Mario Barbate

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O Comunista Artífice na construção de amigos



Mario Barbate

O Comunista Artífice na construção de amigos


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Dedico este livro a vocĂŞ, pois foi construindo amigos que pude escrevĂŞ-lo. Com grande amizade!



Esta biografia de Mario Barbate foi elaborada por Sonice Vicente e corrigida por ele ao completar 92 anos.



Prefácio

Há homens que lutam um dia, e são bons; Há outros que lutam muitos dias, e são muito bons; Há homens que lutam muitos anos, e são melhores; Mas há os que lutam toda a vida, esses são os imprescindíveis! Bertold Brecht Um contador de histórias. Assim podemos definir Mario Barbate. Mas, que histórias? As inventadas? As histórias dos outros? Num relato envolvente, ele nos vai contando suas histórias, de sua própria vida, de sua família, de sua cidade, de seu país. Constrói a História, com pequenos fatos e grandes relatos, com a técnica de um mestre. Um mestre construtor que assentando os fatos num desenho mágico, elabora um mural não só de sua própria história, mas também da história do Brasil. O entrelaçamento dos acontecimentos de sua vida com os da sociedade à sua volta se estabelece de maneira tão natural que nos permite vislumbrar o cidadão em sintonia com seu tempo, com seu povo, e que age, não apenas na luta pela sobrevivência, mas também na luta pela construção de um mundo melhor, mais justo e mais solidário. Os fatos de sua  11 


vida se mesclam com a história de seu povo. Suas primeiras lembranças, durante a Revolução de 1924, quando sua família, como milhares de outras famílias paulistanas, sai de sua casa para áreas rurais, fugindo dos bombardeios das tropas legalistas, nos dá a dimensão humana de um fato já em si dramático de nossa história. O fato histórico adquire nomes, rostos, cheiros. Em seus relatos, São Paulo cresce com o trabalho de gente vinda dos mais diversos recantos do Brasil e do Mundo. Gente que constrói a metrópole, vive e sonha. Sonha com uma vida melhor, com emprego, casa para morar, escola para os filhos, enfim, com um futuro menos miserável. Enquanto sonha, trabalha, ama, cria os filhos e assiste aos filmes de Charles Chaplin no Cine Teatro São Pedro. E no seio da massa de trabalhadores há aqueles que vislumbram uma sociedade diferente da que vivem. Uma sociedade em que o trabalhador possa usufruir do produto de seu trabalho. Onde o trabalhador não seja apenas uma besta de carga e que seja agente de sua própria vida. Esse novo homem em construção cresce, e ameaça privilégios de longa data estabelecidos, as Capitanias Hereditárias dos poucos que abarcam o poder e as riquezas do país. E então os mecanismos criados para defender esses interesses exclusivos – a polícia, a “justiça”, as prisões, o desemprego e a fome – são ativados. Como tantos outros seres humanos que ao longo da história construíram páginas heroicas da luta pela liberdade e pela justiça, Mario Barbate também trilhou os ásperos caminhos da repressão aos que lutam por uma sociedade mais livre e mais justa. E nos brinda com relatos por vezes dramáticos, por vezes curiosos e até engraçados dessa sua caminhada. 12  Mario Barbate


Parece até ironia dos tiranos, curiosamente, que a negação da liberdade tenha se dado em cenários de beleza espetacular – Fernando de Noronha e Ilha Grande. Em nosso belo país os mais deslumbrantes cenários são maculados pelas piores e mais sórdidas misérias humanas – prisões, tortura, e morte – destinadas aos que lutam para construir um mundo melhor. Estou certo que este relato, mais do que ter pretensões literárias, é uma contribuição preciosa para a História do Brasil, em especial para a história das classes trabalhadoras. Mas, além disso traz importantes informações sobre a história da construção civil em São Paulo e sobre o crescimento da cidade no século XX. Pois Mario não participou somente da construção de uma sociedade nova, participou também, ativamente, da construção da metrópole paulistana e até de outras cidades, no sentido físico do termo. Ele perdeu a conta do número de edificações que ergueu, entre grandes edifícios e pequenas casas. E é com orgulho que detalha o processo de construção de muitas delas. E é também com orgulho que declara ter ficado amigo de centenas de pessoas para quem trabalhou, com exceção de duas. Nesses relatos, recheados de tipos humanos interessantes, ficamos conhecendo técnicas de construção e a evolução da história dessas técnicas ao longo do século XX. A maneira como foram ocupados vários bairros da cidade, a paisagem antes existente, os aterros, a construção de vias e pontes, tudo isso desfila diante de nossos olhos. E não falta aí, talvez a obra mais importante de sua vida: a casa que fez com Cleonice e que foi o abrigo do grande amor construído pelos dois. Ao ler o relato de Mario nos fica a certeza de que ele pode olhar para seu passado com a satisfação daqueles que O comunista artífice na construção de amigos  13


