As Aventuras do Seu José

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As aventuras do Seu JosĂŠ



As aventuras do Seu JosĂŠ Luci Molina


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CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ M734a Molina, Luci Teixeira da Silva As aventuras do seu José / Luci Molina. - Salto, SP : Schoba, 2012. 96p. : 17 cm ISBN 978-85-8013-192-5 1. Ficção brasileira. I. Título. 12-7037.

27.09.12 15.10.12

CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3 039470


Seu JosĂŠ e o Lobisomem



E

ssa história aconteceu há muito tempo numa parte remota do interior do Brasil. O progresso ainda não conhecia o caminho que levava àquele lugar e, na verdade, até hoje ainda não chegou por lá... Num pequeno povoado vivia seu José com seus seis filhos e Maria, sua esposa; mulher prendada, boa cozinheira e doceira de mão cheia. Homem bom demais da conta o seu José, trabalhador como ele só e muito zeloso da sua pequena propriedade, que não i9j


chegava a ser uma fazenda, mas era um bom pedaço de terra de onde ele tirava o sustento da família. Quando nasceu o sétimo filho, seu José ficou contente; sete filhos, sete homens para ajudar no trabalho com a roça... (mas intimamente seu José acalentava o sonho de que pelo menos um de seus filhos estudasse na cidade grande e se tornasse doutor). Deixando o sonho de lado, o homem logo tratou de levar o filho mais novo para ser batizado na igrejinha do povoado. Na manhã de um domingo ensolarado, enfeitou a charrete, enquanto dona Maria colocava nos meninos as melhores roupas e seguiram todos para aquele evento tão especial. Assim que chegou ao povoado seu José ficou sabendo que o velho pároco que antes havia batizado seus seis filhos mais velhos, tinha sido transferido para a capital do estado e que havia um novo padre em seu lugar. i 10 j


Seu José não deixou de reparar que aquele novo padre era muito estranho... Homem de pouca fala, palavras curtas, passava a maior parte do tempo olhando pra baixo e com aquele olhar que parecia esconder algum segredo... Isso, porém não foi problema para o seu José, devoto até debaixo d’água! O novo padre batizou o menino, tudo aconteceu dentro dos conformes e seu José voltou feliz para sua casa com dona Maria e as crianças. No caminho ele comentou com a mulher as atitudes esquisitas do padre, mas ela retrucou dizendo: “Isso é coisa da sua cabeça. Para de bobagem, homem”, o padre lhe pareceu um bom homem... E o tempo passou. Na verdade sete anos se passaram e tudo corria tranquilamente naquele pacato vilarejo. Até que numa manhã de sexta-feira, bem na virada da lua, seu José levou aquele susto! i 11 j


Ao sair para o trabalho com o primeiro cantar do galo, deparou com o cachorro, seu cachorro de estimação, companheiro de tantas caçadas e pescarias, morto no meio do terreiro. E não era morto apenas, o bicho havia sido estraçalhado. Seu José não conseguia entender que animal terrível teria feito aquilo com seu fiel amigo e como atacara um cão tão valente sem que se ouvisse um ruído sequer... Depois de examinar bem o bicho morto e o local, seu José verificou surpreso que nas proximidades não havia pegadas nem de onça nem de nenhum outro animal feroz, também não havia sinais de luta. O pobre fora apanhado de surpresa sem qualquer chance de reação. Coisa muito estranha para um cão tão valente e feroz. Enterrado o cachorro, seu José, dona Maria e os meninos trataram de seguir a vida, até que, no amanhecer da próxima i 12 j


sexta-feira, outro susto e desta vez quem se assustou foi dona Maria; ela levantou bem cedo como de costume, “passou” o café e foi tratar das galinhas. Não demorou muito e seu José ouviu o grito apavorado da esposa; “Zé do céu, acode! Corre, acode Zé!” Seu José correu pro galinheiro e a cena que viu fez arrepiar cada fio do bigode e da sua barba rala. Sua propriedade fora atacada novamente, dessa vez foi o galinheiro. Mais de vinte aves, animais fortes e saudáveis, pintinhos, frangos, galinhas, galo, patos, marrecos e até o peru, isso mesmo, aquele peru que o seu José estava engordando para o natal! Todos mortos, destroçados sem clemência. E, o que era mais intrigante, sem que se ouvisse um ruído sequer. Seu José não entendia como podia ser aquilo, sendo as galinhas animais tão barulhentos. E por que justamente sua propriei 13 j


