou aos nossos respectivos hostels para buscarmos nossas malas e, com calma, eu consegui achar um cartão de crédito que estava escondido na outra mochila. Adorei passear por Bangkok no carro da polícia! Dividimos um quarto xexelento com duas camas horríveis em um hotel indiano na Khao San Road, a meca dos mochileiros em Bangkok. A opção de saque estava indisponível no meu cartão e levou algum tempo até eu conseguir que o meu banco no Brasil a liberasse. Enquanto isso, eu pagava o que era possível com o cartão de crédito e o Doug me dava a parte dele em dinheiro. Assim, eu conseguia juntar os baths que eu precisava para sobreviver e ele conseguia economizar para reverter o que havia perdido. Naquela mesma noite, sentamos em um restaurante lindo na beira do rio, comemos fried rice — arroz frito com legumes —, que veio cuidadosamente servido em um abacaxi cortado pela metade, e bebemos Chang, uma das cervejas locais, para comemorar a vida e suas reviravoltas. Mal sabia que essa seria uma das poucas vezes, nos próximos meses, na qual comeria em um restaurante como esse. Eu e o Doug tínhamos tudo para fazer um miojo no hotel e beber água, mas resolvemos nos conectar com a abundância e festejar o que tínhamos ao invés de chorar as perdas. Conversamos de tudo, mas o assunto principal era a troca de experiências sobre nossas viagens. A conversa ficou ainda mais interessante quando descobri que ele havia passado um ano e meio na Austrália, o meu país de coração, onde também já morei por algum tempo. Estávamos muito felizes de ter encontrado um ao outro no meio a um momento tão delicado. A chance de você se tornar melhor amigo de alguém enquanto mochila por algum país é maior do que com qualquer pessoa que more no seu quarteirão. Existe uma conexão quase que imediata de quem está na estrada, ainda mais de quem se encontra em uma delegacia. No dia seguinte, consegui ir até a embaixada para entrar com o pedido de um novo passaporte. Eu não esperava que teria de pagar pelas fotos #doforlove 9
e, como meu dinheiro estava contado, eu percebi que não teria dinheiro suficiente para voltar para o hotel. Contei cada moeda com a esperança de achar uma a mais, mas somei 80 baths e o táxi na vinda tinha me custado 120. Normalmente, eu já teria pego um ônibus cheio de locais e me aventurado pela cidade, mas acho que ainda estava um pouco em choque e preferi pegar o táxi mesmo. Vou de táxi até o taxímetro dar 80, depois eu desço e vou andando. Quando o taxímetro mostrou 70 baths, eu pedi para que o motorista parasse. Ele não falava nada de inglês e não entendia o que eu falava: afinal, eu havia mostrado o endereço de onde eu precisava ir e ele, como um bom taxista, tinha a missão de me deixar lá. Fui ficando apreensiva, visto que, em breve, o taxímetro marcaria 80. Comecei a fazer gestos. Peguei a minha bolsa, coloquei a mão dentro e demonstrei que alguém tinha pego minha carteira. Fiz um não seguido daquele roçar de dedos do dedão e do indicador, mas eu acho que em tailandês isso não significa dinheiro, porque ele continuava com cara de desconfiado olhando para mim. Tive uma ideia. Peguei todas as moedas que eu tinha, mostrei para ele e fiz gestos como quem diz “isso é tudo que eu tenho”. O taxímetro já marcava 90. Ele ignorou aquela branquela esquisita que não parava de fazer sinais inteligíveis e continuou viagem. Eu desisti e pensei que com sorte eu poderia pedir emprestado na recepção do hotel ou algo do tipo, já que eu sabia que o Doug não estaria lá. Chegando próximo ao hotel, ele parou o táxi, o taxímetro mostrava 130 e eu, muito sem jeito, mostrei novamente todas as moedas, com vergonha em não ter o valor total da corrida e meio desanimada com as minhas tentativas de mímica frustradas. Para a minha surpresa, ele pegou todas as moedas e me devolveu uma de 25, sorrindo, fazendo um gesto de que estava tudo resolvido. Eu estava incrédula. Diferentemente daquela primeira vez em que os comerciantes me ajudaram, agora eu já sabia falar “Obrigada” em tailandês e repeti umas dez vezes “Kokunka” (o que está longe de ser a pronúncia correta), e me despedi do meu taxista sorridente. Eu estava em êxtase pelo que tinha acabado de acontecer e muito agradecida por todas as coisas positivas que tinham se sucedido do que, inicialmente, parecia uma tragédia. Naquele mesmo dia, eu reparei na tatuagem do Doug que dizia “See the invisible, believe the incredible, achieve the 10 #doforlove
impossible”. A sensação era de que eu havia chegado em Bangkok há muito mais tempo do que somente esses dois dias e era inacreditável tudo o que já havia acontecido. Por um momento, me lembrei daquela garota cheia de sonhos e medos que, apenas quatro meses antes do início dessa viagem, se sentia perdida no meio no qual estava inserida e eu seria sempre grata a ela, pela coragem de partir e de se permitir viver a sua (nossa) verdade.
