A Cultura Assassinada
Paulo Chenso
A Cultura Assassinada
Copyright © Paulo André Chenso Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma e por qualquer meio mecânico ou eletrônico, inclusive através de fotocópias e de gravações, sem a expressa permissão do autor. Todo o conteúdo desta obra é de inteira responsabilidade do autor. Editora Schoba Rua Melvin Jones, 223 - Vila Roma - Salto - São Paulo - Brasil CEP 13321-441 Fone/Fax: +55 (11) 4029.0326 | 4021.9545 E-mail: atendimento@editoraschoba.com.br www.editoraschoba.com.br CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ C447c Chenso, Paulo André, 1951A cultura assassinada / Paulo André Chenso. - 1. ed. - Salto, SP : Schoba, 2013. 344 p. : 21 cm ISBN 978-85-8013-240-3 1. Cultura - Brasil. 2. Fusão cultural. 3. Cultura popular - Brasil. I. Título. 13-1471. CDD: 306 CDU: 316.7 06.03.13 11.03.13
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Ă€ minha esposa Mariangela e meus filhos Marina, AndrĂŠ e Paulo.
Prefácio
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termo cultura designa, em sua concepção mais ampla, o repertório da ação humana e de seus produtos (teorias, práticas, valores, entre outros). Neste sentido, cultura nada mais é do que a criação coletiva de símbolos. E para que esteja livre do discurso ideológico, é necessário que o repertório cultural seja tomado pelas informações que expressem pluralismo de opiniões, de questionamentos, de pontos de vista divergentes, além de enfoques diferentes e diferenciados, e estímulos às reflexões pessoais ou de grupos. Caso contrário, as expressões culturais estarão submetidas à alienação (no sentido de não pertencerem ao indivíduo ou à sociedade, mas inseridas ou colocadas por agentes que passam a ditar valores e comportamentos). A cultura de massa tem em seus produtos o objetivo da fácil digestão e absorção, despreocupada que está em subverter. Sua intenção é divertir, sem estimular alterações palpáveis ou consistentes (vide músicas e seus chavões que ladram e latem pelos cantos do Brasil e que estimulam alguma sexualidade, tão presentes no gênero musical sertanejo universitário ou nos funks incorporados pela indústria fonográfica com objetivo de popularização e, claro, venda fácil). Quando propõe alguma modificação, a cultura de massa o faz com o objetivo de criar novas tendências de consumo e de promover o conformismo social. Em nossos dias globalizados, a produção cultural está fortemente relacionada às próprias relações capitalistas que 9
estabelecemos. Um traço característico da cultura popular é que em suas formas de expressão pode haver contestação, negações, recusas, protestos, o que dificilmente ocorre com os produtos culturais produzidos pela cultura de massa. Como é a cultura que nos distingue dos outros animais por afastar-nos da natureza, dando-nos possibilidade de interpretar o mundo que temos e vemos, ao que parece, estamos ficando mais pobres nesta que deveria ser nossa real intenção. Os “vamos fazer um parapapá”, os “ai, se eu te pego!”, os “lerererês”, cantam, mas não expressam. Ao contrário, infestam e predominam, tirando e não concedendo espaço para manifestações mais elaboradas. Da mesma forma, a programação cafajestística contemporânea ocupa as telas televisivas e os caminhos radiofônicos, transmitindo valores tolos e supérfluos. Caso cultura possa ser definida como um conjunto compartilhado de saberes coletivos por uma sociedade, é premente que comecemos a questionar o que estamos dividindo. Quem sabe a obra de Paulo Chenso seja um bom início para os que não atentaram ao que nos cerca e querem aprender. Agnaldo Kupper 12 de abril de 2013
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A morte lenta e inexorável da cultura popular brasileira Cruel, obscena, egoísta, imoral, indômita, eternamente selvagem, a arte é a superioridade humana – acima dos preceitos que se combatem, acima das religiões que passam, acima da ciência que se corrige; embriaga como a orgia e como o êxtase.