podem colocar a cabeça no travesseiro e dormir o sono dos que tiveram uma vida bem vivida. Ele, dentro da classificação de Brecht, é dos homens imprescindíveis. Daqueles que lutam a vida inteira. E agora, aos 92 anos, nos dá este testemunho, para o aproveitamento das futuras gerações. Ao mesmo tempo em que participou da construção da cidade, ele construiu a si mesmo como cidadão livre. Livre das amarras impostas por aqueles que vêm o trabalhador apenas como mão de obra barata, ignorando sua humanidade. Eduardo Grilli

Graduado em História pela Universidade de São Paulo.

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Meus Pais

Minha mãe, Francisca Martins, nasceu em 28/10/1895, em Carbajales de Alba1, um município da Espanha na província de Zamora. Minha avó materna dizia, como um “chiste”2, que ouvia o galo cantar em Portugal, por ser Carbajales de Alba bem próximo a Portugal. Em 1895, Francisca, ainda bebê, veio ao Brasil com os pais e o irmão Miguel, deixando na Espanha o irmão Antônio. Foram recebidos na Hospedaria de Imigrantes da capital de São Paulo, na região da Mooca, e, posteriormente, seguiram para o interior de São Paulo, na cidade de Botucatu, contratados como lavradores de café. Francisca teve nove irmãos: Antônio e Miguel, nascidos na Espanha, e José, Joaquina, Ramón, Rafael, Emílio, Maria e Izidro, nascidos no Brasil. Meu pai, Augusto Barbatti, nasceu em 06/05/1892, na

1. Carbajales de Alba é um município da Espanha na província de Zamora, comunidade autônoma de Castela e Leão, de área 53,61 km², com população de 692 habitantes (2004) e densidade populacional de 12,91 hab/km². http://pt.wikipedia. org/wiki/Carbajales_de_Alba 2. Chiste: s.m. Expressão que provoca o riso; graça, pilhéria, facécia. http://www. dicio.com.br/chiste/

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comuna italiana Bagnolo Cremasco3, região da Lombardia, província de Cremona. Em 1902, Augusto Barbatti, aos 10 anos, já estava alfabetizado e chegou ao Brasil com os pais e dois irmãos, Pedro e Stefania, nascidos na Itália. Alojaram-se na Hospedaria de Imigrantes da capital de São Paulo, na região da Mooca, e, depois, foram para a lavoura de café no interior de São Paulo, na cidade de Botucatu. No Brasil, nasceu mais uma irmã de Augusto, de nome Joanina. Na fazenda de café, Augusto atingiu o posto de feitor e, naquela época, as famílias de Augusto e Francisca se conheceram. Em 1913, Augusto, com 21 anos, e Francisca, com 18 anos, casaram-se. Em 1914, em decorrência da guerra, os pais de Augusto retornaram para a Itália com o filho Pedro e a filha Joanina. O filho Pedro foi servir a pátria e morreu no campo de batalha, e a filha Joanina, mesmo sendo brasileira, tornou-se freira na Itália e não voltou para o Brasil. Os filhos Augusto, já casado, e Stefania permaneceram no Brasil. No interior de São Paulo, em Botucatu, em 1914, nasceu meu primeiro irmão, Antônio, que faleceu ainda bebê. A minha irmã Augusta nasceu em 1915, e a minha irmã Maria de Lourdes, em 1917.

