Revista Harco #1

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[ literatura ]

harco

[em dia com o mundo] Ano 1 #1 - Outubro de 2008

Encontro de mestres esculltura [Reunimos Francisco Brennand e Sérvulo Esmeraldo num passeio por meio século de criação destes dois grandes nomes da arte brasileira]

harco [setembro|outubro de 2008] 1



harco matéria de capa [ Brennand e Sérvulo | O encontro de dois mestres da escultura ] página 2

artes plásticas [ Centenário | Gilmar de Carvalho traça um panorama da obra de Vieira da Silva] página 10

música [ Cartola | Cem anos do pedreiro/compositor que construiu a Mangueira ] página 28

patrimônio [ Aracati | Conquistas e desafios de um tesouro cearense ] página 16 cinema [ André Bazin | A construção da sétima arte descrita por L.G. de Miranda Leão ] página 26 literatura [ Estrela | De Manoel Ricardo de Lima para Manuel Bandeira ] página 33 dança [ Bienal | Thaís Gonçalves comenta a Bienal de Par em Par ] página 36 miscelânea [ Cariri | Mostra reúne cultura popular e outras linguagens da região] página 38

expediente

D

a Nação Fortaleza, a Revista Harco comprova: temos muito o que dizer. Iniciativa da Associação Harco, tocada pelos artistas plásticos Vavá Azim e Nauer Spíndola, a publicação pretende transcender os universos cultural e ambiental cearenses. E delineá-lo em consonância com o mundo, de acordo com a fonética: o arco que une, liga, comunga, estabelece trocas, correspondências, identificações, diferenças. Linguagens aproximadas de discursos ainda incompletos, arcos que permanecem abertos, prontos para novos encontros, simbioses. Harco apresenta algumas destas possibilidades. A cada dois meses, encontraremos aqui um pouco do que somos e do que vislumbramos. Neste primeiro momento, de Sérvulo Esmeraldo à identidade negra cearense. Da cerâmica sofisticada de Brennand às contemporaneidades do Salão de Abril. De Cartola a André Bazin. Da Bienal de Dança à Mostra Sesc Cariri. Arcos, mundos. Sejam bem-vindos.

fotografia [ ensaio |  O Vale de Luz do Jaguaribe, nas lentes de Mauro Angeli ] página 24

entrevista [Secretário de Cultura |  Auto Filho fala sobre sua intenção de transformar o quadro da leitura no Estado] página 41

[ harco | Ano 1 #1 - outubro de 2008 ] [Diretores | Vavá Azim | Nauer Spíndola] [editor e jornalista responsável | Henrique Nunes - CE 01207 JP] [redatores | Aécio Santiago | Kélia Jácome] [colaboradores da edição | Dane de Jade | Gilmar de Carvalho | L.G. de Miranda Leão | Manoel Ricardo de Lima | Maristela Crispim | Thaís Gonçalves] [conselho editorial | Vavá Azim | Nauer Spíndola | Vinicio del Pinto | Roberta Nunes] [projeto gráfico e diagramação | Eduardo Freire] [fotografia | Mauro Angeli] [tratamento de imagens | Rosângela Nobre] [tiragem | 2.000 exemplares] [contatos | 85 3081 0555 | Rua Gen. Eurico 25 - Varjota - Fortaleza - CE | revistaharco@gmail.com | www.revistaharco.com]


[ matéria de capa ] 2 [outubro de 2008] harco

Senhores de engenho texto [Henrique Nunes] fotos [Mauro Angeli]

Francisco Brennand e Sérvulo Esmeraldo: encontro de dois ícones da escultura contemporânea


A

ntes, uma palavra de um dos anfitriões. Diretor de Ação Cultural do Centro Dragão do Mar, onde, até 16 de novembro, Sérvulo espraia uma boa representação de sua obra, Roberto Galvão considera estarmos falando de duas faces de uma produção artística fundamental para o conhecimento da arte brasileira. “Um deixa-se expressar pela emoção, pelo sentimento, as coisas mais humanas e viscerais. O outro, Esmeraldo, é a realidade. Um é Dionísio. Outro, Apolo. Há uma complementação. É interessante você mergulhar nos mares de Dionísio, mas ter a cabeça dentro das possibilidades apolíneas”, divaga. Galvão estabelece a arte pública como o principal elo de ambas as criações. “Brennand não fez tantas quanto Sérvulo, mas, andando em Recife, você sente sua presença, como aqui, a de Sérvulo”, diz, convocando para experimentar um pouco dessa torrente territorial e intelectual de Sérvulo em

O erótico é apenas uma leitura mais rápida dos nus de Brennand

sua presença pelos quatro cantos do Dragão. Da Praça Verde ao MAC. “São dois artistas inteiramente diferentes: Sérvulo, construtivo, equilibrado, lúcido, razão. Brennand é mágico, emoção. Questão de temperamento”, reforça o crítico de arte Olívio Tavares de Araújo, curador da exposição “Brennand: uma introdução”, em cartaz em julho e agosto no Museu de Arte Contemporânea do Centro Dragão do Mar, onde atualmente é a vez de Sérvulo antecipa seus 80 anos (em fevereiro), numa grande exposição promovida pela Construtora Mota Machado com curadoria da pesquisadora (e companheira) Dodora Guimarães. Por sinal, desde 1981, os dois artistas dividem outro espaço da cidade, em pleno Centro: Sérvulo no conjunto de cubos instalado na parte externa do Banco do Nordeste, agora próximo à entrada do Centro Cultural. Brennand está por ali também, no mesmo prédio, mas sob a guarda da Justiça Federal, em um ecológico painel em óleo sobre cerâmica, sua única obra pública entre nós, pouco contemplada. Amassando o barro Numa região ligada à história da Restauração Pernambucana, Ricardo Brennand deu continuidade à tradicional atividade econômica mantida desde os holandeses, o engenho, até resolver investir maciçamente na pesquisa da cerâmica e da porcelana, criando o que se pode chamar de antiusina. Brennand relembra aqueles primeiros anos ao lado do pai. “Era um lugar encantador por causa do cheiro. Na medida em que os adultos permitiam a nossa presença, a gente

Desde 1981, o construtivismo de Sérvulo Esmeraldo se incorpora ao cotidiano do Centro de Fortaleza

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Um engenho. Um carro-de-boi apinhado de cana-de-açúcar. Uns meninos mexendo com barro. Corte para a Paris dos anos 50. E para Fortaleza e Recife, onde Sérvulo Esmeraldo e Francisco Brennand sedimentaram e ampliaram suas perspectivas. Trajetórias unidas, há 80 anos, pela convivência com este universo canavieiro que aproximava ainda mais o Cariri cearense e Pernambuco. E, claro, pelos primeiros laivos de criação. Um à margem do pequeno Batateiras, diante do Engenho Bebida Nova, Crato. Outro, do imponente Capibaribe, onde ficava o São João, Recife. Engenhos. Barro. Criação. As ansiedades comuns os levariam à Cidade-Luz, em pleno Pós-Guerra, ajudando um pouco a reconstruir o mundo. Mas só vieram a se conhecer depois. Décadas mais tarde, a convite da Harco, estes senhores se reencontraram no Centro Dragão do Mar, narrando suas engenhosidades, falando um pouco dos seus contrastes estéticos, em meio às suas coincidências e distinções históricas. Cavanhaque, barba, idéias brancas, fluentes. Um momento importante para a arte contemporânea, que temos o prazer de compartilhar em nosso primeiro contato.

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[ matéria de capa ] Há 20 anos, o artesão José Haroldo colabora com as criações de Sérvulo em sua oficina caseira

Tragédias femininas, míticas ou históricas, integram-se ao repertório das esculturas de Brennand 4 [outubro de 2008] harco

via a cana ser triturada, tomava caldo, via o açúcar mascavo”. A suntuosidade da Casa dos Brennand começou a se tornar famosa em 1902, quando foi montada, em ferro, a habitação de dois pavimentos, fabricada na Bélgica e adquirida, cinco anos antes, nos Estados Unidos. Mais modestamente, Sérvulo também chegou a conviver com a moagem da cana, no Bebida Nova, demolido enquanto vivia fora do país, depois da divisão das terras entre as quatro famílias do bisavô. “Só restou a casa grande”, lamenta. “E finalmente houve a ânsia de meu pai de fazer cerâmica. Ou porcelana, como ele começou. Veja que gesto estranho: em 1917, ele fundou uma fábrica de telha de tijolos. E deu certo, pelo Nordeste inteiro. Mas em 1945, ele resolveu vender a usina,

todo o maquinário, e, no prédio da usina, montou uma fábrica de porcelana. No Nordeste, à margem do Capibaribe, o que era uma verdadeira aventura. Em 1954, ele cria a fábrica de azulejos. Depois, eu reformei a velha cerâmica São João, na outra margem, a esquerda”. A propriedade está, portanto, em plena Várzea do Capibaribe, região extensa que abrigou engenhos famosos: além do São João, São Francisco, São Sebastião, Santa Maria, Santo Cosme e São Damião, pertencentes a

João Fernandes Vieira, herói da luta contra os holandeses, no século XVII, e governador da capitania. É sob esse cenário histórico da usina, cerâmica e fábrica de azulejos São João da Várzea que Brennand dissemina e expõe sua criação ao ar livre, um santuário que se tornou atração turística de Pernambuco e do país. Antes, sua arte monumental ganhava murais como o da Batalha dos Guararapes que, em 62, retratava a vitória contra os holandeses. Já Sérvulo lembra que passava pelo menos a metade do ano perto da Chapada do Araripe. “A gente ia a cavalo, minha casa mesmo ficava a seis quilômetros desta casa dos meus avós, o engenho”. Mesmo morando há 20 anos no bairro Salinas, próximo ao Parque Ecológico do Cocó, o contato com a natureza se tornou mais circunstancial, Sérvulo não ultrapassa mais os limites entre o jardim onde fica seu ateliê e o mangue. Ali desenvolve seus projetos e maquetes com a cumplicidade de José Haroldo, artesão que o acompanha nestas duas décadas. “Já andei muito, ia até o Parque Adahil Barreto”. Mas a natureza está sempre por perto, não só no inconsciente, mas na relação que o artista mantém com as obras públicas e urbanísticas que produz e tenta manter, caso da “Fonte” que se esvaiu ao caos diante da


Catedral de Fortaleza. “Crato era uma cidade pequena, onde as casas tinham muitos quintais. Quando fui para a França, tive a sorte de comprar um terreno de dois mil e trezentos metros, no subúrbio de Paris, uma casa da época de Napoleão III. Tive que vender por conta da manutenção do aquecimento, mas eu ocupava quase toda a casa com as esculturas”. “De barro?” quer saber Brennand. “Não, de mármore. E também os Excitáveis, que funcionam com eletricidade estática”, diz, acrescentando que sua clássica série “funciona” melhor em ambientes de pouca umidade, o que não é bem o caso do Ceará. No engenho, Sérvulo convivia com a olaria que fazia tijolos e telhas para a fazenda. “Eu modelava umas coisinhas, cavalinhos... Fiz até uma paisagem, maior. Tem uma prima minha que guarda uns pedaços”. E houve o desenho. “Comecei fazendo cowboys, copiava os gibis. E também os livros de arte que uma tia me

trouxe da Europa, da França. Quem mais me interessou foram os pintores americanos, Pollock e outros”. Em depoimento ao Centro Cultural Banco do Nordeste, em 2002, ele contara que sua criação cinética surge nesta época, quando fazia engenhos com polias para que a água ultrapassasse a fronteira dos canaviais, alçando as árvores. Em 37 e 38, Brennand estudava no Rio de Janeiro, em Petrópolis. De volta, conclui o ginásio no Colégio Marista e recebe orientações de Abelardo da Hora, na cerâmica de seu pai, já em 1942. No segundo ciclo colegial, Colégio Oswaldo Cruz, torna-se amigo de Ariano Suassuna. Suas caricaturas chamavam atenção, embora negue. Apesar da convivência com a cerâmica do pai, depreciava o contato com a argila. A pintura, a óleo, claro, o atraía mais. Quadro que só se altera, na Europa, onde sofre o impacto das cerâmicas de Picasso, Miró, Gauguin e alguns outros gênios. Uma epifania

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O desenho continua a base da criação de Sérvulo, antecipando esculturas menores e maquetes

A cerâmica de Brennand só eclodiu após ele tomar contato com a obra de Miró, Picasso e outros artistas europeus harco [outubro de 2008] 5


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a manifestar elos telúricos, atávicos, que sofreriam gradativas transformações internas ao longo de meio século. Primeiro, dedicando-se a pinturas e murais. Nos últimos 37 anos, compondo, através da argila e do forno, uma criação de aparente estabilidade e austeridade, em permanente desafio, como a arquitetura de Gaudí, outra referência. Tal Sérvulo, Brennand segue se danando pela sua torrente imaginária e racional, tendo o desenho como matriz. E Oxóssi, orixá inquieto e viril, como guia de sua oficina. Por tudo isso, convém ouvir mais destes dois artistas unidos pelo engenho. Com a palavra Brennand: “Vivemos em um mundo de comunicação supostamente intensa, no entanto, os artistas não conversam entre si. Não há uma intermediação para isso. Até quando você faz uma bienal, é muito mais um espetáculo da bienal do que do artista. Somos secundários, apenas enchemos o espaço”. Vamos, então, acompanhar este diálogo mais de perto.


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Danações do Mundo Grande “E

sse menino é um danado”, diziam os mais velhos sobre as primeiras peripécias de Sérvulo. Os desenhos, os engenhos, os bonecos de argila, a mania de catar pedaços de madeira que logo virariam matéria-prima para a xilogravura, danações precoces. A lembrança vem de um conterrâneo, outro grande artista, Fran Martins, colega de uma tipografia balão-de-ensaio e da Sociedade Cearense de Artes Plásticas, a célebre SCAP. No mesmo catálogo de uma exposição de Sérvulo em maio de 1962, no Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará, Fran narra sua temporada em Paris, entre gaiatices e atenção às “experiências” com que o “danado” ora engendrava suas gravuras, as têmperas sobre cartão (14 de Julho, Caatinga, Jurema) ou os afrescos sobre compensado (Barranco, Transparência, Floresta de Coral).

Com estas e outras 18 obras, a exposição era a primeira desde que Sérvulo partira. Outras danações viriam, muitas outras: o gênio inquieto que se perpetua até hoje como demonstra a retrospectiva em cartaz no Dragão. Já em 1967, de volta ao MAUC pela segunda vez, Otacílio Collares saudava o caminho abstracionista daquelas 50 gravuras de Sérvulo, auto-denominado “abstracionista lírico”. Quase dois anos mais velho, Brennand partira para a França com o incentivo de Cícero Dias. Ficou de 49 a 1953. Encontrou o caos na Luz. E também sua matéria-prima definitiva: a argila, a velha argila - manipulada desde a Cerâmica São João, criada por seu pai em 1917 e arruinada a partir dos anos 50 - elemento motriz de sua Oficina, desde 1971. Não encontrou Sérvulo, só muitos anos depois

se conheceriam. “Um rápido encontro em Recife”. Crato viu a primeira exposição de Sérvulo, na Sociedade de Cultura Artística, no mesmo 1951 em que o cearense vai para São Paulo, onde ganhou uma bolsa, em 57, rumo a Paris. Ficaria 23 anos. As formações, e danações, podem ter contribuído para as diferenças, mas também para as futuras coincidências. Sérvulo é expulso do ginásio ao ser reconhecido dono de um volume contendo O País do Carnaval, Cacau e Suor, de Jorge Amado. Ele usava as folhas do livro para secar selos, seu hobby. Lera as histórias, mas não entendeu o motivo de ter seu domingo de lazer no Bebida Nova abalado pela informação de que o padre o havia esculhambado em sermão. O “comunista” acabou tendo que concluir o ano letivo em Fortaleza, no Liceu. E conhecendo o pessoal da SCAP. Também por causa dos estudos, viajaria para São Paulo, visando à arquitetura. Preferiu os salões, galerias, o trabalho no Correio Paulistano, vivendo a arte. Ainda nos anos 40, no tempo da SCAP, as paisagens e os estudos com modelos vivos prevaleciam. Mesmo não sendo estritamente acadêmico. Nos anos 50, a gravura, sobretudo

sua xilogravura, era figurativa. Vai então a São Paulo, sendo recebido por Aldemir Martins e conhecendo Antonio Bandeira durante a primeira Bienal. Na metrópole, passa a usar o buril, produzindo gravuras em metal, aproveitando refugos de clichês da impressão do jornal Correio Paulistano. Depois, a gravura em metal se soma aos estudos de litogravura, na Escola de Belas Artes. Em 55, ganha uma bolsa sugerida por um adido cultural da embaixada francesa, que vira suas gravuras numa exposição no Clube dos Artistas, o Clubinho. Com o francês já exercitado como repórter de arte do Correio Paulistano,

José Haroldo observa maquete de criação de Sérvulo para a exposição no Dragão

A expressão totêmica é uma das leituras mais visíveis da obra de Brennand harco [outubro de 2008] 7


[ matéria de capa ] Na companhia do cachorrinho Togo, Sérvulo posa na serenidade de seu atelier no bairro Salinas

“Les Amants”: Brennand ultrapassa o olhar erótico em direção à sua eternidade reprodutiva 8 [outubro de 2008] harco

encarregado de cobrir a II Bienal, em 53, Sérvulo vence a resistência inicial, se inscreve e conquista a bolsa, há muitos anos não atribuída a artistas. Talvez porque a situação por lá não estivesse ainda para amadores, conforme descreve Brennand. “Eu ainda peguei filas de racionamento, era um aspecto heróico até. Naquela época, um estudante tinha que trabalhar e estudar, não ia para brincar. Tinha que ter, forçosamente, uma vida exemplar de artista. Sou louco por cinema, mas não me dava ao luxo de assistir filmes, conhecendo Paulo Emílio Salles Gomes e muita gente de cinema”, lembra o pernambucano.

