Porque os mandacarus florescem

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M ARCOS G ONZAGA

DE

L IMA

PORQUE

os Mandacarus Florescem



M ARCOS G ONZAGA

DE

L IMA

PORQUE

os Mandacarus Florescem


Copyright © Marcos Gonzaga de Lima Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma e por qualquer meio mecânico ou eletrônico, inclusive através de fotocópias e de gravações, sem a expressa permissão do autor. Todo o conteúdo desta obra é de inteira responsabilidade do autor. Editora Schoba Rua Melvin Jones, 223 - Vila Roma - Salto - São Paulo - Brasil CEP 13321-441 Fone/Fax: +55 (11) 4029.0326 | 4021.9545 E-mail: atendimento@editoraschoba.com.br www.editoraschoba.com.br CIP-Brasil. Catalogação na Publicação Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ L699p Lima, Marcos Gonzaga de, 1971Porque os mandacarus florescem / Marcos Gonzaga de Lima - 1. ed. - Salto, SP : Schoba, 2013. 140 p. ; 21 cm. ISBN 978-85-8013-265-6 1. Romance brasileiro. I. Título. 13-01904 CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3


Sumário O oriente..................................................................... 11 A rotina........................................................................ 11 O amor.......................................................................... 12 O lazer......................................................................... 14 O pedido....................................................................... 16 Como nascem os mandacarus..................................... 19 Um avô nota 10............................................................ 21 Lapso das melhores memórias.................................... 24 Um velório frustrado................................................ 24 Um sinal....................................................................... 26 Um novo dia................................................................. 27 Uma noite de baile...................................................... 29 A história sempre se repete........................................ 33 O laço........................................................................... 37 O presságio................................................................... 42 A visão.......................................................................... 49 O rubacão.................................................................... 50 Na feira........................................................................ 50 A casa do telefone...................................................... 52 O reencontro.............................................................. 54


Conhecendo a família................................................. 61 Prova de fogo.............................................................. 70 Os primeiros dias......................................................... 74 Rotina vespertina........................................................ 75 A concepção................................................................. 77 Um pai babão................................................................. 80 A barrigudinha............................................................ 81 O primogênito............................................................. 82 Bebendo o mijo............................................................ 86 O querubim.................................................................. 87 Má sorte....................................................................... 91 Uma ideia de jerico..................................................... 92 O sexto sentido........................................................... 95 A saudade..................................................................... 98 O catimbó..................................................................... 99 Um cigano por natureza........................................... 102 Cumprindo-se a ventania.......................................... 103 O pau-de-arara........................................................... 106 Fazendo amizade........................................................ 108 Emanuel...................................................................... 109 Um homem que inspirava fé...................................... 111 Uma babá diferente................................................... 114 Uma profecia enigmática.......................................... 115


Paciência de Jó........................................................... 117 Solidariedade............................................................ 120 O filho pródigo........................................................ 122 Santa coincidência.................................................... 127 Uma noite de amor reconciliatório........................ 128 O amor fraternal...................................................... 130 A despedida................................................................ 131



Quando viajei para o sertão nordestino, tive uma experiência que jamais esqueci. Durante o percurso da viagem, estando eu assentado em um dos bancos do ônibus, ao lado das janelas, contemplando a vegetação do agreste, fui, de repente, arrebatado em visão ao cume de uma grande rocha. Lá, em cima daquela penha, estava o motivo do meu arrebatamento: uma árvore solitária. Parecia estar acostumada a viver sozinha ali, onde estava não havia condições para outras raízes. O que me admirou não foi a sua aparência externa. O que mais me impressionou foi a sua situação, sua solidão. A contemplação durou apenas alguns minutos, mas foi o suficiente para perceber o caráter lutador, vencedor, firme daquela planta, alheia à realidade que a cercava. Outra coisa me intrigou: o fato de aquele arbusto estar fixado sobre uma pedra dura, ríspida, que rejeitava qualquer forma de vida. Como poderia, então, sobreviver? Onde estariam suas raízes para que pudessem nutri-la? Mais tarde, descobri que a árvore pela qual tinha me apaixonado se tratava de um MANDACARU. Aprendi também que eles não se entregam tão facilmente. Pelejar faz parte de sua natureza. Natureza forjada e provada pelo arder do sol e pela aridez da terra sertaneja. 11