3. Bagnolo Cremasco é uma comuna italiana da região da Lombardia, província de Cremona, com cerca de 4.554 habitantes. Estende-se por uma área de 10 km², tendo uma densidade populacional de 455 hab/km². http://pt.wikipedia.org/wiki/ Bagnolo_Cremasco

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Certificato Di Nascita – Barbati Domenico Agostino


Augusto Barbatti e Francisca Martins

Na Estrada de Ferro Sorocabana, em 1918, meu pai exerceu a função de foguista ou fogueiro4. Por ter contraído malária5, meu pai foi forçado a deixar 4. O foguista fazia a limpeza das cinzas e dos pós da caldeira. Antes do acender o fogo, enchia a caldeira de água e fazia a verificação da existência de combustível suficiente a bordo antes do início da jornada. Acendia o fogo e desempenhava outras tarefas atribuídas pelo maquinista. http://pt.wikipedia.org/wiki/Fogueiro 5. Malária é uma doença prevalente nos países de clima tropical e subtropical. Também conhecida como sezão, paludismo, maleita, febre terçã e febre quartã, o vetor

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a função de foguista e seguiu com a família para a cidade de São Paulo. Em consequência da doença, meu pai sofreu de pancreatite6, tendo muitas dores abdominais. Muitas vezes presenciei minha mãe valendo-se da ventosaterapia7, com um copo e uma vela fazendo sucção, em busca da cura ou do alívio para essas dores. Na cidade de São Paulo, meu pai passou a atuar na construção civil e residiu com a família na região da Barra Funda. Meus avós maternos, depois de algum tempo, também saíram de Botucatu com a família, com destino à cidade de São Paulo, e passaram a residir na mesma região que meus pais.

da doença é o anofelino (Anopheles), um mosquito parecido com o pernilongo, que pica as pessoas, principalmente ao entardecer e à noite. http://drauziovarella.com.br/ doencas-e-sintomas/malaria/ 6. Pancreatite é a inflamação do pâncreas. O pâncreas é um órgão situado na parte superior do abdômen, aproximadamente atrás do estômago. É um órgão com várias funções, sendo parte responsável pela produção de insulina e parte responsável pela produção de substâncias necessárias para a digestão dos alimentos. A pancreatite pode ser aguda ou crônica. http://www.abcdasaude.com.br/artigo.php?318 7. É um tipo de terapia não invasiva, que tem como procedimento básico a colocação de campânulas ou copos redondos de vidro sobre a pele, gerando a sucção do local, como ventosas. http://www.acupunturaenomoto.com.br/ventosaterapia.html

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Augusto Barbatti e Francisca Martins ao centro e os filhos: Augusta (à esquerda), Vitório (no colo do meu pai), Mario (em pé sobre a cadeira) e Maria de Lourdes (sentada à direita).


Meu Nascimento, Minha Infância

Nasci em São Paulo, em 29/02/1920, quarto filho de Augusto Barbatti e Francisca Martins, e fui registrado no Cartório do Bairro de Santa Cecília. Dois anos após meu nascimento, em 1922, nasceu meu irmão Victoriano. Residi com a família e meus três irmãos, durante quatro anos, no bairro da Barra Funda, numa vila na Rua do Bosque. Em consequência da Revolução de 1924 e apreensivos por uma possível ameaça de bomba na Estação Barra Funda da Estrada de Ferro – SPR, pois residimos muito próximos da estação, segui a pé com os meus pais, meus três irmãos, tios e avós maternos para Pirituba, com destino a uma chácara onde o meu tio Manoel Costal trabalhava e residia. O tio Manoel Costal era casado com a tia Joaquina, irmã de minha mãe. No trajeto, de aproximadamente de 7 quilômetros, aconteceu um fato preocupante: meu tio Izidro, com 10 anos, perdeu-se da família, e por ali passavam boiadas. Nesse percurso, era comum caminhantes protegerem-se do trânsito de bois com destino aos matadouros da região. Transcorrido o susto, continuamos o percurso.  21 


Permanecemos certo tempo na chácara, em Pirituba. Após esse período, retornamos aos locais de origem – a minha família para a Rua do Bosque, e os meus avós, para a Rua da Várzea (em frente à Estação São Paulo Railway – SPR, ou popularmente “Ingleza”). Foi nessa chácara que vi pela primeira vez um carneiro hidráulico8.

