Eva - Rendas

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EDIÇÃO ESPECIAL # 2 - RENDAS Domingo, 28 de março de 2010 - Fortaleza, Ceará eva@diariodonordeste.com.br

A arte de criar o belo

FAZER RENDA NO LITORAL OU NO SERTÃO DO CEARÁ É OFÍCIO E, ACIMA DE TUDO, ARTE. NA SEGUNDA EDIÇÃO DA SÉRIE “MÃOS QUE FAZEM HISTÓRIA”, O EVA MOSTRA A TRADIÇÃO DAS RENDAS DE BILRO, LABIRINTO E FILÉ, PASSADA, QUASE SEMPRE, DE MÃE PARA FILHA GERMANA CABRAL / CRISTINA PIONER

Editora / repórter

om muita paciência e habilidade, as rendeiras criam, nas almofadas ou grades de labirinto e filé, peças de extrema delicadeza. Somente o amor ao trabalho justifica tanta dedicação, pois a “renda”, agora com significado financeiro, na maioria das vezes, não compensa o tempo investido no ofício. Símbolo maior do artesanato cearense, a renda de bilro está concentrada em nosso extenso litoral. E tem razão de ser: é a principal ocupação das mulheres de pescadores que, para suportar a ausência dos maridos, buscam preencher a rotina na almofada. O som dos bilros ecoa mais forte em localidades de Aquiraz, Cascavel, Beberibe, Pindoretama, Trairi e Acaraú. Rendeiras como Francisca, Mestra da Cultura, Neci, Santa e Zeta abriram as portas de casa ou locais de trabalho para nos revelar suas vidas. Durante a prosa, demonstravam, com orgulho, o complexo emaranhado dos fios na almofada. Difícil aos nossos olhos, porém simples pelas suas habilidades naturais. Tão fascinante quanto a renda de bilro é o labirinto. Precisamos ficar atentas para entender como essas mulheres, num desafio à paciência, transformam o tecido, nu e cru, no belo. É tradicional nas praias de Aracati, Icapuí, Beberibe e Cascavel. De sorriso largo e coração aberto, dona Bia, de Majorlândia, é um raro exemplo de persistência nesse ofício. Maria de Lourdes, em Icapuí, com espírito renovador, faz labirinto utilizando a juta. Teté, de Canoa Quebrada, aos 94 anos, resiste à modernidade da pacata vila de pescadores de outrora. É até atração turística. Para nossa surpresa, conhecemos em Araripe, no Cariri, Toinha, que tem o labirinto como uma das ocupações. Embrenhando-nos pelo sertão, chegamos ao Vale do Jaguaribe, onde homens e mulheres produzem o filé. Na Serra dos Bastiões, em Iracema, um dos resquícios de quilombola do Ceará, encontramos dona Sinhá. Sua especialidade é fazer tela, a base para os pontos do filé. No entanto, é em Fortaleza onde mora Perpétua Martins, responsável pela reinvenção dessa renda com linhas coloridas e design contemporâneo. o

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D I O luxo

impera na casa simples de dona Zeta, rendeira tradicional de Juritianha, distrito de Acaraú. Ela exibe a toalha de banquete, em renda de bilro, produzida por 12 artesãs FOTO: MARÍLIA CAMELO


Construído em 1985, o Centro das Rendeiras do Iguape encontra-se com instalações precárias em contradição à beleza do trabalho das artesãs. Segundo Neci, após a visita recente de técnicos do Governo do Estado, elas têm esperança de que seja construído um novo prédio

2 DIÁRIO DO NORDESTE | FORTALEZA, CEARÁ | DOMINGO - 28 DE MARÇO DE 2010

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ARTIGO

À espera de turistas

Vamos fazer a renda

DODORA GUIMARÃES

Pesquisadora e curadora de Artes Visuais

prendi a amar as rendas muito cedo, admirando a vovó Benvinda debruçada sobre uma alva almofada da qual retirava os bicos. Recordo, eu sentadinha próximo dela, pra sentir mais forte o cheirinho do algodão, ouvir o murmúrio dos bilros e sonhar acordada com o dia em que manejaria aqueles fios mágicos. Essas deliciosas descobertas aconteciam durante as férias, nas visitas ao seringal de dona Benvinda, uma dama cearense de olhos vivos como o dia, e que aportou em 1920 na beira do Rio Acre, fixando-se no Engenho Quixadá (nome em homenagem ao município cearense de onde vinha a família). Sempre laborando e atenta, sua vida era como o barracão onde morava, uma nau de trabalho. As rendas, essas delicadas tessituras, tinham lugar especial na casa e no coração de Benvinda Carneiro de Lima. Ofício das horas de folga, de mansidão e silêncio. Evocava-se ali, certamente, o espírito da tradição. Afinal, como essas enigmáticas linhas atravessaram o tempo é uma longa e misteriosa viagem. Sabe-se que vêm de longe, tendo deixado rastros nas antigas civilizações. Preservadas pelo fio do tempo, as rendas aportaram no Ocidente vindas da China, via Veneza, segundo contam os anais da história universal. Ramificando-se no movimento das grandes navegações, elas singraram os mares das grandes descobertas. No entrecruzamento das culturas, suas matrizes se multiplicaram e, consequentemente, seus motivos, seus pontos, usos e aplicações. Em boas marés ancoraram no Ceará, onde rendeiras como dona Benvinda, filha de Pacatuba; e Maria Assunção Gonçalves, de Juazeiro do Norte, Maria Perpétua Martins, de Jaguaribe, e Maria de Geraldo, do Aracati, receberam suas matrizes para transformá-las em patrimônio alencarino. De tão identificada com a terra, a Renda de Almofada ou de Bilro, resultante do entrelaçamento binário de fios presos a varetas semelhantes ao fuso, tornou-se conhecida Brasil afora como Renda do Ceará. Tributo difícil de honrar nestes tempos de excessiva oferta de produtos “made in China” e de turismo invasivo. Atente-se à preocupante denúncia de uma mestra do Labirinto, de Aracati: “Aqui quase todo mundo trabalhava, agora já não se trabalha tanto porque esse é um trabalho muito devagar, e o ganho é pequeno. As moças do Córrego estão todas indo pra Canoa (Quebrada), trabalhar como domésticas nas pousadas. Para elas, isso é muito melhor do que ir pra grade (fazer labirinto).” Lamentavelmente, essa é a realidade de quase todo o litoral cearense. Juntamente às areias das dunas, estão desaparecendo nossas ricas tradições, da noite para o dia como mágica. Ninguém vê. Como intervir de modo a preservar nossos bens culturais? Esse é um desafio a ser encarado com brevidade, antes que seja tarde. Não basta reconhecer este ofício como sublime. Deve-se pagar o preço justo das horas de trabalho. O valor de cada peça deve ser revisto e dignamente estimado. As três Marias lembradas acima integram uma constelação de mulheres que riscam com o olho o luminoso céu do Ceará. Assunção completa 94 anos neste 2010 e jura que ainda quer fazer muita renda. Perpétua, vigorosa e destemida, continua inventando pontos e cores na renda Filé, não obstante as adversidades. Maria de Geraldo e seu grande relicário de labirintos – como estará? E as rendeiras de Acaraú e Icapuí? Suas almofadas, grades, agulhas, papelões, riscos e linhas precisam de proteção e mercado. Sem política de preservação e comércio digno, não haverá salvação. Vamos levantar essa bandeira. o

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B I Dona Neci,

presidente da Associação das Rendeiras, mora na Praia do Iguape, Aquiraz, na Região Metropolitana de Fortaleza FOTOS: MARÍLIA CAMELO

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arece até que ela apreciava a cena pela primeira vez. Ao contemplar a saída das jangadas para o mar, Raimunda Vicente da Costa, a rendeira Neci, comentava enquanto escolhíamos o local para sua foto: “Eu acho tão lindo. Olha a luta deles. Oro para que Deus proteja eles”, diz, recordando-se quando o marido, Francisco, falecido há três anos, cumpria o mesmo ritual. “Vida de mulher de pescador é sofrida. A gente só sossega quando ele retorna. Meu coração sempre ficava apertado. Certa vez a jangada dele virou e ficou encalhada em Fortaleza. Passamos cinco dias sem notícias”, conta. Pertinho da praia, Neci, aos 73 anos, passa seus dias, de domingo a domingo, entretida com o trabalho na almofada à espera de turistas, presença rara nos últimos tempos. No entanto, valente como o pescador, ela não desiste. Num dos boxes do Centro das Rendeiras Mirian Porto Mota, na Praia do Iguape, Aquiraz, Neci produz e vende peças dela e de familiares. Nesse espaço, deteriorado pelo tempo, conversamos com a artesã, uma das mais antigas do local. Como presidente da Associação das Rendeiras do Iguape, recorda os bons tem-

