As crianças e os adolescentes dos centros de atenção psicossocial infantojuvenil
Alberto Olavo Advincula Reis Felipe Lessa da Fonseca Modesto Leite Rolim Neto Patricia Santos de Souza Delfini (Organizadores)
As crianças e os adolescentes dos centros de atenção psicossocial infantojuvenil
Caracterização Sociodemográfica e Epidemiológica da População Atendida pelos CAPSi do Estado de São Paulo
Copyright © Alberto Olavo Advincula Reis, Felipe Lessa da Fonseca, Modesto Leite Rolim Neto e Patrícia Santos de Souza. Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma e por qualquer meio mecânico ou eletrônico, inclusive através de fotocópias e de gravações, sem a expressa permissão do autor. Todo o conteúdo desta obra é de inteira responsabilidade do autor. E ditora S choba Rua Melvin Jones, 223 - Vila Roma - Salto - São Paulo - Brasil CEP 13321-441 Fone/Fax: +55 (11) 4029.0326 | 4021.9545 E-mail: atendimento@editoraschoba.com.br www.editoraschoba.com.br
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 As crianças e os adolescentes dos centros de atenção psicossocial infanto-juvenil / organizado por Alberto Olavo Advincula Reis, Felipe Lessa da Fonseca, Modesto Leite Rolim Neto, Patricia Santos de Souza Delfini. -- São Paulo : Schoba, 2012. 280 p. : il. ISBN 978-85-8013-208-3 1. Crianças e adolescentes - assistência a menores. 2. Epidemiologia 3. Crianças e adolescentes - transtorno Mental I. CAPSi - Centro de Atenção Psicossocial Infantil II. Reis, Alberto Olavo Advincula III. Fonseca, Felipe Lessa da IV. Delfini, Patricia Santos de Souza CDU 364.044.68 12-0405 CDD 362.74098161 Índices para catálogo sistemático: 1. Crianças e adolescentes - assistência a menores
Agradecimentos
A publicação desse livro se deve a um conjunto de situações e pessoas. Por um lado, tivemos o concurso dos membros do Grupo de Pesquisa CNPq Laboratório de Saúde Mental Coletiva – LASAMEC – que entusiasticamente emprestaram seus esforços, tempo e inteligências para a elaboração e consecução da investigação que foi a fonte direta dessa obra; por outro lado, o auxílio financeiro aportado pela FAPESP para a realização da pesquisa foi a condição material necessária, sem a qual os esforços e a dedicação empenhados não lograriam resultado tão expressivo. Mas, além dessas situações, o fato primordial para o bom êxito do projeto foi o acolhimento que os Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenil do Estado de São Paulo – CAPSi – propiciaram a ideia de se fazer um levantamento do perfil sociodemográfico e epidemiológico de seus usuários. Quando sabemos que a presença de pesquisadores de campo gera, não raramente, interferências e alterações nas rotinas do difícil trabalho dessas unidades da rede de saúde mental, ficam ainda mais destacadas a gentileza e a generosidade de que elas deram mostra ao nos permitirem o acesso aos seus serviços. Alimentamos a esperança de que nossa dívida com os trabalhadores, gerentes, funcionários e usuários possa ser mitigada, à medida em que esse livro seja de alguma valia para eles. Nossos agradecimentos a todas essas pessoas não podem deixar de ser estendidos aos consultores ad hoc, que contribuíram para a qualidade dessa publicação, ao ter os trabalhos de pós-graduação e pós doutoramento conectados
passados sub o crivo das suas avaliações cegas e das normas editadas. Somos igualmente gratos ao Magnífico Reitor da Universidade Federal do Ceará – UFC – Prof. Jesualdo Pereira de Farias, pela importância evocada a novas produções do conhecimento, marco essencial na construção desta obra, bem como a promoção de arranjos produtivos locais eo incentivo à atuação de parceiros no cenário nacional. Ao Prof. Ricardo Luiz Lange Ness, Diretor do campus da Universidade Federal do Ceará no Cariri, pelo apoio inconteste às atividades acadêmicas essenciais na definição e no desenvolvimento da pesquisa científica e, particularmente, pelo estímulo sublinhado ao projeto que deu origem a este livro. Ao esforço interativo do Prof. Cláudio Gleidiston Lima da Silva, Coordenador do Curso de Medicina da UFC/Campus Cariri, de possibilitar parcerias colaborativas importantes ao crescimento intelectual e produtivo ao campo da saúde coletiva.