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2. Optando por ficar, estaria apenas vivendo mais do mesmo
Era metade de fevereiro de 2013, o Carnaval tinha chegado ao fim, o que anunciava o final da temporada de verão em Balneário Camboriú, conhecida por muitos como um pequeno paraíso na terra e rodeada de praias belíssimas, festas de qualidade e pessoas bonitas. Essa pequena cidade litorânea no estado de Santa Catarina tem espaço para todos: é possível surfar pela manhã e ir ao hip hop descontraído à noite ou, para os mais vaidosos, sair de lancha durante o dia para, depois, gastar rios de dinheiro em alguma balada. Além do mais, é uma cidade universitária, motivo pelo qual eu havia morado ali por cinco anos com o objetivo de me divertir muito, ao mesmo tempo em que me formava em Turismo e Hotelaria. Eu estava constantemente indo e voltando, o que tornava a minha localização geográfica sempre uma incógnita. No ano anterior eu havia me arriscado em um novo emprego na cidade de Maringá, onde trabalhei como apresentadora de um pequeno programa de TV sobre viagens, fiz viagens únicas pelo Brasil e pelo mundo, mas a minha incapacidade em fingir ser algo que eu não sou me fez desistir do falso glamour daquele emprego e me demiti. A temporada do verão 2012/2013 estava prestes a começar, então embarquei com todos os meus pertences em um ônibus que me traria de volta a Balneário Camboriú onde poderia trabalhar com eventos e divulgação de marcas. Assim que cheguei na cidade, consegui fechar um contrato muito bom com uma marca de champagne e passei a temporada toda frequentando lugares super badalados, com a única missão de conhecer pessoas, sorrir e divulgar a marca. Eu precisava juntar uma grana e nem eu sabia para quê. Trabalhei a temporada toda com a Juliana, que, em pouco tempo, se tornou minha parceira para todas as horas. 12 #doforlove
A Ju parece uma sereia, com a pele branquinha, o cabelo perfeitamente ondulado e o olho azul claro. Por onde ela passava, chamava a atenção, ainda mais quando íamos trabalhar de Fusca prateado – um fusca turbinado que meu pai tinha modificado, mas que estava parado em Curitiba. Como eu não tinha carro, ele desapegou dele e deixou que o usássemos durante a temporada. Com muitas risadas e música alta, eu e a Ju enfrentamos os dias quentes de verão nos locomovendo de um evento para o outro no querido Fuscão. Outros trabalhos de divulgação foram surgindo e eu acabava emendando um no outro para poder fazer uma grana extra. Como sempre, eu acabei trabalhando muito e, ao final da temporada, eu estava exausta. Nesse momento, eu me encontrava cansada fisicamente e psicologicamente. Por mais divertido que fosse, eu me sentia perdida naquele meio e, mais do que isso, eu estava me cansando das pessoas que eu encontrava, porque elas geralmente vinham acompanhadas de conversas previsíveis e vidas com roteiros pré-definidos. Eu não as julgava, mas tinha medo de me tornar uma delas. Foi em Balneário Camboriú que eu tive a oportunidade de ter acesso a muitas coisas que a maioria das pessoas passariam uma vida toda tentando alcançar. E foi ali também que rapidamente eu percebi que aquela “felicidade comprada” não significava nada. Eu já havia cortado meus laços com a cidade alguns anos antes, quando meu pai estava precisando de dinheiro e concordamos que ele podia vender o apartamento onde eu morava e o meu carro, o Monstrinho, assim apelidado por ser uma 4x4 antiga que aguentava tudo. O que eu fiz? Fui pra Austrália com o desejo de fazer um Master em jornalismo e nunca mais voltar. Nunca diga nunca. Acabei voltando por causa do tal trabalho de apresentadora em Maringá. E, entre idas e vindas, ali estava eu novamente. Agora que meu contrato havia acabado, eu não queria recomeçar nenhum projeto naquela cidade. Não me entenda mal: o problema não era a cidade em si, mas o fato de que eu, optando por ficar, estaria apenas vivendo mais do mesmo. Eu não me via mais ali. O meu ciclo naquele lugar tinha chegado ao fim. Esvaziei a kitnet que dividia com meu primo, coloquei o pouco que eu tinha no carro e parti. Eu teria tempo para refletir melhor enquanto dirigia.
