Bandeira Dois
Bandeira Dois
Luiz Maritan
Copyright © Luiz Maritan Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma e por qualquer meio mecânico ou eletrônico, inclusive através de fotocópias e de gravações, sem a expressa permissão do autor. Todo o conteúdo desta obra é de inteira responsabilidade do autor. Editora Schoba Rua Melvin Jones, 223 - Vila Roma - Salto - São Paulo - Brasil CEP 13321-441 Fone/Fax: +55 (11) 4029.0326 | 4021.9545 E-mail: atendimento@editoraschoba.com.br www.editoraschoba.com.br
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ M296b Maritan, Luiz, 1977Bandeira dois / Luiz Maritan. - Salto, SP : Schoba, 2013. 200 p. : 23 cm ISBN 978-85-8013-216-8 1. Romance brasileiro. I. Título. 13-0152. 08.01.13 10.01.13 041995
CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3
Agradecimentos
A minha mãe Vania e a minha avó Adélia por me permitirem ser quem eu sou. Ao amigo Evaldo pela paciência de ler isso antes e pelas dicas para fazer esta história melhor. Aos amigos Rafael, Serjão e Fernando pelo apoio nas horas de dúvidas. Ao farol que ilumina as noites e indica o caminho a seguir. A todos que acreditam no meu talento para contar histórias.
CapĂtulo I
Não tinha nem dado tempo de a notícia sair nos jornais e não se falava em outra coisa na cidade. Todo mundo queria saber mais sobre como havia morrido o João Lopes, o Janjão, taxista antigo na praça. As versões eram variadas, como todas as histórias contadas de boca em boca. A polícia mantinha sigilo sobre o caso, o que aumentava o poder de especulação do povo, e nós, que vivemos do volante, não escapávamos de jeito nenhum. Pelo que consegui entender das histórias, Janjão pegou uma corrida para levar uma senhora de idade e uma criança para o bairro da Divisa. Era depois da meia-noite e elas haviam acabado de sair da rodoviária da cidade. As duas não seriam ameaça para ele, que ganhou o apelido no aumentativo por ter quase dois metros de altura e quase isso de largura na cintura.
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Não se soube mais do Janjão até que o corpo foi achado, lá pelas cinco da manhã, na estrada do Pôr do Sol, que liga o centro à divisa, com um tiro na cabeça, bem entre os olhos. Levaram todo o dinheiro que ele tinha, mas deixaram os documentos e o carro. Seria só mais um assassinato de taxista, não fosse um detalhe bizarro. O assassino decepou a mão direita do Janjão, que foi achada no porta-luvas do carro. Isso não havia sido oficialmente confirmado ainda, mas corria à boca pequena pela cidade inteira. O relógio estava no pulso cortado. Ouvi toda essa história pela manhã e, à tarde, quando estava terminando uma corrida no bairro Nossa Senhora das Dores, meu celular tocou. — Getúlio, preciso te falar — disse a voz do outro lado da linha. Pedi um momento ao Silas, outro taxista antigo da cidade. Cobrei o cliente, zerei o taxímetro e voltei ao telefone. — Pode falar, Silas. Já estou sem ninguém no carro. — Você está sabendo do Janjão, né? Claro, todo mundo está sabendo. O negócio é o seguinte. O pessoal do meu ponto, lá no Largo do Rosário, lá onde ele também tinha o carro, marcou uma reunião para esta noite. Todo mundo está assustado, querendo saber o que fazer, o que aconteceu. Eu gostaria que você também estivesse lá. Afinal de contas, você tem amizade com muitos polícias. Poderia dar uma palavra a eles. — Ah, Silas, eu até vou. Mas não sei no que posso ajudar. Isso não é muito a minha praia, você sabe. 14
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— Seria muito importante para nós se você fosse até lá, Getúlio. De verdade. Peço como um velho amigo. — Tudo bem. Vou por consideração a você, que foi quem me abriu as portas para trabalhar como taxista. Onde vai ser? — Na lanchonete do Natanael, às dez da noite. Ele vai deixar aquela sala dos fundos para a gente. Muito obrigado mesmo. — Conte comigo. Grande abraço. Silas era um grande amigo do meu pai, que acabou virando meu também. Foi ele quem conseguiu, junto ao pessoal da Prefeitura, a minha legalização para dirigir na praça. Eu havia trabalhado dez anos em empresa de ônibus e não aguentava mais. Juntei dinheiro, comprei um carro e consegui uma vaga no ponto da Matriz. Era o segundo melhor da cidade, só perdia para o do Largo do Rosário, que ficava perto da estação de trem e da rodoviária. É lá que o Silas tem o seu carro e até ontem também trabalhava o Janjão. Eu não podia deixar de atender a um pedido dele e até desconfiava o motivo do convite. Já na época em que eu trabalhava com ônibus, conheci muitas pessoas ligadas à polícia e sempre conversei bastante com todos. Aprendi muita coisa sobre técnica de investigação e, no tempo de vacas magras, usei isso para trabalhar como uma espécie de detetive particular. Solucionei vários casos conjugais dessa forma e garanti uns trocados bons para me manter estabilizado. Devia ser alguma coisa por aí que o Silas queria.