Conselho científico
1. João Ricardo Mendes de Oliveira – UFPE – Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 2. Pósdoutor pelos Departamentos de Psiquiatria e Neurologia da UCLA. Consultor da National Organization for Rare Disorders (EUA) e do Genetics Home Reference (NIH-EUA). Foi nomeado Fellow da Fundação John Simon Guggenheim em 2010 e foi Patron Member da Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS) entre 2011 e 2012. 2. Carlos Augusto Carvalho de Vasconcelos – UFPE – Doutor em Neuropsiquiatria e Ciências do Comportamento pela UFPE (2010). Editor Assistente da Revista Neurobiologia (www.neurobiologia.org). Consultor AdHoc do SIGProj – Ministério da Educação (2011). 3. Sônia Barros – Docente – Professor Titular do Departamento de Enfermagem Maternoinfantil e Psiquiátrica da Escola de Enfermagem da USP. Coordena grupo CNPq de Pesquisa de Políticas e Práticas de Saúde Mental e Enfermagem. Pesquisadora 2 do CNPq.
Consultores ad hoc
1. Robson Antão de Medeiros – UFPB – Doutor em Ciências da Saúde pela UFRN, e Pós-doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – Portugal. Professor Adjunto da Faculdade de Direito, da UFPB. Professor do programa de Pós-graduação em Ciências Jurídicas – UFPB. Coordenador do Curso de Direito Santa Rita da UFPB. Avaliador de Instituições de Educação Superior e de Cursos de Graduação junto ao MEC. 2. Joselina da Silva – UFC – Doutora em Ciências Sociais pela UERJ. Foi membro do conselho consultivo e da equipe de redação de textos da Enciclopédia Mulheres Negras do Brasil (2007). Coordena o N´BLAC (Núcleo Brasileiro, Latino-Americano e Caribenho de Estudos em Relações Raciais, Gênero e Movimentos Sociais) certificado pelo CNPQ. 3. Jesus de Souza Cartaxo–. Advogado inscrito na OAB/ SP, Assessor Jurídico do Hospital Regional de Cajazeiras – PB – do Instituto Maternoinfantil Dr. Júlio Maria Bandeira de Melo (UFCG), e Pesquisador Colaborador do Grupo de Pesquisa Suicidiologia (UFC-CNPq).
4. Manoel Antônio dos Santos. Professor– Associado da FFCLRP-USP. Livre Docência em Psicoterapia Psicanalítica pela USP, campus de Ribeirão Preto. Líder do grupo Núcleo de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (CNPq). Integrante do grupo Saúde e Gênero (CNPq) e do grupo Núcleo de Ensino, Pesquisa e Reabilitação de Mastectomizadas (CNPq). Editor da revista Paideia (Qualis-CAPES B1), Editor Assistente da Revista Brasileira de Orientação Profissional e Editor Associado da Revista da SPAGESP. 5. Elisabeth Octaviano Kogima. Enfermeira, Doutora em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da USP. Docente do ensino superior do Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP). Tem experiência na área de Enfermagem, com ênfase em Enfermagem Psiquiátrica, saúde da mulher, Criança e Adolescente e saúde pública, atuando principalmente nos seguintes temas: depressão, puérpera, saúde mental, cuidadores e transtorno afetivo bipolar.