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3. Segue seu coração
Eu nunca gostei dessa necessidade que as pessoas têm de definir tudo. Você precisa ter uma resposta específica para sua profissão, religião, de onde veio, aonde mora, status de relacionamento e por aí vai. Isso tudo porque existe a necessidade de se colocar cada pessoa em uma caixinha identificada, tornando o processo de autoconhecimento ainda mais intrincado. No entanto estamos falando de pessoas e não de objetos inanimados nos quais colam e descolam etiquetas de identificação como os convém. Estamos todos em constante transformação (ou, pelo menos, deveríamos). Todos querem respostas, certezas e conceitos que, no fundo, são inúteis e rasos. Nesse momento, eu sentia essa cobrança, que, na verdade, não vinha especificamente de ninguém que eu pudesse nomear: vinha do todo, da sociedade, da televisão, do Instagram, da revista, do vizinho, do ex-colega de escola que, sem querer, você acaba trombando na rua. Mas ela vinha ainda mais forte de mim mesma. Eu me cobrava pelo fato de não ter resposta a praticamente nenhuma dessas perguntas. Não, eu não tinha uma profissão. A minha religião? Eu acredito no bem. Nem me pergunte onde eu moro, porque isso é relativo. A minha casa é onde eu estou agora. Status de relacionamento? Recebendo mensagens no celular de um moreno lindo que conheci no carnaval e que mora a milhas de distância. Por que eu tinha que ser tão complicada? Durante a minha vida inteira, eu vi adultos bem vestidos se encontrando e educadamente trocando essas perguntas e respostas de forma concisa. Falando da carreira, dos bens materiais adquiridos, dos filhos e da decoração da casa de praia. E, agora que tinha chegado a minha vez, eu estava assustada por não ter nem sequer a vontade de ter essas respostas. Eu nasci no interior do Rio Grande do Sul no dia 4 de novembro de 1988. As minhas maiores lembranças de infância envolvem uma bola de futebol, um rio na casa da minha avó materna e uma energia incalculável para 14 #doforlove
fazer bagunça. Meus pais dizem que eu parecia um menino e, desconfio que depois que eu nasci, resolveram que apenas uma criança já daria trabalho o suficiente. Foi assim que eu me tornei filha única. Eles eram recém-casados e meu pai, engenheiro eletricista recém-formado. Esses fatores fizeram com que nos mudássemos com muita frequência toda vez que surgia uma oportunidade melhor de trabalho. Lembro-me de ajudar minha mãe a encaixotar o pouco de pertences que tínhamos e entrar no carro, sedenta por mais uma aventura. Eu sabia como ninguém embrulhar copos com jornal e identificar caixas escrevendo frágil com um canetão. Aos 10 anos, eu já havia morado em dez casas e em seis cidades diferentes no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina. Ao todo, estudaria em mais de oito escolas, muitas vezes começando o ano letivo em uma e terminando em outra. Aos 12 anos, fizemos a maior mudança de todas. Meu pai havia conseguido um trabalho muito bom em Curitiba, capital do Paraná, e foi para lá que nos mudamos. Quanto mais longa a viagem de carro, mais eu gostava, pois lia meus gibis, escutava música e ficava olhando pela