Descobri ainda que, para viver, não precisam de recursos alheios, pois aprenderam a gerar as suas próprias forças. E quando não há da parte de outrem qualquer perspectiva, mesmo assim SOBREVIVEM. Não se rendem, renascem sempre, como uma fênix, só que do agreste. Os MANDACARUS são símbolos da esperança. Eles nos encorajam a permanecer firmes, ainda que tudo possa parecer desolador. E tudo isso, no seu silêncio. A serenidade é escudo. Os ventos não os incomodam nem os enganam. Neles, não há folhas (pelo menos as convencionais), foi a natureza que encarregou tal proeza. Às vezes, não ter folhas é bom: as ventanias não têm o que nos roubar. Não se lastimam dos espinhos, aliás, eles os revestem. Para protegê-los, moldamnos: os ladrões também não os querem. Por isso, os demais seres não entendem seu comportamento diante da vida. Mas eles sabem que tudo, mesmo os espinhos, são essenciais para sua sobrevivência. Diante disso, não se lastimam por tê-los. Sabem que são justamente eles os protetores da sua essência: seu interior rico e vital. Os espinhos afastam os inimigos. A morte por vezes é afugentada por eles. NEUSA: MANDACARU!

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O oriente Os primeiros raios de sol riscavam as serras do agreste paraibano, e os primeiros ruídos da manhã anunciavam mais um dia de dura lida. A caatinga começava a arder no estalar dos raios do rei, e o orvalho avexado fugia de toda a vegetação, com uma pressa indescritível. O céu anunciava mais um dia sem água, castigando os vivos que insistiam em enfrentá-lo. Sem temor ao mandatário, os mandacarus continuavam, lá, de braços abertos, dando boas-vindas à vida que pulsava nos seus interiores.

A rotina Quando o calor começava a derreter as gorduras dormentes dos corpos dos sertanejos, Maria Rosa, “mulher-macho, sim, senhor”, já se encontrava ao pé do fogão a lenha. Aos poucos, os demais da família despertavam. O viúvo, patriarca, era o segundo a levantar-se. Ainda na rede, o mancebo negro, elegante e forte apelava por suas filhas: – Preta! Izaura! Maria! Minhas filhas, venham cá! 13


Toda manhã cumpria a mesma rotina, chamava as filhas para abençoar, antes de todos irem para o roçado de algodão. As meninas já eram mulheres formadas, todavia não tinham se casado. Não eram feias, no entanto, não tinham encontrado até aquele momento um marido que as amparasse. – Benção, papai! – em uníssono cantavam. O patriarca com satisfação respondia: – Deus as abençoe! O pai, antes de lavar a boca, ou cair da rede, sempre fazia suas preces ali mesmo. Começava com o sinal da cruz e depois balbuciava o Pai Nosso, fechando a proteção, com outro sinal da cruz. Acreditava que, fazendo assim, ficaria com o corpo fechado, para todo o mal que sobreviesse àquele dia, que acabara de nascer. Há muito era viúvo; para sua companhia noturna, restava o seu companheiro e servo, o quase branco e velho pinico esmaltado. Ao sair do quarto, ele também ia junto para fazer o asseio matinal. O servo ficava ao sol sobre o telhado, o senhor tomava o seu café e arrumava a trouxa da roça. Era o único momento que se separavam.

O amor Em nenhum lugar do mundo as mulheres nascem frágeis, as do sertão não fogem à regra. A diferença é que no sertão são forjadas pela vida dura e seca da roça. Na luta 14


cotidiana pela vida, algumas flores perdem as suas pétalas de sensualidade, outras não. As mulheres são flores. O cabo da enxada não destruíra a vaidade da Rosa Maria, que, apesar de tudo, guardava a seiva de amor por si mesma. Tanto que, ao contrário das irmãs, que haviam perdido o sonho de casar-se, ainda tinha a esperança de encontrar o seu grande amor. Espera o amor! Ah! O amor. O amor é sofredor, é benigno, não inveja, não é leviano. Vale a pena esperá-lo, portanto, crê e aguarda. O amor, além de não falhar, sempre chega no tempo oportuno. Ninguém sabe ao certo de onde vem este sentimento e o porquê de encontrar repouso justamente nos corações humanos. O que sabemos ao certo é que repentinamente se manifesta, como relâmpagos em dia de chuva. Dizem que o amor pode nascer de várias maneiras, ora por apelo dos deuses, ora por desespero da solidão, ora por forte atração, ora pelo cheiro de herança. No sertão, o desconhecido amor é sabatino, sendo acalentado pelo calor dos umbigos e pela zuada harmônica dos conjuntos de forró pé de serra. Por ser o amor sabatino, esse dia se tornou, com o tempo, um dia importante para o sertanejo. É dia de festa, de namorar e de deixar manifestar-se o amor.