Sumário
Lista de figuras............................................................... 13 Lista de quadros............................................................. 15 Lista de tabelas............................................................... 17 Prefácio........................................................................... 21 Parte I Apresentação: Estudos Sobre a Saúde Mental Coletiva Infantojuvenil................................................ 29 Introdução: Saúde Mental e o Advento dos Centros de Atenção Psicossocial..................................................... 41 1. Os novos serviços de saúde mental coletiva ��������� 49 2. A construção do estudo............................................ 61 3. Caracterização sociodemográfica e econômica 69 4. Caracterização epidemiológica............................... 87 5. Algumas práticas nos CAPSi.................................... 115 6. Caracterização dos serviços.................................. 123 7. Prontuários............................................................... 133 Referências bibliográficas......................................... 151
Parte II O Laboratório de Saúde Mental Coletiva: Pesquisas e Pós-Graduação na Área de Concentração Saúde, Ciclos de Vida e Sociedade.......................................... 161 1. Processos de Trabalho e Impasses Institucionais em Saúde Mental........................................................... 165 Referências bibliográficas......................................... 177 2. Inserir: Emancipar, Responsabilizar ou Atender os Familiares nos Centros de Atenção Psicossocial infantojuvenil........................................ 179 Referências bibliográficas......................................... 189 3. O Trabalho Oculto na Rede de Atenção Psicossocial a Crianças e Jovens em Sofrimento Psíquico.................................................... 193 Referências bibliográficas......................................... 213 4. Projetos Terapêuticos nos Centros de Atenção Psicossocial para Crianças e Adolescentes: Discurso e Prática do Campo da Saúde Mental........................ 217 Referências bibliográficas......................................... 237 5. O Cuidado da Criança e do Adolescente em Sofrimento Psíquico: Articulações entre CAPSi e Estratégia de Saúde da Família................................... 241 Referências bibliográficas......................................... 257 6. A Situação dos CAPSi no Nordeste........................ 259 Referências bibliográficas......................................... 265 Lista de Autores............................................................ 269
Lista de figuras
Figura 1: Distribuição dos CAPSi segundo tipo – adulto, infantojuvenil, álcool e outras drogas. São Paulo. 2011. Figura 2: Localização dos CAPSi do Estado de São Paulo. Figura 3: Distribuição da proporção (%) dos usuários dos CAPSi segundo faixa etária. São Paulo, 2009. Figura 4: Distribuição da proporção (%) dos usuários dos CAPSi segundo sexo e faixa etária. São Paulo, 2009. Figura 5: Distâncias relativas das razões de masculinidade entre a população geral de crianças e adolescentes do Estado de São Paulo, os usuários de 15 a 19 anos dos CAPSi e a população geral de crianças e adolescentes dos CAPSi no Estado de São Paulo no período de 2008 a 2009. Figura 6: Distribuição da proporção dos usuários dos CAPSi do Estado de São Paulo segundo grupo diagnóstico da CID10. São Paulo, 2009.
Lista de quadros
Quadro 1: CAPSi do Estado de São Paulo que fizeram parte da pesquisa. São Paulo, 2009. Quadro 2: Número (n) e proporção (%) das condutas terapêuticas adotadas nos CAPSi do Estado de São Paulo. São Paulo, 2009. Quadro 3: Distribuição de profissionais de saúde por CAPSi do Estado de São Paulo. São Paulo, 2009. Quadro 4: Tipo e quantidade de salas dos CAPSi do Estado de São Paulo. São Paulo, 2009. Quadro 5: Qualidade das instalações dos CAPSi do Estado de São Paulo. São Paulo, 2009. Quadro 6: Qualidade das relações entre os CAPSi do Estado de São Paulo e seu entorno. São Paulo, 2009. Quadro 7: Percepção da utilidade dos prontuários para a equipe segundo os coordenadores dos CAPSi. Estado de São Paulo, 2009. Quadro 8: Percepção da utilidade dos prontuários para os usuários de acordo com os coordenadores dos CAPSi. Estado de São Paulo, 2009.
Quadro 9: Percepção da utilidade dos prontuários para as equipes e os usuários de acordo com os coordenadores dos CAPSI. Estado de São Paulo, 2009.