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O enterro do Janjão foi dos mais concorridos dos últimos tempos. Pessoas de todas as partes da cidade passaram pelo velório e o cortejo teve uma carreata de táxis. Praticamente ninguém trabalhou na praça naquele dia. Eu cheguei no final do velório, quando o padre já estava encomendando o corpo. Sempre achei velórios muito desagradáveis. Principalmente para o morto, que está lá, morto, no meio da sala, com todo mundo olhando para a cara dele, muita gente chorando... Este caso era mais desagradável ainda. O caixão teve de ser feito sob medida para o corpo avantajado do defunto e precisou de reforço para ser carregado. Eu peguei uma alça e também ajudei. No clima de consternação, as palavras que ficaram foram as do Genival, que era vizinho do morto e trabalhava com o táxi do Janjão durante as manhãs. — Vai, meu amigo. Deixa este mundo imperfeito e vai em busca dos faróis da eternidade. Aqui, você sempre conduziu as pessoas. Agora, vai ser um passageiro de Deus — discursou, ao jogar um punhado de terra sobre o caixão. E teve gente que chorou ainda mais.
O clima na reunião dos taxistas, à noite, era uma extensão do enterro do Janjão. Eram uns 20 homens, a maioria 16
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senhores de idade avançada que não sabiam ao certo como se portar diante de tal situação. Assaltos e o clima de violência até já eram considerados normais na cidade, mas nunca haviam visto coisa igual. Ainda mais com o requinte de crueldade de que tinham ficado sabendo. — Companheiros, agora é momento de mantermos a calma, a serenidade e de estarmos juntos. Não é hora de desespero ou de atitudes extremas — discursava o Silas, no canto do salão onde havia sido feito um círculo com as cadeiras. Mas era quase um consenso entre os participantes que os táxis não deveriam mais trabalhar depois das dez da noite. — E eu só vou rodar armado. Tenho um 38 em casa e, se vagabundo tentar algo comigo, eu solto bala — esbravejava, sob aplausos, o Dicão, crioulo de língua presa e corpulento, que também trabalhava no Largo do Rosário. — Calma gente, esse não é o caminho. A gente só vai trazer mais violência para o nosso meio. Não é por aí — repetia o Silas. Fiquei encostado na parede e fora do círculo das cadeiras. Era óbvio que armar os taxistas não era o caminho e que não circular à noite representaria uma queda no faturamento. Mas vai explicar isso racionalmente para alguém que acabou de perder um companheiro de trabalho. E daquela forma, ainda por cima. Depois de idas e vindas, o Silas me pediu que chegasse mais perto do grupo que discutia. — Pedi ao Getúlio para fazer parte deste nosso encontro para lhe fazer um apelo em meu nome e, acredito, em nome 17
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de todos os companheiros — começou o Silas. Senti um frio na espinha, o que significava que não viria boa coisa quando acontecia. — Getúlio, quero pedir a você que nos ajude a entender o que aconteceu com o Janjão. Quer dizer, não é normal alguém morrer desse jeito. E ainda mais ter a mão cortada assim. Nenhum cristão merece isso, não senhor. — Peraí, Silas, você quer que eu faça o que exatamente? — perguntei, já temendo pela resposta do amigo. — Queremos que você faça uma investigação. Você conhece os caminhos, tem experiência em investigar e é um de nós. Não confiamos nessa polícia daqui. Pelo menos, não achamos que eles vão se empenhar em descobrir o que aconteceu de verdade. — Peraí, você quer que eu investigue um crime? Não, não posso. — Mas você tem experiência nisso. — Que experiência, Silas? Resolvi alguns casos de chifres por aí. Adultério, só isso. Homicídio ou latrocínio, sabese lá o que diabos aconteceu com o Janjão, é outra coisa. — Então, Getúlio. Quem consegue achar e flagrar mulher pulando a cerca e tem a sua capacidade pode nos ajudar sim. Só queremos entender. — Ajudaremos você com o que for, Getúlio. É só você pedir, colocar preço — emendou o Dicão, aquele do calibre 38. dar.