janela. Até hoje, as longas viagens me alegram. Lembro-me do meu deslumbramento ao chegar naquela cidade tão diferente daquele interior que eu estava acostumada. Como a viagem era longa e seria muito custoso fazer uma mudança, levamos apenas o que coube no carro. Por isso, passamos alguns dias muito divertidos dormindo em um colchão no chão e usando a tábua de passar roupa como a nossa mesa de café da manhã, até que, aos poucos, fomos comprando o que era necessário. Quanto mais tínhamos, menor era a diversão e o uso da nossa criatividade. Apesar de gostar mesmo de pescar no rio e me sujar no banhado, eu me acostumei facilmente com a piscina que tinha no prédio. Era a primeira a chegar e a última a sair. Eu sempre tive paixão pela água, especialmente pelo mar. Nas férias, quando não íamos para a casa da minha avó materna no interior, íamos para a casa de praia dos meus avós paternos em Tramandaí. O mar me fascinava. Gostava quando meu pai me colocava na garupa dele e me levava até o fundo. Eu ficava de pé nos seus ombros, ele me impulsionava e eu voava lá de cima, naquela água salgada. Repetia isso inúmeras vezes até ele cansar e me convencer a pegar a prancha de isopor quebrada ao meio. Então, eu ia brincar no raso. Meus pais sempre me incentivaram a fazer o que eu gostava e o maior #doforlove 15
conselho que eu recebi era “Segue seu coração”. Me criaram de forma muito independente e sempre falaram que filhos são criados para o mundo. Só não imaginavam que eu levaria a expressão tão ao pé da letra. Para resumir a minha vida cigana, já no primeiro ano da faculdade, eu fui trabalhar de salva-vidas, camareira e recolhedora de pratos nos EUA, porque queria melhorar o meu “to be”. Cheguei a trabalhar 90 horas por semana e contrariei a minha família com a decisão de trancar o meu curso na faculdade, para ficar sete meses ao todo. Fiz isso para realizar o sonho do meu primeiro mochilão sozinha no Hawaii e na Califórnia e, também, para pagar os custos da viagem de volta para o meu pai. Sobrevoar sozinha o Hawaii aos 18 anos foi um dos momentos que definiriam a minha vida como viajante. Da janela, eu via um tom de azul que até então só existia nas revistas e nos meus sonhos. Jamais imaginei que realizaria esse sonho tão cedo na minha vida. E foi ali, enquanto via as ilhas do Hawaii, que eu entendi que tudo o que eu quisesse realizar na vida seria possível. Movida por esse sentimento, algum tempo depois, eu morei com uma família no Peru, fiz meu estágio final da faculdade na Nova Zelândia e morei na Austrália. Vira e mexe, quando alguém me pergunta de onde eu sou, eu respondo com um sorriso no rosto: “De lugar nenhum. E você?”. Os mais bem-humorados levam na brincadeira, mesmo que sem entender. Outros, acham até ofensivo. Eu não falo isso para ofender ninguém. Na verdade, essa é a resposta mais sincera que eu posso dar, porque é exatamente assim que eu me sinto. Eu não criei raízes geográficas em lugar nenhum, as minhas raízes estão apenas naquela garota baixinha, loirinha e magrela que, quando minha mãe brigava porque estava suja ou porque deveria ir para dentro de casa, pedia do fundo do coração: “Mãe, deixa eu ser feliz”. Essa garotinha sempre precisou de muito pouco para ser feliz e é ela que eu carrego comigo como referência de quem eu sou e de onde eu vim. Eu acabara de estacionar o carro na garagem do prédio dos meus pais em Curitiba. Havia percorrido os 230 km de viagem em pouco mais de 2 horas. A estrada estava vazia e poder pisar no fundo do acelerador 16 #doforlove