Lista de tabelas
Tabela 1: Razão de masculinidade entre equipamentos sociais do Estado de São Paulo, 2009. Tabela 2: Familiar responsável que habita com a criança/adolescente usuárias dos CAPSi do Estado de São Paulo. São Paulo, 2009. Tabela 3: Distribuição do número (n) e porcentagem (%) dos usuários dos CAPSi do Estado de São Paulo segundo principal responsável pelo cuidado. São Paulo, 2009. Tabela 4: Distribuição do número (n) e proporção (%) dos usuários dos CAPSi do Estado de São Paulo segundo principal responsável pela renda. São Paulo, 2009. Tabela 5: Distribuição do número (n) e porcentagem (%) dos usuários atendidos nos CAPSi do Estado de São Paulo segundo o tipo de instituição frequentada. Tabela 6: Distribuição do número (n) e porcentagem (%) de crianças e adolescentes dos CAPSi que frequentam diferentes tipos de instituições escolares. 2009. Tabela 7: Distribuição do número (n) e proporção (%) dos usuários dos CAPSi do Estado de São Paulo segundo diagnóstico e sexo. São Paulo, 2009.
Tabela 8: Distribuição do número (n) e proporção (%) dos usuários dos CAPSi do Estado de São Paulo segundo diagnóstico e faixa etária. São Paulo, 2009. Tabela 9: Distribuição do número (n) e proporção (%) dos usuários com diagnóstico de Transtornos Emocionais e do Comportamento dos CAPSi do Estado de São Paulo segundo sexo. São Paulo, 2009. Tabela 10: Distribuição do número (n) e proporção (%) dos usuários com diagnóstico de Transtornos Emocionais e do Comportamento dos CAPSi do Estado de São Paulo segundo faixa etária. São Paulo, 2009. Tabela 11: Distribuição do número (n) e proporção (%) dos usuários com diagnóstico de Transtorno do Desenvolvimento dos CAPSi do Estado de São Paulo segundo sexo. São Paulo, 2009. Tabela 12: Distribuição do número (n) e proporção (%) dos usuários com diagnóstico de Transtorno do Desenvolvimento dos CAPSi do Estado de São Paulo segundo sexo. São Paulo, 2009. Tabela 13: Distribuição do número (n) e proporção (%) dos usuários com diagnóstico de Retardo Mental dos CAPSi do Estado de São Paulo segundo sexo. São Paulo, 2009. Tabela 14: Distribuição do número (n) e proporção (%) dos usuários com diagnóstico de Retardo Mental dos CAPSi do Estado de São Paulo segundo faixa etária. São Paulo, 2009
Tabela 15: Distribuição do número (n) e proporção (%) dos usuários com diagnósticos Transtornos de Humor dos CAPSi do Estado de São Paulo segundo sexo. São Paulo, 2009. Tabela 16: Distribuição do número (n) e proporção (%) dos usuários com diagnóstico de Transtornos de Humor dos CAPSi do Estado de São Paulo segundo faixa etária. São Paulo, 2009. Tabela 17: Distribuição do número (n) e proporção (%) dos usuários com diagnósticos de Esquizofrenia, Transtorno Esquizotímico e Transtorno Delirante dos CAPSi do Estado de São Paulo segundo diagnóstico e faixa etária. São Paulo, 2009. Tabela 18: Distribuição do número (n) e proporção (%) dos usuários com diagnóstico de Transtornos Emocionais e do Comportamento dos CAPSi do Estado de São Paulo segundo faixa etária. São Paulo, 2009. Tabela 19: Distribuição dos usuários dos CAPSi do Estado de São Paulo segundo origem do encaminhamento. São Paulo, 2009. Tabela 20: Distribuição do número (n) e proporção (%) dos usuários dos CAPSi do Estado de São Paulo segundo modalidade de atendimento. São Paulo, 2009. Tabela 21: Distribuição do número e proporção das unidades de significação para as categorias referentes à utilidade dos prontuários para a equipe na percepção dos coordenadores dos CAPSi. São Paulo, 2009.