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pos, na década de 1980, quando conseguiam ganhar dinheiro com a renda. Hoje, considera o ofício apenas ocupação. Culpa, principalmente, os espaços concorrentes abertos na CE-040, em Aquiraz. Mesmo assim, não se dá por vencida. Todos os dias acorda às 5 horas, faz as tarefas domésticas e segue para o Centro, próximo de casa. Fica de 9 às 11 horas e, quase sempre, retorna à tarde: “Às vezes não vendemos nada. No dia em que apuramos R$ 20,00 é uma festa”, diz. Para se ter ideia, a toalha de

bandeja, que demora três dias para ser feita, custa, em média, apenas R$ 10,00. Casada durante 45 anos, a artesã teve quatro filhos. Somente Necirene seguiu o ofício. Dos 11 netos e um bisneto, ninguém se interessou. “Quando eu tinha sete anos, minha mãe me ensinou a fazer renda. Se eu não praticasse, apanhava. Também não existia outra coisa, nem TV. Não tive infância como meus filhos”, compara. Nascida no Iguape, tem 15 irmãos, todos com o nome de Raimundo ou Raimunda, por causa de uma promessa dos pais. Embora tenha ligação com os “Raimundos”, ela fora criada pelo pescador Manoel e pela rendeira Francisca, já falecidos. São eles que considera os verdadeiros pais. Com muita fé em Deus, há 20 anos a artesã trocou a religião Católica pela Evangélica: “Eu era até catequista, mas me decepcionei”. Nem por isso deixa de ir à antiga igreja, na qual tem muitas amigas. Quando fica chateada com a desvalorização das rendeiras, Neci até pensa em parar com tudo, mas não consegue. “Acho que é um vício”, define. Além da renda, produz labirinto, paletão, ponto-cruz e filé. Só revela um segredo: nunca ter se interessado pelo crochê. E precisa mais? o

B I Emdefesa

dotrabalho dasrendeiras cearenses, Dodoradiz quesuas almofadas, grades, agulhas, papelões, riscoselinhas precisam, com urgência,de proteçãoe mercado

MÃOS QUE FAZEM HISTÓRIA | EDITORA VERDES MARES LTDA. - PRAÇA DA IMPRENSA - DIONÍSIO TORRES - CEP- 60135-690 -FORTALEZA -CEARÁ- TELEFONE: (085)3266-9796 - FAX: (085) 3266-9797 - DIRETOR EDITOR: ILDEFONSO RODRIGUES EDIÇÃO E TEXTOS: GERMANA CABRAL E CRISTINA PIONER - FOTOS: MARÍLIA CAMELO E PATRÍCIA ARAUJO - PROJETO GRÁFICO: EDUARDO FREIRE - DIAGRAMAÇÃO: ADRIANA RODRIGUES - MOTORISTAS (VIAGENS) : ÁTILA DAMASCENO, AUDÊNIO DOMINGOS, CARLOS COSTA, FRANCISCO IRANEUDO, SANDRO LUIZ E SÉRGIO RICARDO - AGRADECIMENTOS: CENTRAL DE ARTESANATO DO CEARÁ (CEART) E SERVIÇO BRASILEIRO DE APOIO ÀS MICRO E PEQUENAS EMPRESAS (SEBRAE-CE)


Em 2010, pela primeira vez, o Governo do Estado diplomou uma Mestra da Cultura pela atuação exclusiva com a renda de bilro: Francisca Pires. Antes, havia contemplado Assunção Gonçalves, rendeira e artista plástica

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Guerreira do mangue

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Durante a entrevista em sua casa, Francisca não parou de fazer renda. De lá, nos levou até à praia, onde é proprietária da barraca “Esperança”, aberta somente nos finais de semana

B I Francisca mora no Balbino, próximo ao mangue e ao mar, de onde já tirou seu sustento como marisqueira la enfrentou tudo e todos para garantir o direito à posse da terra da Praia do Balbino, no distrito da Caponga, em Cascavel, Litoral Leste. Apesar da luta, Francisca Ferreira Pires, 66 anos, manteve a delicadeza, principalmente na arte de fazer renda. A dedicação ao ofício é tanta que, duas vezes na semana, repassa seu conhecimento a um grupo de dez meninas, entre 8 e 12 anos. Por sua ligação com o artesanato, este mês foi diplomada Mestra da Cultura pelo Governo do Estado, sendo a primeira mulher a representar exclusivamente a renda de bilro neste seleto grupo de cearenses. Com o título, passa a receber um salário mínimo mensal. Nascida e criada no Balbino, comunidade próxima ao mangue e à praia, Francisca vive numa casa verde de janelas azuis cercada de coqueiros e dunas. O acesso de carro é difícil, exceto os de tração que, volta e meia, quebram o silêncio do lugarejo com o ronco dos motores.

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pessoa que plantou pode até ter morrido, mas nos deixou uma vida”, diz. Casada com o pescador aposentado José Argemiro Pires, a rendeira teve oito filhos, seis homens e duas mulheres, apenas a mais velha, Margarida, faz renda. Seu maior orgulho é a neta Wëdila, 11 anos, que está entre suas alunas. Duas vezes por semana, elas se reúnem na escola municipal. A primeira orientação da professora é para que todas lavem as mãos antes de começar a manusear as linhas e os bilros. MÉRITO

HFiquei muito feliz

em ser Mestra da Cultura. Agora, muita gente, não só do Balbino, vai conhecer meu trabalho para manter a tradição da renda de bilro”

Assim como as meninas, Francisca aprendeu a fazer renda aos sete anos, estimulada pela avó Luiza Conceição. Aos 8 anos, já conseguia se vestir com o suor de seu labor. Na época, recorda que não havia energia em casa. Trabalhava à noite com lamparina. Acredita que isso tenha comprometido sua visão. Há 22 anos, passou por uma cirurgia de glaucoma e, agora, está prestes a realizar outra. Contudo não para de fazer bicos de renda. Até pouco tempo, juntava as peças em metros numa caixinha de sapato e as vendia no Mercado Central, em Fortaleza, e no Iguape. De uma família de 12 filhos, foi marisqueira e trabalhou na roça, ofício pelo qual é aposentada. Queria ser doméstica na Capital para poder estudar, porém o pai nunca permitiu. Teve de se contentar em fazer até a terceira série, mas extrai tudo o que pode dos ensinamentos da vida. Sua luta, agora, é para não deixar se perder a arte de fazer renda. o

FRAGMENTOS

A renda do Cariri

Aprendizado A luta da artesã começou por conta dos especuladores imobiliários que pretendiam se apossar da área dos Balbino, primeiros moradores do local. Em 1989, Francisca fundou e passou a presidir a Associação dos Moradores do Povoado de Balbino. Chegou a ser ameaçada de morte. Por isso, decidiu se apegar ao “Jesus dos crentes”, trocando a religião Católica pela Assembléia de Deus. Foram 13 anos para receber a posse da terra. “Isso me enriqueceu muito, tive mais conhecimento, apoio das entidades e levei a experiência para outras praias, como a do Canto Verde. Além disso, a maior parte da nossa comunidade está preservando o mangue”, comenta. Apaixonada pela natureza, Francisca também foi vice-presidente do Conselho Municipal do Meio Ambiente por quatro anos e ainda conquistou a Área de Proteção Ambiental (APA) para a região. “Eu me sinto muito bem debaixo de uma árvore. Quanto mais antiga, mais eu gosto. A

D I Com idade

entre 8 e 12 anos, as alunas de Francisca prometem dar continuidade à tradição da renda no Balbino: “Recebo R$135, 00 pelas aulas, mas mesmo se fosse sem ganhar nada, eu ensinava” FOTOS: MARÍLIA CAMELO

A ALMOFADA tem um lugar especial na casa de Assunção Gonçalves, 93 anos, no Centro de Juazeiro do Norte. Fica decorando a sala, à espera de sua dona, que promete, em breve, retomar o manuseio dos bilros, com as mãos que já produziram belíssimos bicos e rendas. “Estou ficando preguiçosa, sem tempo, mas, se Deus quiser, volto a fazer qualquer dias desses”, garantiu dona Assunção, no domingo passado, por telefone. Quando passamos pelo Cariri, não conseguimos entrevistá-la. Foram três tentativas. Na última, ela nos recebeu, posou para fotos e mostrou as poucas peças que ainda guardava numa caixinha. No entanto, na hora em que íamos iniciar a conversa, pediunos para retornarmos no dia seguinte, pois estava na hora de assistir à missa pela televisão. Ainda insistimos, sem sucesso, pois estávamos deixando Juazeiro naquela noite. Dona Assunção é Mestra da Cultura, eleita pelo Governo do Estado em 2007. Reconhecimento ao seu talento como artesã (renda e bordado) e artes plásticas (pintura). É também considerada uma guardiã da história de Juazeiro, pois teve o privilégio de conviver com o Padre Cícero Romão Batista.

