Cinema como forma de escrita

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DOCUMENTÁRIO Cinema como forma de escrita O cineasta Eduardo Montes-Bradley vasculha nos livros uma maneira de explicar o Brasil e o ser humano texto Clarissa Macau

“Eu não me sinto filmando os documentários, mas escrevendo com a câmera. Quero humanizar experiências, sejam elas livros, a medicina, ou a política”. A declaração é de um cineasta que, profundamente marcado por política e arte, decidiu juntá-las a fim de explorar a natureza humana e seus contextos. No melhor estilo façavocê-mesmo, o argentino, também biógrafo e jornalista, Eduardo Montes-Bradley peregrina desde os 15 anos em torno de projetos cinematográficos. Embora pouco comentado, é dono de um currículo de 74 produções e, atualmente, aventura-se pelo mundo da literatura contemporânea brasileira. Nesse

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universo, o diretor percebe a “origem dos melhores livros do futuro”. Em 1976, a Argentina era vítima da ditadura militar, o que estimulou o cineasta, então exilado, a criar filmes contemplando os direitos humanos. Morando nos Estados Unidos desde aquela década, realizou documentários sobre vários intelectuais. “Em hipótese, eu acredito que o diretor Woody Allen poderia ajudar a visualizar a classe média judaica de Manhattan nos anos 1970, assim como a família dos Médici ajudaria a compreender a cidade de Florença no século 15”, defende. Pintores, poetas, escritores, políticos, ativistas já foram retratados sob facetas desconhecidas diante da sua câmera. Entre eles, o

guerrilheiro Che Guevara, o escritor Julio Cortázar e a primeira-dama Evita Perón, exemplos de argentinos que serviram a uma “biópsia” da vida cultural e social do país. Hoje, Montes-Bradley volta suas lentes para escritores brasileiros, no projeto Writers made in Brazil, no qual produz esquetes biográficas que prestigiam intimamente os autores, um a um: a carioca Adriana Lisboa, o cearense Ronaldo Correia de Brito, a chilena radicada no país Carola Saavedra, o mineiro Luiz Rufatto e o amazonense Milton Hatoum. Os filmes serão oferecidos a universidades e bibliotecas de todo o mundo em janeiro de 2014, pela distribuidora Alexander Street Press e pela sua produtora, a Heritage Film Project. Na composição de seus documentários, Montes-Bradley segue sem roteiro prévio, apenas munido de câmeras, microfones, baterias e um computador, além de um amigo, o assistente Max Gordon. O principal método para a construção dos filmes é sua sensibilidade como diretor e a interação com o entrevistado. “Eu navego através do diálogo, espero conseguir acessar a alma do tema que escolhi.”

DIÁSPORA MODERNA

A relação com o Brasil é antiga. Eduardo é fã dos filmes Orfeu negro (1959) e Central do Brasil (1997). Como cineasta, viajou pelos bastidores do samba e do carnaval do Rio de Janeiro,

1 carola saavedra Filme com a escritora chilena foi realizado a partir de seu livro Flores azuis, no Rio de Janeiro e em Berlim 2 bastidor Eduardo Montes-Bradley com Ronaldo Correia de Brito, durante captação para documentário sobre o escritor

no documentário Samba on your feet (2005). Na literatura nacional, quem o despertou foi Azul-corvo, romance de Adriana Lisboa. O diretor se identificou com a diáspora moderna vivida pela protagonista Evangelina.“O enredo lembra meu próprio exílio. A praia de Copacabana, na história dela, é como se fosse minha cidade de origem, Buenos Aires. O estado americano do Colorado, da pesonagem, é meu mundo pósexílio. É interessante perceber a relação da ideia de origem e destino”. O resultado do encontro com a escritora foi um belíssimo poema visual de 26 minutos, ambientado no clima frio das montanhas americanas coloradenses, apresentando os contextos históricos de dois países e do encontro do ser humano com o “outro”. “No meu caso, sempre posso transformar a saudade em literatura”, expressa a personagem Adriana, numa cena. O filme Lisboa está disponível na íntegra, no site da Continente. Processo de aproximação semelhante ocorreu entre MontesBradley e Ronaldo Correia de Brito. No apartamento recifense do escritor, eles conversaram sobre as inspirações socioculturais do conto Homens atravessando pontes. “A escrita