Tabela 22: Distribuição do número e proporção das unidades de significação para as categorias referentes à utilidade dos prontuários na percepção dos coordenadores dos CAPSi. São Paulo, 2009.
Prefácio
Crianças e adolescentes são o futuro das sociedades. Parece lugar comum, mas é sempre importante reforçar a ideia de que todo investimento voltado para a infância e para a adolescência está dirigido à construção de um mundo melhor e mais justo. No entanto, apesar da transcendência dessas faixas etárias tão oportunamente reforçada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente quando cita, de forma explícita, sua absoluta prioridade em receber proteção e cuidado, o investimento realizado pelas políticas públicas tem minguado e perdido sua relevância. Pelo menos duas questões podem ser realçadas. Em primeiro lugar, nos últimos anos, acompanhamos, no Brasil, uma queda significativa da mortalidade infantil, que é um componente importante na análise do nível de desenvolvimento de um país. Nossa taxa de mortalidade infantil deixou de ser vergonhosa, passando de 48,3 óbitos de menores de 1 ano para cada 1.000 nascidos vivos, em 1990, para 15,6 em 2010. Em segundo lugar, temos a transição demográfica: com o aumento da expectativa de vida, ocorre redução das taxas de natalidade e o aumento das doenças crônicas degenerativas, que tem levado a novos problemas de saúde pública, mais relacionados ao acompanhamento de processos de adoecimento crônicos. A própria pediatria parece estar mais voltada para subespecialidades, perdendo, em parte, a característica de atendimento integral e holístico, que sempre marcou essa especialidade médica.
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Em conjunto, estes 2 eventos, entre outros, deslocaram as preocupações dos gestores para ações dirigidas a questões distantes do mundo da infância e da adolescência. A criança, que passou a sobreviver mais, perdeu parte de sua importância para a sociedade, como se bastasse não morrer. Notamos uma distância entre o discurso de transcendência da criança idealizada e o investimento na criança real, que precisa crescer e se desenvolver com qualidade de vida. Essa invisibilidade da criança para além da mortalidade infantil está fortemente presente no campo da Saúde Mental. Durante décadas, o cuidado em Saúde Mental na infância foi delegado a instituições filantrópicas, que, a despeito da qualidade técnica de algumas, não cumpriam a função social de uma assistência com qualidade para todas as crianças que dela necessitavam. Essa situação também se deveu à legislação voltada para a infância e adolescência, ainda herdeira dos Códigos de Menores de 1927 e de 1997, que tratavam seletivamente apenas de crianças em perigo (das classes populares, pobres) e as crianças perigosas (envolvidas com a delinquência). A partir da década de 1980, com o movimento da redemocratização e a elaboração da nova Constituição, muita coisa mudou no cenário legislativo do país. A Constituição Cidadã de 1988 definiu que a saúde é direito de todos e dever do Estado, e a criança e o adolescente devem gozar de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral. Surgiram a Lei Orgânica da Saúde – SUS – e o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA –, ambos de 1990. Em relação ao cuidado em Saúde Mental, o caminho foi mais lento, tendo sido a Lei nº 10.216, que redireciona a assistência em Saúde Mental privilegiando o oferecimento de tratamento em serviços de base comunitária e dispondo sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais, aprovada somente em 2001. 24