A bomba carneiro, também conhecida por bomba aríete e carneiro hidráulico, é uma bomba d’água simples de ser construída e com a grande vantagem de não requerer nenhuma fonte de energia externa para funcionar. Ela funciona com a própria pressão da coluna d’água que ela usa para bombear a água para um ponto mais alto do terreno. A água que chega ao carneiro hidráulico inicialmente sai por uma válvula de descarga, até o momento em que é atingida certa velocidade elevada. No momento em que atinge uma velocidade elevada, a válvula de descarga fecha-se repentinamente (“golpe de aríete”), ocasionando uma sobrepressão, o que possibilita, automaticamente, a elevação de uma parcela de água que nele penetra a uma altura superior àquela de onde a água proveio, sem necessitar do auxílio de nenhuma força motriz externa, bastando para isso que se tenha uma pequena queda hidráulica. Por volta de 1925, minha família mudou-se para a Rua 8. http://www.setelombas.com.br/2006/04/bomba-carneiro/

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Salta-Salta, paralela à Estrada de Ferro, na região da Barra Funda. A residência era simples, num conjunto de casinhas que serviam de habitação para as famílias pobres. Dos meus cinco anos até, aproximadamente, meus sete anos, eu fazia o percurso de minha casa para a residência dos meus avós, saindo da Rua Salta-Salta – atual Rua Luigi Greco –, seguia pela Rua do Bosque e depois pegava a Rua Capitão-Mor Gonçalo Monteiro – esta rua era bem curtinha – e seguia até a Rua da Várzea para chegar à casa de meus avós, num caminho de mais ou menos 800 metros. Em 1926, iniciei meus estudos no Grupo Escolar da Barra Funda, atual Escola Estadual Conselheiro Antônio Prado, que foi fundada em 1903, situada à Rua Vitorino Carmilo, 621 – com a Rua Albuquerque Lins – Barra Funda. No Grupo Escolar da Barra Funda, minha irmã Maria de Lourdes era uma aluna exemplar e destacava-se como a mais aplicada da turma. Ela tinha uma coleguinha de nome Yolanda Camasmie, de família libanesa, que, por ter mais recursos, sempre dividia os lanches, numa atitude de amizade e fraternidade. Em 1926, nasceu meu irmão Pedro, e eu frequentava o Grupo Escolar no período da manhã e voltava para casa no término das aulas. No período da tarde, eu me reunia com os garotos da minha idade e, na região onde hoje é a confluência da Rua Thomas Edson, Rua Anhanguera e Rua do Bosque, conhecida na época como Várzea da Barra Funda, recolhíamos vidros e ossos para serem vendidos para a Sociedade Anônima Produtos Químicos L.Queiroz, atual ELEKEIROZ S.A.

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Grupo Escolar da Barra Funda – São Paulo – SP

Os vidros e ossos recolhidos rendiam $200 réis a lata. Com a venda de vidros e ossos, desejávamos juntar $500 réis para assistir aos espetáculos no Theatro São Pedro – principalmente, no meu caso, Charlie Chaplin.

ELEKEIROZ S.A. pioneira na produção de diversos produtos químicos no país9 9. http://www.elekeiroz.com.br/PT/Paginas/default.aspx

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O Theatro São Pedro distinguia-se por uma programação variada: espetáculos, comédias, concertos, dramas etc. Funcionava como um cinema de bairro. A frequência era fixa, pois as apresentações eram em forma de seriados, como, por exemplo, “A mantilha prateada”.

Inaugurado em 1917, o Teatro São Pedro está localizado numa esquina da Rua Barra Funda com a Rua Albuquerque Lins, São Paulo – SP

Ficava encarregado de ir à Padaria Giannotti, localizada entre a Estrada de Ferro e a Igreja Santo Antônio, e, normalmente, aguardava o preparo dos deliciosos pãezinhos conheO comunista artífice na construção de amigos  25




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