D I Mestra da Cultura, Assunção Gonçalves aprendeu a fazer renda criança e deu de presente grande parte das criações: “Pensava que teria vista boa para sempre trabalhar na almofada”. Abaixo, santuário da artista FOTOS: PATRÍCIA ARAUJO


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Além de Neide, as rendeiras Maria Adriana de Lima, a Maria Bumba, e Maria Neci de Paula trabalham no Centro de Artesanato. Vale a pena parar a fim de observá-las criando nas almofadas e comprar algumas peças

No Centro de Artesanato do Sítio Ema, o som dos bilros apenas é interrompido pelo barulho dos veículos que trafegam pelo quilômetro 46 da CE-040, em Pindoretama, no Litoral Leste DIÁRIO DO NORDESTE | FORTALEZA, CEARÁ | DOMINGO - 28 DE MARÇO DE 2010

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C I Aos 58 anos, Neide divide o tempo entre o trabalho com a renda e a presidência da Associação dos Moradores do Sítio Ema FOTOS: MARÍLIA CAMELO

Na pista da esperança odos os dias, três rendeiras se reúnem para trabalhar no Centro de Artesanato do Sítio Ema, em Pindoretama, Litoral Leste, à beira da CE-040. Uma delas é Francisca Maria Lima, ou Neide, 58 anos, que coordena a atividade. Quando recebe encomendas, pelo menos outras 10 mulheres se juntam ao grupo. O número é pequeno, considerando a tradição de outrora na localidade. “Esse trabalho vai se acabar. O pessoal de hoje prefere emprego na Prefeitura”, revela Neide. E confessa que só continua por um motivo: amor. “Se fosse para eu me vestir, andava pelada. Se fosse para eu comer, morria de fome”, compara. Contudo orgulha-se da ocupação que lhe acompanha desde o nascimento. A mãe, Maria Lima, dona Lica, pagou a sua parteira com o dinheiro vindo da dedicação na almofada. Neide aprendeu o ofício com a mãe, aos sete anos, e nunca mais parou. A renda ajudou a criar seus filhos. Dos oito gerados, seis estão vivos. Um deles ficou sob os cuidados de uma tia que não pôde engravidar. Em sua casa, a poucos metros do Centro de Artesanato, mora com Lica, três filhos e três netos. Abrigava, ainda, o ex-mari-

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Somente o amor à profissão faz Neide continuar na almofada de bilro do, de quem estava separada havia 10 anos. Ele faleceu em novembro de 2009 devido a problemas de saúde. Hoje, considera-se viúva. A rendeira tem poucos momentos de lazer, entre eles cita o curso de alfabetização para adultos, à noite, no qual diz aprender um pouquinho a cada dia. Há quatro anos, tenta melhorar a escrita e a memória. “Eu costumo sempre engolir as letras quando escrevo”, revela Neide, que só tinha a 4ª série primária. Aos sábados, o entretenimento é no encontro do grupo da terceira idade Raio de Luz. Nessa tarde, todos dançam, brincam, rezam e, às vezes, passeiam.

Compromissos

B I Dona Lica continua fazendo renda aos 86 anos. Sua perseverança é exemplo para a filha Neide

Em 2000, Neide chegou a se candidatar ao cargo de vereadora pelo PPS, porém ficou na suplência. Não pretende repetir a experiência. “Posso até ajudar outros candidatos, mas eu, nunca mais”, promete. Divide o tempo entre a almofada e a

presidência da Associação dos Moradores do Sítio Ema. É ainda secretária do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Pindoretama e participa de movimentos sociais, como o “Grito da Terra”. Aguarda, em breve, conseguir a aposentadoria como agricultora rural. Entre tantos compromissos, o que mais deseja é continuar na renda até ficar velhinha, a exemplo de dona Lica. Com orgulho, Neide nos apresenta a mãe. Aos 86 anos, a senhora de cabelos branquinhos ainda trabalha na almofada diariamente, sem precisar de óculos. Adora fazer bicos de renda. Quando perguntamos se podíamos

tirar uma foto sua, ela indaga: “Vão querer bater retrato dessa coruja velha, tão feia?”, soltando uma gargalhada. Da infância, Lica recorda que aprendeu a fazer renda aos sete anos. Mas, às vezes, lhe falha a memória. Fala com saudades do marido João Feliciano, pescador, falecido em 1991, com quem teve seis filhos. Apenas quatro vingaram. Todos foram batizados como Francisco ou Francisca. Promessa do pai, devoto fervoroso. A mesma fé herdada por Neide, que costuma visitar a basílica dedicada a São Francisco na cidade de Canindé, Sertão cearense. o

Música para atrair clientes D I No Centro

de Artesanato do Morro Branco, Olinda sempre faz fotos ao lado de turistas. “Muitos me mandam pelo Correio”, diz a artesã FOTO: PATRÍCIA ARAUJO

Ela costuma chamar atenção dos turistas cantando “Olê, mulher rendeira”, enquanto conversa, posa para fotos e demonstra como se faz renda na almofada de bilro. Francisca Moreira Borges dos Santos, a dona Olinda, 61 anos, está há dois com um box no Centro de Artesanato de Morro Branco, em Beberibe, Litoral Leste. Antes, tinha uma barraca de palha, onde permaneceu oito anos. Quando decidiu vender renda, chegou a enfrentar o sol diariamente para oferecê-la na praia. “Passei vários anos sendo camelô. Os donos de barraca não queriam que ficasse por lá. Perdi muito artigo porque deixava com o turista e, quando voltava para pegar o dinheiro, ele tinha ido embora. Levava o maior calote”, diz. Olinda começou a fazer renda aos 10 anos, aprendendo com a mãe Raimunda, já falecida. “Ela ensinou as sete filhas e muitas netas”. Além de conti-

VONTADE

H Não penso nunca

em largar a almofada. Só quando eu morrer. Mesmo assim, desejo que meu manto seja todo feito com renda de bilro” nuar no ofício, revende peças de outras artesãs, a exemplo das seis irmãs. Entre os artigos, blusas, saídas de banho, toalhas de mesa e bandeja.

Agradecida Olinda é dessas pessoas que enxergam longe, apesar da perda da visão do olho esquerdo por conta de um câncer, em 2005. Dos anos para trás, lembra o sofrimento de até ter passado fome como forma de agradecer a Deus a vida que tem hoje. “Choro de felicidade. Sou muito feliz em ver meus filhos tudo

criado e bem educado. Tenho 16 netos e uma casa boa, antes morava numa de taipa. Por meio do meu trabalho, consegui muita coisa”, comemora. Com Edmundo dos Santos, vendedor de água de coco, teve 10 filhos, oito vivos. A única mulher, Erivanda, é professora de Educação Física. Dos homens, dois são professores, dois, taxistas e três, bugueiros. No box, conta com o auxílio da neta Naiane, 18 anos, criada por Olinda desde os três, após a morte da mãe. “Ela sabe fazer renda, mas prefere se dedicar à faculdade de Educação Física”, orgulha-se a rendeira, que cursou até a 5ª série do primário. E completa: “o dinheiro que ganho aqui ajuda a pagar os estudos da minha neta”. Aposentada e católica, Olinda só para no domingo. Em definitivo, nem pensar: “Só quando eu morrer. Mesmo assim, desejo que meu manto seja todo feito de renda de bilro”. o


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porém mais parece um sítio. Tem cachorro, pato, galinha, entre outros animais, criados num jardim cheio de plantas e fruteiras, a exemplo de coco, banana e caju. Veca também comemora a compra da televisão: “Há 22 anos, quando casei, ficava na janela da casa do vizinho. Era uma humilhação. Hoje tenho dois aparelhos de TV”. Filha de mãe solteira, foi criada pela avó materna, Maria Anunciada, com quem aprendeu o ofício. “Aos 7 anos, já produzia e passei a ajudar as minhas irmãs com o meu trabalho”, diz. Por parte de pai, é neta de uma das mais tradicionais rendeiras da Prainha, dona Nenzinha, já falecida. Atualmente, o único período que ela dispõe para fazer renda é à noite, quando retorna do Centro das Rendeiras. Janta e se apega na almofada. Às vezes, entra pela madrugada. Para concluir uma toalha de bandeja leva até cinco dias. A peça é vendida, em média, por apenas R$10,00. E assim, Veca contribui para continuar a tradição das rendeiras de Aquiraz. o

COMERCIANTE

H Faço de tudo para

agradar o cliente. Já cheguei a vender até a minha almofada para um turista de Pernambuco” resse pelo artesanato. A adolescente prefere, nas horas vagas, ir à lan house. Contudo, o desejo de Veca mesmo é ver os filhos dedicados aos estudos, não seguindo seu exemplo. Ela parou na 8ª série. Sabe, porém, que para alcançar esse objetivo precisa-se de muita coragem e determinação. O marido José Clóvis da Costa, o Tó, pescador, nem todo dia consegue garantir o peixe da família. A sorte é que os dois garotos estão encaminhados. Caio César, 21 anos, encontra-se no Exército, com farda impecável cuidada pela mãe. Artur, 17, estuda e trabalha numa barraca de praia. O dinheiro ganho com a renda foi fundamental para a aquisição da casa própria, de seis cômodos. O clima é de litoral,

