A
B A S E
D O
ICEBERG
A BASE DO
ICEBERG F L ÁV I O S A N S O
Copyright © Flávio Sanso Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma e por qualquer meio mecânico ou eletrônico, inclusive através de fotocópias e de gravações, sem a expressa permissão do autor. Todo o conteúdo desta obra é de inteira responsabilidade do autor. Editora Schoba Rua Melvin Jones, 223 - Vila Roma - Salto - São Paulo - Brasil CEP: 13.321-441 Fone/Fax: +55 (11) 4029.0326 E-mail: atendimento@editoraschoba.com.br www.editoraschoba.com.br
CIP-Brasil. Catalogação na Publicação Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ S221b Sanso, Flávio, 1980A base do iceberg / Flávio Sanso. - 1. ed. - Salto, SP : Schoba, 2013. 324 p. ; 21 cm. ISBN 978-85-8013-278-6 1. Romance brasileiro. I. Título. 13-02992 CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3
“A verdade sai do poço sem indagar quem se acha à borda.” Machado de Assis
Um dos discursos mais fulgentes de Donatelo Veras assim já nos advertia: “o povo civilizado é aquele que, para o seu próprio bem, tem a coragem de desconstruir frases feitas. Os fins não justificam os meios”. Em episódios recentes, tem-se visto que o Estado está propenso a adotar repressão violenta a manifestações de cunho reivindicatório. Somam-se várias ocorrências em que estudantes e trabalhadores são espancados e feridos gravemente por forças opressoras. De acordo com a tradição histórica do nosso país, esse tipo de violência institucional, que é exercida sob o pretexto de que é o meio para garantir a ordem pública como fim, não pode ser legitimado, sob pena de retrocedermos aos tempos em que vigoravam o autoritarismo e a intolerância. É chegada a hora em que os ideais conciliatórios de Donatelo Veras sejam postos em prática, no sentido de que conflitos de interesses, que sempre haverá em uma sociedade plural e complexa, sejam solucionados mediante negociação que sinalize entendimento harmonioso. Crônica de autoria de Pedro Alonso, extraída do jornal “A Voz Nacional”.
CapĂtulo 1
É
estranho abrir os olhos após o nada. A existência, que havia sido suspensa, é acionada pela claridade, e então
emergimos do grande vazio em que estávamos mergu-
lhados. Acordar é um ato desesperador. Se não nos damos conta disso, é por causa da reiterada prática de despertar a que estamos
submetidos desde o primeiro choro. Ainda não conheço alguém, além de mim, que nunca tenha sonhado o tipo de sonho que se tem durante o sono.
Naquela manhã ironicamente ensolarada, gostaria de sa-
botar as engrenagens do tempo, de maneira a adiar o início do dia, mas era como permanecer teimosamente estático no caminho de uma gigantesca bola de neve. Os dias vêm e nos
arrastam com eles. Esforcei-me para sentar à beira da cama. Com as mãos sustentando o queixo e os cotovelos pesadamente apoiados sobre as pernas, fixei o olhar nos desenhos triangulares do tapete enquanto minha mente era inundada pela antevisão do que eu experimentaria dali a poucas horas. Lancei-me
a caminhar pela casa executando as tarefas de sempre. Privada. Banho. Blusa. Calça. Cinto. Já estava pronto mesmo sem me dar conta do que fazia. Liguei instintivamente o rádio. Era como se prevalecesse o silêncio, simplesmente porque meus
ouvidos ignoravam qualquer onda sonora que insistisse em vi-
sitá-los. O café da noite anterior, requentado e doce, formava 13
no interior da xícara um espelho negro, que refletia meu rosto repleto de linhas de expressão, especialmente no entorno dos
olhos. Na minha infância, imaginava que quando chegasse aos quarenta anos teria a aparência e a confiança dos fidalgos que habitavam as ilustrações dos meus livros de História. Também
projetava minha imagem na vastidão de um campo verde a brincar com filhos e cães, tudo sob a supervisão angelical da
esposa de meus sonhos. O tempo se encarregou de dissolver as expectativas, e aquele rosto refletido na superfície escura representava duas realidades excludentes entre si: a de um garoto ingênuo ou a de um adulto fracassado.
Catarina ainda dormia um sono pesado. Seu rosto espre-
mia a palma de uma das mãos contra o travesseiro. Apesar de
adormecida, sua fisionomia era tensa e grave, causando-me a sensação de não a reconhecer mais. Houve o tempo em que costumava me despedir beijando-lhe a testa. Até considerei a
ideia de repetir o antigo hábito, mas, ao fim de um segundo passo vacilante, voltei-me com pressa em direção à porta. Respirei fundo e saí.