Raul Pompeia
De como passamos da genialidade criativa à mediocridade anódina
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bservamos, nas últimas décadas do século XX, uma forte e negativa influência da mídia, especialmente a televisão, chegando mesmo a ser destruidora, sobre a estética da arte e da cultura popular brasileira, transformada, manipulada, descaracterizada, em nome de uma suposta modernidade atrelada aos interesses capitalistas, movidos pela ganância desenfreada dos meios midiáticos, sem nenhuma manifestação de apoio ou socorro do governo, inerte e anódino, completamente alheio a qualquer coisa que cheire à cultura ou educação. O fenômeno coincide, justamente, com o advento da modernização da televisão no Brasil e o consequente aumento de seu poderio político e econômico, neste caso destacando-se com larga vantagem a Rede Globo de Televisão e a capacidade que esta possui de induzir as pessoas à alienação, às vezes absoluta; a sua capacidade de conduzir as mentes menos avisadas, como quem conduz um pacífico rebanho de ovelhas diretamente para o matadouro, neste caso, cultural. Não devemos nos esquecer da importância do papel da mass media, a ação concomitante do capitalismo e da pressão norte-americana, num triângulo avassalador. Outros aspectos merecedores de atenção são a música, o teatro e o cinema brasileiros, no mesmo período. 15
A partir de 1940, os EUA passaram a exercer uma fortíssima influência sobre o Brasil, um completo domínio sobre nossos assuntos internos, quer fossem de ordem cultural, quer fossem de ordem política e econômica, estabelecendo um absurdo processo de “americanização” de nossa cultura, o que foi possível graças à conivência, à pusilanimidade e à omissão de uma plêiade de políticos corruptos e submissos, muitos, acima de tudo, ignorantes. O processo americanizador do Brasil foi absorvido e assumido pela televisão (e pela mídia em geral), divulgando-o, disseminando-o e estimulando-o, especialmente junto ao público jovem, o mais sensível a esse tipo de abordagem. O mecanismo cruel utilizado pelos americanos, via mídia nacional, para fazer com que o brasileiro se submetesse atingiu um ponto tal que nós passamos a sentir vergonha de sermos brasileiros. O resultado de tal interferência tem relação direta com a destruição do que tínhamos de melhor em arte e cultura populares até o início dos anos 1960. Nesse momento, dando sustentação estratégica e militar ao golpe de 1964, os americanos comandaram a introdução de sua democracia ou pax americana e, com a subserviência dos generais, empanturraram-nos do lixo cultural ianque, fazendo-nos esquecer as nossas próprias raízes. Há, sem dúvida, áreas de resistência ao invasor alienígena, em que elementos culturais legítimos, preservados a ferro e fogo por comunidades absolutamente ligadas às tradições, que tentam de todas as formas, num trabalho quase heroico, evitar o desmoronamento desses monumentos à memória histórica, como é o caso dos gaúchos e dos nordestinos. Os sons, as vozes, as cores, os brilhos das festas populares, suas crenças, seus mitos, suas histórias, inexoravelmente apro16
priadas de forma indébita, já que não há indenização que pague o estrago, e transformadas pelo capitalismo, através de sua mais poderosa arma de sedução, a televisão, em lucros e pontos na audiência, sem nenhuma preocupação dos detentores dessas concessões com a mutilação e a descaracterização das formas culturais originalíssimas de nosso povo. Após o chamado “período de redemocratização” do país, iniciado nos primeiros anos da década de 1980, progrediu de forma quase assustadora e desavergonhada a exploração do erótico enquanto meio para subjugar a atenção do espectador, ao mesmo tempo em que o seduzia para o consumo de produtos, na maioria das vezes, totalmente desconectados de sentido, em relação ao apelo erótico utilizado. Por fim, insatisfeitos, erotizaram até a música caipira! Esta, hoje, está descaracterizada e americanizada (os “músicos” atuais lembram muito mais antigos caubóis dos filmes do Velho Oeste americano do que que caipiras do interior de São Paulo ou de Minas Gerais). Apropriaram-se da poética caipira e a urbanizaram, providenciando antes, porém, a sua adequação aos ditames “pós-modernos”, sendo enxertada de sexo, ritmos estadunidenses, pornografia insinuada e explícita, algumas “canções” chegando, mesmo, a veicular palavrões e termos chulos. O cinema brasileiro, que já nos deu Humberto Mauro, Joaquim Pedro de Andrade, Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra, Glauber Rocha, Arnaldo Jabor, Leon Hirszman e tantos outros, teve uma fase de provação sem precedentes durante o período da ditadura militar, quando a censura prévia, obtusa e míope, impedia qualquer tentativa de uma produção mais elaborada, aceitando apenas as produções de pornografia barata e do chamado “cinema marginal”, mas, 17