FRAGMENTOS

Novo Centro ATÉ NOVEMBRO deste ano, Maria Cleide Costa é presidente da Associação das Rendeiras da Prainha. Durante sua gestão, tem como principal objetivo a inauguração do novo Centro das Rendeiras, cujas obras estão paralisadas há mais de um ano. O prazo inicial de três meses, prometido pela Prefeitura de Aquiraz, foi descumprido. E até o momento não há nova data anunciada para a inauguração do espaço, onde funcionava a antiga sede. “Segundo a Prefeitura, está sendo aguardada uma verba que vem de Brasília”, afirma Cleide. Criada há 30 anos, a Associação reúne 80 artesãs, sendo que 23 trabalham no Centro. “Nossa casa é aqui, onde ficamos de 8 às 17 horas”, diz Cleide. Para atrair os clientes, elas aceitam até pagamento com cartão de crédito. Também valem-se de acordos com guias de turismo e bugueiros (comissões sobre as vendas). Na próxima alta estação, em julho, esperam repetir o bom movimento de janeiro. Melhor ainda se já estiverem no novo Centro.

B I A artesã

Veca e sua filha adolescente Carolina, que também aprendeu a fazer renda, seguindo a tradição da família FOTOS: MARÍLIA CAMELO

Paciência de uma santa mulher os 73 anos, ela mantém o corpo esbelto e os cabelos branquinhos como suas criações. Maria da Cunha Henrique, a dona Santa, ganhou o apelido ainda na infância, por ter nascido “gordinha e mole”. Hoje, o nome combina com o seu jeito de ser: uma senhora simpática, paciente e de fala mansa. Dona Santa é uma das raras mulheres que produz renda

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com linha fina na Prainha. Desenvolvendo um trabalho minucioso e demorado, passa 15 dias para fazer a toalha de bandeja (40 por 50 cm), vendida pelo valor der R$ 50,00, mais que o dobro do cobrado por uma similar de linha comum. A perfeição do artigo compensa o investimento, disso ela não duvida. Porém, nem todo dia há cliente interessado em adquirir a renda de valor agregado no Centro das Rendeiras, onde Santa tem box. Mesmo

A I Mulher de

pescador, Santa aprendeu a fazer renda de bilro aos 10 anos com a avó. Seu maior diferencial na Prainha é trabalhar apenas com a linha fina

assim, não desiste da paixão por essa matéria-prima. “Aqui na Prainha só tem eu e outra rendeira trabalhando miúdo. Como é um serviço que leva muito tempo, ninguém tem paciência”, explica.

Apaixonada Nascida na Prainha, Santa mudou-se para o Iguape, praia vizinha, onde morou com a avó. Aos 10 anos, já fazia renda. Tinha 16 quando retornou a sua terra. Dois anos depois,

estava casada com o pescador, atualmente aposentado, José Atanásio Henrique. O namoro durou apenas três meses. Já a paixão pelo marido permanece após 54 anos de união. “Ele é um gatão de olhos azuis, lindos”, derrete-se, com um largo sorriso. O casal teve seis filhos, mas apenas três se criaram, sendo duas mulheres. Até hoje não se conforma com a vida de pescador que o marido levava. “Ele passava de três a quatro dias no

mar, e eu ficava preocupada, sem ter o que comer, só com a água no pote. Muitas vezes, voltava sem nada. Por isso, minhas rendas sempre ajudavam, e muito, no sustento da nossa família”, recorda. A rendeira estudou somente até a quarta série primária, porém diz ter sido o suficiente. Dá para fazer as contas e vender as peças, dela e de outras artesãs, sem problemas. Apenas deixa o trabalho às quartas-feiras, das 14 às 17 horas, quando participa de um grupo de idosos. Lá tem merenda, farda, exercícios, oração, forró e até passeios a Fortaleza. Embora admita cuidar da saúde, apresenta alguns problemas, como pressão alta e labirintite. Por isso, evita todo tipo de comida gordurosa. Nada, contudo, que a deixe sem ânimo. Todo ano, em novembro, Santa vai a Juazeiro do Norte, na região do Cariri, de excursão, participar da romaria do Padre Cícero. Católica, confessa não passar muito tempo ajoelhada rezando. Contudo não esconde a sua fé. Afinal, recorre sempre aos santos para amenizar as preocupações diárias. o

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O sustento da família Costa uidar da casa, da família, dos animais, fazer renda de bilro e vendê-la. Além disso, é faxineira numa residência de veraneio. Precisa mais? O dia de Eveline da Costa, a Veca, começa, às 4 da madrugada, para lavar roupa e adiantar o almoço. Afinal, às 11h30min, deixa a casa, na Praia do Japão, e segue a pé, no percurso de 1 km, rumo ao Centro das Rendeiras da Prainha, em Aquiraz, Região Metropolitana de Fortaleza. “Chego lá em 30 minutos de passo apressado” diz. O expediente só termina às 17 horas. Quando consegue vender alguma coisa, a artesã volta para casa feliz. Porém, isso nem sempre acontece. No box, tanto oferta peças de sua autoria quanto de colegas. Outra alternativa de Veca é a faxina, realizada às sextas-feiras, pela qual ganha R$ 240,00 por mês. Apesar de ter o dia corrido, Veca, 42 anos, não demonstra cansaço. A caçula dos três filhos, Carolina, 16 anos, ajuda a mãe na almofada de bilro, embora demonstre pouco inte-

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Apesar de funcionar num espaço provisório, o Centro das Rendeiras da Prainha atrai visitantes diariamente. Lá, as artesãs trabalham e vendem peças de vestuário, cama, mesa e banho

A renda de bilro é uma das principais atrações da Prainha, em Aquiraz. Também não é para menos. Cada qual mais bonita, seja por seus desenhos, cores ou tipos de linha


Quando chegamos à casa de Albertina, ela nos recebeu com as mãos cheias de farinha. Pede desculpa e também para aguardamos um pouquinho. Volta à cozinha para terminar de fazer o serviço

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Albertina estava preparando bolos. Eles seriam comercializados naquela noite, durante a visita da imagem de Nossa Senhora a sua casa, com renda revertida à paróquia de São Miguel Arcanjo

DIÁRIO DO NORDESTE | FORTALEZA, CEARÁ | DOMINGO - 28 DE MARÇO DE 2010

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simplicidade e o desapego são visíveis na vida de Albertina Roque de Holanda, 78 anos, rendeira da Praia de Mundaú, em Trairi, Litoral Oeste. Sua casa tem acomodações pequenas que abrigam o marido, o neto, sua mulher e o bisneto Luquinha. Ao se desculpar pelo lugar onde mora, Albertina lembra que, certa vez, uma irmã lhe perguntou se havia feito voto de pobreza. Então, lhe respondeu: “não, eu sempre fui pobre”. Mostra-se, porém, muito orgulhosa quando começa a falar de sua relação com a renda de bilro. Natural de Itapipoca, aprendeu o ofício entre os 7 e 8 anos. “Nessa idade, comprava lápis e folha de papel para desenhar o papelão”, recorda. A mãe, Ana Francisca, a Naninha, já falecida, era quem levava a produção da família para vender em Fortaleza. Albertina lembra do capricho da mãe que só fazia bicos de renda branca. Ainda menina, aos 12, foi trabalhar com a irmã mais velha numa casa de família na Capital, onde passou três anos e meio. Voltou para Trairi e casou-se, há 55 anos, com o

A

Dom de ensinar agricultor Estevão Holanda Neto: “Naquela época a gente casava com quem a família queria. Porém o amor veio depois. Temos um filho, três netos e um bisneto”. Após o matrimônio, voltou a estudar numa escola do antigo Mobral. Alfabetizou-se pelas ondas do rádio, concluindo a 5ª série. Gostou tanto que passou a ensinar a outras pessoas por meio da Rádio Assunção. Quando era doméstica aprendeu a cozinhar, fazer bolos e roscas. Ficou famosa na comunidade por ser excelente em tudo na arte culinária. No entanto, a verdadeira paixão é a renda de bilro.