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O lazer O forró é a dança dos deuses do Olimpo paraibano, em que Zeus toca fole e as Musas juntam os umbigos, e outras coisas também. Todos os sábados, Maria Rosa e suas irmãs se aprontavam para a festa. Como de costume, revestidas com vestidos de chita, feitos pelas mãos e pés de dona Tica, a melhor costureira da cidade. Os cupidos, de vez em quando, atreviam-se a visitar os forrós, eles nunca dançavam, gostavam apenas de ficar brincando de tiro ao alvo. Foi em um destes forrós que Maria Rosa e Zé Mulato foram atingidos em cheio. Curiosamente, naquele dia, os desastrosos cupidos não utilizaram flechas, mas os pés. Aproveitaram que a moça tinha uma unha encravada e, quando a desavisada andava erma no salão, fizeram com que o rapaz desse uma pisada nela. Como os cupidos são criativos! – Ai! Você não repara onde pisa, não, ô? Parando o bailar, o jovem dançarino, mulato, desconcertado abaixou-se ao encontro da moça fininha que choramingava, segurando o pé. – Desculpe! A jovem, cega de dor, respondeu: – Depois que inventaram a tal da desculpa, ninguém mais é culpado de nada! – Por caridade! Levante daí, senão pisam no seu pé de novo. 16


O moço educadamente a segura pelo bracinho magrelo e, numa tentativa de remissão, convida: – Vamos dançar um pouquinho, quem sabe não cura? Ela aceitou. Dançaram por alguns momentos, sem se falar, até que, adormecida a dor, a jovem percebeu a beleza do seu par e o elogiou: – Até que você dança bem! Com galanteio, ele respondeu: – Com uma parceira como você! Zé Mulato era um homem direto em suas palavras, por isso, não perdeu tempo. Chegou ao pé do ouvido da jovem morena, lançando uma fisgada: – Qual a sua graça? – Maria Rosa. – Maria... Você é bonita, sabia? A moça ficou a pensar naquilo tudo. Como poderia aquele jovem tê-la conhecido há pouco e estar com tais liberdades? Mesmo assim, deu corda para o corajoso. – Você também! Ao chegar a casa, depois do baile, ficou a pensar na noite inesquecível e o quanto a vida é engraçada. – De uma pisada! – falou embalada pela rede.

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O pedido Era costume da época pedir ao pai e à mãe da moça permissão para namorá-la. (Caro leitor, há muitas outras lembranças, mas vou deixá-las para depois.) Era um domingo quando o alazão relinchou no alpendre à frente da humilde casa caiada, de cor azul. Apeando-se do cavalo, e já pisando na própria sombra, cuidadosamente gritou: – Ô de casa! Ô de casa! Uma voz firme respondeu: – Já vai! Uma jovem da cor de canela, de traços firmes, apontou no batente. Não reconhecendo o moço, inquiriu: – Gostaria de falar com quem, moço? – Com Maria, ela está? Sem mexer os cambitos e revirando o pescoço para trás, bradou: – Maria! Tem um homem aqui fora querendo falar com você! – Quem é? – Não sei não. – Qual o seu nome mesmo, moço? – José. Confiando no vento, gritou: – É um tal de José. 18