— Não é uma questão de dinheiro, gente — tentei remen-
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— Por favor, companheiro. Estamos pedindo. Somos pais de família, somos como você. Mais do que isso, estamos contando com sua ajuda. Respirei fundo. O suor estava brotando da minha testa e já tinha feito duas rodas na camisa, embaixo dos meus braços. — Está bem, está bem. Eu ajudo. Faço essa investigação. Eu não podia negar isso ao Silas, por mais que alguma coisa lá no fundo da minha cabeça dissesse que eu deveria ter saído correndo daquela sala quando tive a chance.
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CapĂtulo II
Quase não consegui dormir naquela noite. Fiquei ruminando as informações sobre o caso e rolando na cama, tentando formar conceitos sobre causas e circunstâncias da morte. Depois da reunião, conversei com todos os taxistas do Largo do Rosário. Nenhum deles tinha nada importante a dizer sobre desavenças ou ameaças recebidas pelo Janjão. Só alguns detalhes desconexos uns dos outros, um quebra-cabeça com muitas peças pequenas e com muitas outras faltando, perdidas por aí. O morto era querido pelos companheiros pelo espírito alegre e, ao mesmo tempo, combativo em nome da classe. Sempre que existia algum assunto de interesse dos taxistas, lá estava o Janjão no meio. — Como alguém não poderia gostar de uma pessoa como ele? Ajudava todo mundo. Cansei de vê-lo fazendo corridas 23
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de graça para pessoas que precisam. Caridade mesmo. Essa fatalidade foi uma desgraceira. Uma desgraceira mesmo — testemunhou seu Valdir, o mais velho entre os profissionais do volante de nossa cidade. A noite mal dormida me custou olheiras e o dia começou com a leitura do jornal da cidade. A reportagem trazia as informações que nós já sabíamos sobre como o Janjão foi encontrado. O delegado, doutor Boaventura, prometeu apurar a fundo o ocorrido, mas que, apesar de prematuro qualquer juízo, tudo indicava se tratar de um latrocínio. Até pensei em comprar esta versão para facilitar o trabalho de investigação, mas alguns detalhes não deixavam. Por que diabos um cabra que mata para roubar um taxista deixaria o carro e o relógio da vítima no local do crime? E por que a mão decepada? Não, essa de um latrocínio puro e simples não convencia. No mais, o jornal trazia declarações revoltadas de várias personalidades e um editorial contundente pedindo mais segurança para a cidade. Passei a mão no telefone e liguei para o sargento Soares. Boa praça e bem informado sobre tudo o que acontecia na cidade, ele era meu amigo desde minha época de motorista de ônibus. Eu fazia a linha que passava em frente à casa do sargento, que naquela época ainda era soldado. Como ele fazia um bico de segurança à noite para completar a renda da família, tinha dificuldade de acordar pela manhã. Por camaradagem, eu buzinava e esperava ele sair de casa, quando o policial não estava no seu ponto. Construímos assim uma relação de amizade e confiança mútua.
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— Bom dia, compadre. No que posso ajudar logo cedo? — me atendeu o Soares após uns dois pares de toques no celular. — Ô, meu amigo. Estou precisando de sua ajuda mesmo. Tem um minuto? — Claro que sim. Estou aguardando a ordem do dia ainda. O capitão pediu para todo mundo esperar antes de sair hoje. Deve ser por causa do Janjão. Aliás, que absurdo o ocorrido, não? — Pois é, meu caro. É exatamente sobre isso que eu queria falar contigo. O que você está achando de tudo isso? — Hum. Acho tudo muito estranho. Mas quem fez isso sabia o que estava fazendo. Não é trabalho de curioso, posso te garantir. — Como assim, Soares? tá?
— Olha, o que eu vou dizer é uma conversa entre amigos, — Tudo bem. Você me conhece bem.