Persistência “A vontade que tenho dentro de mim é fazer renda todo o dia”. Não só isso, mas colaborar para que a tradição não se acabe em Mundaú. Durante seis anos, ensinou o ofício a crianças da creche local. Enquanto falava da experiência, uma das ex-alunas passa na calçada. “Taí uma das que aprendeu comigo”, apresenta. Monaliza, 12 anos, busca mais duas colegas para demonstrarem toda a habilidade no bilro, fruto das aulas de Albertina, porém não prometem continuar na almofada. Aposentada por idade, Albertina lamenta: “As jovens de hoje não querem mais trabalhar com a renda. Acham sem futuro, mas tenho muita esperança que mudem de ideia”, diz. o

D I Albertina

orgulha-se da renda feita em Mundaú e incentiva jovens a trabalharem na almofada. Ao lado, apresenta três de suas ex-alunas no ofício: Monaliza Santos, 12 anos, Monaliza Farias, 15 e Maria Eliete Santos, 13 FOTOS: PATRÍCIA ARAUJO

FRAGMENTOS

Casa da mulher rendeira ALÉM DEcozinhar, bordar, costurar, colaborar com a Igreja Católica e fazer renda, Albertina preside a Casa da Rendeira de Mundaú há cinco anos. Ela é responsável por receber as encomendas, comprar as linhas e repassar os trabalhos às 53 associadas. Por conta da função, viaja muito, representando as artesãs locais, principalmente para participar de feiras. Já foi, por exemplo, a Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro. De

vez em quando, está em Fortaleza. “Agora, vivo no mundo. Gosto dessa função. Só acho ruim porque meu ouvido dói durante o voo”. Na sua opinião, tudo é válido para divulgar os artigos produzidos em Mundaú, principalmente os de vestuário. “Primamos pela qualidade. O resultado tem sido muito bom”, comemora, ao lembrar que já fizeram cursos de aperfeiçoamento ministrados pelo Sebrae e pela Ceart.

Histórias em livro

D I Sob uma

árvore, em Alagadiço, Canaan, distrito de Trairi, mulheres e até crianças se reúnem todas as tardes para fazer renda. Um dos destaques é Maiara Barbosa, 12 anos. No ofício desde os 8, já revela admiração pelo trabalho

As rendeiras estão em toda parte neste pacato distrito de Trairi e já viraram até tema de livro. “Tecendo rendas e vidas - artesãs de Canaan” foi escrito pela cientista política Rosa de Lima Cunha que viveu a infância na localidade, onde aprendeu o ofício com a mãe. Para escrevê-lo, contou com a colaboração da arquiteta Cheila Gomes. Residente em Brasília, Rosa retornou à Canaan, após aposentada, a fim de iniciar um trabalho de organização dessas mulheres da almofada de bilros. Foi criada uma associação, resultando na eliminação do atravessador. Assim, evitou-se a venda de peças por qualquer preço. Podiam valer um quilo de feijão, um material escolar, dependendo da necessidade no momento. Hoje, as artesãs participam de feiras e vendem por meio da entidade. o


Raimundinha acorda às seis horas, cuida dos animais e faz o almoço. À tarde e à noite, quando não está em reuniões, cria desenhos e peças piloto para repassaràsrendeiras.Gostadeassistiràsnovelasparavermodelosderoupas

De volta para a tradição om toda paciência, Raimunda Lúcia Lopes, 60 anos, ensinava a crianças do préescolar numa escola da zona rural de Trairi, Litoral Oeste. Na sala, é visível sua dedicação pelo ofício. Nesse cenário, a encontramos, em maio passado, para conversar sobre outra paixão: a renda de bilro. Coordenadora do Grupo das Produtoras Rurais de Artesanato de Timbaúba (Grupart), Raimundinha conseguiu reunir mulheres, há mais de uma década, para resgatar o trabalho na almofada. A rendeira é a segunda dos 15 filhos do casal de agricultores Zélia e Antônio Caboquinho. Como a mais velha das seis mulheres, tomou para si muita responsabilidade. Lutou na roça e ajudou a criar os irmãos mais novos. Contudo sempre estudou. No início, com professores particulares em Timbaúba. Depois, em Fortaleza, onde concluiu o segundo grau. Dividia o tempo entre os livros e as costuras para uma fábrica de confecções. “Quando fui para Fortale-

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za, levei minha almofada e, nas horas vagas, fazia renda. Nos fins de semana, saía pela cidade vendendo a minha produção e a da família”, recorda. Em 1997, foi a São Paulo visitar um tio. Dessa viagem, só retornou, em definitivo, cinco anos depois: “Lá, ganhei a vida como bordadeira e costureira”. Não havia tempo para produzir renda, porém sua mãe enviava as peças para ela vender. “Comecei a aplicar renda nas roupas, criando desenhos próprios. Era um sucesso”, recorda. Fazer companhia aos pais, com mais de 80 anos, foi o que a trouxe de volta. Mesmo assim, não se aquietou. Ao sentir falta de uma escola, começou a campanha para construi-la. No início, dava aula sob uma puxada de palha. Seu pai doou o terreno e o prédio foi erguido com a ajuda de voluntários alemães e da comunidade. De maio para cá, o cenário mudou. A escola acaba de ser fechada por falta de alunos. “Surgiram outras nas proximidades”, justifica. Agora, o prédio abriga a sede do Grupart e,

B I Raimunda

Lúcia Lopes coordena o Grupart, no distrito de Canaan. Professora municipal, ela cursou faculdade de Pedagogia e pósgraduação em Gestão Escolar FOTOS: PATRÍCIA ARAUJO

FRAGMENTOS

Desfiles de moda e feiras HÁ POUCO mais de uma década, 20 rendeiras do distrito de Canaan, em Trairi, tendo à frente Raimunda Lúcia Lopes, resolveram formar um grupo. “Muitas delas já estavam trabalhando com linha grossa. Reunimos duas representantes de 10 comunidades, conseguimos uma verba do governo estadual e compramos a matéria-prima”, diz Raimundinha. Como não tinham experiência em comercialização, o grupo acabou após quatro anos. “Chegamos a exportar para a Espanha, mas levamos um calote”. Mesmo assim, ela deu

continuidade ao trabalho com as rendeiras de Timbaúba. Hoje, são 15 de 10 famílias. Trabalham com linha grossa em peças de vestuário, cama e mesa. Em breve, usarão também linha fina, resgatando, principalmente, a renda em metro. Participam de feiras e já fizeram três desfiles no município e um catálogo. Desde 2001, recebem apoio da Prefeitura de Trairi, do Sebrae e da Ceart. “Porém precisamos também de ajuda financeira para comprar material, pois não temos capital de giro”, ressalta a coordenadora.

em breve, o projeto “Renascer com a arte”, destinado a jovens para resgatar a cultura da renda de bilro. Neste ano, Raimundinha se aposenta como professora, atividade da qual já está afastada. Dificilmente ficará parada. Nem mesmo a deficiência física a impede de fazer algo que deseja, a exemplo de quando decidiu criar 10 sobrinhos, sem nunca ter sido casada. “Aos três anos, tive paralisia infantil e fiquei três meses sem andar. Na adolescência, era muito complexada. Após uma cirurgia, em 1972, e sessões de fisioterapia, consegui andar sem muletas, libertando-me do complexo. Sou muito feliz”. o

D I Na sala de

Ester, a rainha de Canaan

Raimunda, há fotos da família decorando a parede. Sua preferida é a que está ao lado do marido, já falecido. “Às vezes, acordo e começo a me lembrar de Geraldo. Vou fazer renda no meio da noite para me entreter”

Maria Rosa da Silva, a Ester, 70 anos, lembra dos cascudos que levava da mãe para aprender a fazer renda de bilro. “Ela foi carrasca comigo. Acabei aprendendo com uma tia mais branda”, recorda. Em seguida, muda de assunto, revelando a luta para conquistar a guarda de dois netos, hoje com 11 e 14 anos: “A mãe deixou eles bebê para eu criar, depois quis eles só para maltratar. A Justiça tomou os filhos dela e consegui de volta”. A casa onde mora, no Alagadiço, em Canaan, distrito de Trairi, é cheia de plantas e santos. “Todo dia me ajoelho, peço para as pessoas se respeitarem, se amarem. Hoje, o mundo é mesquinho, as pessoas só lembram de si”, lamenta. Ester nunca frequentou a escola, só sabe assinar o nome, mas é dona de sabedoria espiritual invejável. Não por acaso, é conhecida pelo nome da personagem bíblica judia que se tornou rainha e colocou em risco a vida para salvar compatriotas.