Sem fazer ligação do nome à pessoa, ela saiu do jeito que estava, desarrumada, com bobes no cabelo, roupa de casa e chinelo de dedo surrado no pé. Ao sair à porta, viu seu amado. Espantada, falou: – Meu Pai Eterno! Que faz aqui, homem de Deus? De forma direta e em tom de brincadeira, ele retornou o espanto. – Vim pedir sua mão em namoro, noivado e casamento. – Mas homem! Isso é lá jeito de chegar! – Maria, deixe de conversa, vamos! Ao entrar na casa, concedeu uma elegante saudação a todos os enfornados. O sol estava a pino. – Boa tarde! – Boa! Todos os olhares se voltaram para ele, e isso fez com que ficasse sem jeito. Olhando firmemente para baixo, procurou um buraco – que ainda não tinha sido feito – para que pudesse entrar. Maria Rosa, com mais espinho do que de costume, percebendo tal situação, tocou de leve a sua mão, convidando o assanhado para sentar-se. O mancebo nunca fora tímido, mas, ali, naquele instante, jamais desejara tanto sentar-se, por isso, não hesitou. – Obrigado, Rosa. A cena estava ao mesmo tempo preocupante e engraçada. De um lado Maria, tão nervosa, que se esquecera da sua feiura, de outro, o jovem desconhecido, mudo e assustado. Ninguém estava entendendo nada. Tentando deixar o mulato mais à vontade, a espinhosa deu um chute no diálogo. 19


– Bom, gente! Este aqui é o José. Os matutos quase não responderam. – José, este ali é o meu pai, aquela ali é a Preta e aquela é a Izaura, eu tenho um irmão, mas ele não mora mais aqui. O velho patriarca, afugentando o gato que estava sobre a sua língua, cortejou-o: – É um prazer conhecer você, meu filho! – O prazer é todo meu, senhor. – O moço mora onde? – Em Pombal. – Qual é a sua ocupação, meu rapaz? – perguntou o velho. – Sou caixeiro-viajante. Como de costume, adivinhou: – Vejo em você honestidade, meu filho! Mas, diga, o que o trouxe a esta casa? – Eu conheci a sua filha, e gostei muito dela. O senhor aceita o nosso namoro? Olhando para a filha com um ar de austeridade, como que traído, o velho retrucou: – Filha, que conversa é essa? – Pai, eu... Antes que Maria se desarrumasse mais ainda, Zé Mulato consertou: – Por enquanto sou apenas eu quem está enamorado. Continuaram não entendendo nada. – Gostei muito da sua filha, senhor. Gostaria que liberasse nosso namoro. Olhando para a jovem, perguntou: 20


– Maria, você quer namorar comigo? Sem saber o que estava falando, concordou: – Sim, mas... – Se minha filha quer namorar você, então eu aceito, com uma condição! – Pode falar senhor! – Não a faça sofrer – estava feliz pela oportunidade de falar tais palavras pela primeira vez. Maria Rosa e Zé Mulato namoraram, noivaram e casaram. E Mandacaru, fruto deste amor, floresceu três anos depois do casamento.

Como nascem os mandacarus Naquela manhã, Maria acordou com dores diferentes. Sentia que daquele dia não passava e já apelava para Nossa Senhora da Conceição segurar em suas mãos desde aquela hora. Seu bucho, até então espichado, agora dava lugar para uma barriga que tinha descido muito, sinal de que o neném já estava às portas. Naquele dia, não foi para a roça. Decidiu ficar em casa e pediu a Zé que chamasse a parteira, pois algo lhe afirmava que a criança podia nascer a qualquer hora. O Mandacaru estava lá, sozinho no meio daquela sequidão, sem flores. A chuva, há muito esperada, não dava sinal de visita, e, pela fenda na parede deixada pelo barro que caíra, 21


dava para perceber a quentura que varria a caatinga. Rosa, vendo esta cena e estarrecida pela realidade, restou a pensar: – Sou tão jovem e já com menino para criar. Os pensamentos foram interrompidos por uma contração, que a fez suspirar de um efêmero arrependimento. Algumas vezes, a gente sente dor que não sabe de onde vem. Simplesmente se arrepende, não se sabe de quê. É como um pássaro vindo de terras longínquas e que encontra pouso em nós. Mal avistou a parteira à porta e já foi logo gritando: – Ai, Tica! Parece que meus ossos estão se partindo. – É assim mesmo, querida, não se assombre, não. Maria, a Mãe de Nosso Senhor Jesus, está contigo nesta hora. Houve um tempo em que os homens nasciam por mãos somente de mulheres, fortes e corajosas, que, por si mesmas, aprenderam a trazer à luz a vida humana. Maria estava naquela cama esperando a hora de viver, ou morrer. As contrações aumentavam e ela sentia a vida pulsar e pedir passagem para aflorar. – Tica, segura em minha mão – exclamou. – Maria, pegue esta garrafa, e quando sentir a pontada, sopra com força, minha amiga. A luta persistiu. Depois veio um silêncio. Um grito soou: – É menina! Juntas, choraram. Perto dali, sobre uma penha, um pé de mandacaru punha um lindo botão de flor.