Rupturas Sérvulo tinha 28 anos, seis anos a mais que Brennand quando este chegara a Paris. Casualmente, é “recebido” por Antonio Bandeira, com quem Brennand não tivera contato. “Mas conheci as obras, e acompanhei a repercussão de sua passagem por lá”. Foi saindo de um bistrô freqüentado pelos existencialistas, que Sérvulo achou o cearense - cuja obra também precisa se tornar mais conhecida em sua própria cidade. “Era um domingo. Era o único bar que estava aberto ainda. Quando saí, vinha um grupo falando atrás de mim e reconheci o vozeirão do Bandeira. Claro que ele tinha seus compromissos, e não nos encontramos muito, mas era importante tê-lo por perto”. No segundo ano de estudos, uma galeria comprava suas obras, uma editora suíça publicava seus catálogos e livros. Outra, belga, editaria um texto sobre os Excitáveis, a extensão das engenhosidades do Bebida Nova. Na Suíça, passou o Maio de 68. Foram longe aquelas leituras de Jorge Amado... No caso de Brennand, a ruptura se daria com as expectativas de gerir os negócios familiares. “Acontece que meu pai era empresário e um colecionador apaixonado de porcelanas, sobretudo. Ele fez muitas prospecções de matéria-prima em todo o interior nordestino, mantinha correspondência com centros de porcelana. Nesse contato infantil, tinha em casa a biblioteca de minha mãe, em grande parte em francês, e outra de meu pai, um apaixonado por literatura e que

lia Balzac no original. Era um mundo que ia pegar um dos quatro irmãos. E pegou mais a mim do que os outros”. Os textos e gravuras dos livros, a formação humanista, acabaram fazendo com que Brennand exercitasse caricaturas dos padres, sempre eles, de quem não gostava no colégio Oswaldo Cruz. “Mas não era tido como bom aluno em desenho, ao contrário de um primo artístico meu, Ernesto Lacerda, um gênio do desenho da minha classe. Os colegas é que admiravam as caricaturas e me incentivavam”. Sim, mas houve um estopim, um alumbramento, quando cuidar dos negócios e estudar Direito parecia irreversível. Em 1942, Seu Ricardo, comprou uma coleção de pinturas parisienses. “Mas a coleção estava muito avariada e ele me chamou para acompanhar a restauração dos quadros, feita por um pintor, Álvaro Amorim, um dos fundadores da Escola de Belas Artes. Diziam que ele era preguiçoso. E aí, pela primeira vez, eu senti aquele cheiro de tinta, e nunca mais me esqueci. E também porque ele era viúvo, vivia em um sítio rodeado de 40 gatos, trabalha-

va a hora que queria, passava o dia de pijama e com um cigarro apagado aqui no canto da boca. Esse estilo de vida me deixou encantado, era exatamente o oposto do que vivíamos... Eu passei a fugir do colégio para ir vê-lo. Ele era um péssimo restaurador, não respeitava absolutamente a pintura (risos). Mas, em todo o caso, essa vivência ainda me deu de presente um cavalete, uma caixa de pintura, alguns tubos de tinta”. Depois disso, alguns pintores da Escola de Belas Artes passaram a freqüentar a casa de seu pai aos domingos para pintar. Brennand, claro, ficou por perto. E com eles expôs, em 47, no Salão do Museu do Estado de Pernambuco, ganhando o primeiro prêmio. “Esse foi um fato decisivo na minha vida”. Em 48, um novo primeiro prêmio confirmou a guinada. Deu adeus ao projeto do Direito e até a uma namorada, já acadêmica. A paixão pela pintura falou mais alto. Naquele mesmo ano, Cícero Dias, conterrâneo de origens também ligadas ao engenho, faria uma polêmica exposição na Faculdade de Direito, anunciando seu caráter abstrativo e contribuindo também para modelar ainda mais o trajeto de Brennand. “Ele me convidou a ir à Europa, como ele havia sido convidado por Di Cavalcanti para ir a Paris. Ele usou de uma palavra mágica: ‘nem que seja em caráter experimental’. Por conta disso, eu fui”. Aprofundou suas leituras acerca de impressionistas e de tantos outros pintores como Van Gogh. “Eu supunha já saber onde deveria ir”. Tempo e espaço Sérvulo diz que conhece o trabalho de Brennand desde sempre. “Conheço o


trabalho do Brennand do começo. Tenho muita estima, sobretudo pelo lado monumental do trabalho dele, algo que era muito raro no Brasil. A escultura requer muito espaço para o escultor fazer. O Brennand dispõe de um espaço muito grande. Meu espaço é mais modesto, mas suficiente para eu pesquisar mudanças nas estruturas das esculturas, agora trabalhando com transparências. Eu trabalhava com um mármore até razoável, do Rio Grande do Norte, com dois por cento de quartzo, o que o fazia mais seguro para trabalhar. Fizeram uma barragem... E acabou”. Persistente interlocutor com a cidade, Sérvulo define que a escultura, simplesmente, “é uma coisa de convivência, até mesmo na rua. Com o tempo as pessoas se habituam de tal maneira como se aquilo sempre fizesse parte da natureza da cidade”. Assim convivemos desde 77 com seu

Monumento ao Esgotamento Sanitário, por exemplo. Já suas exposições de esculturas efêmeras que agitaram Fortaleza em 86 e 91, reunindo cerca de 150 artistas de várias partes do mundo, representaram momentos de oxigenação da cidade, bem como um flagrante contraste conceitual em relação à criação de Brennand. Diferente da monumentalidade mais dinâmica ali arquitetada por Sérvulo, suas 1700 esculturas - de caráter figurativo, sexual, trágico, feminino, mítico-histórico, vigorosamente arcaico – exigem um grande aparato para serem transportadas, cada uma pesando cerca de 100 quilos. Exatamente o antiefêmero. Antropomórficas, zoomórficas, sexuais, totêmicas, encravadas em seu templo erguido em galpões e jardins, elas têm por contraponto suas pinturas, disformes, fellinianas, pasolinianas, também vistas no Dragão. Uma obra que se expande

no espaço e também no tempo, preocupada em perenizar-se. “As coisas são eternas porque se reproduzem. Este é o grande enigma do universo”, ressalta. Uma sentença confirmada pela obra destes dois artistas.

Sérvulo e os pincéis: ferramentas guardam uma faceta hoje mais oculta na obra do artista cearense

Uma das salas de “Brennand: Uma Introdução”, no MAC. Celebrando os 200 anos do Banco do Brasil, a exposição trouxe o escultor pernambucano pela primeira vez ao Ceará harco [outubro de 2008] 9


[ artes plásticas ]

Cem anos de Vieira da Silva M

O centenário da artista portuguesa Vieira da Silva revela sua convivência com um bocólico Rio de Janeiro entre 1940-47 “La rue des losanges” (óleo sobre tela, 1947): abstracionismo de pinceladas curtas e vazios

Gilmar de Carvalho é professor do Curso de Comunicação Social da UFC 10 [outubro de 2008] harco

aria Helena Vieira da Silva nasceu em Lisboa, no ano de 1908, em um dia muito especial para os portugueses, 13 de junho, quando se festeja Santo Antonio, casamenteiro no Brasil, invocado no “responso”, para se achar objetos perdidos, e “seqüestrado” pela cidade italiana de Pádua. A menina nasceu em um sábado, sob a fumaça das fogueiras e em meio ao burburinho das ruas. Deve ter sido grande a festa na casa do diplomata Marcos Vieira da Silva e da mulher Maria da Graça, pela chegada

da primeira (e única) filha do casal. Eles eram ricos, cidadãos do mundo, da elite intelectual de Lisboa e de tradição liberal, o que significava serem “livres-pensadores”, ateus ou anticlericais, como Maria Helena se posicionaria depois. Marcos morreu em 1911. Foi curar uma tuberculose nas “montanhas mágicas” da Suíça, na companhia da família, e não voltou. A criança foi criada na casa do avô, editor do jornal O Século, pela mãe e avó, mulheres severas, da “nobreza aristocrática”. O contraponto foi o tio boêmio que a iniciou nas artes de fumar. Aos onze anos ela já estudava Anatomia, na Academia de Belas Artes de Lisboa. Aos vinte, cumpriu temporada de estudos em Florença e se casou com o pintor judeu-húngaro Arpad Szenes (1897/1985). A próxima escala seria Paris, onde estudou escultura na Academia La Grande Chaumière, com Émile Bourdelle; fez curso de gravura com Stanley Hayter e recebeu lições da pintura de Charles Dufresne, Henri de Waroquier e do mestre cubista Fernand Léger. Em 1935, deixam Paris para viver em Lisboa, onde Maria Helena fez sua primeira exposição indivi-

texto [Gilmar de Carvalho] fotos [Reprodução - Coleção da Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva]

dual. As condições políticas de Portugal levaram o casal a empreender viagem de volta à “Cidade Luz”, no ano seguinte. A Fundação Guggenheim adquiriu uma de suas telas, em 1937.

Luzes, trópicos Nova tentativa, frustrada, de viver em Portugal, aconteceu em 1939. Tiveram de sair da Europa quando a situação se agravou, com a barbárie nazista, e tomaram o rumo do Brasil. Que Rio de Janeiro Vieira da Silva e Arpad Szenes encontram, quando do desembarque no píer da Praça Mauá, em junho de 1940? O Brasil vivia o Estado Novo, a ditadura do “primeiro” Vargas, e estava neutro na Segunda Grande Guerra, só tendo tomado partido, a favor dos Aliados, em 1942, por causa do afundamento de navios brasileiros por submarinos alemães. O Hotel Internacional, no Silvestre, última parada da linha do bondinho de Santa Teresa, era o abrigo de artistas que formavam uma comunidade especial: “Um casarão como o das termas do fim do século, com as persianas que se abrem à tarde, deixando entrar o cheiro floral dos trópicos”, no dizer da biógrafa de Vieira da


[ artes plásticas ]

Obras de sua produção no Brasil como “Une Armée d’ hommes” (guache/cartão, 1944) são elogiadas pela crítica

Silva, a romancista portuguesa Agustina Bessa-Luís. Santa Teresa era um bairro bucólico, com o bondinho que ainda hoje passa sobre os Arcos da Lapa, com ladeiras íngremes, curvas sinuosas e velhos casarões, constituindo um enclave de tranqüilidade e comunhão com a natureza. Maria Helena Vieira da Silva construía o mundo, com a incorporação de fragmentos de luzes, na ruptura com a perspectiva tradicional e na busca de uma poética das cores. Ela e Arpad tinham a experiência do exílio e da negação (forçada) das raízes, na construção de “personas” de cidadãos do mundo, para quem as nacionalidades passavam a ser compreendidas em um contexto mais amplo e complexo.

Maria Helena perdeu a nacionalidade portuguesa, por conta do casamento e por não ceder às chantagens do regime salazarista. De acordo com o depoimento de Arpad, com prevalência do lírico, em detrimento do dramático, a mudança não foi motivada, exclusivamente, pelo conflito mundial, mas pela “luz que é preciso, antes de tudo, procurar”.

Bicho Foram viver o Rio de Janeiro com os amigos Cecília Meireles, Maria da Saudade Cortesão, Rubem Navarra, Carlos Scliar e Murilo Mendes. Eram tempos muito duros. Murilo Mendes assim a cantou em um de seus poemas que traz o nome dela como título, publicado em As Me-

tamorfoses, reunindo composições de 1938 a 1942: “Diurno e noturno / longo e breve / másculo e feminino / onda e serpente / água metálica / chama rastreante / é o bicho que habita / na escadaria do século/ entre o sibilar das granadas / e a saudade dos minuetos”. Curioso como o poeta encontra um jeito para inserir em sua composição a palavra “Bicho”, apelido de Vieira da Silva. Prossegue o poema: “Bicho nervoso / minucioso / tece uma trama há mil anos / que se transforma com a luz / Em contraponto às formas / da cidade organizada / E o bicho minucioso / pesquisa sua perfeição / Bicho diurno e noturno”. Outro poema, do mesmo autor, tem o título de “Harpa-Sofá” e o subtítulo “Um quadro de Vieira da Silva”, publicado no livro Mundo Enigma, de

1942: “Repousa na harpa-sofá / A mulher com o filho-pródigo/ Sirène bleue nonchalante/ Veio da terra de Siena / Talvez medieval ou chinesa / Eis o grande no minúsculo:/ Da minha infância é que veio / Ou do tempo virá”. A crônica da temporada de sete anos do casal de artistas europeus no Brasil vem sendo escrita com lacunas e tensões. Eles não foram bem recebidos pelos brasileiros, como a maior parte dos que buscaram asilo aqui. Elegantes, nunca passaram recibo da frieza. Ela, longe de ser a personalidade que viria a se tornar depois, pintou e expôs no Museu Nacional de Belas Artes e na Galeria Askanazi, a mesma da primeira mostra de Antonio Bandeira, em junho de 1945. Ele deu aulas particulares de pintura, no ateliê “Silvestre”, consta ter

A poética de cores da artista portuguesa em óleo de 1944: “História Trágico Marítima”

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[ artes plásticas ]

tido uma boa clientela. Muito do que aconteceu com eles pôde ser visto na exposição “Arpad Szenes / Vieira da “Portrait de Murilo Silva – Período Brasileiro”, na PinaMendes” (óleo de 1942): coteca do Estado de São Paulo (noamizade retrribuída em vembro de 2000 / janeiro de 2001). poema para “Bicho” Outra exposição, com o título “Vieira

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da Silva no Brasil”, antecipando o centenário de nascimento da artista, teve lugar no Museu de Arte Moderna de São Paulo (26 de abril/ 03 de junho de 2007). Uma declaração, em tom confessional, foi usada, como epígrafe, no catálogo da primeira das mostras: “Fizemos no Brasil amizades inesquecíveis. E daqui foi que conheci o prolongamento de Portugal, o que foi muito sedutor. Acho o Brasil um país vivo e apaixonante [...] O que mais me marcou o Brasil foi o encontro de pessoas de grande qualidade. Aprendi imenso sobre literatura, música e até mesmo sobre a Europa”. Curioso que o casal tenha posado para uma fotonovela publicada pela revista O Cruzeiro, em 1945, o que evidencia o esforço deles em se adequar ao “jeitinho” brasileiro. Vieira da Silva era a mulher bem nascida, da “burguesia abastada”, que “não tem a simpatia pronta”. A biógrafa dialogaria com a vida e a arte de Vieira da Silva, pelos emaranhados da trama e pela sutileza dos achados e perdidos: “Maria Helena falava pouco. Olhava, sobretudo. Olhava com uma intensidade fria, como se estivesse a

atravessar um rio e se dividisse entre o perigo e o prazer”. Ela se fazia expressar também por meio da figura, ainda que fosse abstracionista desde os anos 1930, talvez em razão das encomendas recebidas, entre 1942 e 1943, como a série de azulejos para a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (Km 44).

Crítica Nada a impediu de dar maiores saltos, como em La Macumba, de 1946, ou em La rue des losanges, de 1947, onde seu abstracionismo voltava à tona com inegável vigor de uma poética visual construída de vazios, pinceladas curtas e diálogos nos moldes intersemióticos. Os críticos põem os trabalhos feitos no Brasil no rol dos melhores dela. Vieira da Silva admite a importância do artista uruguaio Torres Garcia para sua obra. Ele publicou um texto forte e elogioso sobre o abstracionismo geométrico dela, com o qual a pintura dele dialogava. Maria Helena se incomodava com a simplificação que faziam de sua proposta e não gostou nem um pouco quando disseram que ela pin-

tava “quadradinhos”. A volta a Paris, em 1947, foi tempo de reconhecimento pelo trabalho feito. O Governo francês adquiriu uma de suas telas (La Partie d`echecs). Ela era a artista reconhecida pelo circuito internacional. Talvez num gesto de agradecimento pela acolhida, ela se naturalizou francesa, em 1956. Em 1962, com a tela Londres, foi grande prêmio de pintura da Bienal Internacional de São Paulo. Maria Helena deixou como testamento um poema cheio de cores, publicado pelo jornal parisiense Liberátion, um ano depois da morte dela (a 6 de março de 1992). Ela legaria a seus amigos: “Une terre d`ombre pour mieux accepter la mélancolie noire / une terre de Siene brûlée pour le sentiment de durée” (“Uma terra de sombra para melhor acolher a negra melancolia / uma terra de Siena queimada para o sentimento da permanência”, em tradução livre). Vieira da Silva e Arpad Szenes ganharam Fundação em Lisboa, que reúne suas obras. O Brasil deve ficar feliz em tê-los acolhido e em ter deixado, sem folclore, marcas indeléveis em sua obra de gênio.


ntre traços, formas e tons sutis, combinados em uma complexidade sóbria, o artista plástico Rian Fontenele vai, aos poucos e profundamente, realçando um movimento intimista dos personagens em diálogo com o observador. Personagens que se ofertam. Sua arte se apropria de linguagens diversas, como o desenho, a pintura e a gravura e, assim

Em rebuliço íntimo

como o artista, se oferta aos poucos e a partir de leituras psicológicas, cuidadosas e nada óbvias, que transcendem o figurativo para explorarem a alma dos personagens e suas sensações mais profundas. Personagens imperfeitos e interessantes, de uma nudez desconhecedora da vergonha. Despidos de tudo. Entregues aos olhos do observador, aos olhos de si (aos próprios olhos), em um constante diálogo consigo.

D

a geração da SCAP, na sua representação feminina, Nice confirmou-se como pintora das mais interessadas na vida artística. O destino e o seu trabalho levaram-na a momentos favoráveis para um passo sempre mais à frente na penetração desse mundo encantado e marcante que é arte. Primeiro em Aracati, onde nasceu, saindo da opinião de uma professora convencional, em seus

Nice – Geração SCAP ensinamentos de arte, para cair no reconhecimento do seu talento por um pintor que por ali passara. Veio para Fortaleza fazer seus estudos primários. O destino a fez vizinha de um pintor da SCAP que, percebendo seu interesse pela arte, matriculou-a no curso livre desenho e pintura oferecido por aquela entidade aos que se iniciavam no campo artístico. Foi aí que Nice desenvolveu sua capacidade

As cores, quase sempre sóbrias, ou noturnas, de pinceladas e traços precisos, incisivos do pirógrafo rasgando com fogo o papel ou a madeira– influência da gravura japonesa Ukiyo-e – reunidas em uma composição e temas mínimos, de imagens de um mundo flutuante, com volumes formados pelo simples valor da linha, ou da constante luta entre o negro do nanquim e o branco do papel, evidenciam o caráter e o diálogo psicológico das personagens. A expressão corporal, levada quase ao experimentalismo da dança contemporânea, braços, pernas e dorsos, em constante torção, convidam ao mergulho em si e a um silêncio, necessário a quem se pergunta por si. A quem busca a si próprio. Monólogos, circunstantes de si. Voltada para a profundeza da alma, das emoções e do nostálgico, a obra recente de Rian Fontenele realça a soma, a convivência das emoções aparentemente contrárias, redimensionando os opostos de forma que eles se completem e constituam o todo. O artista nos fala, possivelmente, de uma crença no equilíbrio dos contrários e busca instigar-nos para

além do figurativo exibido, não possuindo a nudez qualquer caráter sensual. Esse complexo processo envolve também a constante e forte comunicação com a literatura que coexiste e interage com as demais linguagens – desenhos, pinturas, gravuras... Palavras e imagens que se somam para enriquecer o trabalho, ora referencial, ora inscrito diretamente sobre a pintura ou desenho, não buscando a tradução exposta, mas lhe servindo quase como mais um elemento gráfico forte, integrado e acrescentado a toda soma de recursos usados pelos personagens, que ora gritam e ora sussurram suas circunstâncias ao espectador. Rina Fontenele - Jornalista

nata como pintora e adquiriu os conhecimentos que lhe deram a estrutura necessária para maior consistência e melhor qualidade no que fazia, vencendo todas as etapas que se apresentavam em seu caminho. O meio artístico foi seu meio onde as amizades geravam amizades e onde a arte era o tema principal acompanhado de mais arte. Desenhava na SCAP e pintava no campo. As paisagens, os trechos de rua, as figuras, tudo ia parar nas suas telas. De fase em fase, ia avançando em suas descobertas de formas, cores, temáticas, vendo o mundo como o mundo lhe parecia e aparecia. As figuras deixaram suas máscaras mais representativas delas que as próprias figuras. E suas telas encheram-se de máscaras no momento em que a humanidade pareceu ter perdido o encanto e a houvesse chocado, machucado sua sensibilidade, com as flores do mal e do mau. Era como ela sentia o ser humano revelando-se naquele momento.