mesmo aqui, nem todas as produções conseguiam ser lançadas, pois a dita censura “conseguia” perceber a ironia do filme e, então, barrava. Após esse difícil período para toda a arte brasileira – o teatro sofreu o mesmo processo de perseguição –, com a redemocratização do país o cinema retomou normalmente seu caminho, crescendo rapidamente em qualidade e número de produções, até atingir um excepcional estágio em fins dos anos 1990 e início dos 2000. Apesar disso, temos ainda algumas ilhas de imbecilidade, tentando imiscuir lixo no meio cinematográfico brasileiro, e isto podemos confirmar ao ver a crítica “especializada” estampar na Folha Ilustrada (Folha de S.Paulo), de 28/12/2006, a matéria que afirma ser o medíocre e desagradável José Mojica Marins, conhecido pelo vulgo de Zé do Caixão, a maior estrela do cinema nacional na atualidade, elevando o indigitado produtor/diretor/ator à categoria de “gênio”. Essa crítica é incompetente e submissa, já que a “ressurreição” de Zé do Caixão, após 20 anos de ostracismo, deu-se nos Estados Unidos, onde ficou conhecido no mundo trash como “Joe Coffin”. São essas abordagens que às vezes nos desanimam. A cultura erudita, ligada ao pensamento acadêmico e aos museus, às galerias e às bienais, foi deixada de lado neste trabalho, pois é vista, geralmente, pelas mesmas pessoas, todos os anos, criticada pelos mesmos críticos, que dizem as mesmas coisas, que saem nas mesmas revistas... Buscam-se aqui a arte e a cultura que nascem do coração, que emergem como coisa brotada do chão, naturalmente, em cada novo brasileiro. Que traduzem sentimentos, criatividade, realizações: nossos mitos, nossas lendas, nossas crenças, nossas festas, nossa fala, e tudo o mais que a insen18
sibilidade capitalista, aliada à estupidez imperialista, tenta de todas as maneiras macular, dilapidar, mutilar e, se possível, destruir definitivamente. No entanto, cultura é muito mais do que isso, cultura é o mais evidente sinal de que, por mais pisoteado que tenha sido um povo, ele ainda mantém a chama vital: a sua identidade particular. A arte e a cultura popular no Brasil estão entre as mais ricas e belas do mundo, e não creio estar exagerando nem sendo demasiadamente nacionalista, pois a miscigenação étnico-cultural ocorrida ao longo dos cinco séculos de nossa história me autoriza a fazer tal consideração. Bastariam apenas as heranças indígena, lusitana e africana para justificar a riqueza de nossa cultura, mas devemos nos lembrar, também, das inúmeras etnias europeias e asiáticas que convergiram para o país, a partir da segunda metade do século XIX, especialmente para as regiões Sudeste e Sul. Assim, a construção de uma identidade cultural única para o Brasil tornou-se tarefa quase impossível, pois a identidade cultural depende das características étnicas, linguísticas, artísticas, mitológicas e nacionalistas de cada povo. Além da miscigenação já referida, no Brasil os espaços geográficos são imensos, e imensos são os vazios que muitas vezes separam estas ilhas artísticoculturais, gerando inevitável e imensurável polimorfismo. A lenta construção de nossa cultura popular até adquirir a autenticidade e a estabilidade necessárias para caracterizar nossa nacionalidade vem sendo sistematicamente descaracterizada, nas últimas décadas do século XX e primeira do século XXI, em nome de um evidente jogo de interesses econômicos e, muitas vezes, políticos, ambos, de qualquer forma, escusos. Justificando a atual situação da nossa cultura, aparecem 19