dade entre tantas outras? Fato é que a notícia se espalhou como fogo em mato seco, e logo, todo o vilarejo sabia que tinha lobisomem no sítio do seu José. Em consequência disso, além do afastamento de vários amigos, seu José agora tinha que suportar também os olhares desconfiados das beatas na igreja e o repúdio dos companheiros no bar. Bastava que ele chegasse num ambiente, e o pessoal saía sob qualquer pretexto. Uma vez no boteco da vila, deixaram até a pinga nos copos quando ele chegou! Aquilo era doloroso demais pra um sujeito bom de prosa feito seu José, mesmo assim ele foi convivendo com aquela situação. Mas aquilo ainda não era o pior. O pior de tudo é que tinha gente jurando de pés juntos que o tal lobisomem era um dos filhos do seu José; “isso se não for ele próprio!” diziam. Seu José não podia permitir que aquilo i 14 j


fosse adiante, nem consentir que se espalhasse tal calúnia a respeito de seus meninos. Mas a cada sexta-feira, novo ataque: coelhos, codornas, cabras e bodes... Nem o papagaio e macaco sagui foram poupados, para tristeza e revolta dos meninos... E, a cada um desses ataques, mais boatos, aumentando assim o desespero de seu José. Ele esperava encontrar ajuda entre os amigos mais chegados, porém as pessoas reagiam com afastamento e maledicência. E, tanto falaram, caluniaram, e juraram em falso, que conseguiram realmente deixar seu José irritado, ele estava disposto a desvendar aquele mistério custasse o que custasse! Na sexta-feira da virada de lua, seu José estava apreensivo. Passou o dia preocupado com o que poderia acontecer naquela noite. Antes de se deitar, prendeu e contou todos os seus animais (os poucos que agora restavam). Demorou bastante tempo nessa tarefa i 15 j


já imaginando qual deles não estaria vivo na manhã seguinte... Tão logo escureceu seu José já estava na cama, mas não conseguia dormir, ficou agitado, olhos abertos, lamparina acesa... A seu lado, suas companheiras de toda a vida: a Maria e a espingarda de cano duplo. Durante aquela noite interminável, ele não ouviu outros ruídos além do ronco da Maria ao seu lado e o coaxar dos sapos lá fora. Amanheceu finalmente! Mal os primeiros raios de luz apareceram na fresta da janela, já estava seu José lá fora. Infelizmente o que ele temia aconteceu. Dona Maria ainda estava na cama quando o marido entrou cabisbaixo no quarto. — O que foi dessa vez, Zé? A voz embargada quase não deixou sair as palavras; — A malhada... Isso mesmo, dessa vez fora a malhada. i 16 j


Vaca de estimação que forneceu o leite para alimentar os sete filhos do seu José, o mesmo leite com o qual dona Maria fazia os queijos que seu José vendia lá na vila... Isso mesmo, a Malhada. A pobre vaca, apesar de seu tamanho e peso tinha sido estraçalhada e suas partes espalhadas pelo curral, sem que seu José tivesse ouvido nenhum mugido! Aquilo era realmente demais, porém seu José tinha um plano... Na seguinte sexta-feira de virada de lua, ele agiu normalmente e trabalhou como de costume, cuidou da plantação já que agora praticamente não tinha animais na propriedade... Mas antes do anoitecer, fez um trabalho extra: deixou carregada e preparada sua velha espingarda de cano duplo, aquela mesma que tantas vezes ele usara nos velhos tempos de caçada com os amigos. É isso mesmo, a velha espingarda da qual nenhui 17 j


ma raposa jamais escapara... Anoiteceu. Todos foram se deitar após as rezas habituais. Todos não. Seu José ficou lá na escuridão da sala com a espingarda pronta, olhando atentamente pela fresta da grande janela de madeira. As horas eram intermináveis. O tempo passava lentamente. Nove horas, nove e meia, dez horas, onze da noite, e nada... Seu José estava quase sucumbindo ao sono. Quando por volta da meia noite ele viu aquele vulto... Era grande, parecia homem, mas homem não era, parecia lobo, mas lobo não era, tinha o corpo peludo como de macaco, mas macaco não era! Seu José não esperou pra ter certeza, mirou e atirou. Atirou e acertou! Só que o bicho era quase tão rápido quani 18 j


to o pensamento do seu José e, assim que foi ferido, embrenhou-se no mato e sumiu. Os filhos do seu José acordaram com o disparo e, em questão de segundos estavam todos na sala assim como a dona Maria; enquanto seu José exclamava ao gritos: “Eu peguei ele, eu peguei o bicho!”. Saíram todos para procurar. No milharal, nada. No curral, nada. No galinheiro agora vazio, nada. Procuraram por toda a propriedade sem encontrar nem sinal da fera. Quando o dia clareou, seu José e os rapazes deram outra volta pela propriedade na tentativa de encontrar o “animal” ferido ou morto, pois seu José tinha certeza absoluta de que acertara o tiro. Foi então que viram manchas de sangue e pegadas. Pegadas estranhas de um pé quase humano embora fosse bem maior e tivesse apenas quatro dedos. i 19 j