A vida é cheia de alternativas e levou a pintora Nice para o outro lado dos acontecimentos. Sua experiência no relacionamento artístico com as crianças a levou para o mundo puro e inocente da infância onde se encontrou com a sua própria infância. A temática assumiu a pintora e vice-versa. A ingenuidade das duas fez residência em suas telas a ponto de confundi-la com uma pintora primitivista. O mundo mágico das crianças é o mundo mágico de sua arte que enche sua vida de bons momentos. Nesse seu caminho de mais de cinqüenta anos na arte, Nice tem sido presente em inúmeras exposições, tanto aqui como fora do Ceará, e em várias outras atividades onde a arte está presente. Sua vida tem sido uma dedicação à arte e vive no meio da arte, como artista que foi, desenvolveu e continua sendo até hoje. Estigas - Artista plástico

[ artes plásticas ]

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[ artes plásticas ]

texto [Aécio Santiago] fotos [Divulgação]

A gaúcha Adriane Hernandez é uma das atrações do Salão de Abril: evento começa em outubro e vai aos terminais do Siqueira e do Papicu

Próxima parada... M

Obra do artista sularcado por um atraso que vem se matogrossense Evandro fazendo constante ao longo dos Prado, uma das visões últimos anos, o Salão de Abril começa contemporâneas do em 14 de outubro. Isto mesmo, ouSalão de Abril tubro. Uma das maiores mostras de artes plásticas do Brasil, o salão vem sendo marcado por iniciativas que incentivam a participação do público, ausência de grandes premiações e pelos sucessivos adiamentos de sua data original. Além, é claro, das críticas daqueles artistas que não se encaixam nos critérios da comissão selecionadora, que escalou 45 artistas de vários estados. Parte do atraso se deve a uma falha de organização, assumida pela curadoria do salão. De qualquer maneira, a parada, desta vez, continuará até durante o salão. É que, apostando em sua democratização, o salão acontece não apenas no Centro de Referência do Professor, mas também em dois terminais de ônibus, Siqueira e Papicu. De São Paulo, Tainá Até 23 de novembro, ao parar Azeredo trará sua arte nestes terminais, os usuários de ônipara os muros de um bus da cidade poderão entrar em dos terminais de ônibus contato com algumas produções sur-

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preendentes da arte contemporânea. Segundo a curadora da mostra, Maíra Ortins, o objetivo é ampliar o interesse pelas artes visuais e plásticas. “Teremos uma maior quantidade de profissionais envolvidos e queremos democratizar o acesso a esse tipo de expressão artística”, aponta. Foram inscritos 461 trabalhos. Cada um dos 45 selecionados leva, além do incremento do currículo, um cachê de R$ 1,5 mil. Entre suas obras e os novos

e antigos apreciadores de arte, 80 seguranças e 40 monitores. A maior parte das produções ficará no Centro de Referência do Professor, mas as que forem aos terminais devem chamar atenção dos cidadãos em trânsito. No Siqueira, por exemplo, serão aproveitadas as paredes externas dos banheiros públicos para montagem de algumas instalações. No salão de beleza no Papicu, outra intervenção deverá causar nova perspectiva. Até para quem dá uma paradinha nos tradicionais boxes que comercializam salgados, será possível conferir o vídeo TV Pra Cachorro, da artista plástica paulista Meiri Guerra. “A secretária que circula pelo terminal certamente não vai sair de sua no Bom Jardim para ir numa exposição na Aldeota. Queremos quebrar esse bloqueio social e apresentar essa arte para mais pessoas”, sugere Maíra.

Novos fluxos Além da proximidade do evento com a população e do pagamento de cachê para todos os artistas, outra novidade do salão deste ano é a participação de novos talentos das artes visuais e plásticas. “Teremos o cubano Eugênio Valdez, diretor de um museu no Rio de Janeiro e, ao mesmo tempo, jovens talentosos artistas que, apesar de desconhecidos do


Críticas Além das novidades, polêmicas. Um engano na hora de receber os trabalhos postados pelos Correios atrasou ainda mais, em cerca de um mês, o início da exposição. Segundo a curadora da mostra, Maíra Ortins, o equívoco ocorreu porque a pessoa encarregada não

considerou a data da postagem das obras e muitas retornaram para seus endereços de origem. “Além disso, o salão ampliou o número de trabalhos inscritos e muitos vieram através de transportadoras, o que também causou um atraso”, explica. Maíra considera ainda que a maioria das pessoas não entende a logística de se organizar um evento do porte do Salão de Abril e fazem críticas infundadas. É o caso do universo contemplado este ano. “Foram inscritos quase 500 trabalhos de todo o Brasil. Tivemos que prorrogar o período de inscrições para democratizar o aces-

so e isso também provocou atraso”, alega. Para o artista plástico Francisco Bandeira, 45 anos, o Salão precisa ganhar a confiança do público e dos artistas, cumprindo de forma mais rigorosa o cronograma de trabalho. “Essas mudanças de datas são muito prejudiciais para um evento reconhecido nacionalmente. Os artistas precisam participar mais do processo e o Salão, oferecer alternativas de aprendizagem através de bolsas de estudo em outros p a í s e s ”, acrescentou o artista, premiado no Salão de 2004. Sobre a instalação de obras nos terminais de ônibus, Bandeira considera a iniciativa positiva, mas alerta para a necessidade de infra-estrutura para que as obras não sofram danos. “Precisamos ainda ter mais informações históricas sobre o evento. Através de um jornal, revista. É fundamental que haja um resgate histórico disso tudo”, concluiu. O artista plástico ainda faz um alerta sobre a necessidade de se criar mais centros de formação e cursos para os artistas no Ceará. “É importante esse debate todo, como a criação de uma pinacoteca que pudesse abrigar com mais espaço outras exposições e os trabalhos dos artistas locais”, disse.

[Pinceladas]

MAC Pop Esmeraldo Sérvulo Esmeraldo no Museu de Arte Contemporânea, no Memorial da Cultura Cearense, em quase todo o Centro Dragão do Mar. O talento do multiartista cearense recebe afinal uma grande retrospectiva, sob a curadoria de Dodora Guimarães: no caso, de seus últimos 40 anos, período da atuação da patrocinadora da exposição, a construtora Mota Machado. O MAC recebe ainda “Arte Pop na Coleção do Instituto Valenciano de Arte Moderna”, trazendo pela primeira vez ao estado ícones norte-americanos e europeus da linguagem. De Jasper Johns a Richard Hamilton são 60 obras que podem ser vistas até 16 de novembro, quando também se encerra “Sérvulo Esmeraldo por Mota Machado”. Informações: www.dragaodomar.org.br

[ artes plásticas ]

circuito de exposição, são realidades vigentes na arte contemporânea”, diz Maira. Estreantes como a artista plástica cearense Solange Pompeu, de 32 anos. Orientadora de oficinas e cursos no Instituto Multicultural no bairro São Cristóvão, Solange aderiu às artes com cerâmica de modo excêntrico, pelo medo. Isso mesmo. O medo a fez querer expressar a repugnância e o pavor que sentia por ratos, baratas, moscas, mosquitos da dengue e outros bichos (foto). “Quando decidi investir nessa temática, percebi que podia contribuir com a conscientização ecológica das pessoas e, ao mesmo tempo, fazer um trabalho com um grande diferencial. Afinal, não é todo artista que gosta de retratar esse submundo orgânico, do lixo e dos insetos”, descreve Solange. “O Lixo e os Insetos”, portanto, será o tema da sua instalação ainda sem local definido. Segundo a artista, a apresentação da realidade pretende provocar esse questionamento sobre o meio ambiente em que vivemos e de como o tratamos. “Foi uma honra ser escolhida pela curadoria para participar do salão, principalmente para mim que não tenho tanta experiência em exposições desse tipo. Conhecer outros artistas de fora do Estado também será fundamental para meu crescimento profissional e ainda pode render algum convite para expor”, diz Solange, animada.

Nascidos em 62 Até 22 de outubro, estão abertas as inscrições para a terceira edição Prêmio CNI Sesi Marcantonio Vilaça (2008/20010). Cinco artistas visuais serão contemplados com uma bolsa se trabalho de R$ 30 mil e ainda acompanhamento de curador/crítico, catálogo e uma coletiva que percorrerá o país. Entre os requisitos está que o artista tenha pelo menos 20 anos desde sua primeira coletiva e que tenha nascido em 1962 ou depois, tendo no máximo dez individuais. Os vencedores têm que doar uma obra para um museu público do país. Em novembro, a exposição coletiva inicia seu périplo no Museu de Arte Contemporânea do Centro Dragão do Mar. Informações e regulamento: www.sesi.org. br/premioartes

Harco “Inversos” Promovida pela Associação Harco e pela Faculdade Christus, sob a curadoria do artista plástico Vavá Azim, a exposição “Inversos” movimentou o Espaço Cultural Fides et Virtus, da Faculdade, durante o mês de setembro. Além de Vavá, a mostra reuniu nomes como Nauer Spíndola, Sérvulo Esmeraldo, Francisco Bandeira, Fernando França, Vando Figueiredo e outros artistas de destaque. Esta foi a primeira iniciativa cultural da Harco. harco [outubro de 2008] 15


Patrimônio afetivo

[ patrimônio ]

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Casario do Centro Histórico de Aracati, um dos mais importantes do Estado e tombado pelo Iphan desde 2000

texto [Kélia Jácome] fotos [Mauro Ageli]

Sobrado do Barão de Aracati: sede do Instituto do Museu Jaguaribano é o coração do patrimônio histórico da cidade


está há oito anos à frente do Instituto do Museu Jaguaribano, como diretor-presidente da instituição. O Sobrado do Barão de Aracati, entre os 275 imóveis pertencentes à área de tombamento rigoroso no Centro Histórico do Município, é um dos mais representativos para a história da região. Possui grande acervo histórico, religioso e literário. Conta com peças de arte popular, imaginária das igrejas locais e exposição de fotografias. Esta mansão de três pavimentos é uma das principais peças urbanas do patrimônio histórico e cultural da região. Com o fim da restauração do prédio, previsto para este ano, os visitantes do espaço terão acesso, no primeiro piso, a peças dos ciclos econômicos do Aracati - do Ciclo do Gado, datadas do século XVIII; da fase comercial e do algodão, no século XIX; e do ciclo industrial, no século XX. No segundo andar, estará montada uma casa cenográfica do período colonial com móveis de época restaurados. Já no terceiro piso, estarão expostas peças de arte sacra. No sótão, funcionará um espaço multifuncional para palestras, oficinas e apresentações. Um dia de reconhecimento Ir ao sobrado do Barão de Aracati e conhecer as peças do Museu Jaguaribano é apenas uma das paradas obrigatórias em uma visita ao Centro Histórico de Aracati. Pelo menos um dia é necessário para se conhecer as belezas arquitetônicas do lugar. A cidade possui 154.824 m² de área de tombamento rigoroso, onde estão inseridos 275 imóveis. Ao redor desse espaço, existem 786.151

m², englobando 1.157 edificações, como parte do poligonal de entorno, espaço que circunda o tombamento rigoroso e que também é regulado por uma série de restrições quanto a intervenções físicas. Um prédio que já merece uma visita por si só é a Casa de Câmara e Cadeia. Construção de 1779, a Casa, além de fazer parte do conjunto arquitetônico de Aracati, foi tombada individualmente em 1980. Já a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário, erguida nos primeiros anos do século XVIII, foi o primeiro imóvel a ser tombado individualmente no Ceará, em 1957. Na lista de endereços a serem conferidos, ainda tem a casa onde nasceu o escritor Adolfo Caminha, autor dos romances A Normalista e O Bom Crioulo, entre outros. Inclui ainda o edifício sede da Confederação do Equador, local que serviu de sede do governo da Confederação do Equador no Ceará em outubro de 1824. A ida ao Centro do município vale tanto pelos edifícios isoladamente, quanto pelo agrupamento arquitetônico. “Como conjunto, o Centro Histórico de Aracati é o mais importante do Estado do Ceará”, opina o coordenador do Núcleo de Proteção do Sítio Histórico de Aracati (Nasihar), arquiteto Ramiro Teles, que é também o responsável pelo sítio arquitetônico tombado na cidade do Icó. Além de Aracati e Icó, no Estado do Ceará, edificações nos municípios de Fortaleza, Quixadá, Sobral, Viçosa do Ceará, Crateús, Tauá, Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha também fazem parte do Patrimônio Histórico Nacional.

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m prédio alto, imponente, com três andares, mais o sótão. A fachada bonita da construção erguida entre o final do século XVIII e o século XIX permanece parcialmente escondida por tapumes. O número 743 da Rua Coronel Alexanzito, ou Rua Grande como é conhecida, Centro de Aracati, no litoral leste do Ceará, está em obras de restauração há quatro anos. O endereço abriga o Sobrado do Barão de Aracati, que antes pertencia a José Pereira da Graça, personagem de lutas políticas e deputado provincial por várias vezes. O local também é sede do Instituto do Museu Jaguaribano há 40 anos. O imóvel faz parte do conjunto arquitetônico do Centro Histórico da cidade de Aracati, que passou a ser considerado patrimônio nacional, sendo tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, em abril de 2000. Embora seja de reconhecida relevância o registro no Iphan, para os moradores da cidade o reconhecimento da importância e a empatia com o sobrado datam de bem antes. “Desde 1968, o museu funciona aqui. Ele é o principal instrumento de preservação e divulgação da cultura da região do Jaguaribe. Os moradores se reconhecem nele e cobram a finalização da obra. Mas eu costumo sempre responder que durante esses quatro anos não estivemos parados. Conseguimos, por exemplo, que o Governo do Estado desapropriasse e nos doasse um prédio vizinho ao sobrado, onde funcionará o nosso anexo”, afirma o artista plástico José Correia Calixto Lima. Seu Zé Correia, 62 anos, figura conhecida na cidade,

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[ patrimônio ]

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m abril de 2000, o Centro Histórico da cidade de Aracati passou a ser considerado patrimônio nacional, sendo tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan. Isso significa legalmente o reconhecimento do valor histórico da cidade para todo o país. A beleza de suas ruas, casas e sobrados marca sua importância histórica e artística. Suas construções, datadas dos séculos XVIII, época do Ciclo do Gado; século XIX, ciclo comercial e do algodão, e século XX, ciclo industrial, con-

e desde então o sítio arquitetônico precisava de um núcleo que o gerisse. Não havia aparato técnico para isso. Antes da criação do Nasihar, o Iphan mandava um técnico uma vez por mês para fazer fiscalização aqui. O que era insuficiente”, atesta Ramiro.

tam melhor do que ninguém como eram essas épocas e como viviam as gerações passadas. Mas o tombamento não significa, instantaneamente, que na prática esse reconhecimento passe a fazer parte da rotina da população. O principal desafio para quem trabalha com as questões que envolvem edifícios tombados, segundo o coordenador do Núcleo de Proteção do Sítio Histórico de Aracati (Nasihar), arquiteto Ramiro Teles, é “fomentar no cotidiano da população a educação patrimonial”, uma vez que, a maioria dos moradores vê o tombamento mais como um problema no seu dia-a-dia. “Isso ocorre quando esses prédios são suas moradias, por exemplo”, conclui. O próprio Núcleo só foi criado em abril último, a partir de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre a Prefeitura de Aracati, o Iphan e o Ministério Público Estadual (MPE). “O tombamento aconteceu em 2000

mas está em tramitação uma portaria que estabelece definitivamente o Núcleo de Proteção do Sítio Histórico de Aracati. Isso é de fundamental importância para que a existência do Núcleo não dependa das gestões que passam pela administração municipal. Com isso, a equipe do Nasihar, que é composta apenas por mim, poderá contar com pelo menos mais um arquiteto”, frisa. Você já parou para pensar no que o tombamento significa? Qual a importância disso tudo para a vida das cidades onde os sítios arquitetônicos tombados existem? A resposta para essas perguntas vem de Ramiro Teles na forma de uma comparação simples. “Uma vez um senhor estava transtornado porque queria fazer uma reforma em sua casa, abrindo uma garagem na fachada, e isso não é permitido. Ele questionou para que servia o tombamento. Pedi que ele imaginasse a vida sem que pudesse

A importância do tombamento Apesar das dificuldades de realizar o trabalho de preservação, o arquiteto acredita que há uma preocupação maior do poder público com a questão. “Ainda não foi promulgado,

De direito, mas ainda não de fato

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guardar nenhuma foto, nenhuma lembrança de sua mãe, filhos, dos entes queridos. Ele parou, pensou e foi se acalmando. Ao final da conversa, disse que havia entendido a importância do tombamento para a memória de toda a cidade”, lembra o arquiteto. Teles reforça o argumento, apontando para o lado econômico da questão. “O patrimônio serve não só para a memória do país. Esses moradores são detentores de um rico acervo. Existem cidades desenvolvidas que fazem disso o seu ganha-pão. Turismo sustentável é diferente do turismo predatório. Ele gera emprego e renda e as pessoas precisam enxergar isso”, frisa. O turismo cultural e ecológico bem planejado e administrado tem aumentado a arrecadação municipal e contribuído para o desenvolvimento de muitas cidades tombadas. Tiradentes, Ouro Preto e Mariana, em Minas Gerais; Parati, no Rio de Janeiro; o bairro do Pelourinho, na Bahia; Olinda, em Pernambuco; e São Luís do Maranhão são bons exemplos disso. Para tentar trazer esse tipo de turismo para o Centro de Aracati, o arquiteto afirma que a prefeitura está em negociação com a Secretaria de Cultura do Estado e o Iphan para que sejam elaborados projetos de reforma dos prédios tombados. A idéia, de acordo com ele, é pleitear recursos do Programa Monumenta, do Ministério da Cultura. O programa consiste em financiar a requalificação urbana de cidades históricas depois que elas são tombadas. Inicialmente, o dinheiro é investido em equipamentos públicos como igrejas, praças e museus. Em seguida, é a vez de edifícios privados. O dinheiro aplicado pelo Ministério pode ser pago em até 20 anos.