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Um avô nota 10 A pequena Mandacaru perdera seu pai quando ainda estava com cinco anos de vida. Segundo lhe contavam, era caixeiro-viajante. (... Às vezes, faltava-lhe... ar...) Conheceu-o em ouvir falar. Das histórias que ouvira, criou a imagem que possuía dele: mulato, de nariz afilado, cabelos negros, magro e alto. Ouvira também sobre o seu caráter honesto e como fora um homem de bons negócios. Um grande vendedor. Bom pagador e um excelente cobrador. Foi assim que conheceu seu falecido pai: de ouvir falar dele e dos encontros anuais. A menina, todos os anos, tinha um encontro com o seu passado desconhecido: 2 de novembro. (... Periodicamente lhe faltava o ar...) Nessas visitas, as pessoas costumavam chorar em horas o que não choravam em meses. Parecia que naquele dia a saudade dos mortos resolvia invadir os vivos, trazendo as lembranças outrora adormecidas. Talvez fosse por isso que a menina tinha uma imagem muito santificada de seu pai, e quem sabe até enganosa. O fato é que, verdades ou mentiras, estava sempre com saudades de um pai que nunca tivera. Sua mãe falava que tinha uma foto de seu pai, tirada quando ele estava no caixão, essa, ela nunca se arriscou a ver. Até ali não tivera coragem suficiente para olhar essa fotografia, preferindo lembrar-se do pai criado com o auxílio de sua imaginação. 23


Os vivos de carne e osso, de uma maneira ou outra, precisam de passado. Com a menina-moça não era diferente. Só que, no seu caso, o passado não passava de castelos de areia, à beira do açude seco e sem água. (Continuamente lhe faltava o ar...) Além do pai, fruto dos seus pensamentos, Mandacaru tinha um pai mais real. O homem que aprendera a amar como o pai, em verdade, era o seu avô, um escravo alforriado, que vivera toda a sua vida labutando na cultura do algodão e, como todos os negros da época, sem nome e sem sobrenome, possuidor apenas de sua memória do histórico antepassado. Era chamado de Pai Véi, uma forma carinhosa com que os filhos se dirigiam àquele velho sábio, submisso ao doutor e ao doutorzinho. Uma coisa chamava a atenção naquele homem, o amor. Mesmo tendo um passado registrado de árduos trabalhos, seu coração não abrigava outro sentimento senão o carinho pelos filhos. Quando da sua alforria, preferiu ficar a sair da fazenda. Para onde ir? Sua vida estava ali. Fora daqueles piquetes que o cercavam, não havia vida. O que tinha como herança de sua existência eram as recordações, e elas estavam plantadas naquelas áridas terras. Quando a pequena Mandacaru nasceu, ele já estava na casa dos 50 anos, mas as cãs não foram, de maneira nenhuma, obstáculos para cuidar daquela amável negrinha que tanto amava. (A pequena menina tinha o fôlego curto...) O velho escravo gostava de conversar. Nas conversas 24


que tinha com a juventude, sempre deixava escapar o que mais considerava importante na sua peregrinação na terra de Deus. Quando questionado sobre não ter bens materiais, afirmava: onde há abundância de ouro, há falta de amor, onde há falta de ouro, há abundância de amor. Para alguns, o ouro e o amor podem andar juntos. Mas para aquele ancião que possuía um filho garimpeiro, não. Às vezes punha a pequena neta no seu colo e, no embalo da rede, entre as baforadas do cigarro de palha e o rangido dos punhos, rezava: – Fui jovem e hoje sou velho, nunca vi ouro e amor agarrados e caminhando na mesma estrada. Foi com esse surpreendente homem que Neusa (Mandacaru) aprendeu amar a vida e, mesmo quando estava com crises asmáticas, não se deixava levar pelos momentos de sofrimento que passava. E sempre foi assim, ao olhar para seu avô e pai, sua alma se enchia de vida e da certeza de que tudo iria passar. – O tempo resolve tudo, filha, tudo! E há tempo para tudo em cima desta terra! – o ancião gostava de repetir o adágio que aprendera na missa. A menina, sentada no colo do avô, sonhava... Nesses sonhos, imaginava seu pai, que chegava à porta e com carinho fazia cafuné na sua cabeça. As horas ao lado do avô voavam.