Família

B I Na sala de Ester, o cenário é diversificado: há uma rede de dormir armada, feijão e, nas paredes, imagens de santos, fotografias dos filhos, netos e do Papa

Após 28 anos de casada, o marido viajou a Brasília dizendo que iria ajudar na construção da casa de uma filha, durante quatro meses. Nunca mais voltou. Desesperada, Ester diz ter movido “céus e terra” para localizá-lo. Nem mesmo a filha dava retorno, mas as cartas nunca voltavam. Decidiu enviar uma registrada, então teve a certeza de que fora abandonada. Com nove filhos legítimos, trabalhou duro para sustentálos sozinha. Três concluíram a faculdade, os demais não a fizeram por falta de interesse. “Fiquei muito na almofada para poder comprar anel de formatura”, comenta. Além de fazer renda, foi parteira e merendeira escolar. Vive com os filhos adotivos, numa casa construída com o dinheiro obtido por meio do artesanato. “Consegui tudo porque sei a hora certa de vender, perto do Natal, por exemplo”, finaliza. o

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Vestida de sonhos O sonho de se vestir de noiva no dia do casamento, quando tinha 13 anos, foi possível graças ao seu trabalho com a renda de bilro. Raimunda Freitas dos Santos está viúva há três anos, mas não esquece a emoção do dia do casamento com o agricultor Geraldo. “A gente casava de véu e grinalda. Hoje, ninguém dá valor a isso”, lamenta a artesã, nascida e criada em Canaan. Aos 70 anos e aposentada, continua firme no ofício que garantiu o sustento dos oito filhos. Ajudou-a tanto que agora até acha graça das surras que levava da mãe Faustina para aprender. “Trabalhava muito, entrava pela noite, com luz de lampa-

rina, e meu marido ia oferecer em Fortaleza”, lembra. Atualmente, prefere vendêlas para a Associação dos Artesãos e Agricultores de Canaan (Artecan). Das três filhas, apenas uma, Maria Lúcia, segue a sua profissão. Com 23 netos e seis bisnetos, gostaria de ter estudado. Ainda tentou o Mobral, contudo só sabe assinar o nome. “Casei muito cedo, mas não me arrependo”. Até hoje sabe aproveitar bem as horas de folga. Vai à missa, às festas do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, adora dançar quadrilha e integra o grupo de idosos “Sorrindo para a vida”. o


Zeta nos recebeu na sala de casa. De vez em quando, ia ao quarto pegar peças do grupo, todas com muita qualidade. As criações aplicadas em tecidos são finalizadas com o ponto Paris, feito com esmero pela rendeira

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As rendeiras de Juritianha, coordenadas por Zeta, não integram uma associação formal, mas conseguem se organizar e atender às encomendas, a maioria solicitadas por meio de um telefone público

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No capricho de Zeta azer o desenho, furar o papelão, tecer a renda, engomar e passar. O trabalho de Maria José do Nascimento Silva, a dona Zeta, 60 anos, é completo e perfeito. Residente no distrito de Juritianha, em Acaraú, Litoral Oeste, ela coordena um grupo de 20 rendeiras, sendo responsável pelo controle de qualidade das peças. Cada uma mais bem feita que a outra. Tanta experiência não é por acaso. Zeta começou a fazer renda aos cinco anos, tendo a mãe, Rita, como professora. Inicialmente, aprendeu o modelo “bebezinho”. E assim foi crescendo, aprimorando o ofício. Hoje até ministra cursos. Quando não estava na roça, ajudando os pais, se dedicava à almofada. “Na época, dona Luiza Távora, primeira-dama do Ceará, começou a incentivar o artesanato, e passei a fornecer para a Central de Artesanato”. Jovem namoradeira, casou com um primo legítimo aos 24 anos. “Desde os 16, palestrava com alguns rapazes. Mas não era como esses namoros de hoje, que já começam escandalosos”, relembra. Além da renda, Zeta tem outra paixão: os 13 netos, com idade entre nove meses e 13 anos, que praticamente moram

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C I Zeta desenha, tece, lava e engoma. À direita, peças produzidas pelo seu grupo de rendeiras

DEDICAÇÃO

HA cada dia morro

um pouquinho, a visão, a mente... Mas pretendo fazer renda até o fim da vida” com ela. O carinho e a paciência com eles têm razão de ser. Do casamento com o agricultor Manoel não gerou filhos. “Meu sonho era ter dez. Não sei se era eu ou ele que não podia. Nunca procuramos a causa para nenhum ficar triste e com desgosto”, afirma, lembrando que adotaram dois: Zilma, também rendeira, e Antônio. Numa casa de tijolo, ainda sem reboco, de seis compartimentos, Zeta vive com simplicidade. O casal possui um sítio onde planta milho, feijão e mandioca. Pelo menos, três vezes por ano, dedica-se à farinhada, prática comum entre os trabalhadores rurais, valorizada até hoje pela rendeira. Da roça para a almofada, a mudança é grande. Mesmo assim, não perde o fio da meada. Feito, principalmente, de linha fina, o seu artigo leva mais tempo para ser concluído e, por isso, tem valor agregado. Quando chegamos a sua casa, ela estava envolvida na finalização de uma toalha de banquete, com 3,5 por 2 metros. Sob encomenda, a peça foi feita em tiras por 12 rendeiras e custa R$ 1.900,00, valor dividido entre elas. “Se apenas uma de nós se meter a fazer, não consegue terminá-la em menos de um ano”, calcula a rendeira, que apura por mês, em média, R$ 100,00.

Exclusivo Um dos orgulhos de Zeta é o desenho exclusivo que conseguiu desenvolver do perfil de Nossa Senhora a partir de uma fotografia. Agora, faz com facilidade e ensinou a outras artesãs. “Foram sete dias para eu tomar jeito. Quase endoideço, mas consegui”, diz. E assim ela vai se dedicando ao ofício. “Eu costurava, porém abandonei a máquina para ficar só na renda. Sinto muito prazer quando as pessoas elogiam o trabalho do nosso grupo”, afirma a artesã, que cursou até a 5ª série primária. Seu exemplo contagia uma das netas, Thais, 13 anos, que promete dar continuidade à tradição em Juritianha. “Eu já faço renda e vou aprender a desenhar”, revela a garota. o

Com vista privilegiada

Da varanda de sua casa, no alto de um morro, ela tem o privilegio de apreciar a paisagem litorânea da Praia da Baleia. É lá também que Ivanilda Holanda, 32 anos, no ofício desde os 10, produz sua renda. O turismo local motivou a fundação da Associação das Artesãs da Praia da Baleia, há 10 anos. A prioridade é o trabalho com a linha fina, que dá forma a toalhas e centros de mesa, entradas de banho, jogo americano e outras peças para a casa. “Acho o resultado mais bonito, porém é mais trabalhoso e demorado para ser feito do que com a linha tradicional”, pondera a artesã. Contudo, quando o design do produto ou o cliente exige uma linha mais grossa, Ivanilda se dedica com a mesma satisfação e cuidado. Casada com o pescador Carlos Antônio do Nascimento, 35 anos, tem três filhos, entre 8 e 14 anos. Além de artesã, mãe e dona de casa, voltou a estudar à noite e faz de tudo para não perder as aulas do 3º ano do ensino médio. “Levo até os meus filhos comigo quando meu marido está no mar”. o

B I Ivanilda

Holanda, da Praia da Baleia, trabalha tanto com a linha fina quanto com a tradicional FOTOS: MARÍLIA CAMELO/ PATRÍCIA ARAUJO


No Litoral Oeste, a tradição da renda de bilro permanece viva em várias cidades. No entanto, é mais raro encontrar quem trabalhe com a linha fina, matéria-primausada por rendeirasentrevistadas emAcaraú,Almofala eBaleia

D I A renda é

feita sobre uma almofada com enchimento de materiais variados, como palha de bananeira. Nela, é preso o desenho em cima do qual são trançados os bilros, à medida que se prende os compassos com espinhos de mandacaru

Peças com novo design “Eu agora sou - como é que se diz? - designer de rendas de bilro”, define-se Ana Maria André Alves, 47 anos, residente na Praia da Baleia, em Itapipoca. Rendeira, ela já foi presidente da Associação das Artesãs da Praia da Baleia e, atualmente, dedica-se a criar desenhos para rendas feitas com linha fina. Defensora dessa inovação no tradicional ofício, já fez cursos de aperfeiçoamento pelo Sebrae e pela Ceart, assim como passou a ministrá-los. “É um diferencial e podemos ganhar um pouco mais de dinheiro. “Ana das rendeiras”, como é conhecida, já foi a várias feiras divulgando o produto local. Em 2008, esteve em Brasília, onde conta ter feito sucesso por usar um vestido com o artesanato genuinamente cearense. Ana Maria estudou até a 4ª série, o que julga suficiente para se manter. Casou há 18 anos com o pescador Francisco Inácio e tem sete filhos: “É até pouco, minha mãe gerou 16”, compara. Para ajudar nas despesas de casa, ainda trabalha como diarista em casas de veraneio. “Dizem que minha peixada é muito boa”. o

B I Na praia de Almofala, em Itarema, Maria Irene integra o grupo de rendeiras do Projeto Tamar

Pela preservação das tartarugas “Fui eu mesma quem fiz?” Essa é a indagação de Maria Irene da Silva Sales, 36 anos, toda vez que finaliza uma peça de renda de bilro. De tão bonita, nem acredita ser fruto das próprias mãos. Mas é a pura verdade para Irene e mais 19 mulheres de pescadores da Praia de Almofala, em Itarema, Litoral Oeste. Elas integram a iniciativa do Projeto Tamar/Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade que, desde 1999, valoriza as rendeiras locais. Irene tinha dez anos quando fez renda pela primeira vez, iniciada pela mãe Maria Eliete, 51 anos, também do projeto. “Parei por algum tempo e voltei a tomar gosto pela almofada

quando o grupo começou. Trabalho quatro horas por dia”, diz. Na produção exclusiva, há toalhas de lavabos e panos de bandeja com desenhos de tartarugas marinhas, símbolo do projeto que luta pela preservação do animal. As peças também podem ser encontradas nas lojas do Tamar em estados como Bahia e São Paulo.