1- Igreja N. Senhor do Bonfim (1774)

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[ patrimônio ]

Monumentos Históricos de Aracati 2

Edificada em 1772, por Pedro Ferreira de Almeida, inaugurada em 1774, por Manuel da Fonseca, vigário de Russas. Sua arquitetura barroca leva uma pintura de azul e branco dando um contraste perfeito. Atrás da Igreja encontra-se o cemitério da Irmandade do Bonfim, o local que durante muito tempo foi reservado às pessoas de grande poder aquisitivo e que pagavam altos preços para serem enterrados dentro das igrejas. Os túmulos foram construídos em mármore da qualidade Carrara.

2- Casa da Câmara e Cadeia (1779) Segue os moldes tradicionais das casas de câmara e cadeia no Brasil. Sua construção foi iniciada em 1779. Originalmente, a cadeia pública funcionava na parte térrea, e a câmara, no pavimento superior. Em 1812, o Governador da província Luiz Barba Alardo, em suas Memórias da Capitania do Ceará Grande, revelava que a Casa de Cadeia e Câmara “é a melhor da Capitania, mais asseada e mobiliada”. Em 1960, o prédio foi restaurado pelo Iphan. Até o ano de 1988 era possível ver os presos em suas celas que davam de frente para a rua Cel. Alexanzito, esta era a forma de fazer com que estes se envergonhassem do delito que haviam cometido e a população os conhecesse. Somente após este ano é que foi construído um novo presídio para cidade e a cadeia deixou de ter sua funcionalidade carcerária. Atualmente ainda funciona a Câmara dos Vereadores de Aracati na parte superior e na parte inferior está instalada a biblioteca do patrimônio e o SINE/IDT.

3- Casa de Adolfo Caminha Nascido em Aracati no dia 29 de maio de 1867.

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Viveu um grande amor que o levou a perder sua carreira militar e seguiu sua vida para a literatura. Escreveu o romance A normalista em 1893, no Rio de Janeiro. A obra o fez conhecido nacionalmente e considerado até hoje o maior romancista naturalista do Brasil. Morreu tuberculoso em 1897, deixando obras como O Bom Crioulo, em 1895 e A Tentação, em 1896. Foi enterrado no jardim da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no Centro de Fortaleza.

4- Casa de Beni de Carvalho Benedito Augusto de Carvalho dos Santos nasceu em Aracati a 3 de janeiro de 1886. Esse aracatiense bacharelou-se em ciências jurídicas e sociais pela Faculdade de Direito de Recife, sendo depois professor catedrático mediante concurso público da Faculdade de Direito do Ceará. Em 1920 foi nomeado professor do Colégio Militar do Ceará,

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transferido depois para o Rio de Janeiro. No magistério militar atingiu o generalato. Foi vice-presidente do Estado do Ceará, deputado federal e interventor federal em 1945-1946. Foi ainda membro do Conselho Nacional de Educação e pertenceu à Academia Cearense de Letras.

5- Casa sede da Confederação do Equador Casa que serviu de sede do governo da Confederação do Equador no Ceará em outubro de 1824. A vila do Aracati foi atacada e tomada pelas tropas revolucionárias, chefiadas por Tristão Gonçalves de Alencar Araripe e outros companheiros como Miguel Pereira e Luis Inácio de Azevedo Bolão. Os invasores abandonaram a vila em 23 do mesmo mês, levando o produto do saque: animais, dinheiro e mantimentos. A Confederação do Equador foi um movimento político contra a monarquia.

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[ arte de viver ]

A decisão é nossa A

Maristela Crispim é jornalista e mestra em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela UFC 20 [outubro de 2008] harco

primeira década do milênio que a humanidade ora vivencia trouxe à tona toda a sujeira jogada para baixo do tapete os últimos 30 anos. O Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), ligado à Organização das Nações Unidas (ONU) reuniu, em 2007, evidências científicas de que as mudanças climáticas se devem à ação do homem; tratou das suas conseqüências para o meio ambiente e para a saúde humana; e estudou maneiras de prover alternativas de adaptação das populações. Essa é apenas uma pequena ponta desse gigantesco iceberg – que no momento já começa a derreter – pois essas mudanças e suas conseqüências, como redução da área agricultável e das ilhas de biodiversidade que ainda proporcionam conforto térmico ao planeta, são apenas parte das alterações causadas em nome de um conforto que já incomoda os mais sensíveis. Alimentação, educação, saúde, moradia são necessidades mais do que básicas, mas não paramos por aí. Queremos celular, computador, automóvel, roupas, sapatos, lazer... A lista não se esgota e, como previu Malthus – condenado por muitos que o sucederam pelas suas conclusões catastróficas – cresce a cada dia o número de seres com os mes-

mos desejos. Mais que isso, cresce a capacidade de produção industrial. Ao longo da história recente, o entusiasmo com o desenvolvimento tecnológico foi tamanho que se chegou a pensar que seria possível ao ser humano superar as limitações estatísticas, que, ao contrário, foram agravadas. O aquecimento global é um entre muitas ameaças produzidas pela sede de “progresso” do homo sapiens. Tomando-se um recurso essencial à existência da vida, 97,5% da água do planeta é salgada e 2,24% da água que é doce não está disponível (a maioria em geleiras). Resta, então 0,26% de água doce, disponível e a cada dia que passa mais poluída. O modo de vida “moderno” leva certas pessoas à compulsão de trocar de celular a cada seis meses, gera empregos e faz a moeda circular. Além de consumir preciosos recursos naturais, que já começam a rarear e que promovem impacto ainda na extração, porém, geram um dos principais e mais complicados problemas vivenciados pela humanidade: o acúmulo de lixo. Uns apontam como saída mais fácil a reciclagem, uma excelente opção, supondo que tivéssemos educação ambiental e estrutura suficientes para que a coleta seletiva ocorresse com dignida-

texto [Maristela Crispim] foto [Stockxpert.com]

de para o agente reciclador. Seria muito bom para todos promover o ciclo intitulado logística reversa, que reduz a pressão sobre os recursos naturais, o consumo de energia e a produção de lixo que termina poluindo o solo e a água. Mas ainda não é o suficiente. Se o ser humano não mudar o modo de ver o mundo que o cerca – e do qual faz parte – incluindo o devido respeito à obra de Deus, tendo como principal ação a mudança no hábito de consumir, chegaremos a um abismo sem fim ou retorno. Gaia – esse imenso organismo vivo descrito por Lovelock – vive de ciclos. Raciocinando em termos do seu tempo, estamos no fim de um período interglacial. Ela continua, outros seres podem surgir – ou não – mas será que o ser humano sobrevive para testemunhar o que está por vir? A humanidade evoluiu em ações, pensamentos, edificou. Continua, porém, sendo parte de uma cadeia, teia, sistema, ecossistema, bioma; só que não consegue perceber. É preciso atentar para o fato de que, ao se tomar uma decisão mínima, com plena espontaneidade, nos sistemas dinâmicos abertos, podemos gerar uma transformação inesperada num futuro incerto: o efeito borboleta descrito por Lorenz.


ses permanecem invisíveis àqueles que detêm o poder econômico, a si mesmos e a muitos dados oficiais. Silenciados sob um véu de hipocrisia, continuam mais vistos nas páginas policiais e noutros dramas midiáticos. Reconhecida hoje como um fato político-ideológico, histórico, mais do que genético, a raça há muito teve rechaçada sua noção purista. Em todo o mundo. No entanto, o mito da “democracia racial brasileira”, com nossos mulatos e nossa negritude

pagandas oficiais; a lei 10.639/03, definindo o ensino da história e da cultura afro-brasileira, ainda não sistematizado, e a também gradual, e mais polêmica, política de cotas nas universidades. Muito ainda precisa ser feito. Inicialmente, talvez, deixando de lado uma certa hipocrisia dominante que não assume o racismo de nossa sociedade. Como se a cada shopping, a cada restaurante, a cada centro cultural, a cada esquina, ele não fosse

promulgação da Constituição que reforçou a necessidade de “ações afirmativas” para favorecer a integração negra na sociedade brasileira. Harco estará sempre dedicando espaço ao tema, em seção fixa. Pretendemos contribuir para que esta tal afro-cearensidade ganhe mais visibilidade e as devidas transformações na sociedade cearense, além das programações pontuais que tomam a lembrança de Zumbi dos Palmares, no dia 20 de novembro. Uma realidade que faz parte do cotidiano de pesquisadores como Zelma Madeira, Preto Zezé, André Costa, Descartes Gadelha, Hilário Ferreira, William Augusto Pereira, Nelson Olokofá Inocêncio, Alecsandro Ratts, Eurípedes Funes e de um dos nossos raros representantes negros no poder, Carlos Veneranda, vice-prefeito de Fortaleza. Como em grande parte do país, a população e a herança negra cearen-

não assumida, apenas sublimou uma realidade social excludente, racista. A pretensa igualdade racial constitucional ainda está distante, embora o governo esteja implantando algumas “ações afirmativas”. Em grande parte, tomadas após a II Conferência contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, promovida em Durban, África do Sul, em 2001. Houve avanços, como uma regulamentação da d ive r sidade racial nas pro-

praticado. Uma hipocrisia que só interessa aos que procuram manter um status quo fantasioso, distante da realidade brasileira. Subverte-se, agora, o conceito histórico de raça, negando-o, simplesmente, por seu fator genético. Na prática, porém, vigora outra noção. Em matéria publicada no Diário do Nordeste, em 15 de outubro deste ano, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ratifica: “a renda das famílias brancas no Brasil, é, em média,

A tal afro-cearensidade

2,06 maior que o rendimento das famílias negras”. Com base na Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (Pnad), o Ipea reconhece a necessidade do incremento das políticas afirmativas diretas, e não apenas aquelas provenientes de programas sociais, para enfrentar as desigualdades econômicas entre as raças.

[ afro-cearensidade ]

A tese de que no Ceará existiriam poucos negros, sustentada pela redenção antecipada em quatro anos em nosso Estado, já foi questionada há décadas por pesquisas como as do jornalista Eduardo Campos e de outros nomes ligados ao Instituto do Ceará. E derrubada de vez pela realidade e pelos dados historiográficos de uma academia que se renova. Deslegitimar este discurso embranquecedor pode nos ajudar a reconhecer dificuldades a serem enfrentadas, 20 anos após a

Somos racistas Segundo o sociólogo Hilário Ferreira, em artigo publicado no jornal O Povo, em 13 de maio deste ano, nossos escravos sempre lutaram por sua liberdade. O pesquisador cearense aponta que fomos, já no século XIX, mais negros do que brancos, considerando-se os pardos e mulatos, tão discriminados como os cativos e os negros livres, desde então. No mes- texto [Henrique Nunes] mo periódico, em abril do ano pas- fotos [Mauro Angeli e sado, o historiador Eurípedes Funes Arquivo Nirez] concorda, sugerindo que, se havia menos negros do que em outros estados da região, sempre desprezamos,

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[ afro-cearensidade ]

[Convivência]

Intolerância religiosa e “apartheid” geográfico Não é difícil constatar o racismo no dia-a-dia cearense. Tomemos um exemplo hipotético. A liberdade de culto é um preceito constitucional. No entanto, em quase todo o país, pouco se respeita este direito. Não só na marginalização dos terreiros de umbanda e candomblé, sempre instigados pela elite católica, evangélica, “não racista”, a “afastarem-se um pouco” de suas casas e comércios. Mas também em seu exercício livre, como acontece também, já em menor escala, com os próprios evangélicos. Vamos supor que um doente internado em um hospital de Fortaleza deseje exercer sua identidade cultural através de um rito afro-brasileiro. Provavelmente, logo haveria tentativas de impedir a “macumba”. Constrangimento vivenciado ainda em outros contextos, não só de uma intolerância religiosa e racial, mas de um “apartheid” econômico, geográfico, social e cultural. Esta seria, ou é, uma das situações em que o racismo eclode em nosso dia-a-dia. Mesmo que nosso personagem não fosse negro, tomando por base que “hoje as religiões de matrizes afro-brasileiras não são lugares específicos de uma pertença étnica negra, mesmo que o panteão esteja ligado à tradição, à cosmologia negra”, conforme pondera a pesquisadora Zelma Madeira, doutoranda em Sociologia na UFC com tese sobre esta religiosidade.

O movimento capinaeado pela Sociedade Cearense Libertadora foi insuficiente para garantir a visibilidade negra no Ceará

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na conta, os negros livres e libertos. E ressalta: “essa invisibilidade histórica é fruto da construção histórica do racismo”. Pouco antes, a repórter Natália Paiva relatara o caso de alguns estudantes de Guiné-Bissau, vítimas de racismo no Ceará. A conclusão: continuamos tão racistas como no século XIX. “Queremos que se reconheça a afro-cearensidade para que não tenhamos vergonha de nos mostrar. Aqui se diz que não existe negro, que tivemos a Abolição antes. Isto traz desigualdades. É preciso que toda a população comece a ver e a respeitar que no Ceará existem negros e negras e que a população negra daqui trabalhou muito por suas tradições. Temos que reverter esta invisibilidade que é acompanhada por um processo de intolerância, inclusive institucional”, complementa

à Harco a doutoranda em Sociologia pela UFC, Zelma Madeira. Se somos racistas, temos obrigação de mudar este enfoque. Inclusive, convivendo com a cultura negra, além dos folguedos a qual a associamos “mais naturalmente”. Manifestações que às vezes tentamos assimilar de forma superficial, meramente festiva. Uma política editorial sobre a presença negra na cultura tradicional, na arte oficial e na mídia do Ceará, por exemplo, contribuiria para dar visibilidade a um novo processo de cidadania, envolvendo esta tal afro-cearensidade tão próxima e da qual ainda tão pouco ouvimos falar. No ano do centenário de morte do “mulato” mais popular da cultura brasileira, Machado de Assis, ainda é preciso estimular e reconhecer a identidade negra cearense.

Negro da periferia Em parte da elite intelectual e/ou financeira alencarina, ainda são comuns perguntas do tipo: “É de onde?”, quando um negro ou uma negra destaca-se. Caso a resposta seja um “Daqui mesmo”, um certo desdém ou surpresa podem acompanhar o diálogo, entre outras atitudes preconceituosas, em geral não extensivas aos “forasteiros” - talvez não por conta propriamente da nossa tradição de bons anfitriões. Nada que abale a afro-cearensidade. “A pessoa poderia dizer que é da periferia de Fortaleza. É lá que percebemos que esta identidade flui mais. É uma construção que passa por dificuldades até institucionais, mas percebemos que a periferia questiona cada vez mais essa invisibilidade histórica”, constata Zelma. Afro-cearensidade definida pela religião e a cultura, através de manifestações como o maracatu. “Desde os anos 20, estas religiões se manifestam bastante, mesmo em um estado considerado católico, contribuindo para a visibilidade negra”, diz, ressaltando que as encantarias têm influências diretas da matriz africana, no caso da macumba e do catimbó, e ainda do sincretismo, no caso da umbanda. Esta, com mais de cinco mil terreiros só na região metropolitana de Fortaleza, representa as exclusões sociais e prossegue discriminada. Pelo racismo e pelas acusações de heresia. “Claro que a intolerância religiosa hoje é menor, mas continua, com nova feição. A cosmogonia destas religiões é de toque e de dança, com atabaques, com canto e dança. E os terreiros estão sempre sendo multados e até fechados, de acordo com a Lei do Silêncio, mesmo já em locais apartados”. No entanto, garante Zelma, a resistência continua.


Um dos poucos políticos negros a ocupar um cargo majoritário no Estado, o vice-prefeito de Fortaleza, Carlos Veneranda, considera que “o racismo no Ceará é muito forte, embora não se demonstre abertamente. O que se reflete na própria participação negra na política”. Citando o paulista Abdias Nascimento (criador do Teatro Experimental Negro, exilado político e ex-senador pelo Rio de Janeiro) como sua maior referência, ele defende a atuação da Universidade Federal do Ceará para que o ensino das tradições afro-brasileiras finalmente conste nos currículos das escolas da cidade. “Já era para ter começado, mas tem que haver essa formação antes”. Quanto às cotas, sugere que elas não se dêem de forma “brusca nem permanente”. Ele também percebe uma identificação racial crescente na cidade. “As pessoas começam a assumir sua negritude mais naturalmente. A hipocrisia não leva a nada, temos que partir para um novo processo de valorização e de convivência”. Carlos Veneranda aponta que, após o insucesso em sua campanha para vereador, voltará para a Chesf, onde atua como auxiliar de Engenharia. “Tenho certeza de que continuarei representando a valorização da raça negra no Ceará. Posso contar para meus netos que ocupei um cargo que nenhum outro negro ocupou em Fortaleza”. Responsável pela edição do livro Ceará Libertador, o vice-prefeito também deu início ao projeto Ceará Quilombola – o Ceará que ninguém

vê, reunindo seis histórias relacionadas aos quilombos cearenses em livro e DVD. As iniciativas contaram com o incentivo da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – Seppir. Veneranda cita ainda a I Conferência da Igualdade Racial, em abril de 2005, reunindo 700 pessoas de Fortaleza e Aquiraz, como um marco de sua atuação junto ao movimento negro.