na mídia, com frequência, entrevistas com supostos “entendidos” em arte e cultura que, com suas “opiniões abalizadas”, atribuem a situação mais ao caos estabelecido nas artes pelo pós-modernismo do que às verdadeiras causas, estas sim dissimuladas viperinamente pelos véus dos interesses escusos que disfarçam as verdadeiras intenções e movem a mass-media, especialmente a televisiva. Desprovidos do mais elementar escrúpulo e da mínima sensibilidade estética, pressionados pelos interesses político-capitalistas, especialmente os estadunidenses, surgem os teóricos e os críticos de ocasião, sempre prontos a enaltecer e tornar artístico o que nunca foi arte, em cultura o que jamais o foi, tudo para garantir, com isso, o reconhecimento público, o status, enfim, os quinze minutos de fama preconizados por Warhol, pouco se importando, no entanto, com os efeitos deletérios de suas considerações irresponsáveis, mas dando, com elas, o suporte necessário para que a mediocridade prolifere qual erva daninha, qual câncer a corroer impiedosamente o complexo e magnífico tecido que constitui a verdadeira cultura popular. Para compreender a identidade cultural no pós-modernismo, podemos recorrer ao pensamento de Walter Benjamim, que expõe, de forma contundente, como o processo de reprodução técnica de arte e cultura muda o conceito de autoria, autenticidade e responsabilidade, e da desritualização do fazer arte. Adorno e Horkheimer inventaram, apropriadamente, o conceito de “indústria cultural”, a qual, a partir de fins do século XIX, fez com que o objeto artístico criado fosse produzido em série, numa multiplicação acelerada de elementos supostamente culturais, comprados avidamente por 20
hordas de consumidores. Esta indústria cultural, no entanto, promoveu “o rebaixamento da cultura à mercadoria. A transformação do ato cultural em valores de mercado anula o poder crítico e dissolve nele os traços de uma experiência autêntica”. (MATTELART, 2005). A aceleração da produção de objetos culturais provocou mudanças e rupturas estéticas tão rápidas que a produção artística acabou por equiparar-se à produção da indústria cultural, unindo-se às manifestações de arte popular e de massa. Este fenômeno não se restringiu às artes plásticas, mas estendeu-se a todos os campos artísticos, incluindo a música, a dança, o teatro, o cinema, a televisão e a literatura. Como avalia Stuart Hall, “atualmente vivemos uma forte crise de identidade cultural cujo principal desencadeante é o processo de globalização, que pôs em contato as inúmeras diversidades étnico-culturais, tanto em relação aos costumes, crenças, língua, nacionalidade, idade e sexo, como aos problemas de ordem social, política e econômica”. (HALL, 2001). O capitalismo sem fronteiras, aliado ao poderoso jogo de interesses, comanda, de forma radical, a comunicação de massa em escala mundial, provocando a destruição da relação espaço/tempo. Isso leva ao aparecimento dos fluxos culturais e das identidades compartilhadas, híbridas, deslocadas, desalojadas, efêmeras, voláteis, identidades que formam uma colcha de retalhos de culturas locais, regionais, nacionais, continentais e, finalmente, globais. Com essa fragmentação das identidades culturais e o surgimento de identidades mistas, a cultura em geral adota uma posição muito perigosa e delicada, para a sua própria continuação e existência. Ao longo do processo modernizador da arte, iniciado 21
em fins do século XIX e que ocupou todo o século XX, a identidade cultural da sociedade humana dita moderna passou, sucessivamente, da arte para a antiarte dos ready-made, da representação para o simulacro, da autenticidade conferida pela individualidade da obra à reprodutibilidade técnica, do eterno para o finito, do nacional para o mundial e entrou em um processo em que se apoia no objeto e não mais no ser humano (desumanização), no material, com abandono do espiritual (dessacralização), no tempo real e não mais no tempo infinito (eternidade), na sátira da arte e não na “arte séria” e, com isso, caminha para uma espécie de niilismo, como se estivesse em busca de seu próprio fim, da sua autodestruição. No momento em que a arte adentra este caos, glorificado pelos críticos de plantão como pós-modernismo e reverenciado como a quintessência da arte moderna, em nome da liberdade total do artista e de sua capacidade criadora, de outro lado é endemoninhado pelos que defendem pelo menos um mínimo de ética e de estética na realização das obras de arte, não se transformando o artista num mero fornecedor de coisas que o mercado quer vender, pouco importando quão inúteis, desprovidas do mínimo sentido de belo, totalmente anódinas sejam, desde que vendam, desde que atendam às necessidades e ao interesse do mercado de arte. Como afirma Jean-Luc Chalumeau, em As teorias da arte, citando Danto: “Tanto para Hegel como para Marx, afirma Danto, a vida pós -histórica será um novo Éden onde os homens farão o que lhes agradar, incluindo a arte. Esta arte já não teria a importância ou o significado histórico que costumávamos conferir-lhe”. (CHALUMEAU, 1997).