Conquistas Casada há 16 anos, a rendeira mora com o marido, o pescador José Genário do Nascimento, e os três filhos adolescentes, na localidade de Saquinho. A casa de cinco cômodos ainda não está rebocada, porém é própria. “Construímos, em boa parte,

com o dinheiro da minha renda. Ele também me ajuda nas despesas de casa, pois meu marido não tem salário certo e chega a passar um mês no mar pescando lagosta”. Para o futuro, deseja que os filhos continuem os estudos e consigam um bom emprego. “Que eles tenham a oportunidade que não tive, pois só cursei até a 5ª série”. No entanto, não reclama do ofício. “Com o artesanato, minha vida melhorou muito. Tenho orgulho dele”. O exemplo, contudo, dificilmente será seguido pela filha Amanda, 15 anos: “Ela não quer aprender, nunca nem tentou. Deixo que ela mesma escolha qual profissão deseja seguir”. o

Desenhista da almofada

O som da família Paiva A monotonia da Praia da Baleia, em Itapipoca, Litoral Oeste, só é quebrada pelo som dos bilros. Diariamente, à tarde, na casa da família Paiva, cinco irmãs, acompanhadas de sobrinhas e primas, trabalham na almofada: Francisca, 52 anos, Maria Natália, 50, Maria José, 49, Maria Ecelsa, 45, e Maria Liduina, 36, aprenderam a arte com a mãe, Raimunda, já faleci-

C I Na Praia da

Baleia, Catarina, 9 anos, se destaca entre as rendeiras da família Paiva. A menina confessa gostar mais de fazer renda do que estudar

da. Francisca, surda-muda, tem a fama de ser a mais rápida. Sua sobrinha Catarina, 9 anos, é outro destaque. Na almofada, a garota exibe parte da renda que está produzindo para si mesma. A família continua trabalhando com a linha tradicional, pois nenhuma delas se adaptou com a fina, embora tenham feito até cursos com a inovação. Além de levar mais tempo, avaliam que o

preço pago pela peça com essa matéria-prima não compensa. Uma toalha de bandeja demora 30 dias para ficar pronta e custa R$15,00. “Ninguém consegue viver desse jeito”, diz Ecelsa. Segundo ela, na Baleia, as únicas ocupações são a renda e a pesca. Quando as encomendas estão em baixa, as irmãs se viram como marisqueiras: “A gente pega siri, polvo e peixe”. o

Por trás de toda a renda de bilro sempre tem um desenho, uma inspiração. Na maioria das vezes, as rendeiras compram os riscos prontos para colocar na almofada. Na Prainha, em Aquiraz, Elisabete de Castro, a Betinha, 54 anos, é uma dessas artistas. Por meio de sua habilidade e paciência, cria e vende os desenhos pelo valor, em média, de R$ 5,00. Confessa preferir fazer a renda, mas como são poucas as mulheres que se dedicam a essa etapa, o jeito é mesmo criálos. E como são interessantes! Segundo a artesã, é preciso ter muito cuidado para não comprometer a trama. Para começar o ritual criativo, ela risca no papel, depois repassa para o papelão e, por último, perfura o mesmo. Esse é fixado com espinhos de mandacaru na almofada. Com a linha e os bilros em mãos, o trabalho começa a ser executado. Betinha revela ter feito diferentes desenhos. A partir deles já criou biquínis, bolsas, borboletas e até uma vela de jangada. Suas peças são comercializadas no Centro das Rendeiras da Prainha, onde também desenha, faz renda e atende aos clientes. o

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B I Na Praia

da Baleia, em Itapipoca, Ana Maria, cria os desenhos, faz a renda e ainda ministra cursos para rendeiras

D I Betinha, 54 anos, produz grande parte dos desenhos usados pelas rendeiras da Prainha


Na casa de Ana Miranda, há um quarto apenas para guardar as linhas e as peças já prontas. Para fazer o filé, é preciso ter uma grade e agulhas especiais

No distrito de São José, em Solonópole, entrevistamos uma rendeira do grupo de Perpétua Martins. Porém ela pediu para não ser publicada, pois temia perder o Bolsa Família

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C I Há mais de

Floresta colorida

60 anos, Ana Miranda está envolvida com o filé. Além desse artesanato, ela também é apaixonada pela família. “Tenho sete filhos e 13 netos. Sou como um tronco velho de jasmim e meus filhos são as flores”

ascida em família de artesãos, em Jaguaribe, Maria Perpétua Martins, 67 anos, não nega as origens. Conhecida como a precursora das linhas coloridas no filé, ela já teve suas criações exibidas no mais importante evento de moda do Brasil, São Paulo Fashion Week. O pai Pedro Augusto trabalhava com couro. Criava os animais, curtia a pele. Com a matéria-prima, fazia sapatos, arreios de cavalo e chapéu. A mãe, Maria Augusta, trançados de palha e renda de bilro. Residente no distrito de Nova Floresta, o casal teve 14 filhos, criaram-se 12, sendo sete mulheres. Perpétua foi a penúltima a nascer e viveu até 12 anos vendo os pais executarem os ofícios artesanais e as irmãs dedicadas à renda filé e aos bordados. Como queria morar em Fortaleza, escreveu uma cartinha emocionada ao pai, se passando por uma cunhada que acabara de ficar viúva. Na mensagem, pedia para a menina morar com ela.

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FOTO: PATRÍCIA ARAUJO

D I Perpétua é

artesã e pesquisadora da renda filé. Natural de Jaguaribe, redescobriu o ofício na década de 1980, introduzindo linhas de várias cores como matériaprima. Até então, era feito nos tons cru e branco

DECLARAÇÃO

H Sei fazer filé muito

bem e sou encantada por esse trabalho. Tenho uma relação de amor, pois aprendi a técnica ainda criança “Ele autorizou, e nunca mais voltei”, recorda. No entanto, Perpétua passou pouco tempo com a cunhada, mudando-se para a casa da tia Generosa, modelista requisitada na época. Além de ajudá-la na costura e nos bordados, voltou a estudar, graças à bolsa conquistada por intermédio da amizade das clientes. Aos 18 anos, dá outra guinada na vida. Deixa Fortaleza pelo Rio de Janeiro, indo morar com uma das irmãs, a Ozarina. Trabalhava no comércio e estudava à noite. Depois, prestou o vestibular para Enfermagem, não por aptidão, mas pela garantia do alojamento para estudantes. Nas férias, retornou à Nova Floresta após 10 anos. Até en-

FOTO: MARÍLIA CAMELO

tão, o contato com a família era apenas por cartas. “Quando chegava uma, eu chorava o dia inteiro de saudade”, diz. O reencontro com sua terra e familiares foi de muita emoção. Perpétua se deparou com uma renda filé diferente do tempo em que era criança. “Meus olhos brilharam quando vi os novos pontos”, destaca. Na volta ao Rio, concluiu a faculdade e começou a trabalhar num hospital, onde conheceu César Augusto, com o qual se casara em menos de um ano. Tiveram dois filhos: Rodrigo, 32 anos, e Leonardo, 31. De outra visita ao Vale do Jaguaribe, há três décadas, Perpétua voltou para o Rio com a tela e as agulhas. O marido, encantado com a técnica, deu o

maior apoio. A primeira peça foi uma toalha de mesa. Nunca mais parou. Em 1983, o casal mudou-se para Fortaleza. Na ampla casa do bairro Papicu, Perpétua se dividia entre o filé e o hospital, serviço do qual está aposentada. No início, fez um empréstimo para comprar linhas coloridas, pois o filé se restringia aos tons crus e branco. Para dar conta das encomendas, foi à Nova Floresta, onde, com apoio da prima Ana Miranda, formou um grupo de quase 100 artesãs. O auge do reconhecimento do trabalho ocorreu quando, a partir de 2000, o estilista Lino Villaventura levou, por duas vezes, a renda cearense para o São Paulo Fashion Week. o