Aí seu José, homem bom como ele só, ficou triste e preocupado... Ele pensou: “Ai, ai, ai... e se fosse uma pessoa? E eu atirei. Posso ter acertado o tiro num ser humano...” Dona Maria nunca tinha visto o marido naquele estado, e foi ela quem deu a ideia “Vai lá, à vila Zé, fala com o padre, ele sabe aconseiá nessas hora...” Seu José estava tão aborrecido com a possibilidade de haver acertado alguém que resolveu ir à vila, como disse a Maria, para falar com o padre. Ele chamou três de seus filhos mais velhos, selou os cavalos e foi. Silencioso e cabisbaixo por todo o caminho, com o sol batendo no rosto apesar do inseparável chapéu de palha que lhe protegia os olhos e escondia um pouco da mágoa. Chegando à cidade, seu José precisava de coragem para ir falar com o sacerdote, então resolveu parar no bar do Juca para “toi 20 j


mar uma”. Lá encontrou seu velho amigo e compadre, Antônio, que vendo a expressão carregada do seu José, logo quis saber qual o motivo de tanta preocupação. Seu José então lhe contou o ocorrido. Em poucos minutos tinha juntado gente pra ouvir o relato e os homens decidiram acompanhar seu José na nervosa travessia da praça para falar com o padre. Na porta da igrejinha... — Ô seu padre! Seu José batia palmas fracas ao mesmo tempo em que chamava pelo padre; queria que este saísse para atendê-lo, mas temia ser repreendido publicamente. Silêncio. — Seu padre, ô seu padre! O senhor tá aí dentro?... Seu José chamava já com o rosto enrubescido ante os olhares acusadores de alguns i 21 j


e atentos de todos. Foi então que a antiga e pesada porta de madeira da igreja abriu-se lentamente, rangendo de modo tenebroso e quebrando o silêncio extremo que reinava na praça. Saiu o padre. Rosto pálido, olhos desconfiados, todo arranhado e mancando de uma perna. Entre os homens, uma silenciosa troca de olhares como a perguntar: o que teria acontecido? Seu José quebrou o silêncio: — O que foi que aconteceu seu padre, que machucadura é essa? Ao que o padre respondeu com voz trêmula e evasiva. — Não foi nada, eu bati a perna na quina de um banco... Seu José, mineiro legítimo e, portanto, desconfiado como ele só, e que, aliás, sempre suspeitou das atitudes daquele padre, foi i 22 j


se aproximando e num gesto rápido e ousado, agarrou a batina do padre, levantou-a e foi logo dizendo: — Deixe ver o ferimento, quem sabe podemos achar remédio que alivie a dor do sacerdote. Quando a batina foi erguida, seu José soltou um grito que estremeceu todos os presentes: — Que batida que nada! Padre mentiroso! Esse furo é de bala, e é bala da minha espingarda que eu conheço muito bem! Todos se aproximaram para ver melhor e mais de perto, formando uma roda em torno do padre e impedindo sua tentativa desesperada de fuga e, todos os presentes viram; o padre tinha, na perna, mais precisamente, pouco acima do joelho da perna esquerda, dois furos de bala causados pela espingarda cano duplo do seu José. Ante os olhares espantados de todos e i 23 j


(apesar do ferimento), o “falso” padre conseguiu pular e sair do cerco no qual estava. Entrou na pequena igreja e bateu a porta. Agora estava explicado. O “padre” era um lobisomem disfarçado! Rapidamente a notícia se espalhou pela vila como fumaça levada pelo vento. Outras pessoas começaram a chegar e, logo, todo o povo estava concentrado ao redor da pequena igreja. Lá dentro, silêncio total, o “padre” não abria nem atendia as insistentes batidas na porta e nas janelas. Enquanto isso do lado de fora, burburinho, falatório, rezas e desconjuramentos, o povo não arredava o pé da praça. Seu José resolveu pôr fim àquele suspense. Chamou seus filhos mais velhos para entrar na igreja e também foram chamados o Juca do bar e o compadre Antônio, logicamente vieram alguns outros homens que i 24 j


não quiseram ficar fora da empreitada para mais tarde não serem chamados de frouxos, embora estivessem intimamente “se borrando” de medo. Na verdade, com exceção é claro de seu José, não havia homem com coragem suficiente para entrar na igreja e encarar o “padre” (ou sabe-se lá o que era aquilo), de frente. Nessa hora, mulheres e crianças foram mandadas pra casa, já que ninguém tinha ideia do que poderia acontecer. Após longos minutos de eterna expectativa os homens entraram na pequena igreja, que tinha uma única porta. Pé ante pé, cada qual disfarçando o medo como podia. Uma vez lá dentro, procuraram pelo “padre” em todos os lugares. Na sacristia, nada. No altar, nada. Atrás do altar, nada. No confessionário, nada. Debaixo de todos os bancos, nada. i 25 j




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