Ceará libertador Um significativo conjunto de textos sobre a libertação dos escravos cearenses foi reunido no volume Ceará Libertador (RDS Editora, 2007). A resistência de Francisco José do Nascimento em negar o embarque de escravos nas jangadas tornou o Dragão do Mar um ícone da cidade, pelo menos desde a construção do Centro Cultural erguido na Praia de Iracema há nove anos. A atuação do “Chico da Matilde” junto à Sociedade Cearense Libertadora, culminada no 25 de março de 1884, ganhou a história através de Edmar Morel, Pedro Alberto de Oliveira Silva, Raimundo Girão e Eduardo Campos, autores presentes na publicação com iconografias do Arquivo Nirez. Uma história de consciência viva.

[ afro-cearensidade ]

Identidade e política

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[ fotografia ]

Vale da Luz por Mauro Angeli

A luz do sertão. A luz do olhar fotográfico de Mauro Angeli. O sertão do Vale do Jaguaribe, onde vive há seis anos. Profissional há 22, convive de perto com a aridez de um lugar. O olhar do fotógrafo oferece luzes, sombras. Brilha em meio ao abandono aparente. O abandono dos homens, do tempo, alimenta a presença da luz, da vida.

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[ fotograifa ] harco [outubro de 2008] 25


[ cinema ]

H

á 50 anos saía de cena o filmólogo, crítico e autexto [L. G. de tor francês André Bazin (1918-58), cujas idéias e Miranda Leão] fotos [Reprodução] reflexões na famosa revista Lês Cahiers du Cinéma, por ele mesmo fundada em 1947 com Jacques Doniol-Valcroze, tiveram grande influência na maneira de se fazer cinema e de se “ler” um filme. Seu falecimento aos 40 anos constituiu perda irreparável para a intelectualidade francesa. Estes dez lustros coincidem evidentemente com o nascimento da Nouvelle Vague, pois foi também em 1958, a exibição do primeiro filme de François Truffaut, “enfant gâte” do movimento, o curta de 28min por ele dirigido, intitulado Lês Mistons (Os Pivetes),

durante a II Guerra, quando fundou um cineclube para apresentação e debate de filmes ousados, escolhidos adrede, pois os celulóides nele projetados estavam politicamente banidos pelas autoridades alemãs nos tempos da Ocupação (1940-44). Estas achegas querem ser um preito póstumo a tão excepcional figura, “padrinho” e mentor do jovem e rebelde Truffaut, a quem fez redator dos Cahiers. Crítico polêmico, Truffaut tornou-se depois cineasta de escol, realizador de 25 filmes de importância para a história do cinema. Sua grandeza, diria nos anos 70 o filmólogo neozelandês Ralph Stephenson, residia não só na sua competência técnica, mas também no talento para captar o fundamental, o essencial, o estável

premiado por dois Clubes de Cinema de Paris. O filme focalizava, com louvável poder de síntese e fluência rítmica, o despertar da sexualidade num grupo de cinco garotos interessados em acompanhar os movimentos de Bernadette Lafont numa partida de tênis com o namorado Gérard Blain. Antes, Truffaut filmara Une Visite, curta por ele descartado como simples experimento... Ex-aluno de um “teachers’ college” na França, Bazin teve recusado seu ingresso no magistério superior devido a uma leve gagueira. Não desanimou. Mestre no pensar e no escrever, tornou-se redator, ensaísta e crítico de filmes de temas correlatos do Parisien Liberé, além de contribuir para publicações francesas de repercussão aquém e além-mar. Após a morte prematura de Bazin, todos os seus escritos foram reunidos em quatro volumes e intitulados Qu’est-ce le Cinéma?, verdadeira antologia de cinema também publicada em inglês num só volume pela University of California Press e noutras línguas. Bazin não foi apenas o analista de filmes, mas também o organizador, o pesquisador, o incentivador, o L.G. de Miranda Leão descobridor de talentos e, principalmente, o amané crítico de cinema te da 7ª Arte entre as duas guerras mundiais e até

e o relevante das imagens em movimento.

Elucidando Bazin

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Mise-en-scène e Montage Estes dois conceitos-chave foram debatidos “ad nauseam” pelos críticos durante décadas no século XX. “Mise-en-scène”, da terminologia teatral, adquiriu nos últimos anos um significado adicional na sua aplicação ao cinema. Bazin e subseqüentemente outros teóricos usaram o termo para descrever um estilo de direção fílmica basicamente distinto daquele definido pelos franceses como “montage”. Enquanto esta é fragmentária e deriva seu significado da relação entre um fotograma e o seguinte, através da edição (termo mais abrangente), a “mise-en-scène” enfatiza o conteúdo do fotograma individual, os movimentos de câmara, as

Truffaut foi um seguidor do ideário de André Bazin. Aqui orienta cena de “Farenheit 451”

angulações e torna menos ortodoxo o uso do campo e contracampo. Seus defensores ou proponentes vêem a montagem como técnica demolidora da unidade psicológica em face do excesso de cortes e dos tipos de montagem dos quais se valem os diretores (montagem analógica, antitética, “leitmotif”, paralela, sincrônica, retrospectiva, por elipse e por rima) na reprodução da realidade buscada pelo cinema. Bazin considerava a arte um momento crucial no esforço psicológico do homem para ultrapassar suas condições reais de existência. Como registra o filmólogo Jacques Aumont em seu dicionário, “ao ligar ontologia e história das artes figurativas, Bazin via na fotografia um momento essencial dessa história, ao liberar as artes plásticas de sua obsessão pela semelhança (...). A fotografia e o cinema ‘prestam homenagem ao mundo tal como ele aparece’ e põem-nos em presença da própria coisa”. Por isso, Bazin conde-


Astruc e a linguagem cinematográfica O cisma entre “mise-en-scène” e montagem é mais profundo na teoria e menos na prática. Em sua maioria os realizadores empregam ambos os conceitos quando dirigem seus filmes, uns cortando menos e outros harmonizando-os conscientemente. Os cineastas incompetentes, preguiçosos, desleixados ou nefelibatas excedem nos cortes e na abominável

videoclipagem, chegando a fazer de 4 a 5 mil cortes num único filme! O debate entre plano-seqüência, foco profundo, menos cortes e menos campo e contracampo e mais movimentos de câmara já perdeu o seu “momentum”, e em nível dos grandes realizadores não se cogita do predomínio de um conceito sobre o outro. Antes, busca-se harmonizá-los. Para concluir, cuidamos oportuno acrescentar algumas linhas sobre as idéias do cineasta e novelista Alexandre Astruc, citado anteriormente. Exassistente de Marc Allegret (1900-73), graduado pela Sorbonne em Direito e Literatura e defensor da “câmara-stylo” (ou câmara-caneta), Astruc propugna para os filmes um meio de expressão livre da “tirania do visual” e das limitações tradicionais do contador de histórias. Ou seja, um meio de escrever tão flexível e sutil como a linguagem escrita... Seus filmes mostram uma preocupação consciente no interesse do próprio estilo. Influenciado pelo cinema alemão dos anos 20, Astruc seleciona seus planos cuidadosamente e se concentra nos ângulos de câmara, nos enquadramentos e na iluminação de interiores, com freqüência às expensas do drama humano e do tema. Mas o cinema, arte motovisual por excelência, repele as idéias de Astruc, pois as palavras, o cerne da literatura, não podem sobrepor-se às imagens motivo pelo qual suas criações como diretor não corresponderam às expectativas, apesar de idéias interessantes contidas nos principais títulos de sua filmografia: Les Mauvaises Rencontres (1949), Le Rideau Cramoisi (1952) e L’Education Sentimentale (1962), considerados por alguns exegetas como precursoras da NV... Desde 1970, abordagens críticas, tais como o estruturalismo, a semiologia e o marxismo, como salientam Kline & Nolan, têm minimizado a importância do “auteur” em favor da análise do “texto” do filme. Ainda assim, a teoria do “auteur” tem tido

duradoura influência tanto nas abordagens eruditas como nas populares. O diretor continua considerado o elemento mais próximo da criação do filme, particularmente quando se discutem fitas de alto valor artístico.

[ cinema ]

nava, como contrária à natureza mesma do cinema, “qualquer intervenção excessiva, qualquer manipulação, qualquer ‘trapaça’ atentatória à integridade do real apresentado. Isso o levou a proibir a montagem, notadamente quando sua utilização produzisse um sentido unívoco demais, imposto pela arbitrariedade do cineasta, em detrimento da ambigüidade imanente ao real”. Correlativamente, arremata Aumont, “o filme deve evitar impor ao espectador uma interpretação de tudo quanto lhe é mostrado no ecrã; essa ‘liberdade psicológica’ induziu Bazin a privilegiar estilos fundados no plano-seqüência e na profundidade de campo”. Esse foco profundo ou plano em profundidade veio à tona, sabemos, devido à dupla Orson WellesGregg Tolland em Citizen Kane (1941), com o qual foi possível filmar, com visão plena, tanto o “foreground” (a parte frontal de uma cena) como o “background” (o fundo de cena), minimizando-se a necessidade de fragmentar uma unidade da narrativa numa série de planos. Os planos-seqüência, vistos também criativamente em Soberba (The Magnificent Ambersons, 1942) e nos filmes do cineasta alemão Max Ophuls (Sem Amanhã, 1938; Carta de uma Desconhecida, 1948; Conflitos de Amor, 1950; O Prazer, 1952; Desejos Proibidos, 1953; e Lola Montés, 1955), foram igualmente louvados por Bazin e seus “alunos” em apoio aos argumentos do mestre tão bem explicitados em seus escritos teóricos e em amparo à “politique des auteurs”, pois das idéias do diretor Alexandre Astruc nasceu a base para a teoria do “auteur” nos anos 50, capaz de influenciar de forma decisiva os rumos da Nouvelle Vague. De fato muitos dos seus membros, sobretudo Truffaut, Godard, Chabrol e Rohmer, se tornaram críticos dos Cahiers sob orientação de Bazin.

André Bazin: um dos principais responsáveis pela gramática cinematográfica

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[ música ]

O

mundo nunca mais foi o mesmo depois de Cartola existir. Ou melhor, Angenor de Oliveira, o quarto dos sete de Sebastião Joaquim de Oliveira e Aída Gomes de Oliveira. É que não dá pra separar o homem do mito, tão ligados como o verde-e-rosa nos parece hoje graças à sua Mangueira. Cartola existiu. O mundo sorriu. Sorri cada vez que ouve sua música. Que compartilha um pouco de sua alma. Somos felizes: há 100 anos convivemos com esta sua magia. Certamente Cartola virou santo, como Pixinguinha e outros ícones da sagrada família afro-brasileira. A seguir, tomamos como fonte a Encilopédia da Música Brasileira (Itaú Cultural, 1998) e o site do Centro Cultural Cartola (www. cartola.org.br) . No Catete onde nasceu textos [Henrique Nunes] em 11 de outubro de 1908, fotos [Divulgação] Cartola talvez se encontras-

seu reino definitivo, a Mangueira. E outros nove para ele próprio transformá-la na Verde e Rosa. Ainda em Laranjeiras, Angenor aprendeu com o pai a tocar cavaquinho. Logo, menino e machete desfilavam entre o rancho Arrepiados e as festas de Reis - um olho nas pastorinhas, como suas irmãs. Não se tornaria muito hábil nele, mas seria grande amigo de um violonista que trazia no peito o nome deste primeiro instrumento. Só com o primário e o cavaquinho, Cartola bateu seu coração pela vida, largando a família após a morte da mãe. Tinha 15 anos. Os anos foram difíceis, ainda mais, desde então. Passou por tipografias, virou pedreiro. Virou Cartola: devido ao chapéu que usava para não

Negro, verde e rosa

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se um dia com um mulato que do Cosme Velho sacudira o Rio de Janeiro com sua bossa literária. Mas não deu: Cartola chegou, Machado partira, em 29 de setembro. Duas semanas em que o Rio ficou mais triste. O mundo ficou mais triste. Como em 30 de novembro de 1980, quando chegasse a hora de Cartola conhecer o “Chão de Estrelas” traçado por Sílvio Caldas e

Orestes Barbosa. Sílvio que estivera com Machado, não com Cartola, ainda, ao encontrar seu chão na vida, ali em São Cristóvão, em 23 de maio daquele 08. Oito anos depois, o bairro de Laranjeiras era o firmamento para um império que, fragilmente, se anunciava, embora fossem precisos mais três anos para que encontrasse, em 1919,

sujar a cabeça, que devia estar fresca apenas de idéias, como a de fundar o Bloco dos Arengueiros, com o futuro parceiro Carlos Cachaça. Estava com 17. Três anos depois, em 1928, articulou com Euclides, Saturnino, Zé Espinguela, Abelardo Bolinha, Maçu e Pedro Paquetá a fusão do bloco com alguns rivais (de socos e pontapés), criando a Estação Primeira de

Posso dizer que é um gênio da música. Traz poesia em alta voltagem, delicadeza, melodias sofisticadas, sem excessos. É contemporâneo e também clássico, traz as origens do samba em sua própria pessoa. Tive a felicidade de conhecê-lo, mais no final da vida dele. Um homem de 100 anos de vida eterna, que carrega dentro de si todo um Brasil inteiro; e o explica, o revela, com toda a nobreza possível em um só artista. Cida Moreira, cantora (SP) Cartola é um compositor extraordinário e já me deu muitas alegrias. Uma das maiores foi a de ter podido me tornar seu parceiro, pois embora não o tenha conhecido pessoalmente - infelizmente - esta nossa parceria aconteceu através de um convite que me foi feito por sua neta, Nilcemar Nogueira, ela me entregou um poema do avô, para que eu o musicasse. E assim nasceu nosso samba ‘Sem saudades’. E viva Cartola ! Francis Hime, cantor e compositor (RJ)


Rádio e ostracismo Mário Reis, que era branco, mas não era bobo nem nada, vivia atrás de novidade para continuar um dos maiores ídolos do rádio. De preferência, tomando posse definitiva das músicas, prática mantida até hoje. Em 31, comprou de Cartola o direito de gravação de “Que infeliz sorte”, que virou sucesso com Francisco Alves. Contrariando a lógica do dândi Reis, o mangueirense preservava a autoria de seus sambas. Em 32, lança, com Noel Rosa, “Não faz, amor”. Carmen Miranda, “Tenho um novo amor”. E não é que o encontro com Sílvio Caldas acontece, com o samba “Na Floresta”? Ainda em 32 oficializa a parceria com Cachaça: “Pudesse meu ideal”. No ano seguinte, o clássico “Divina Dama”.

Diretor de harmonia e compositor da Verde e Rosa, é premiado, gravado. Vira referência da música brasileira ao lado de Donga, João da Baiana e Pixinguinha, em Native Brazilian Music, produzido pelo maestro Leopoldo Stokowski em 1940, ano em que cria, na Rádio Cruzeiro do Sul, o programa A Voz do Morro, com outro grande amigo, Paulo da Portela. Junto a Heitor dos Prazeres, eles formam o Conjunto Carioca. Após um mês de apresentações em São Paulo, Cartola some do ambiente musical, a ponto de o considerarem morto. Em 48, sabe-se que não: viúvo e com meningite, vence o carnaval com Carlos Cachaça no samba-enredo Vale do São Francisco. Mas em 1956 era vigia e lavava carros em Ipanema, quando Sérgio Porto o viu. Outro cronista, Jota Efegê, descola um emprego no Diário Carioca.

Zicartola Com Zica (Eusébia Silva do Nascimento), torna-se festejado pela classe média, no período de 63 a 65 quando abrem, na Rua da Carioca, o Zicartola, restaurante frequentado por gente como Hermínio Bello de Carvalho e Paulinho da Viola onde o prato prin-

Cartola foi um dos grandes mestres da música popular brasileira, um excelente compositor de sambas e canções. Um artista interessado por harmonias no violão e de uma simplicidade típica dos gênios. O meu orgulho é muito grande por tê-lo conhecido, freqüentado sua casa e de Dona Zica, trabalhado com ele e ainda por cima ser parceiro dele em duas músicas. O povo brasileiro deve se orgulhar muito de um artista como ele. Cláudio Jorge, cantor e compositor (RJ)

Hermínio). A receptividade seria ainda maior dois anos depois. Além da capa, de óculos escuros ao lado de Dona Zica, numa janela, o segundo LP trazia outras estampas imortais: “O mundo é um moinho”, “Minha”, “Sala de recepção”, “As rosas não falam”... Por quatro meses faz com o conjunto Galo Preto seu primeiro show individual. Em 77, apresenta-se ao lado de João Nogueira no projeto Pixinguinha, criado então por Hermínio Bello de Carvalho. Lança Cartola – Verde que te quero rosa: “Tempos idos” (com Carlos Cachaça), “Autonomia”, “Pranto de Poeta” (Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito). Com Dalmo Castelo, a faixa-título: “é negra

[ música ]

Mangueira, na verdade, a segunda escola de samba carioca – depois da Deixa Falar. Mangueira, verde e rosa. Nome e cores escolhidos por Cartola. Cabeça de menino juntando cores tão vibrantes em homenagem ao Fluminense da velha Laranjeiras. “Chega de demanda”, dizia o samba-enredo pioneiro, escrito por ele há 80 anos.

cipal era o autêntico ritmo do Rio. Nara Leão inclui “O sol nascerá”, dele e Elton Medeiros, no Opinião. Sobrevive como contínuo em um ministério, entre a Verde e Rosa. Aos 66 anos, grava afinal seu primeiro álbum, no mesmo 74 em que leva o Zicartola para São Paulo. Tinha “Sim” (com Oswaldo Martins), “Acontece”, “O sol nascerá” (com Elton Medeiros) e ainda “Alvorada” (com Cachaça e Pra mim o Cartola é o cara dos grandes temas, filósofo, universal. O amor, a solidão, a verdade, a ética. Com uma simplicidade elegante, marca da nobreza que habita o mundo interno dele, o Cartola coloca na mesa os dilemas morais gigantes, ele é tipo um Dostoiévski da música popular. “Amor Proibido” não é isso? “Autonomia”? O homem comum diante de forças maiores que ele. E por aí vai. Mauricio Pereira, cantor e compositor (SP) harco [outubro de 2008] 29


[ música ]

[Jam]

Toca Raul!

Cartola é um compositor na forma mais pura e mais essencial. Sua grandeza é inexplicável porque é atingida através da simplicidade absoluta. Seus sambas são obras encantadoras por combinarem melodias de rara beleza com letras totalmente coloquiais. Parecem que foram criados em estado de delicadeza profunda, sem possuírem a marca de qualquer esforço intelectual. Oswaldo G. Pereira, cantor e compositor (RJ)

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toda tristeza desta vida”... Um disco ao vivo sintetizou estas doces alegrias há 30 anos. Em 79, já morando em Jacarepaguá, lança Cartola – 70 anos com temas autorais como “Inverno do meu tempo” e “Fim da estrada”, anunciados por um câncer. Aos 72 anos, Cartola deixou o mundo menos bonito em 30 de novembro de 1980. Ou, como diz Nelson Sargento: “Cartola não existiu, foi um sonho que a gente teve”. De qualquer maneira, seus sambas, nossos sonhos, seguem tentando diminuir esse vazio.