enquanto dirigia anestesiava os meus pensamentos. Eu pensava muito e me questionava ainda mais. Atualmente, meus pais moram em Brasília e, para a minha sorte, o apartamento deles estava desocupado e eu tinha as chaves. O carro estava abarrotado com a minha mudança. Não que eu tivesse muita coisa, mas porque eu tomei essa decisão de forma precipitada. No calor do momento, enfiei tudo como eu pude no carro, que pedi emprestado para o meu primo, já que eu não arriscaria colocar o Fuscão na estrada. Respirei fundo, analisei a situação e concluí que era positiva. Afinal, toda a minha parafernália cabia em um carro pequeno e eu desfrutava da liberdade de ir para onde eu bem entendesse. E se tinha uma coisa que eu valorizava era a liberdade. Subi com toda a minha tralha pelas escadas até o quarto e último andar. Por ser um prédio antigo, não tem elevador. Larguei tudo na sala, retomei o fôlego e andei lentamente pelo apartamento, curtindo a sensação de me sentir em harmonia ali, naquele lugar em que morei por tantos anos com meus pais. Ali, eu estava segura para ser quem eu era, sem os olhos do mundo a me questionar.
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4. Moreno, esse terreno é perigoso
Eu estava com uma viagem marcada para visitar uma amiga no Rio de Janeiro. Essa amiga era a Thati, eu a conheci quando morei na Austrália e o seu jeito descolada e de espírito viajante fez com que nossa amizade perdurasse. Combinamos que, assim que o meu trabalho de temporada acabasse, eu voaria para conhecer a tal da Cidade Maravilhosa. Sim, apesar de já ter viajado para diversos lugares, vergonhosamente eu ainda não conhecia o Rio. Bom, lembra do meu status de relacionamento? O tal moreno das mensagens era do Rio também e achei que seria uma boa deixa para encontrá-lo, aproveitando que a paixão da nossa semana juntos em Balneário ainda estava acesa. Eu sabia que as chances desse romance subir a serra eram baixíssimas e foi justamente por isso que eu apostei nele. Se tinha uma coisa na qual eu era boa, era isto: me envolver com muita intensidade, mas sem me apegar. Gostava de histórias intensas e curtas. Se alguém fosse visivelmente um candidato perfeito a futuro marido, adivinha? Eu corria fora. Caso contrário, eu ficava só para brincar com o fogo e ver ele apagar. Pode soar um pouco malvado da minha parte, e talvez até fosse, mas esse lance de se envolver não era compatível com meus sonhos de viagens. “Oi, Lele. Quando vou te ver de novo?”. – As letras brilharam em forma de uma pergunta despretensiosa na tela do meu celular velho. “Sexta-feira, às 8 horas da noite, estou desembarcando no Rio” – Confesso que eu gostava de causar impacto. Eu, que era acostumada a chegar sozinha nos lugares para os quais eu viajava, bem que gostei de ver um moreno alto, de barba malfeita, bem-vestido e com um sorriso lindo no rosto me aguardando assim que eu cheguei no meio fio da área de desembarque. Ele me beijou, colocou minha mala 18 #doforlove
no porta-malas e entramos no carro. Me deu um alivio quando vi que o carro dele era como o de qualquer ser humano normal. Eu não me sentia confortável em carros luxuosos: primeiro, porque sempre tem botões demais e eu não sei o que fazer com eles, e segundo, sei lá, pra que um ser humano necessita de algo tão luxuoso para se locomover dentro de uma cidade caótica? Confesso que estava um pouco nervosa, afinal, eu tinha conhecido ele em uma das festas de Balneário Camboriú três semanas atrás e, agora, estava sentada no carro dele, em outra cidade completamente diferente, que, diga-se de passagem, não era muito conhecida pela sua segurança. Eu e essa minha mania de confiar nas pessoas. Mas deixa eu explicar porque eu resolvi confiar no moreno. Naquele dia em que nos conhecemos, eu estava trabalhando na