Mesmo com essas mudanças substanciais, crianças e adolescentes permaneceram em segundo plano durante toda a década de 1990. A transformação destes em sujeitos de direitos pelo ECA, apesar de fundamental, não foi suficiente para trazer mudanças no campo do cuidado em Saúde Mental. Apenas em 2001 essa situação começou a mudar. Imediatamente após a aprovação da Lei nº 10.261, foi convocada a III Conferência Nacional de Saúde Mental. Nesse momento, já havia uma certa conscientização da ausência de diretrizes, em nível nacional, que provessem com um bom cuidado em Saúde Mental as crianças e os adolescentes, apesar de muito já se ter avançado no cuidado de adultos. Para subsidiar as discussões na III Conferência Nacional em Saúde Mental, foi realizado no Rio de Janeiro, em dezembro de 2001, o Seminário Nacional sobre a Política Pública de Saúde Mental para Crianças e Adolescentes. Pode-se considerar esse o primeiro marco da mudança que estava por vir. As propostas elaboradas por esse seminário foram debatidas e, na sua maioria, incorporadas ao relatório da III Conferência Nacional de Saúde Mental. A partir daí, pudemos testemunhar um avanço significativo nas políticas públicas voltadas para a atenção em Saúde Mental de crianças e adolescentes. Três foram os marcos que fundaram este avanço. Em primeiro lugar, temos a Portaria do Ministério da Saúde n.º 336/GM/02, que criou o Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSi). O Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) já era reconhecido como serviço do SUS desde a Portaria n° 224/MS/92, em que constava: “NAPS/CAPS são unidades de saúde locais/regionalizadas, que contam com uma população adscrita definida pelo nível local e que oferecem atendimento de cuidados intermediários entre o regime ambulatorial e a internação hospitalar.”. No entanto, foi 25
apenas pela Portaria nº 336/02 que houve a criação de um serviço voltado especificamente para crianças e adolescentes, com características claramente definidas. Essa especificação fez toda a diferença e iniciou-se um período fértil de implantação desse tipo de serviço, sendo que atualmente (setembro de 2012) há 161 CAPSi habilitados em todo o Brasil. Depois foi implantado o Fórum Nacional de Saúde Mental Infantojuvenil, constituído pela Portari nº 1.608/GM/04 e com o objetivo de funcionar como espaço de articulação intersetorial e de discussão permanente sobre as políticas para esta área. Foram realizadas 8 reuniões até 2009, em vários estados do Brasil, e elaboradas recomendações para os serviços voltados para o cuidado em Saúde Mental de crianças e adolescentes. Em terceiro lugar, a publicação do documento Caminhos para uma Política de Saúde Mental Infantojuvenil, que determina os princípios e diretrizes para a política nacional de Saúde Mental para crianças e adolescentes. Os princípios definidos no referido documento, que se tornaram tão conhecidos, são: crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, acolhimento universal, encaminhamento implicado, construção permanente da rede, território e intersetorialidade na ação do cuidado. A importância da existência de um documento escrito sobre a política de Saúde Mental tem sido enfatizada pela Organização Mundial de Saúde, tanto como uma referência para a ação como também com a função simbólica de orientação de direcionalidade e sustentabilidade desta política. É importante recuperar esse percurso das políticas de Saúde Mental para crianças e adolescentes, ainda tão curto, para ressaltar a importância deste livro que ora se publica. Recebi com muito orgulho o convite para escrever o prefácio deste livro, pois acompanhei com muito interesse a realização da pesquisa que o embasa. Voltar-se para os pro26
blemas mentais de crianças e adolescentes e para a organização do cuidado a eles dirigida é uma atitude audaciosa. Os pesquisadores, tanto do campo da Saúde Pública quanto da Saúde Mental, têm se preocupado mais com o cuidado com adultos e, mais recentemente, com as questões relativas ao uso prejudicial de álcool, crack e outras drogas, deixando de lado as especificidades da infância e adolescência. Crianças não são adultos em miniatura e adolescentes não podem ser reduzidos a seus problemas, seja como usuários de drogas ou como delinquentes. Apropriar-se das especificidades do mundo da infância e da adolescência não é uma tarefa fácil e exige dedicação dos que se debruçam sobre ela. O Laboratório de Saúde Mental Coletiva – LASAMEC –, coordenado pelo professor Alberto Olavo Advíncula Reis, tem sido pioneiro nessa empreitada. Criado em 2003, no Departamento de Saúde