Seus sambas têm sempre melodia maravilhosa, letras de uma poesia singela e profunda. Além de grande compositor, também tinha um timbre de voz peculiar e uma divisão rítmica no fraseado vocal que influenciou muitos músicos e intérpretes não só no samba, mas na música popular brasileira. Canto de cor mais de 20 músicas, inclusive já fiz uns sete shows em sua homenagem. George Lacerda, cantor e compositor (DF)

Uffa! Parece que as coisas estão mesmo melhorando para o rock em Fortaleza. Até mesmo o Ceará Music começa a dar sinais de amadurecimento, chamando Rita Lee e shows internacionais. Em 17 e 18 de outubro, vai ser a vez do Clube Oásis tremer com o Festival Panela Rock. Encerrada pelo DJ Dado, a primeira noite é dedicada a Raul Seixas. Além da Salt, tem Lavage, Inflame, Carango e Marcelo Nova (ex-Camisa de Vênus e último parceiro do canceriano sem lar). Na outra noite, sempre a partir de 19h, a banda Sabbathage abre a programação dedicada a Black Sabbath. A noite terá ainda Joseph K?, Renegados, Cabaret (RJ) e Made in Brazil (SP), além da discotecagem de Babuê. Informações: (85) 3494-5673. www.paneladiscos.com

Associação de linguagens A Associação Cearense do Rock marca mais um gol através de seu projeto ABC Digital: no projeto “Rock.Doc: luz, câmera e distorção”, videomakers, músicos e quem se interesse pela fusão de linguagens poderá começar a aprender como criar clipes e documentários musicais, principalmente para o mercado virtual. De quebra, incrementa-se a mão-de-obra videográfica da cidade. Com duração de nove meses, o curso, oferecido por profissionais da empresa Incartaz Filmes & Eventos, começa em 6 de outubro. As turmas são de 20 alunos sobre temas como: exercícios de iluminação e câmera, linguagem cinematográfica, estrutura dramática, prática de documentário e videoclipe, estudo do som, direção de arte e edição de imagens. Haverá um processo seletivo e as inscrições podem ser feitas no blog http:// abcdigitalpontodecultura.blogspot.com

MPB da boa Não tem como perder a II Mostra da Canção Brasileira Independente, do Centro Cultural Banco do Nordeste - Fortaleza. Entre 8 de outubro e 19 de novembro, uma visão mais heterodoxa do que hoje se tornou a MPB chega entre nomes importantes como os cearenses Isaac Cândido (8/10), Humberto Pinho (23/10) e Neo Pi Neo (6/11). Dedicada a Cartola, a mostra trará gente como as potiguares Khrystal (23/10) e Valéria Oliveira (30/10), a amazonense Eliana Printes (13/11), os goianos Rubi (14/11) e Maria Eugênia (15/10), as mineiras do A Quatro Vozes (19/11), os baianos Lucas Santtana (6/11) e Daúde (7/11), o gaúcho Vitor Ramil (foto - 11/11), os cariocas Moacyr Luz (13/11) e Fred Martins (14/11) e ainda a paulista Simone Guimarães (29/10). MPB da boa, né?


[ música ]

[Opinão]

Cartola, Fênix Hermínio Bello de Carvalho, compositor e produtor musical

Parceiro de Cartola em “Alvorada” (com Carlos Cachaça), “Labaredas” e “Camarim”. Hermínio Bello de Carvalho foi responsável pelo show Rosa de Ouro, em 65, discos de Elizeth Cardoso, pelos últimos registros de Pixinguinha e, em 1977, pela criação do Projeto Pixinguinha

Às vezes penso que nenhuma amizade verdadeira se solidifica tão depressa quanto a mimãos milagreiras de Zica e a grande Menininha – cuja voz tive o privilégio de registrar. E nha com Cartola. Em apenas um ano e pouco de convivência, lá estava eu, em 1963, levando lá estamos nós, ouço agora, levemente triscados pelos tonéis de cerveja que sorvíamos, com Zica ao altar da Igreja Sagrado Coração de Jesus. Ao lado do padre celebrante, um aparentemenaquela sede própria dos inconseqüentes. E vinham juntar-se a nós o grande Padeirinho, Leléo e te calmo Angenor de Oliveira, envergando seu melhor terno, cumpria seu papel de noivo, e eu o Zagaia, Nelson Cavaquinho, o velho Marcelino - (primeiro mestre-sala da Mangueira) e também de padrinho do casal que ali oficializava sua união “diante de Deus“, como ambos desejavam. Ao a portelense (sim! poucos sabem disso) Clementina de Jesus, sempre acompanhada por Albino contrário do que escreveu João Antonio, não havia qualquer pressão da sociedade para tornáPé Grande, seu marido mangueirense. E, é claro: Cartola, Zica e Neuma. los marido e mulher, mas sim uma urgência de Cartola em oficializar uma união visando o futuro Esse registro em disco me remete a uma entre muitas histórias nascidas ainda no Zicartola, de Zica, contumaz trabalhadora, mas que, na sua generosidade, sabia como ninguém ajudar o restaurante e casa de samba que durante dois anos (1962/64) imperou no Rio de Janeiro, ao próximo – ainda que ele nem tão próximo estivesse assim. som das panelas de Zica e do violão de Cartola e com a elite do samba fazendo-se presente. SerFênix, ressurgindo das cinzas. Sempre tenho essa imagem mitológica quando lembro de gio Porto procurava, a qualquer custo, fazer com que eu produzisse aquele que seria o primeiro Cartola, das muitas vezes em que submergiu no anonimato e, feito a águia, veio traçar seu plano Lp de Cartola, com seus maravilhosos sambas cantados por Aracy de Almeida. Por outro lado, o de vôo. Vianinha (Oduvaldo Viana Filho) encasquetara com a idéia que Cartola não poderia ter descendentes e, igual a Pixinguieu deveria produzir um espetáculo sobre a Mangueira, um sonha, adotou um menino – Ronaldo - para suprir sua esterinho que acalentava desde que, segundo ele, eu apresentara lidade. Zica vinha de uma viuvez que lhe agregara filha e Cartola e um grupo de compositores mangueirenses, no Teanetos postiços, logo abrigados pelo carinho do meu parceiro tro Opinião. A bem da verdade, não me lembro absolutamente e afilhado. Cioso, foi também meio pai e tutor de seu parceiro nada desse espetáculo. Lembro sim que eu já havia levado o Nuno Veloso e até do velho Carlos Cachaça, por sinal casado Paulo César Baptista de Faria (depois, Paulinho da Viola) ao Zicom uma irmã de Zica, a Menininha. E bota amizade entre os cartola - e ele sempre faz referência ao primeiro cachê profisdois, que subiam e desciam juntos o morro da Mangueira, um sional recebido em sua vida, pelas mãos de Cartola. Paulinho amparando o outro quando os eflúvios do álcool se faziam conta que um dia chegou à minha casa e me encontrou trabamais presentes. Eram, Zica e seus agregados, a sua grande falhando num roteiro (seria para o Vianinha?), com quatro letras mília que, de resto, se espalhava por todos os cantos da Maninéditas (em disco) em cima da mesa. Enquanto eu passava ... e me vem à lembrança o último gueira. Onde pisasse Cartola, as reverências se multiplicavam. um café, ele, em dez minutos, musicou o “Sei lá, Mangueira”. Ontem estava aqui em casa reouvindo um trabalho que aniversário de Cartola, passado aqui em Uma das três restantes seria, sem dúvida, o “Alvorada” – feita de fizemos (Paulão 7 Cordas, Kiko Horta mais eu) sobre a Manparceria com Cartola e Carlos Cachaça. gueira. O pedido partiu da antropóloga Leila Coelho Frota, que casa. Fênix abatida por doença feroz, me Juntemos as pontas da história, virando a ampulheta do estava à frente do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro tempo. O Rosa de Ouro estreou em março de 1965, quando o chama a um canto e diz ser aquele o em 1999. O Cd duplo Mangueira, sambas de terreiro e outros Zicartola já havia encerrado seu ciclo de existência. O musical seu ultimo aniversário. E assim seria. sambas jamais foi comercializado, e restringiu-se a uma edisonhado por Vianinha nunca se concretizou – mas no fatídico ção de, se não me engano, duas mil cópias. Dele participaram de 1968 , o do AI-5, produzi o disco Fala, Mangueira – onde Dona Neuma, Zé Ramos, Xangô da Mangueira, Nelson Sargento, Comprido, Tantinho, Jurandir, reuni Cartola a seus amigos Nelson Cavaquinho, Clementina de Jesus e Carlos Cachaça – e com Comprido, Leléo – além de tia Zélia, Zenith e Soninha. Enfim, todos remanescentes de um grupo a grande Odete Amaral (já separada de Ciro Monteiro) gravando em primeira mão o Alvorada”e que, parte dele, já foi pro andar de cima nesses quase dez anos depois. o Sei lá, Mangueira. Em 1970, Paulinho joga luzes sobre a Velha Guarda da Portela, num Lp absoAo trabalho, acrescentei algumas fitas que tive oportunidade de gravar em minha casa, e lutamente antológico. E Cartola renasce para o sucesso com um Lp produzido por Pelão. nas casas de Cartola, Carlos Cachaça e Jacob do Bandolim – isso nos idos de 60. Era uma época Acabo de ouvir o Mangueira, Sambas de terreiro e outros sambas, jamais lançado comerem que ir-se ao Buraco Quente não se constituía em nenhuma aventura de risco. Lá havia a cialmente, e me vem à lembrança o último aniversário de Cartola, passado aqui em casa. Fênix Birosca da Efigênia do Balbino, que dava guarida ao nosso grupo – com intermináveis rodadas abatida por doença feroz, me chama a um canto e diz ser aquele o seu ultimo aniversário. E de cerveja e cachacinha da boa, mais os franguinhos e empadinhas e pastéis preparados pelas assim seria. harco [outubro de 2008] 31


[ literatura ]

para Maria Lúcia Camargo, minha amiga, que sabe de cor quase todo o Manuel Bandeira e seu efeito. E que por isso me traz de volta na alma os amigos que agora estão longe

M

anuel Bandeira sempre me pareceu morar do lado de casa, quase aqui, mesmo que eu tenha mudado tanto de endereço. Não por nada, mas porque de um certo tempo em diante ele passou a habitar, todos os dias, os quartos de hora que paro com a minha xícara de café espraiada na mão e parece um homenzinho que grita desesperado dentro da xícara também desesperada com a minha falta de tempo, com a correria do meu quase-quase, com a minha ausência de qualquer verso no coração para anotar e seguir com ele. Se quisesse pensar com César Aira diria que Manuel Bandeira é o homenzinho que habita uma espécie de diário de minhas doenças, de minhas fragilidades. Lembro do quanto, mais novo, dizia seus versos soltos e irresponsavelmente com os raríssimos e melhores amigos em qualquer circunstância feliz e descabida: “Como as mulheres são lindas / inútil pensar que é do vestido”, “Como deve ser bom poder gostar de uma feia! / O meu amor porém não tem bondade alguma. / É fraco! Fraco! / Meu Deus, eu amo como as criancinhas”, “Felizmente existe o álcool na vida.”, “Não vês que ela se dá toda no seu perfume?”, “Estou cansado de todas as palavras.” etc.

suplemento Ao Km Zero de um jornal do concelho de Castelo Branco, chamado Reconquista, e diz nele que “Todos os anos são anos de morte. Mas o ano de 1968 é-o particularmente para a poesia portuguesa ou, o que para mim é o mesmo, para a poesia de língua portuguesa. Morreu Manuel Bandeira, o nosso decano, ou melhor, o nosso padroeiro. Há dois anos que comemorávamos em Portugal o dia do seu aniversário. Este ano, que o não fizemos, ele foi-se embora. Queria morrer, e morreu”. Com Ruy Belo, ainda sobre Manuel Bandeira, penso que “como tudo o que é humano, também a poesia se conquista pela violência”, e assim se pode pensar a sua poesia no lance isento – como está no verso de seu Soneto Inglês n. 1 – “Mais que distante – isenta.” – que provoca na vida a partir de uma evocação imprecisa de sua memória afetiva, imprecisa porque assim me parece ser toda evocação de uma memória afetiva, e que ao mesmo tempo toma partido de uma circunstância inoperante para cumprir o gesto de fazer a poesia como um ato violento a este mundo descabido e torpe que não merece mais que o não-ser do poeta. E não-ser no sentido de um procedimento que se toma inteiro pela falência, desde o arquiteto impossível até o pedido de perdão para o poeta menor que disse se ter feito. Jean-Luc Nancy argumenta que “Poesia não tem exatamente um sentido, mas antes o sentido do acesso a um

O efeito Manuel Bandeira O poeta Manuel Bandeira ali, bem ali, não era apenas este homenzinho astexto [Manoel Ricardo de Lima] sombrado dentro da minha xícara de café que hoje me cobra um verso melhor, Ilustração [Lôbo] um poema melhor, uma vida melhor e bem menos carrancuda e bem menos partida, uma vida bem menos quebrada, mas era o homenzinho da palavra mágica, os seus versos tinham motor e desejo. A cada verso que escancarávamos tínhamos alguma convicção, alguma certeza: a vida deve ter um pouco mais de sentido em algum lugar por aí. E podíamos ficar a vida inteira, à toa à toa, dizendo os versos de Manuel sentados numa calçada ao pé de um muro de salpico, todas as quintas à noite, vendo o vai e vem de uma cidade encantada, que podia ter uma rua da Aurora, uma outra com nome de flor, outra que se chamasse rua do Sol etc. Mas tudo isso é de fato saudade, buraco na alma, vontade de ter os amigos mais perto; talvez efeito desta tarde fria, dos dedos gelados, desta ilha tão longe e do silêncio que uma montanha parece ter mas não tem. Isso tudo me parece uma espécie de efeito Manuel Bandeira: deitar na rede, tomar o café que eu mesmo preparei, pensar na vida, pensar humildemente na vida.

32 [outubro de 2008] harco

E agora, como não fumo mais, enquanto tomo café apenas observo os azulejos brancos da cozinha ou me distraio com os gatos andando pela casa e solicitando carinho. Manuel Bandeira morreu a 13 de outubro de 1968, este ano de simbologia estranha com tantos acontecimentos ao redor, mas que para mim é apenas o ano de sua morte, a morte de Manuel, meu quase xará, não fosse por este U ou O que nos separa. Ruy Belo, poeta português, publicou no ano seguinte, 22 de março de 1969, um texto chamado “Vat 68 – um ano de poesia”, no


[ literatura ] sentido a cada momento ausente, e transferido para longe. O sentido de poesia é um sentido sempre por fazer.” Para Nancy, a poesia seria aquilo que nos avisa que só é possível penetrar a história com o que nós próprios criamos, porque é ela que “extrai o acesso de uma antiguidade imemorial, que nada deve à reminiscência de uma idealidade, mas é a exata existência atual do infinito, o seu retorno eterno.” E não é o próprio Manuel Bandeira quem nos diz, ao lançar a teoria do poeta sórdido em seu poema “Nova Poética”, que o poema é a vida com nódoa, que o poema com nódoa é a vida humildemente ou é humildemente a vida: Vou lançar a teoria do poeta sórdido. Poeta sórdido: Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida. Vai um sujeito. Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem engomada, e [na primeira esquina passa um caminhão, [salpica-lhe o paletó ou calça de uma nódoa [de lama:

É a vida. O poema deve ser como a nódoa no brim: Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero Sei que a poesia é também orvalho Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem por cento e [as amadas que envelhecem sem maldade. É assim que, para ele, o poema e a vida são estas nódoas, estas manchas; e o poeta – como bem disse um outro poeta, tão pernambucano quanto ele, Joaquim Cardozo – é o homem manchado de sombra, no sonho, no sangue, no olhar, um sonho cravado na morte, um homem ferido no olhar, um homem marcado entre as nódoas do mundo. Mas toda a poesia de Manuel Bandeira não é senão uma alegria para dentro “na feira livre do arrabaldezinho”. E é em nosso mais sincero e íntimo arrabaldezinho que ela provoca essas coisas, essa vontade inaceitável que vem num efeito singular: o efeito Manuel Bandeira.

Manoel Ricardo de Lima, poeta e professor de literatura, UFSC. Autor de 55 Começos (Editora da Casa), entre outros. Vive em Florianópolis. harco [outubro de 2008] 33


[Rascunhos]

Dissecando Machado e Guimarães Dois gênios da literatura vêm sendo dissecados em Fortaleza. O Ciclo Machado de Assis e Guimarães Rosa foi levado, em setembro, ao Antônio Bezerra e à Vila União. Entre 1º e 3 de outubro, é a vez de a Granja Portugal participar das discussões, na ONG Casa Brasil. Outro ciclo de debate tomou o Centro Cultural Banco do Nordeste. 2008 contempla o centenário de nascimento do mineiro e o de morte do escritor carioca.

Quem lê tanto livro? Cerca de 46 mil títulos são publicados anualmente no país. Destes, 17 mil, em primeira edição. Impressionantes 321 milhões de exemplares são produzidos. Os dados da Câmara Brasileira do Livro (CBL) confirmam a expectativa do Secretário Auto Filho em relação à necessidade da democratização da leitura no Estado, realçada em entrevista desta edição da Harco (página 41). E impõem um alerta em um país que continua distante dos parâmetros ideais de leitura, apesar do incremento de seu mercado editorial, estipulando uma concentração da leitura, de fato carente de estímulos a seu acesso.