organização da entrada VIP da balada. Meu turno acabava às 3 horas da manhã, quando, supostamente, todos já deveriam ter entrado. Eu tenho uma grande amiga que se chama Thata (que, assim como a Thati, eu conheci na Austrália) e ela tinha vindo de São Paulo para passar o carnaval comigo. Na hora combinada, ela apareceu para eu liberar a entrada dela e para curtirmos o que restava da festa. Estávamos conversando com um grupo de garotos que eu conhecia, quando, de repente, eu vejo uma pessoa mais ao fundo fazendo gestos estranhos. Olhei para os lados, desconfiando de que não era comigo. Ele fazia gestos como quem diz: “Para de falar com ele e vem aqui”. No mínimo, intrigante. Analisei aquela cena estranha já com uma risada de canto e perguntei pra Thata: “Ele tá falando comigo?” E minha companheira de festas, que já estava alguns copos de vodca mais animada que eu, concluiu rapidamente: “Claro, sua boba! E ele é um gato”. Concluí que ele deveria ser mudo e segui a festa. A conversa continuou até que resolvemos dar uma volta. Numa dessas voltas, a minha amiga e companheira descolou um gringo engraçadíssimo para treinar o inglês dela: ela, interessada no inglês, e ele, nela. Estávamos caminhando juntos e o gringo tentava puxar a Thata pra longe e, nesse empurra-empurra, eu dou de cara com o moreno gato dos sinais. Comecei a rir imediatamente. Vendo uma loirinha rir para ele, o moreno veio reto em minha direção. Para completar a cena, minha amiga diz: “Beija, ele é gatinho”, e o gringo #doforlove 19
a levou para longe. Eu fiquei ali, sozinha, olhando para o moreno e muito, mas muito sem graça. “Oi, quer tomar um drink comigo no bar?”. – Foi assim que eu descobri que ele não era mudo. Assim nos conhecemos. Ele me pagou uma Smirnoff Ice e conversamos por quase duas horas no bar. Ele me contou que havia voltado recentemente de um período de três anos morando em Nova York. “Eu era treinador de futebol de meninas de 9 a 12 anos. Adoro trabalhar com crianças, foi uma experiência muito boa”. Boom!! Percebi que ele estava querendo me conquistar com esse papo mole de eu adoro criancinhas. “Na verdade, eu tenho planos de voltar pra Nova York. Já que você gosta de viajar, você poderia ir comigo pra lá, né?” Isso já era golpe baixo demais. Ele era do tipo jogador nato, daquele que não se importa de conquistar. Sabendo disso, resolvi entrar no jogo. “Claro, eu não conheço Nova York. Quando vamos?”. Para minha surpresa, ele se aproximou, olhando no fundo do meu olho e me beijou. Eu odeio alguém que joga esse jogo de romance melhor do que eu. E vi, ali, um competidor a minha altura. Ele era de fora e estava na cidade para curtir. Podia ver na maneira como os amigos dele olharam para mim, como quem analisa se eu valia 1 ou 2 pontos na contagem daquela noite. Eu nunca fui muito menininha e por isso sempre convivi muito bem com o sexo masculino. Acho eles mais práticos e menos dramáticos. Eu havia passado vários anos da minha faculdade curtindo e sabia muito bem como era bom estar com minhas amigas sem se importar com mais nada. Mas agora eu estava em um outro momento e resolvi respeitar o momento dele. Mas, para minha surpresa, recebi mensagem do moreno todos os dias. Não que eu ache que tenha sido a única, mas pelo menos deveria estar tendo uma prioridade alta na lista. Ele só tinha mais uma semana na cidade e acabamos nos encontrando todos os dias. Passamos o nosso último dia juntos e, à noite, ele me chamou para uma festa com os amigos dele, que seria a festa de despedida, pois, no outro dia, eles embarcariam de volta para o Rio. Eu agradeci o convite, dei uma carona pra ele e o deixei na entrada da festa. 20 #doforlove