••• A paisagem urbana é formada por edifícios, veículos e um
conjunto de olhares que quase sempre admitem apenas dois
sentidos de direção: para frente ou para baixo. Era particularmente curioso encarar as pessoas que passavam pela rua, só para saber se alguém se dava conta de que estava sendo obser-
14
vado. Era uma mania que tinha a ver com o estranho prazer
de me arriscar a ser flagrado por olhos que também me encarassem e que se fizessem observadores, assim como os meus. E
de olhar em olhar percorri a cidade, carregando a indisposição
de quem não quer chegar ao destino. Com alguma dose de ilusão infantil, torcia para que ele houvesse desaparecido da noite
para o dia. No entanto, do outro lado da rua, como quem sorri com deboche, o velho prédio de sempre se exibia irritantemente intacto. Sua entrada era uma boca dentro da qual a escadaria era a língua prestes a me capturar.
Subi os degraus com peso nos ombros, sob a vigilância do
relógio posicionado na parede que se erguia à frente de quem chegava ao fim da escada. Mesmo depois de tanto tempo, a po-
sição dos ponteiros ainda está guardada em alguma das gavetas da minha memória: o maior entre o doze e o um; o menor um pouco depois do oito.
Havia apenas duas cadeiras disponíveis, justamente as duas
posicionadas em cada qual das extremidades da temida mesa das reuniões mensais. Considerando que uma delas já estava
reservada por força natural das formalidades, o meu lugar – o que restou – era o pior possível. Jesus se destacava no crucifixo
pendurado no alto de uma das paredes. Marcavam presença Assis, Dona Cora, Guimarães, Clarice, Cecília e Miguel. Não tive
tempo de acompanhar a conversa, que já ia adiantada. Mal ha-
via me acomodado, lá estava Seu Iago e a sua chegada pomposa. Ele, indiferente. Ela, perturbadora. A partir de então, minha 15
sensação de incômodo passava a alcançar níveis opressores. Fez-
se um silêncio amplo que abrigava silêncios diferentes entre si, uns por reverência, outros por adulação, o meu por constrangimento. Sentou-se como se cumprisse um ritual, esboçando um sorriso para todos e para ninguém ao mesmo tempo.
Seu Iago era hábil na arte de se vestir. Ostentava sem-
pre a mais impecável elegância, a qual também se socorria de uma altura incomum de quase dois metros. Sabia como ninguém combinar os tons da gravata, blusa e terno, sem contar
o lenço no bolso e suas variadas cores, sem dúvida um toque
de arremate criativo. Diziam pelos corredores que sua idade já teria, há tempos, ultrapassado os setenta, embora qualquer um pudesse lhe atribuir bem menos de sessenta. Nisso havia o
mérito de fazer a aparência se contrapor ao tempo, muito em virtude da impressão causada pelos cabelos negros, que eram minuciosamente penteados para trás, sem que nenhum fio se desgarrasse da homogênea massa capilar.
Os debates tendiam a uma normalidade que permitiu à
minha respiração se estabilizar. Já me convencia de que tudo
terminaria bem, mas só até o momento em que Seu Iago, depois de inspirar o ar com força e soltá-lo ruidosamente de uma
única vez, virou-se em minha direção com um movimento vagaroso, típico das encenações teatrais, ajeitou os óculos sem me perder de vista e em seguida disparou:
“Sua escrita anda mal. Precisa melhorar. Muito”.
A fala era branda, mas seu efeito foi o de um soco no 16
estômago no momento de defesa despreparada. Tentei argu-
mentar, e o que consegui foi balbuciar palavras desconexas, pronta e impiedosamente interrompidas.
“Não gosto da forma dramática como aborda todos os
assuntos. Soa sempre muito artificial.”
Os piores golpes são aqueles recebidos quando se está
cambaleante:
“Outro aviso. Seus textos, de uma forma ou de outra, sem-
pre encontram um jeito de exaltar ou pelo menos citar a figura de Donatelo Veras. Entenda uma coisa, estou farto de Do-
natelo Veras. Aos diabos com Donatelo Veras! A abordagem
histórica precisa ter limites. Nossa missão requer dinamismo. Não estou aqui para acolher obsessões. De agora em diante não quero mais que suas matérias tratem da Revolução Fraterna”.