— Então... Eu estava na equipe que encontrou o Janjão, lá na estrada do Pôr do Sol. Fomos até lá depois que o Copom recebeu uma denúncia anônima. Uma ligação feita de um orelhão. Levantamos e ele fica do outro lado da cidade. Quando chegamos ao local, o carro estava trancado e com a chave no contato. Devia ter acabado o combustível ou o motor morreu por algum motivo. — Sei... Estranho, hein? — Pois é, foi o que pensei na hora também. Consegui-
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mos abrir a porta e encontramos o que todo mundo já sabe. — E o Janjão foi morto naquele lugar mesmo ou lá só foi a desova? — Olha, ao que tudo indica, foi lá mesmo. Não tem nenhum fato que indique deslocamento do corpo de um lugar para o outro. E, vamos e venhamos, que Deus me perdoe, mas o Janjão era bem difícil de se carregar, não é? — e o Soares soltou um riso sem graça. — Se é. E qual o calibre do tiro? — Ponto 40, pistola. E foi um tiro certeiro, de quem sabe o que fazer com um alvo. Achamos a bala na espuma do encosto da cabeça. Trajetória perfeita. Agora, aqui tem mais uma coisa estranha. O único lugar do carro que tinha sangue era no encosto do banco. O local da cabeça e escorrido para o começo das costas do encosto. Nada mais. — Isso quer dizer que a mão foi cortada depois de um tempo. Ou seja, quem matou ainda esperou o sangue parar totalmente para decepar e colocar a mão do Janjão no porta-luvas — analisei e o sargento concordou com um monossílabo. cio.
— É isso mesmo — completou, socorrendo o meu silên-
— Muitas estranhezas, hein? Interessante isso. Muito interessante. — Mas, que mal lhe pergunte, por que tamanho interesse do amigo nessa história toda? — De amigo para amigo? — eu também tinha de ser precavido.
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— Claro. Você sabe bem. — Os taxistas me pediram para fazer uma investigação paralela. Eu não tinha como dizer não a eles. — Sei, sei... — respondeu o Soares. — Ainda mais com o doutor Boaventura me saindo com essa história de latrocínio, que não engana ninguém. — Pois é, meu amigo. Isso é verdade. Você está no seu direito. Só peço que tome cuidado onde pisa. Você sabe que têm muitos dos seus que não valem nem pelos tomates de um cão. — Sei bem disso, fique tranquilo — respondi, tentando mostrar segurança nas palavras e lembrando-me de uma velha tia que usava a mesma expressão para sentenciar pessoas que não eram dignas de confiança. — E conte comigo para o que precisar. Estou aqui à disposição do amigo. Só tome cuidado. Você sabe bem que essas histórias estranhas sempre podem aprontar surpresas bizarras.
Depois do almoço, fiz uma corrida básica, daquelas garantidas uma vez por semana por passageiros fiéis. Fui levar dona Ester e dona Emengarda, duas irmãs viúvas, ao médico e esperá-las serem atendidas. Coisa de duas horas de serviço, com taxímetro em hora parada. A conversa com as duas não poderia girar sobre outro assunto. 27
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— O senhor não tem medo de trabalhar na rua depois de tudo isso que aconteceu, seu Getúlio? — me perguntou Ester, a mais velha e falante das irmãs. — Medos, todos temos. Mas temos de enfrentá-los de frente e confiar na proteção de Deus para que todos os dias terminem bem. A primeira parte da minha resposta era a mais pura verdade. Afinal, quem não tem medo hoje em dia? A segunda era para fazer uma média com as duas que, além de clientes antigas, também eram beatas de primeiro nível na igreja matriz. — Não seria melhor colocar uma daquelas proteções à prova de balas? Vi uma dessas numa revista na casa da minha comadre. Dizem que estão usando muito na Capital — ela ainda insistiu no assunto. — Olha, dona Ester, acho que essas coisas só atraem mais coisas ruins, sabe? — Pois é. Eu falo isso para a Ester — interrompeu Emengarda, saindo da habitual pasmaceira. — Mas o seu João era um rapaz tão bom — continuou a irmã mais velha e eu demorei a entender que o “seu João” era o Janjão. — Nós sempre o víamos quando íamos à missa da igreja do Rosário. Muitas vezes, ele nos levava para casa depois da missa. E nesses últimos dias parecia feliz. Precisamos dos serviços dele na semana passada, naquele dia que caiu aquele temporal horrível, lembra-se? Ele estava assobiando e tudo mais. Coitado, que Deus o tenha em bom lugar. — Amém, dona Ester. Agora, que mal pergunte, ele disse 28