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país, como Carlos Ocantos-Ziegler, o primeiro argentino a escrever sobre o Rio de Janeiro, ainda no século 19. CONTINENTE A sua concepção de como filmar um documentário mudou do seu primeiro filme até hoje? EDUARDO MONTES-BRADLEY A tecnologia e a forma de entender as audiências mudou. A TV é cheia de shows de realidade. Documentário é drama ao vivo, está em todo canto. Os formatos tradicionais de filmar estão mortos, como a Alemanha Oriental.

Claquete Entrevista

Eduardo Montes-Bradley “O INTELECTUAL PERFEITO NÃO EXISTE” Eduardo Montes-Bradley, ao longo

de mais de 40 anos de carreira, criou a própria maneira de filmar. Desempenha as funções de jornalista e biógrafo.“É impossível separar os papéis”, diz. Entre as obras de sua autoria estão a biografia Cortázar sem barba, sobre o escritor argentino que também é protagonista de um de seus documentários - e a antologia de contos Água no terceiro milênio. Nesta conversa com a Continente, ele revela aversão à canonização de estrelas da literatura e conta como se deu sua aproximação com o Brasil. “Não trabalho com escritores com um olhar cego de um fã incondicional”, afirma. CONTINENTE De onde surgiu o interesse pelo Brasil? EDUARDO MONTES-BRADLEY Está no meu DNA social. Meu pai morou aqui, em 1954, num intercâmbio no bairro carioca de Laranjeiras. Muitos parentes meus moraram no

CONTINENTE No seu filme Cortázar: apuntes para un documental, há visões positivas e negativas acerca do escritor. Não é solene. Existe algum autor a respeito do qual você se posiciona como fã incondicional? EDUARDO MONTES-BRADLEY Não trabalho com nenhum personagem sob o olhar cego de fã incondicional. Esse tipo de intelectual perfeito não existe. Eu amo contradições. Aprecio encontrar livros que não leio porque não foram escritos para mim. Confie no que diz o escritor Luis Borges: se você lê um livro e não gosta, não leia. Se for Don Quixote, que seja! Literatura deve ser prazer. CONTINENTE Há um estranhamento entre a literatura hispano-americana e a brasileira? EDUARDO MONTES-BRADLEY Não creio em irmandade. A multiplicidade de idiomas está em constante tensão. Existe mais distância entre o espanhol falado na região do noroeste da Argentina e uma pessoa no sul da Espanha, como no espanhol falado em Chiapas e em Bogotá. Posso ter mais em comum com um poeta dos Balcãs do que com um poeta da Guatemala. Idiomas são únicos. CONTINENTE Qual a diferença entre a literatura argentina e a literatura brasileira? EDUARDO MONTES-BRADLEY A literatura argentina já foi bastante influente. Hoje é praticamente restrita a Buenos Aires. A brasileira é mais diversificada, é de onde os melhores títulos estão saindo. A primeira está derretendo, aparentemente estagnada. A segunda está envolvendo.

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dele me lembra a de Edgar Allan Poe. Gosto de como descreve o caminho que percorre pelo Recife, a aura imaginativa. A cidade como uma Amsterdã tropical. Gravamos sobre a vida de Ronaldo no interior do Ceará e na capital pernambucana.” O diretor retorna em novembro ao Brasil, para filmar as últimas cenas do filme Correia de Brito, no município cearense de Saboeiro, cidade de nascimento do autor. A partir do seu livro Flores azuis, no documentário que protagoniza, Carola Saavedra analisa o bem e o mal humanos. Entre uma casa escura em Berlim e a praia do Rio de Janeiro, a autora lê “porque não há nada mais perigoso do que tentar ser bom. A certeza de que na bondade residem os maiores delitos, as maiores injustiças”. Os efeitos são únicos. A câmera sai vasculhando entre luzes, trechos de livros e a relação invisível, mas sempre presente, entre o diretor e o escritor. É como uma conversa pacata cheia de insights, acolhida por um olho fotográfico que aproveita as ocasiões memoráveis do espontâneo.