Seu Iago tinha a fileira dos dentes de cima levemente avan-
çada, de modo que a pronúncia das letras “f ” e “v” arremessava a esmo gotas de saliva muito pequenas, mas nem por isso com-
pletamente invisíveis. Ao final da última frase, tive a sensação de ter sido devolvido à praia depois do naufrágio. Na vã tentativa de demonstrar firmeza, havia encarado Seu Iago por um tem-
po. Talvez tenha resistido por uns míseros três segundos antes de sucumbir aos olhos fixos e contundentes, que se destacavam acima das lentes finas dos óculos deslocados para perto da ponta
do nariz. Enquanto a autoestima agonizava, meu olhar, como se acompanhasse a queda de uma pluma, foi descendo aos poucos
até pousar na superfície da mesa. Quando então, em acanhada 17
averiguação, levantei a cabeça, vi Clarice esfregando os olhos
como se estivesse escondendo o rosto. “Idiota, idiota”. Eu sei que era isso que pensava de mim. Aliás, nada diferente do que
habitualmente transparecia. Cecília apertava com força os lábios
uns contra os outros e mantinha os braços alinhados ao corpo, demonstrando o desconforto típico dos iniciantes. Tinha rosto
de criança e talvez idade para ser minha filha. Mesmo assim, apresentava desempenho profissional muito mais digno de re-
conhecimento que o meu. Ainda que todos estivessem calados, eu podia ouvir as gargalhadas internas do Guimarães. Dona
Cora, no alto de sua experiência de décadas a serviço de pautas
criativas, lançou-me um olhar de solidariedade. Miguel e Assis se entreolhavam, compartilhando aquela piedade que se lança
aos fracos. Mais acima estava Jesus, que, com o rosto pintado de finas linhas vermelhas, expressava decepção resignada. Seu
pensamento era o único naquela sala que eu não podia adivinhar. ••• Precisava de café. É comum que as frustrações sejam afo-
gadas em álcool. No meu caso, era o café que desempenhava
essa função. Menos por retidão e mais por receio. Reconheço que sempre tive medo de lidar com linhas divisórias, e por isso
sempre imaginei ser assustadora a possibilidade de ultrapassar o limite entre a lucidez e a inconsciência, tal como alguém que hesita caminhar mar adentro, temendo que o próximo passo seja em solo mais profundo.
A padaria Cravo & Canela era a celebração nos dias fe-
18
lizes, o consolo nos dias ruins e o meu refúgio contra a dor. Os banquinhos giratórios se estendiam à frente de um bal-
cão repleto de xícaras. Era um costume irrenunciável sentar no último deles, a ponto de, quando não disponível, esperar até que seu ocupante se retirasse. Sem contar certa necessidade de isolamento, essa predileção também era explicada pelo fato de
que dali se avistava melhor o quadro que reproduzia uma foto
antiga: um casal de crianças vestido conforme a moda da época
brincava em volta de uma mesa de sinuca enquanto um senhor de idade muito avançada se agarrava ao gancho do telefone
dentro da cabine telefônica. Era divertido encontrar um deta-
lhe da foto que eu ainda não havia reparado. O atendimento também era um dos atrativos. Não era preciso pedir. Bastava se aproximar do balcão, em silêncio que fosse, e qualquer uma das
garçonetes, como se obedecesse mecanicamente a um manual de funcionamento, apressava-se em despejar o café fumegante
com a destreza de preencher o completo conteúdo da xícara até a borda, sem deixar derramar.
De relance percebi que Miguel estava na entrada da pa-
daria. Ao notar minha presença, agitou um dos braços nervosamente e se aproximou com passadas largas pelo corredor, ao lado do qual se perfilavam as costas curvadas dos poucos fre-
gueses ainda espalhados pelo balcão. Quando estava bem perto, diminuiu a velocidade, sentando ao meu lado devagar, quase em câmera lenta. Deixou a mão cair sobre meu ombro e me cumprimentou com simpatia.
19
“Meu caro, você já devia se acostumar com a ideia de que
um homem de ideologia é quase sempre incompreendido.”
Sorrimos e conversamos amenidades. Confortar o orgulho
despedaçado não é arte que qualquer um possa dominar, mas
mesmo assim a amizade tem o poder de refrigerar o ardor dos
maus momentos. Miguel se despediu piscando o olho. Por toda minha vida foi a única pessoa que conheci cujos olhos eram cada um de uma cor diferente.
20
CapĂtulo 2
À
s vezes, ideias que mudam uma vida, tanto para melhor quanto para pior, podem surgir de repente. Eu me refiro àquelas que não precisam de pensamentos
anteriores que vão evoluindo, maturando até que elas apareçam. Nada disso. Elas vêm do nada. Como dizem por aí: é um estalo.