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O pós-modernismo A arte atual é aquela que não existe.
Ortega y Gasset
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pós-modernismo é um movimento, ou momento da arte e cultura, em que alguns artistas poderiam até assumir uma atitude de rebeldia, como os românticos dos anos 1950 e 1960, mas não iriam além de uma medíocre representação. O movimento pós-moderno vive uma série de dilemas, gerados no seio de suas próprias inconstâncias e ambiguidades, pelo fato principal de não possuir uma história, um passado, e nada a visualizar no futuro – pós-modernismo é, estritamente, o presente. Em contrapartida, não impõe nenhuma forma ou regra nova e, no entanto, está sempre permeado por bravatas e simulacros de rebeldia autêntica, sem nenhum aprofundamento espiritual que lhe adira um significado. Pós-modernismo, na visão de Terry Eagleton, reflete parte da mudança ampla que se observou na pós-modernidade, através de uma “arte superficial, descentrada, infundada, auto-reflexiva, divertida, caudatária, eclética e pluralista, que obscurece as fronteiras entre a cultura ‘elitista’ e a cultura ‘popular’, bem como entre a arte e a experiência cotidiana”. (EAGLETON, 1998). A partir dos anos 1960, iniciou-se uma forte reação dentro da sociedade, que atingiu, de forma rebelde e aparentemente irresponsável, todos os ambientes culturais e evoluiu, 25
multiplicando de forma rápida e inexorável, um número enorme dos mais diversos estilo e visões, os quais, “na década de 1980 [viraram] moda, sob rótulos como pós-modernismo” (HOBSBAWM, 1995). Mais que um movimento de rebeldia, era uma negação dos critérios estabelecidos previamente de julgamento e valoração das artes. Os artistas passaram, a partir deste período, a tentar, com certa ansiedade, inculcar na obra uma marca, um sinal, algo que permitisse que ela fosse reconhecida como sua, de imediato, numa enxurrada de produtos que fizeram com que o artista do velho estilo fosse sugado por este redemoinho e quase desaparecesse. Para Hobsbawm, o pós-modernismo é “a assimilação de rabiscos e outras bugigangas, ou de gestos que reduziam ad absurdum o tipo de arte basicamente comprada para investimento (...) como apor o nome do indivíduo à pilhas de tijolos ou terra (arte minimalista), ou impedindo que se tornasse um desses produtos fazendo-o demasiadamente breve para ser permanente (arte performance)”. (HOBSBAWM, 1995). O fenômeno do pós-modernismo voltou suas baterias contra o velho estilo de arte, contra as vanguardas e contra tudo o que parecia desgastado pelo tempo, e dispersou-se qual radiação atômica por todos os campos do conhecimento. A partir dos anos de 1980, e especialmente da década de 1990, tanto os campi como quaisquer ambientes tidos como eruditos, pululavam de sábios, pensadores, cientistas e historiadores pós-modernos. No entanto, como afirma Eagleton, apesar “de toda a sua tão alardeada abertura para o Outro, o pós-modernismo pode se mostrar quase tão exclusivo e crítico quanto às ortodoxias a que ele se opõe”. (EAGLETON, 1998: 34). 26
Quando Ortega y Gasset expôs seu pensamento sobre a arte contemporânea na frase “a arte atual é aquela que não existe”, o pensador espanhol procurava mostrar que este corte havido entre as artes modernas e as tradições artísticas que foram consolidadas durante o século XIX foi extremamente brusco, senão bruto, eliminando definitivamente qualquer ligação com o passado. A preocupação de Ortega é que no passado não havia, como há agora, esta sequência interminável de crises. As experiências artísticas de ontem complementavam-se com as do presente, estabelecendo conexões hoje impossíveis. Essa arte, formada só de atualidades, aparece sempre como se tivesse acabado de nascer, ou ser inventada em um átimo, para desaparecer em outro, como se sua essência fosse apenas o efêmero. Os “fenômenos artísticos” manifestam-se em tal profusão que desnorteiam e, em tal pluralidade que nos turva a visão, numa espécie de névoa onde tudo parece vago e incompreensível. É com razão que Ortega y Gasset observa