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INDICAÇÕES DRAMA

FICÇÃO CIENTÍFICA

Direção de Xavier Dolan Com Melvil Poupaud, Suzanne Clément, Nathalie Baye

Direção de Ducan Jones Com Sam Rockwell, Kevin Spacey, Kaya Scodelario

LAURENCE ANYWAYS

Os livros Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, e Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum, são considerados por MontesBradley como dois dos melhores romances que já leu. Os documentários, ainda em fase de produção, trazem perspectivas tanto dos lugares de onde os escritores cresceram quanto de suas visões pessoais sobre o mundo. Ambos, Ruffato e Hatoum, são migrantes em São Paulo: o primeiro, mineiro, o segundo, manauara. “O foco da minha filmografia não é literatura, nem o escritor. Esse é o gancho para mergulhar na cultura. Estou mais interessado nas circunstâncias que cercam o homem atrás dos escritos de Correia de Brito, por exemplo, do que nos seus trabalhos os quais eu

LUNAR

Laurence é um professor universitário que vive com sua namorada, Fred. O romance sofre um abalo quando, no aniversário de 30 anos, ele revela a necessidade de virar o que realmente sente: uma mulher. A crônica cinematográfica, que flerta com a linguagem de documentário e tem passagens líricas, explora o mote do amor impossível por um viés atual. Dolan retrata as dificuldades do casal, durante os anos de 1980 e 1990, em face ao preconceito da sociedade contra os transexuais.

Com a função de extrair da Lua uma substância que renova as energias da Terra, o astronauta Sam Bell terá que ficar três anos numa base lunar. Ele é o único tripulante, acompanhado apenas do computador Gerty. Um acidente acontece e Sam começa a delirar. A partir daí, a verdade e o delírio são confundidos na cabeça do protagonista e do espectador. A produção inglesa, estreia do filho de David Bowie, investe mais em argumentos filosóficos do que em efeitos especiais.

COMÉDIA

DRAMA

3 adriana lisboa A leitura dessa autora desencadeou o interesse do cineasta pela literatura brasileira

acredito devam ser o foco da crítica literária”, adianta Eduardo Montes-Bradley, para quem não existe forma certa ou errada de explorar a experiência humana, mas “só resultados inigualáveis”. Além dos autores brasileiros, o diretor está finalizando um longa sobre a poeta ganhadora do Prêmio Pulitzer, Rita Dove, e a relação delicada – em meados dos anos 1960 – entre negros e brancos nos EUA. Ao refletir sobre sua intenção, Montes-Bradley afirma: “Não procuro popularidade. O que espero é saber que, algum dia, seus netos e os meus poderão conhecer, através dos olhos de certos personagens, como foram os dias vividos hoje.”

VOCÊS AINDA NÃO VIRAM NADA!

Direção de Alain Resnais Com Sabine Azéma, Lambert Wilson, Jean-Noël Brouté

Em um testamento, o dramaturgo falecido Antoine convoca atores para encenar diferentes versões da peça trágica que costumava dirigir: Eurídice. Neste filme do francês Resnais, observamos as diferentes possibilidades que uma história pode incorporar diante de gerações do passado e do presente. Os textos são sobrepostos uns aos outros, enfatizando a tragédia e, ao mesmo tempo, a possibilidade de reunir as influências em um só espetáculo.

NO

Direção de Pablo Larraín Com Gael Garcia Bernal, Marcial Tagle, Diego Muñoz

Em 1988, o ditador chileno Augusto Pinochet estava sob pressão internacional. René Saavedra, personagem interpretado por Garcia Bernal, é um publicitário que, contratado pela oposição, planeja uma campanha de derrubada do regime do político. Abordando de maneira original o tema da ditadura na América Latina, Pablo Larrain coloca em debate a questão do partidarismo. O tom nostálgico e emocional do filme é intensificado pelo recurso de câmeras usadas em reportagens da época.

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