Certa vez tive uma dessas ideias. Se para melhor ou para pior, nunca é tão fácil dizer, mas o certo é que eu tinha a convicção de que ela mudaria radicalmente a minha vida.
Foi num dia quente de céu sem nuvens. Acordei indis-
posto por causa da festa que me roubara várias horas de sono. Tinha mais um dia chato de trabalho pela frente. O aspecto
do meu apartamento de solteiro, completamente desordenado,
só piorava meu desânimo. Enquanto me arrumava às pressas, uma sensação me incomodava. Era o incômodo de não me lembrar de algum compromisso. Nem se podia exigir um de-
sempenho eficiente do cérebro transformado na caldeira que
misturava sonolência, má vontade e todos os efeitos do abuso
etílico. O que eu queria lembrar só me veio à mente enquanto subia a escadaria do prédio onde eu trabalhava. Era o último
dia do mês, portanto, mais um dia de espetáculo do velho Iago. Dentuço feito uma ratazana, Iago era alguém que tentava
resistir ao tempo. Vestia-se de maneira antiquada e tinha o ros-
to dominado por rugas que não combinavam com o cabelo tin23
gido de preto. Preservava o costume enfadonho de promover
reuniões de final de mês, por meio das quais exercia o prazer professoral de ensinar como deveriam ser redigidas as maté-
rias, de corrigir as redações imprecisas, de criticar a escolha dos temas e – talvez este seja o principal motivo das famigeradas reuniões – de alardear sua longa experiência como arauto da
informação. A verdade é que quase ninguém dava importância ao que era considerado mais um capricho do velho Iago
do que propriamente alguma ferramenta que proporcionasse a
melhoria da atuação de cada um de nós. Só mesmo uma pessoa se impressionava com aquilo.
Conheci Pedro quando ainda éramos muito jovens. Estu-
damos juntos, mas depois fiquei um bom tempo sem ter no-
tícias dele. Por coincidência, escolhemos a mesma profissão e, por mais coincidência ainda, fomos parar na mesma redação de
jornal. Nos tempos de escola, Pedro engajava-se nos movimen-
tos estudantis e desde aquela época se interessava sobremaneira por temas históricos, com predileção a tudo que dizia respeito
a Donatelo Veras e sua Revolução Fraterna. Era mais que um
interesse, beirava a devoção. Eu imaginava que a idolatria fosse pueril e duraria tanto quanto perdurassem os ideais que só
se conservam durante a juventude, mas, para minha surpresa, ela permaneceu intacta, senão mais fortalecida, influenciando a maioria dos textos que Pedro produzia.
Eis aí uma questão interessante. Se Iago era símbolo de um
estilo obsoleto, com forte apego ao comportamento tradicional, 24
e se Pedro se maravilhava com temas do passado, então seria
natural supor que entre os dois houvesse uma sublime afinidade. Nada é tão fácil assim. Iago sentia-se afrontado pela maneira com a qual Pedro desenvolvia seus textos, e isso se expandiu ao
ponto em que era notória uma antipatia pessoal de via dupla. Pedro tinha uma escrita melosa, quase sempre entediante, usava
muitos adjetivos e era retórico. Para o velho Iago, outro maçante
retórico por excelência, e também para a maioria dos leitores do meu país, tudo isso era sinônimo de talento. Os retóricos se invejam. Tome-se como exemplo o meu caso. Minha escrita
sempre foi simples e objetiva, garantindo que meu relacionamento com o velho estivesse livre de perturbações. Ali estava
um típico e clássico exemplo de orgulho ferido. Um subalterno, que dominava tão bem a escrita rebuscada, poderia ameaçar a
autoridade de quem se gabava de saber manejar as letras como ninguém. Mas esse nem era o único dos motivos. A família de Iago havia se fixado no poder durante o governo autoritário de Rangel D’Ávila. Todos tinham cargos de respeito e podiam
indicar quem quisessem para ocupar outros cargos igualmente opulentos. A vida política de um país obedece a movimentos de gangorra, e por isso a festa acabou quando foi instaurada a Revolução Fraterna de Donatelo Veras. A composição dos cargos
públicos foi sacudida como se sacodem formigas de um doce. Se para o velho Iago e para o restante de sua família decadente tor-
nara-se quase ofensiva a menção do nome de Donatelo Veras, o
que dirá quanto à exaltação tão ostensivamente propagandeada 25