Oswald, Zumbi Ao som de “Blunt of Judah”, da Nação Zumbi, Oswald de Andrade ganhou um documentário animado de cinco minutos produzido pelo site LivroClip, projeto incentivado pelo Ministério da Educação. Um trailer está disponível pelo site http://www.livroclip.com. br/?acao=hotsite&cod=84 34 [outubro de 2008] harco


2

1

[ teatro ]

1 -”Pequenos Milagres”, montagem do Grupo Galpão (MG); 2- “Muito Barulho por Quase Nada”, com os Clowns de Shakespeare (RN); 3-”Um gesto por outro”, da Cia. Cênica de Repertório (PE)

3 4

O

Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga, como todo projeto consolidado e duradouro, vem passando ao longo de seus 15 anos, por várias releituras e transformações. Depois de apostar na promoção e multiplicidade dos grupos,

estruturas para que o maior número de pessoas possa usufruir desse rico momento cultural. Através de suas diversas mostras – local, com os grupos nascidos e atuantes em Guaramiranga, estadual, com grupos do interior do estado e de Fortaleza, Nordeste e

“No ano passado esta proporção inverteu-se, quando chegamos a 80% dos trabalhadores do FNT sendo constituídos por pessoas de Guaramiranga. Nesta edição de 15 anos, investimos nessa capacitação de forma bem mais efetiva”, confirmou Maria Amélia Mamede, diretora da Via de Comunicação, empresa organizadora do evento. Cerca de 20 mil pessoas acompanharam o festival. Um grupo de 20 pessoas que já atua na produção cultural da cidade ao longo do ano participou de um curso teórico de produção, ministrado pela Via. Durante esta edição, o grupo teve aulas práticas, atuando em funções essenciais da produção. Dessa forma, ressaltam os organizadores, o festival reforça o investimento na formação que promove desde a primeira edição, em 93. Isso vai beneficiar também a própria produção cultural da cidade e da região do Maciço do Baturité.

Intercâmbio e pesquisa no FNT

deixando de lado as mostras competitivas iniciais, o foco, entre 12 e 20 de setembro, foi a produção cênica nordestina dos chamados grupos de repertório. Ou seja, grupos que têm um trabalho continuado, que um dia se reuniram e traçaram um desenvolvimento em suas pesquisas, onde a qualidade e a vanguarda são essenciais. Segundo o presidente da Associação dos Amigos da Arte de Guaramiranga – AGUA, Luciano Gomes Bezerra, como não tem fins lucrativos, o FNT procura ocupar todos os espaços possíveis na cidade e inventa outras

nacional - ofereceu um riquíssimo panorama do que melhor se produz nas artes cênicas. Com o novo formato ganham não apenas os grupos de teatro, mas os produtores e toda a cadeia produtiva que gira em torno do festival que já se tornou referência em todo o País. De acordo com a organização do evento, nas primeiras edições do FNT, em torno de 80% da equipe de produção vinha de fora da cidade. Pouco a pouco este quadro foi se modificando em virtude desse processo de formação da mão de obra local nos mais diversos setores do evento.

Este ano, para a Mostra Nordeste, participaram os grupos Dimenti, da Bahia; os Clowns de Shakespeare, do Rio Grande do Norte, e a Cia. Cênica de Repertório, de Pernambuco, além do Bagaceira, com Yuri Yamamoto e sua trupe representando o Ceará. Cada companhia apresentou dois espetáculos em Guaramiranga. Um deles foi reapresentado em cidades vizinhas.

5

Espaços Segundo seus idealizadores, além do investimento consistente em formação, o FNT vem investindo cada vez mais na diversidade e descentralização da sua programação. Luciano explica que a programação contou com atividades durante todo o dia. Pela manhã, debates sobre os espetáculos encenados na noite anterior. À tarde, oficinas, encontros, lançamen4-”Meire Love”; 5- Yuri tos. E à noite, os espetáculos. Entre eles, os mineiros de um velho conhe- Yamamoto em “Meire Love” cido do festival, o grupo Galpão, que encantou o público com o espetáculo texto [Aécio Santiago] Pequenos Milagres. fotos [Divulgação] harco [outubro de 2008] 35


[ dança ]

D

ança, corpo, presença. Como organizar a dança cênica a partir do encontro com outras linguagens artísticas, a exemplo das artes plásticas e das artes visuais? É nesta intrigante “terceira margem do rio”, para fazer uma referência ao conto de Guimarães Rosa, que a Bienal Internacional de Dança do Ceará propõe aos artistas e ao público o desafio de cruzar e borrar fronteiras, ampliando o diálogo

na terceira margem

Serviço 1ª edição do Encontro Terceira Margem, ação da Bienal Internacional de Dança do Ceará/ De Par Em Par 2008. De 17 a 26/10, em Fortaleza e Sobral. Toda a programação é gratuita. Mais informações: Rua José Avelino, 495 – Praia de Iracema – Fortaleza/ Ceará. Telefone: 55 (85) 3219.3803. E-mail: info@ bienaldedanca. com. Site: www. bienaldedanca. com. 36 [outubro de 2008] harco

Corpo e imagem

texto [Thaís Gonçalves] foto [Christian Ganet]

entre as chamadas artes do corpo. A interface entre corpo e imagem permeia toda a programação do Encontro Terceira Margem, que acontece de 17 a 26 de outubro, em Fortaleza e Sobral. Serão 10 dias de intensa programação do projeto Bienal Internacional de Dança do Ceará/De Par Em Par 2008, cujo objetivo é realizar uma série de ações formativas, de profissionalização da cena

contemporânea, que vêm caracterizando as atividades dos anos pares que intercalam o festival. Este ano haverá exibição de vídeos, instalações e intervenções urbanas em espaços da cidade, fachadas de prédios e terminais de ônibus. Parte da programação é formada por trabalhos inscritos na Convocatória Terceira Margem. Ao todo foram enviadas 88 propostas de artistas de diferentes linguagens do Pará ao Rio Grande do Sul. Uma das novidades é que os artistas vão ocupar os 3.000 m² do histórico prédio da Caixa Econômica Federal, na Praia de Iracema. Patrimônio tombado,


Interface de linguagens A abertura será no dia 17 de outubro, com apresentação da reconhecida Companhia Maguy Marin, da França, com seu intrigante espetáculo Umwelt (do alemão: “ambiente”), termo utilizado pela filosofia para abordar a inter-relação e influências estabelecidas entre sujeito e meio. No palco, a coreógrafa apresenta uma série exaustiva de fragmentos e possibilidades de combinação de situações num jogo de deslocamentos, luzes, cores, nuances, sons, movimentos que acontecem entre es-

Bienal De Par em Par: de olho na formação Os anos pares sempre foram preenchidos pela Bienal Internacional de Dança do Ceará para realizar ações formativas, com o objetivo de fortalecer a profissionalização da dança no Estado. Com o patrocínio permanente da Petrobras, a partir de 2008 estas ações ganham a denominação Bienal De Par Em Par. Fica formalizado, assim, o compromisso em fomentar ações para além de sua programação. Conheça os projetos já realizados:

pelhos dispostos ao fundo do palco como labirintos. Corpos e imagens se multiplicam, se fundem e se diluem. “Discutir a relação entre dança e corpo e entre corpo e cidade é uma das necessidades do projeto Bienal De Par Em Par. Para isso, é estratégico ampliar mais radicalmente o diálogo entre as linguagens, promovendo espaços de troca de experiências e percepções artísticas”, explica Alexandre Veras, coordenador artístico do encontro Terceira Margem. A interface de linguagens não é um advento novo nas artes. A coordenadora pedagógica da Bienal de Dança, Andréa Bardawil, lembra que nos anos 60 e 70, nos Estados Unidos, artistas de diferentes vertentes se reuniam para experimentações na Judson Church. Por lá passaram nomes como o coreógrafo Merce Cunningham e o músico John Cage, rendendo uma parceria histórica e marcante. E para pensar a confluência entre corpo e imagem na videodança, Andréa conta que, desde

agosto, Itapipoca e Sobral receberam oficinas de 80 horas para repensar a presença a partir do cruzamento da perspectiva do vídeo com a do corpo performático. A discussão será ampliada no seminário Presença e performance: as linguagens do corpo através da imagem. Participam das mesas os cariocas Thereza Rocha, Paulo Caldas e Felipe Ribeiro e o francês Armando Menicacci. Christine Greiner (SP) ministra mini-cursos e Tamara Cubas (Uruguai) dirige residência de videodança. Haverá, ainda, a mesa dos festivais de videodança representados por Silvina Sperling – Festival Internacional de Videodanza de Buenos Aires (Argentina), Paulo Caldas – Festival Dança em Foco (RJ) e Oscar Malta – Play Rec – Festival Internacional de Videodança do Recife (PE). Revista e apoios Para além do festival, a Bienal Internacional de Dança do Ceará promete ainda lançar uma revista eletrô-

[ dança ]

este espaço contará, ainda, com obras restauradas de Letícia Parente, uma das pioneiras da videoarte no Brasil. Quanto às intervenções nos terminais de ônibus, onde em cada um passam cerca de 25 mil pessoas diariamente, a exigência é que as propostas incluam pelo menos três linguagens artísticas e a produção seja feita com R$ 5 mil, incluindo cachês e infra-estrutura de apresentação.

nica e impressa com reflexões sobre a cena da dança cênica no Ceará, após 11 anos de existência do evento, bem como um livro para registrar esta história. Muitas coisas a serem conferidas! A Bienal Internacional de Dança do Ceará/De Par Em Par 2008 conta com patrocínio da Petrobras, através da Lei Rouanet, do Ministério da Cultura do Governo Federal; tem apoio institucional da Funarte – Fundação Nacional de Artes, Caixa Econômica Federal, Ministério das Relações Exteriores da França no Brasil, Consulado da França no Recife e da Prefeitura de Fortaleza, através da Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor); apoio cultural do Governo do Estado do Ceará, através da Secult – Secretaria da Cultura do Estado. A Bienal integra o Circuito Brasileiro de Festivais Internacionais de Dança ao lado do Festival Panorama de Dança do Rio de Janeiro, FID – Fórum Internacional de Dança (MG) e Festival Internacional de Dança de Recife.

2004

2005

2006

Houve duas residências artísticas ministradas pelo coreógrafo francês Rachid Ouramdane, envolvendo artistas da dança, artistas plásticos e videomakers, que resultaram em apresentação no Galpão Boris, em Fortaleza, espaço que hoje abriga o Sesc/Senac Iracema.

Ano da quinta edição, houve nova residência artística seguida de um intercâmbio cultural, desta vez em parceria com o Circuito Brasileiro de Festivais Internacionais de Dança. O coreógrafo francês Rachid Ouramdane iniciou trabalho com os bailarinos cearenses Carlos Antônio dos Santos (foto) e Fauller e com o mineiro Wagner Schwartz, na montagem do espetáculo Cover, que estreou na Bienal e seguiu pela Europa em 2006.

E finalizando 2006, os cearenses Valéria Pinheiro – Cia Vatá – e Fauller – Cia Dita – estiveram entre os 20 coreógrafos convidados para o Projeto CoLABoratório – Encontro Sul-Americano Europeu de Coreógrafos, realizado pelo Circuito Brasileiro de Festivais Internacionais de Dança, com residências e apresentações no Rio de Janeiro, Belo Horizonte (MG) e Ceará (CE), entre novembro de 2006 e abril de 2007.

Foto: Divulgação

Foto: P. Imbert

Foto: Leopoldina Corrêa

harco [outubro de 2008] 37


[ miscelânea ]

texto [Dane de Jade] fotos [Nívea Uchôa]

Grupo de Reisado apresenta suas danças e canções nas ruas e praças do Cariri

C

omeça a X Mostra SESC Cariri de Cultura. Um mundo de diversidade, cabendo num pedacinho fértil no meio do Nordeste do Brasil. Aproximação entre comunidades, através de ações cotidianas, criando um canal de comunicação entre participantes, numa grande cena pública. É a Aldeia Cariri, um lugar de irmanar os homens, de festejar a Humanidade. Aldeia Cariri é esta confluência. Comunhão do verde da Chapada do Araripe, com a poeira das sandálias dos peregrinos adquiridas no Mestre Expedito Seleiro em Nova Olinda, com suas fontes perenes de águas cristalinas, com as cores de fitas coloridas dos reisados refletindo sonhos e utopias que fazem ressurgir uma diversidade de propostas e propósitos para os que chegam e os que aqui estão, espaço mítico no imaginário dos povos do Nordeste. O Cariri já era terra sagrada para as nações tapuias desde tempos imemoriais e foi bravamente

Aldeia da diversidade

Dane de Jade é gerente Programa Cultura SESC Ceará e coordenadora da Mostra SESC Cariri de Cultura. 38 [outubro de 2008] harco

defendida dos invasores se revestindo de nova significação, misturando o sagrado e o profano, o tradicional e o moderno, o popular e a vanguarda. A força da tradição popular em contato com produções artísticas contemporâneas de vários pontos do País (e de fora dele). Durante a X Mostra SESC Cariri de Cultura, que acontecerá de 08 a 15 de novembro, esses encontros – sempre enriquecedores e revigorantes – vão tomar as ruas, praças, teatros, clubes e galpões de

Crato, Juazeiro do Norte e Nova Olinda (pólos centrais), além de outras 12 cidades por onde a mostra pede passagem, levando fragmentos da extensa programação.

Núcleos Iniciado em 1999, o projeto foi incorporando novos parceiros e ampliando sua abrangência para além das artes cênicas, em cinco núcleos: Artes Cênicas, Música, Literatura, Artes Plásticas e Audiovisual. Porém,

cada um deles se inter-relaciona com os demais, através de diversos encontros multidisciplinares, estimulando os intercâmbios entre o público e artistas de diversos campos. A Mostra Sesc Cariri de Cultura destaca-se por sua ação de produção e irradiação da arte e cultura, ampliando o potencial das expressões artísticas que brotam no coração da Nação Cariri, difundindo e estabelecendo conexões a partir da grande rede que integra artistas, técnicos, produtores,

patrocinadores e comunidades. Assim, reafirma sua vocação socializadora, empenhada na construção de ações comprometidas com o desenvolvimento cultural do povo brasileiro, provocando processos de mudanças na região, nos mais diversos setores da economia, turismo, educação, cultura e, sobretudo, nas artes, com abrangência em todo o Estado. A Mostra ultrapassou em muito as expectativas iniciais, provocando desdobramentos, como a viabilidade


Atrações Ao todo, serão mais de 100 grupos artísticos, da Região do Cariri, de diversas cidades cearenses, de 10 estados do País (Bahia, Distrito Federal, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo) e atrações internacionais. Um dos destaques da programação é a Mostra de Tradição Oral/Rito de Passagem, que acontecerá todos os dias, às 18 horas, na Praça da Sé, no

[Misturas]

Cinco Núcleos, muitas vivências A Mostra divide-se em três pólos centrais da chamada Aldeia Cariri: Crato, Juazeiro do Norte e Nova Olinda. Em cada uma dessas cidades, funcionarão os cinco núcleos (Artes Cênicas, Música, Literatura, Artes Plásticas e Audiovisual), que contemplam, além de apresentações, momentos de formação e reflexão sobre os caminhos da arte e da cultura, no Cariri e no mundo.

O apoio de Sesc tem possibilitado a disseminação da cultura em toda a região do Cariri Crato e no Terreiro da Mestra Margarida, no SESC de Juazeiro do Norte. Serão grupos, de todo o Cariri, que trazem à tona as matrizes culturais nordestinas, como reisados, maneiro paus, bandas cabaçais, cocos e bacamarteiros. Alguns destaques são: Coco das Mulheres da Batateira, Banda Cabaçal Padre Cícero, Guerreiros da Mestra Margarida, Reisado de Couro e Bacamarteiros Beato Zé Lourenço. Além de rituais dos povos indígenas Guarani, Karajá e Fulni-ô. É isso que acontece em oito dias de vivências no Cariri. Pura celebração da cultura, da diversidade e do convívio. Um sertão que se transforma em cores, musicalidade, amizade, numa atmosfera que ganha uma densidade diferente, quase que uma excitação amarrada na garganta pelo

desconhecido que virá, pelas surpresas de encontros inusitados. Pois que cheguem todos! Tragam em suas bagagens idéias em diversas linguagens para trocar, misturar, re-escrever e alicerçar a construção de uma coisa totalmente nova no final dos oito dias. A festa é o elo onde estão presentes a construção e desconstrução; a mitificação e a desmistificação; os personagens e os não personagens (o homem simplesmente), enfim, o lugar onde a brincadeira desvenda os mistérios e ao mesmo tempo os ressalta, se faz como ponto aglutinador. Em novembro o Cariri estará em festa! Que seja a Mostra Cariri uma experiência capaz de mudar vidas! Brindemos à Mostra SESC Cariri de Cultura!

[ miscelânea ]

de novos projetos e programações que fortalecem a dinâmica das expressões culturais caririenses. Exercendo papel significativo na integração regional, no espaço privilegiado do Cariri cearense, tanto pela sua exuberante geografia como pela sua plural cultura. Em sua trajetória, a Mostra temse revelado fundamental na definição de políticas culturais, a partir destes cinco núcleos operacionais – Artes Cênicas, Música, Literatura, Audiovisual e Artes Visuai -, abrindo perspectivas para a circulação de espetáculos, exposições, artistas, gestores e criadores em geral, proporcionando formas de difusão e valorização das culturas, fomentando e consolidando práticas e saberes que se revelam ao longo da história desse projeto. Assim, o SESC insere-se como grande fomentador desse processo social, favorecendo não só a comunidade artístico-cultural, mas para toda a população, o comércio local, empreendedores, o sistema educacional, o setor turístico, dentre outros. Todos numa integração celebradora, contribuindo e interagindo para disseminar e fortalecer o desenvolvimento local e estadual.

Núcleo Literário Informativo “Flor do Piqui”: publicação cotidiana através de mídia impressa das ações e atividades desenvolvidas na Mostra. Conversa de Autores: escritores lançam os seus livros, autografam e conversam com o público presente no auditório da RFFSA no Crato.

Núcleo Audiovisual Revista Eletrônica: Um grupo de atores da Cia do Público (RJ) produz um “telejornal” diário, transmitido ao vivo em praça pública, mostrando o dia-a-dia e os bastidores da Mostra. Rapadura Cultural: programa radiofônico popular realizado em praças públicas nos bairros do Crato. Cine SESC Volante: exibição de filmes em bairros das cidades do Crato, Juazeiro do Norte e Nova Olinda. E mais: Vídeos, Oficinas.