que o esforço artístico em nossos dias se processa num ritmo de laboratório, de trabalho experimental, o que explicaria o fato de que hoje “se produzem mais teorias e programas do que obras. (...). O interesse pela arte alarga-se e redobra de intensidade paralelamente à destruição da estética”. (NUNES, 2003). Essa Estética que o pós-modernismo tanto se esforça para desqualificar, como uma necessidade premente de negar o Belo, até ao ponto mesmo de tentar destruí-la completamente, não é apenas o estudo da beleza, da originalidade, da capacidade da obra de arte em provocar prazer na sua contemplação, mas algo concreto, preocupação de pensadores ao 27
longo do século XVIII e XIX, como Kant, que em sua obra Crítica do juízo propõe três tipos de experiência: a cognoscitiva, que versa sobre o conhecimento intelectual propriamente dito; a prática, que é a dos fins morais que pretendemos atingir na vida; e a estética, assentada na intuição ou no sentimento dos objetos que nos satisfazem, independentemente de sua natureza. Para o pensador de Königsberg, o Belo é propriedade intrínseca das coisas que agradam independentemente de conceitos – a satisfação desinteressada. Essa ideia de beleza como propriedade intrínseca da obra de arte, que já fora proposta por Aristóteles, foi ratificada no século XVIII por Kant. Como afirma Scheling, “a graça ou a beleza das proporções é o ideal; corresponde ao claro-escuro na pintura (...) e a harmonia na música”. (SCHELING, 2001). Diante das tantas teorias e conceituações que permeiam o pósmodernismo, quais pedras agudas no caminho, Kant prefere reduzir “o Belo à condição de experiência estética, a qual se caracteriza pela aconceptualidade (não determinada por conceitos), pelo desinteresse (contemplativa) e pela ortotelia (finalidade intrínseca)”. (NUNES, 2003). Acredito que, quando falamos em belo e estética, temos em consciência que a beleza, qualquer que seja o seu significado, “ou o que possa dizer a última teoria inútil inventada sobre ela, possui tal poder de atração sobre os seres humanos que ela se legitima por si mesma, dispensando qualquer apologia. A arte já não tem a mesma sorte” (SHUSTERMAN, 1998). No último quartel do século XX, e continuando no XXI, tornou-se impossível discernir os limites do que pode ou não ser classificado como arte e, em determinadas situações, tais limites foram totalmente eliminados, “ou porque 28
uma escola influente de críticos literários no fin-de-siècle julgou impossível, irrelevante e não democrático decidir se Macbeth (...) é melhor ou pior do que Batman, mas também porque as forças que determinavam o que acontecia com as artes(...) eram esmagadoramente exógenas. Eram tecnológicas” (HOBSBAWM, 1995). Os pensadores e teóricos pragmáticos, céticos em relação às propostas teóricas tradicionais, relutam “em propor uma nova definição de arte que, após ser examinada filosoficamente, será, por fim, relegada à lata do lixo da história da arte” (SHUSTERMAN, 1998). A professora Louise Poissant, abordando a questão da arte abstrata, moderna e pós-moderna, afirma que todas as obras, “mesmo a mais abstrata, traz consigo a marca do clima ideológico e técnico que a produziu. Ela dá testemunho, com ou sem o consentimento de seu autor, de uma concepção de mundo, da arte de uma época” (DOMINGUES, 2003). Ao observarmos (atônitos) a parafernália de bugigangas (como as chama Hobsbawm), de maluquices e de delírios chamados de obras de arte pós-modernistas, temos a certeza de que aquela pesquisadora está coberta de razão: o que o artista pós-modernista cria é a medida de sua ideologia, de sua técnica e de sua arte. Tudo, no incomensurável espaço do pós-modernismo, está em constante agitação, num moto-contínuo de movimentos aleatórios, sem direção, sem objetivo distinto. O estabelecimento do que é avançado ou retrógrado é quase impossível, pois o pós-modernismo conseguiu um feito inédito na história da arte: quebrar, talvez definitivamente, o ajuste até então estável da relação espaço/tempo e, atualmente, não 29
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