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Lapso das melhores memórias Mandacaru passou a sua adolescência à espera de um príncipe que iria lhe arrancar daquela rocha, mudando o rumo do seu destino, árido e seco. (É incrível como esta síndrome acomete os vivos! E o pior de tudo é que sempre há um cavalo na estória, não consigo lembrar a cor deles!)

Um velório frustrado Já era noitinha quando uma voz adolescente bradou no portão. – Neusa! Hoje tem velório na casa de Bertina. Você vai? A menina, na sua tenra idade, nada entendia sobre o que realmente era um velório. Sabia, apenas, que as pessoas choravam, comiam e riam. Depois saiam na manhã do dia seguinte com o esquife e plantavam o corpo do defunto na terra. Naquele dia, a jovem restou deitada na rede, à procura do fôlego que perdera desde o raiar daquele dia. O cansaço lhe tirava as forças e a deixava muito desanimada, buscando ar. Com a voz ofegante, miou: – Não sei, Chica, hoje não estou bem, acordei muito cansada. 26


– Vamos, vai ser bom, Nenê vai estar lá e a turma do liceu também. – Não prometo nada, vou tomar alguns cachetes e, se estiver melhor, eu vou. – Passa lá em casa primeiro, quero mostrar meu vestido novo. – Tá bom. Há quinze anos padecia daquela enfermidade. Quando a crise apertava contra a jovem, todos sofriam com ela. Certa vez, quando estava em crise, uma das mais fortes que sofrera, sua mãe, em desespero, rogou a Deus que a levasse para junto de si, pois, para ela, qualquer coisa seria melhor que ver sua filha definhando daquele jeito. A jovem, porém, jamais pediu tal coisa a Deus. Os sonhos que possuía eram bem maiores do que aquele calvário de que padecia. Devido à enfermidade, era uma moça muito magrinha. Os amigos mais íntimos arriscavam brincar com ela. Costumavam ameaçá-la com os ventos. Qualquer que fosse a discussão, arrazoavam dizendo: cuidado com o vento, hein! Dependendo, você voa! O ar é o sopro do criador que mantém a vida dos homens e mulheres. Respirar este hálito Dele para dentro de nós é, sem dúvida, a melhor dádiva do universo. No entanto, há brônquios tão orgulhosos, como o caso daquela jovem, que insistem em não querer nenhum sopro. O convite para ir ao velório poderia não ser atendido. Mesmo se melhorasse naquele exato momento, devido ao esforço que fazia para manter-se viva, só recobraria as forças, de fato, após algumas horas de repouso. 27


Viver. Esta era a guerra diária da jovem. Aquela enfermidade maldita lhe consumia muitos bailes, festas, velórios. Da janela onde estava, podia ver o céu do sertão, sem véu. Contemplando as estrelas, suplicou: – Deus! Meu Pai Celestial, me socorre. Estou morrendo aos poucos. Não tenho mais forças para lutar contra este mal. Me leva para um lugar onde há recursos, para que eu possa tratar-me. Saiu dali e caiu em uma rede armada no quarto, e adormeceu. Há momentos na nossa vida em que a gente não sabe se adormece ou se morre... Enquanto dormia, ou morria, seu avô se aproximou, estendeu a mão, e, colocando-a sobre o rosto da menina, disse: – Está fria, Izaura! Passando a mão sobre o cabelo engrenhado, suplicou: – Filha, não se entregue, lute. Não deixe esta doença acabar com os seus sonhos.

Um sinal Naquele dia, a jovem, adormecendo, teve um sonho. Sonhou que estava indo para um lugar de muita fartura, panelas cheias de arroz e feijão, amigos ao seu redor. No sonho havia um jovem moreno. Talvez pudesse ser o prín28


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