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[ miscelânea ]

[Núcleos]

Núcleo de Artes Cênicas

Mostra Menino Cariri: montagens teatrais de vários estados do País voltadas para o público infantil com apresentações no Teatro Municipal do Crato, CCBN-Cariri, em Juazeiro do Norte, e no Teatro Violeta Arraes, em Nova Olinda. Cena Cariri – grupos do Crato e de Juazeiro do Norte mostram uma panorâmica do teatro produzido na região do Cariri, no palco do Teatro Rachel de Queiroz. Conexão Brasil: espetáculos teatrais convidados de vários estados do país. Acontecerá nos seguintes locais: Teatro Municipal do Crato, Teatro Sesc Crato, CCBN-Cariri, em Juazeiro do Norte, e no Teatro Violeta Arraes, em Nova Olinda. Terreiradas: nos próprios terreiros das casas dos mestres da cultura tradicional, o público é recebido e convidado a participar das evoluções de bandas cabaçais, reisados, lapinha. Os locais das terreiradas são no Crato e em Juazeiro do Norte. Mostra da Tradição Oral/Rito de Passagem: reúne mestres e brincantes de todo o Cariri e povos indígenas: Guarani, Karajá e Fulni-ô, promovendo uma integração entre esses representantes das nossas matrizes culturais, o público local, visitantes e artistas de fora. Acontece na Praça da Sé, no Crato, e no Terreiro da Mestra Margarida, no Sesc de Juazeiro do Norte. Espaço Alternativo de Teatro: grupos da Bahia e São Paulo levam seus espetáculos para um espaço inusitado: Sítio Beatos, nos arredores do Crato. 40 [outubro de 2008] harco

Mostra Palco Giratório: espetáculos de teatro e dança que integram o Palco Giratório, projeto de circulação em artes cênicas do Departamento Nacional do Sesc. As apresentações serão no Galpão das Artes no Crato e no Teatro Patativa do Assaré no Sesc de Juazeiro do Norte Mostra Internacional: artistas de países como França, Portugal, Holanda, Espanha, atravessam o atlântico e aportam no Cariri para apresentarem espetáculos, intercambiarem idéias e beberem da água que os farão voltar a estas plagas. Mostra de Teatro de Rua: espetáculos de vários pontos do País tomam ruas e praças da Região, convidando o público a interagir. O largo da RFFSA no Crato e a Praça Padre Cícero em Juazeiro do Norte serão os locais da Mostra de Rua.

Horário Bendito: na “Hora do Angelus”, 18h00, espetáculos do Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Paraíba e Pernambuco apresentam-se no Teatro Sesc Patativa do Assaré, em Juazeiro do Norte. Horário Maldito: no finalzinho da noite e adentrando a madrugada, grupos de diversas partes do Brasil ocupam o Galpão da SCAC a fim de mostrarem espetáculos e seus experimentos cênicos para espectadores notívagos já à espera do Banquete Dionisíaco. Circuito Patativa do Assaré: projeto de circulação de alguns espetáculos que se apresentam durante a Mostra, passando pelas cidades de Altaneira, Caririaçu, Missão Velha, Jati, Brejo Santo, Brejo Santo, Jardim, Araripe, Assaré, Santana do Cariri e Potengi. Overdoze: a mostra encerra com doze horas ininterruptas de teatro, música, poesia e intervenções, dando um panorama de tudo que aconteceu durante a Mostra. E mais: Performances, debates, intercâmbios, encontros, cortejos e oficinas.

Núcleo Musical Banquete Dionisíaco: apresentações musicais de vários pontos do País, com os mais diversos ritmos e estilos, reúnem todas as tribos para celebrar encontros e cultivar afetos nos gramados do Crato Tênis Clube. Farra no Cariri: o DJ Guga de Castro leva a “Farra na Casa Alheia”, famosa em Fortaleza, para o espaço do Crato Tênis Clube, no coração do Cariri. Fim de Tarde: ao cair da tarde, no Largo da RFFSA no Crato, a boa música, na voz de intérpretes de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Fortaleza, encanta o público com belas canções. Música de Sala: o Teatro Marquise Branca, em Juazeiro do Norte, é o palco para apresentações musicais de qualidade e com perfil acústico. Intérpretes de várias cidades brasileiras compõem a programação. E mais: Oficinas, ensaios, lançamento de CD´s, demonstrações musicais.

Núcleo Artes Plásticas Exposição: a trajetória da Mostra Cariri, nos seus 10 anos, realizada pelo talento do multiartista Zé Tarcisio, artista cearense de renome nacional. E mais: Encontros, oficinas, workshops, feiras.


[ entrevista ]

texto [Aécio Santiago] fotos [Mauro Angeli]

A hora do livro À frente da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, o filósofo, jornalista, bibliófilo e ex-preso político durante a ditadura militar Francisco Auto Filho vem marcando sua gestão pelo investimento na democratização da leitura e no acesso aos bens culturais. Na tarde do último dia 28 de agosto, ele recebeu a equipe de reportagem da revista Harco em seu gabinete na sede provisória da Secretaria de Cultura (Secult), no Cambeba. Falou sobre desafios como a Bienal Internacional do Livro, entre outros projetos e, naturalmente, polêmicas. Com 60 anos de idade, Auto Filho é um entusiasta naquilo que faz. Argumenta que nunca se investiu tanto em cultura no Ceará como no atual governo e afirma que seu maior sonho ainda está saindo gradativamente do papel: entregar aos cearenses o acervo de 3,5 milhões de livros.

Harco – Em novembro, o senhor pretende realizar uma Bienal do Livro com foco na América Latina e cada vez mais internacional. Qual o objetivo desta proposta? Auto – O tema será “A Aventura Cultural da Mestiçagem”, teremos a participação de 30 países representando quatro continentes. Queremos fazer a segunda maior bienal do Brasil recebendo aproximadamente 700 mil pessoas, e com uma participação efetiva do poder público; e isso é um diferencial importante a ser destacado, não querendo desmerecer outras bienais que são promovidas pelo setor privado. É esta combinação, entre parceiros, que achamos importante estabelecer, mas mantendo a política cultural nas mãos do Estado. O tema

já mostra essa direção que pretendemos dar, uma vez que em todo o continente americano, asiático, africano ou europeu, nós temos esse processo de diálogo entre as diversas culturas. Vimos notando em outras bienais pelo Brasil a pouca representatividade de outros países. No evento de São Paulo, por exemplo, percebemos esse déficit. Aqui, estamos num grande esforço, a partir da coordenação do escritor Floriano Martins. Já agendaram a presença alguns ministros da Cultura de países da América Latina e da África, além do novo ministro da Cultura Juca Ferreira. Teremos duas grandes exposições, uma comemorativa sobre os 50 anos da Revolução Cubana (que acontece em 2009, mas estamos antecipando) e a outra sobre a Revolução Bolivaria-

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[ entrevista ]

Auto e o cachimbo: companheiro fiel, convocado durante a entrevista

na na Venezuela. Lembrando, também, que há uma grande literatura em torno desses fatos históricos. Estamos negociando para que editoras venezuelanas venham e tragam relatos sobre essa experiência política na Venezuela. Harco – Há outras novidades na Bienal? Auto – Este ano o homenageado será o humorista Chico Anysio, que deve lançar no evento o seu novo livro. Também fechamos um convênio com a Fundação Edson Queiroz, que vai receber parte da programação voltada para o público infantil, que geralmente ficava meio espremido na programação dos adultos. Portanto, a Universidade de Fortaleza (Unifor) receberá, pela primeira vez, uma parte da pro-

Teremos ainda um programa de visitação de alunos e professores das escolas públicas da capital e do interior

Queremos distribuir, ainda em 2008, 1,5 milhão de exemplares. No total, o nosso projeto é entregar um milhão de exemplares para Fortaleza e 2,5 milhões para o interior

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gramação da Bienal do Livro. Sem contar que vamos trazer de São Paulo uma experiência interessante para este público, que é o projeto Cidade da Criança, com o objetivo de abrigar melhor as atrações para o público infantil. Teremos ainda um programa de visitação de alunos e professores das escolas públicas da capital e do interior, além de um estímulo para que os professores possam adquirir obras durante o evento. Já estamos solicitando um pedido junto ao governador para que libere recursos para uma bolsa de R$ 200,00, que vise atender aos 18 mil professores da Rede Estadual de Ensino e garantir que eles possam adquirir livros durante o evento. Existirá

todo um controle desse processo, acompanhado pelo Ministério Público e pela Secretaria da Fazenda, para que o recurso seja utilizado exclusivamente na bienal. Outra iniciativa a destacar é a possibilidade de a própria Secretaria de Cultura comprar R$ 5 milhões em livros para o sistema de bibliotecas públicas municipais. Com isso, nós já garantimos aos expositores uma venda mínima durante o evento.

Harco – Sua maior bandeira à frente da secretaria de Cultura tem sido o maior acesso do público às bibliotecas e, conseqüentemente, a criação de um maior número desses equipamentos com a oferta, até o final da gestão, de 3,5 milhões de livros. Como está o calendário para que essa bandeira se torne realidade? Auto – A partir de setembro vamos iniciar a entrega dos acervos. O grande ato solene que marcará o início desse trabalho acontece este ano, até dezembro, com a entrega pelo governador de 100 mil livros ao acervo da Biblioteca Pública Menezes Pimentel, totalizando assim 200 mil volumes no acervo. Mais 72 bibliotecas deverão receber livros até o final deste ano. Queremos distribuir, ainda em 2008, 1,5 milhão de exemplares. No total, o nosso projeto é entregar um milhão para as bibliotecas públicas de Fortaleza e 2,5 milhões para o interior. Já obtivemos do governador a aprovação para o início da modernização e ampliação das bibliotecas públicas municipais. São 192 em 184 municípios. Poucos sabem, mas Sobral possui uma biblioteca pública com um acervo de 20 mil livros, uma das maiores do Brasil, que já é o resultado da visão de política cultural do atual governo. O Sistema de Bibliotecas Públicas do Ceará foi o primeiro a ser criado no País. Isso começou ainda na época em que o secretário era o Eduardo Campos, em 1980, e nós estamos modernizando o sistema. Na etapa da atualização das bibliotecas, estaremos atualizando os acervos. Construímos um modelo que se chama Biblioteca Cidadã, que será constituído de um acervo de livros e nesse acervo teremos uma unidade do livro cearense não-didático, uma hemeroteca (com três jornais do Ceará e três exemplares de três revistas nacionais), uma videoteca, um café cultural para lançamentos de livros e eventos literá-


Harco – Quais os mecanismos paralelos para reforçar essa política de acesso ao livro? Auto – Há uma lei de 1975 que preconiza que cada empresa com mais de 200 funcionários deve ter uma biblioteca. Fizemos um levantamento e encontramos 300 empresas aqui no Ceará com esse perfil e já estamos em negociação com algumas delas para o seguinte acordo: a empresa entra com a aquisição de um acervo inicial de dois mil livros e o estado com a capacitação de pessoal para cuidar do espaço. Caso a empresa não tenha o espaço onde funcione a biblioteca, nós vamos estudar a possibilidade de usar um prédio público. Queremos dar a oportunidade das pessoas terem acesso ao livro e com isso cumprir a máxima do escritor Monteiro Lobato: “Um país se faz com homens e livros”. Nós apenas adequamos por uma questão de gênero e dizemos que um país se faz com homens, mulheres e livros. Portanto, atualizando os acervos, modernizando as bibliotecas e capacitando as pessoas para atuarem nesses espaços, fechamos o ciclo com a criação dos Programas de Incentivo à Leitura. Já temos em funcionamento o Programa Agentes de leitura que está em 15 municípios. Queremos duplicar esse número para 2009 e discutir com os vários segmentos da sociedade a criação de outros programas de leitura, com o objetivo de transformar o Ceará numa sociedade leitora. Dessa forma, com todos os sistemas de bibliotecas e os programas de incentivo à leitura implantados, esperamos atingir a marca de 12 milhões de livros no Ceará para uma população hoje de cerca de 8,3 milhões de habitantes. Em termos relativos, será o maior acervo de livros do Brasil. Harco – Mudando de assunto, como está se desenvolvendo o Conselho Estadual da Cultura?

[ entrevista ]

rios, uma unidade do livro infanto-juvenil, além de uma unidade do livro em braile. Com essa estrutura, nossa intenção é atrair o público leitor adulto, que na sua maioria começou a ler ao sair da escola. Para completar, temos o acervo virtual com quatro a cinco computadores para que o usuário possa fazer suas pesquisas pela internet. Nosso modelo já é referência para outros estados do Brasil.

Auto – Estamos discutindo a inclusão de dois representantes do jornalismo cultural no conselho. Ele já é formado por entidades da sociedade civil, por especialistas e técnicos e pensamos nessa grande contribuição vinda dessa área. Desde o começo da minha gestão coloquei como princípio que nada seria decidido solitariamente.

Harco - A respeito de jornalismo cultural, qual a sua opinião sobre um projeto editorial como a revista Harco, voltado para este segmento? Auto - Recebi com muita satisfação. Primeiro é uma prova de que o mercado cultural amadureceu. É muito importante termos um jornalismo cultural independente dos grandes grupos econômicos, que faça um trabalho crítico e fiscalizador. Vocês são porta-vozes da sociedade e esse espaço poderia servir para a proposição de idéias, de bandeiras. Quer um exemplo? Por que não começar uma discussão sobre a criação de linha de financiamento permanente da cultura, que não precisasse passar por editais especificamente? O Ceará precisa desses veículos específicos pra fomentar um espaço crítico, capaz de discutir as grandes questões relacionadas à cultura e suas políticas públicas.

Harco – Um dos gargalos da cultura ou da política cultural é a escassez de recursos. O senhor acha que os editais contemplam parte dessa demanda? Como avalia a realidade atual dos financiamentos públicos à cultura? Auto – Nós estamos numa campanha nacional juntamente com outros secretários de Cultura para que seja aprovada no Congresso Nacional a Proposta de Emenda Parlamentar (PEC 150/2003), que torna obrigatório, caso seja aprovada no Congresso Nacional, e permanente a destinação de 2% do Orçamento da União para a cultura, como há para a saúde e a educação. Os estados destinariam 1,5% e os municípios 1%. Com isso, nós teremos resolvido o problema da retenção de demanda na cultura, que se desenvolveu muito e o Estado não acompanhou desde a sua estrutura administrativa e, principalmente, no que se refere aos recursos. A emenda conta com o apoio da Frente Parlamentar

Entre livros da Biblioteca Pública Menezes Pimentel, Auto cita Monteiro Lobato em torno de “políticas afirmativas” para a leitura harco [outubro de 2008] 43


[ entrevista ]

Governo Federal. Hoje, somos referência para outros estados no que diz respeito à política pública na área da cultura, trabalho começado muito bem por minha antecessora, a professora Cláudia Leitão. Então, para você ter uma idéia de como estamos investindo nessa área, até a nossa chegada o maior montante percentual investido foi 0,46% em 2006. Atualmente, já atingimos mais de 1%.

Auto Filho recebeu a reportagem da Harco no gabinete da Secult, que em breve mudará para a Praça do Ferreira

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em Defesa da Cultura, formada por 400 deputados e 30 senadores. Também criamos o Fórum de Secretários de Cultura do Nordeste, que vem se reunindo periodicamente para debater essa temática.

Harco – O ministro Gilberto Gil saiu do governo declarando uma frustração por não ter conseguido garantir mais de 1% do Orçamento da União para a Cultura. Qual a sua avaliação do seu trabalho? O senhor sente essa mesma frustração do ex-ministro quando não consegue atender a demanda desse novo cenário cultural? Auto – O ministro fez um excelente trabalho ao criar o Sistema Nacional da Cultura, mas realmente ao dizer isso ele se refere, também, ao fato de não ter estabelecido essa fonte pública e permanente para a Cultura. O governador Cid Gomes foi o primeiro gestor que nos últimos 20 anos passou a considerar a área como um vetor do desenvolvimento econômico e social do Ceará. Em 2007, ele determinou que no Plano de Investimento fossem alocados recursos para a Cultura, sendo investidos R$ 68 milhões para execução de 77 projetos com financiamento direto do Tesouro sem passar pela legislação de renúncia fiscal. E nós estamos negociando, ainda para este ano, um investimento direto de R$ 104 milhões para 117 projetos. Até então, esse setor só recebia recursos da renúncia fiscal ou dos repasses também de renúncia fiscal, neste caso do

Harco – Quais suas metas para os próximos anos? Auto – Além de toda a política de incentivo à leitura, estamos implementando outra política importante que é a criação dos equipamentos culturais no interior do Estado, na tentativa de combater esse desequilíbrio que há entre a capital, uma vez que a maioria desses equipamentos públicos está em Fortaleza. Serão instalados, portanto, oito memoriais da Cultura Popular, sendo em Quixadá um centro para abrigar um acervo em homenagem ao cantador Cego Aderaldo, o segundo para a escritora Rachel de Queiroz e o terceiro ao poeta Jáder de Carvalho. Em Juazeiro do Norte, junto com a Prefeitura Municipal e a Universidade Regional do Cariri, vamos instalar e equipar a Tipografia de Cordel Lira Nordestina, restaurar a estação de trem e o Memorial Patativa do Assaré. Em Fortaleza, a Casa Juvenal Galeno será o centro da literatura de cordel e da poesia popular. Além disso, estamos discutindo a criação de um Memorial Indígena e dos Quilombolas. Harco – Um problema muito sério com as políticas púbicas em geral é a descontinuidade de um governo para outro. Programas que dão certo numa gestão, simplesmente são abortados na gestão seguinte. Dá pra planejar cultura assim? Auto – Nós podemos partir de um dado muito grave para começar a responder isso. Recentemente o IBGE fez um levantamento sobre cultura no País e detectou que 93% da população brasileira nunca viu uma exposição de arte e 70% dos livros adquiridos ficam com 16% da população. Então, veja bem: de Dom João VI até o presidente Fernando Henrique Cardoso, política cultural quando existia era, no máximo, uma política de governo. A partir do governo Lula e com a gestão do ex-ministro Gilber-

to Gil inicia-se uma mudança paradigmática. Isto é, passar de uma política cultural de governo para uma política cultural de Estado. Para isso acontecer precisamos regulamentar três elementos. Um é o institucional. Ou seja, é preciso criar o Sistema Nacional de Cultura. Isso basicamente é ter um ministério para cuidar do assunto; segundo, que ele tenha um fundo nacional de cultura e em terceiro, constituir um Conselho Nacional de Cultura para definir as diretrizes e as políticas. E o Ceará avançou bastante nesse quesito. Aqui nós temos uma Secretaria de Cultura que é uma das mais antigas do País. Nessa seqüência do sistema, os municípios precisam criar o mesmo padrão de funcionamento ou pelo menos uma fundação cultural em caso de locais de menor porte. Outro ponto importante que precisa ser levantado é de que é preciso ter políticas mais afirmativas para os menos possuídos de cultura. Fazer chegar a esses excluídos do saber, a oportunidade do conhecimento através da arte.


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