Maternoinfantil da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, o LASAMEC tem se voltado para pesquisas variadas, mas com importante componente de estudos sobre crianças e adolescentes com problemas de saúde mental, o que é raro no meio acadêmico. A pesquisa Caracterização Sociodemográfica e Epidemiológica da População Atendida pelos CAPSi do Estado de São Paulo, realizada com apoio da FAPESP e tão bem retratada neste livro, foi uma das primeiras a abordar a cotidiano dos CAPSi e trouxe à luz algumas realidades e muitas questões, que abrem caminho para novos estudos. Foram estudados 19 CAPSi, e o relato detalhado desses achados pode colaborar com inúmeras equipes Brasil afora, no esforço da construção de serviços inovadores no cuidado em Saúde Mental de crianças e adolescentes. Além da pesquisa supracitada, o livro inclui, na Parte II, 5 outros estudos, em certa proporção derivados da pesquisa principal, mas que focam questões de extrema pertinência 27
para os trabalhados dos CAPSi. Seus autores são jovens participantes do LASAMEC, sendo alguns estudos derivados de dissertações de mestrado. Temas como o processo de trabalho nos CAPSi e suas especificidades, a elaboração dos projetos terapêuticos singulares, a problematização da abordagem das famílias e a organização do cuidado no território são abordadas de forma inovadora e vão, decerto, contribuir para a análise crítica da assistência de nossas crianças e adolescentes. A implantação desta nova política, a partir de uma prática concreta de centenas de trabalhadores, precisa ser conhecida e qualificada pela academia, não para torná-la legítima, pois ela já o é, mas para referendar referenciais que permitam apropriação desta por todos os atores envolvidos neste processo. Essa aproximação da academia com os serviços de saúde públicos é muito bem-vinda e está sendo estimulada pelo Ministério da Saúde através de programas como Pró-Saúde e PET-Saúde. As novas práticas de Saúde Mental oriundas dos CAPSi precisam ser avaliadas por metodologias adequadas ao campo da Saúde Mental, que ainda estão em processo de construção, e os trabalhos incluídos neste livro trilham esse caminho. A divulgação desses estudos para um público mais amplo contribuirá para um avanço significativo no aperfeiçoamento da atenção em Saúde Mental e certamente abrirá caminho para novas pesquisas e publicações, tão relevantes quanto esta, tanto do próprio LASAMEC quanto de outros grupos empenhados na busca de um cuidado em Saúde Mental de qualidade para nossas crianças e adolescentes. Edith Lauridsen-Ribeiro Médica Pediatra. Especialista em Saúde Mental de Crianças e Adolescentes. Mestre e Doutora em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da USP.
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Parte I
Apresentação
Estudos Sobre a Saúde Mental Coletiva Infantojuvenil
Este livro é uma contribuição do Laboratório de Saúde Mental Coletiva, LASAMEC, decorrente de estudos e pesquisa sobre a Saúde Mental Infantojuvenil. Os autores aqui descrevem e discutem as características da população de crianças e adolescentes e as condições do sistema de Saúde Mental que a atende. Desde 2003, no Departamento de Saúde Maternoinfantil da Faculdade de Saúde Pública da USP, o laboratório reúne pesquisadores e estudantes interessados em assuntos de Saúde Mental. Particularmente, o interesse pela qualidade da atenção à Saúde Mental Infantil os mobilizou e mobiliza em diferentes frentes de trabalho, produzindo, entre outras coisas, esta obra. A Parte I do livro apresenta os principais resultados da pesquisa Caracterização Sóciodemográfica e Epidemiológica da População Atendida nos Centros de Atenção Psicossocial do Estado de São Paulo. Na Parte II do livro são expostos textos de pesquisadores do LASAMEC propondo reflexões, fazendo avançar os estudos sobre a atenção em Saúde Mental Infantojuvenil e suscitando questões importantes para o estabelecimento das diretrizes e das políticas públicas na área. São tardias as politicas públicas de Saúde Mental Infantojuvenil no Brasil. Data de 2002 a Portaria n.º 336/GM do 31