Malha miúda é o segredo “Raimundo, a gente dá o que tem”. Assim, Ana Miranda repreendeu o marido quando ele questionou as fotos que fazíamos enquanto ela preparava o almoço. Besteira de seu Raimundo! O local, assim como a casa, é simples, mas muito bem organizado. Dá para ver que Ana tem capricho em tudo, principalmente no trabalho que desenvolve em Nova Floresta. Minuciosa e muito exigente, ela conhece de longe um filé bem tramado. Aos 73 anos, coordena, ao lado da filha Neuda, 48, o grupo de artesãs que trabalha para Perpétua Martins. O segredo, segundo ela, está, principalmente, no tamanho da malha e na linha. Mas não é só: tem que ter harmonia nas cores, criatividade no desenho e acabamento perfeito. Desse último, Ana faz questão de cuidar pessoalmente, embora já tenha parado de produzir a renda. E nos mostra, com orgulho, várias peças e álbuns com fotos de blusas, saias, boleros, entre outras. Apenas lamenta a redução das encomendas, pois é desse ofício que a maioria das mulheres do grupo garantem o sustento da família e compram eletrodomésticos. o

Desejos de uma artista

B I Edinir nasceu em Jaguaribe e mora em Madalena. Agora, realiza o sonho de ensinar, como voluntária, a renda filé a um grupo de 10 mulheres

De vocalista de banda de forró para artesã. Desde a infância, a música e o artesanato fazem parte da vida de Edinir Saldanha, 35 anos. Aprendera o filé com a mãe, Francisca Paula, quando ainda morava na zona rural de Jaguaribe, onde nasceu. O tempo passou, ela cresceu e se apaixonou, a ponto de deixar de lado sua carreira artística. Casada há 13 anos com Emílio Carneiro, 33, tem dois filhos, Jonas, 10 anos, e David, 9. Mas o seu lado de artesã sempre permaneceu latente. Tanto que, há 10 anos, voltou a se dedicar ao filé. Dessa vez, com a proposta de renovar o design da técnica. Em casa, na cidade de Madalena, Sertão Central, exibe peças finalizadas ou em andamento. É possí-

vel perceber a diferenciação de seu trabalho. A trama é perfeita. “Esse é o filé de Madalena”, afirma, orgulhosa. Além dessa renda, produz crochê divinamente bem. E mais: mistura a técnica com lacres de alumínio das latinhas de refrigerante, resultando numa proposta de reciclagem útil e, ao mesmo tempo, contemporânea.

Cantora Ideias não faltam na cabeça de Edinir, uma mulher destemida e cheia de sonhos. “Eu poderia ser o que quisesse, mas optei por trabalhar com honestidade”. A artesã lembra que já foi empregada doméstica, em Fortaleza, e, nos finais de semana, cantava em banda de forró. Atuou como radialista, professora da alfabetização solidária

e coordenadora da Casa de Artes de Madalena (Casart’ma). Pode até ter deixado essa função oficialmente, porém em casa não para de inventar, sempre visando à qualidade dos artigos. É lá também que Edinir está capacitando um grupo de 10 mulheres. “Ensino para elas filé e crochê. É uma atividade voluntária. Sonhava em repassar meus conhecimentos do trabalho artesanal”, afirma, com esperança de que a iniciativa seja uma forma de geração de renda para suas aplicadas alunas. A ex-cantora de banda, que foi parar em Madalena por conta de uma paixão, também deseja ter um negócio próprio, como o de abrir uma churrascaria às margens da BR-020, próximo à Madalena. o


Mulheres da Associação Comunitária do Cascudo do Meio, no distrito de Lima Campos, em Icó, fizeram um curso de filé, ministrado pela Ceart. Mas lá encontramos apenas a aposentada Marúzia Oliveira, 66 anos (foto), trabalhando com a tipologia: “Faço sob encomenda ou dou as peças de presente” DIÁRIO DO NORDESTE | FORTALEZA, CEARÁ | DOMINGO - 28 DE MARÇO DE 2010

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C I Raimunda

nos recebeu mostrando duas belíssimas colchas feitas de filé. Uma delas, colorida, está pronta há cinco anos, mas nunca encontrou quem pagasse o valor merecido FOTOS: PATRÍCIA ARAUJO

“Filé é o meu tesouro” almoço é quase todos os dias na vizinha. Na casa onde mora, no Centro de Orós, Raimunda Nonata Barbosa, 72 anos, só pensa em trabalhar com artesanato. A lida doméstica fica em segundo plano. Sua paixão mesmo é a renda filé, que aprendeu a fazer criança, quando residia na zona rural de Jaguaribe. Desde aquela época, Raimunda sempre produziu muito. Fazia de tudo um pouco. Nunca frequentou a escola, mas sabe ler e escrever porque teve aulas particulares em casa quando era criança. Como a mais velha dos cinco irmãos, ajudava no sustento da família. Segundo ela, uns estrangeiros entregavam a malha pronta para as famílias de Jaguaribe preencherem o filé.

O

“Não havia a mistura de cores como agora. Fazia tudo com linha branca”, recorda. Somente quatro meses antes do matrimônio, o pai de Raimunda permitiu que toda a renda com a produção da filha fosse para o enxoval. Aos 19 anos, ela casou-se com Antonio Vieira Barbosa, conhecido como “Antônio Faz Tudo”, porque montava e desmontava o que via pela frente.

Dificuldades Após o nascimento dos três filhos, Antônio decidiu, no fim da década de 1960, vender tudo o que tinha para morar em Orós, na região Centro Sul, vizinho a Jaguaribe, Acreditava ser melhor para a família. A troca de cidade não foi vantajosa. Porém, como Raimunda lembra, “naquele tempo mulher não podia opinar”.

DISPOSIÇÃO

HSempre trabalhei

muito e continuo na ativa. Fico até altas horas da noite fazendo meu artesanato” Então, a artesã parou de produzir filé, pois não havia tradição na cidade. Comprava latas velhas para transformá-las em bacias e baldes de flandres. Passou a vendê-los de porta em porta. “Na época, não existiam produtos de plásticos”, diz. A nova morada, de taipa, não tinha água e energia. Para lavar as roupas, precisava caminhar léguas até chegar ao açude. Quando os filhos cresceram e se empregaram, a situação financeira melhorou. Mas, com

Por um valor justo

33 anos de casada, o marido arrumou outra mulher. “Eu trabalhava até às 3 horas da manhã, não tinha tempo para ir atrás”, conta Raimunda, viúva há 6 anos. Hoje é aposentada e garante renda extra com seu artesanato. Além do filé, faz redes de dormir com tecido sol a sol e varandas de crochê. Por meio dessas atividades, considera-se realizada plenamente. Seu filé tem tanto valor, em todos os sentidos, que quando sai de casa deixa as peças guardadas na vizinha. “É o meu tesouro”, revela. Também não vende fiado nem a prestação. Com formação católica, Raimunda queria compreender melhor as passagens bíblicas. Por esse motivo, passou a frequentar a Igreja Batista. Agora, acredita ter se encontrado verdadeiramente com Deus. o

No distrito de Feiticeiro, em Jaguaribe, Toinha de Tomé, como é conhecida Antonia Nascimento Silva de Souza, 61 anos, se destaca na produção de filé. Mas sua vida não depende do artesanato. Viúva há dois anos, é aposentada rural. Segundo ela, quando o marido Tomé era vivo, ambos dividiam a mesma tela, tamanha a sintonia. Toinha não gosta de criar a malha. Compra pronta para, então, preenchê-la. Natural de Quixadá, aprendeu a técnica com a cunhada, Eliene Morais, quando chegou a Feiticeiro, há mais de 30 anos: “Na família deles todos faziam, homem e mulher. Quando aprendi, nunca mais deixei”. Com a atividade, consegue apurar, em média, R$ 60,00 por mês. Atua como tesoureira da Associação dos Artesãos de Feiticeiro e Taboca (Aafeto). Por isso, compreende a importância do trabalho manual, fazendo inclusive vários cursos de aperfeiçoamento. “O problema é que as pessoas, muitas vezes, se sujeitam e vendem suas peças por qualquer valor. Por não ter outra opção”, lamenta. A fundação da entidade, que conta com 25 associados, foi uma tentativa de evitar a ação dos muitos atravessadores na localidade.

Das telas de pesca para a renda Uma das surpresas na região de Jaguaribe foi termos encontrado homens produzindo e ensinando a fazer filé. No distrito de Feiticeiro, Maria do Socorro Araújo Silva, 55 anos, é exemplo curioso. Ela aprendeu a técnica com um dos filhos, Elonilson Araújo Silva, 24 anos. Foi ele quem nos chamou a atenção quando passávamos pelo local, pois trabalhava no alpendre de sua casa, vizinha à da mãe. A fachada azul contrastava com o colorido dos fios. Maria do Socorro veio, então, ao nosso encontro. Segundo ela, a técnica de tecer a malha, considerada a primeira etapa do filé, é quase a mesma do galão de pesca, que ela produzia antes. A diferença é que no primeiro são dados dois nós, enquanto no filé, apenas um. Mas, para ganhar tempo, Socorro prefere comprar a malha pronta. “Preencho a tela com as rosas, cerzidos e correntes, no-

B I Em família:

mes de alguns dos pontos que compõem a renda filé”, explica. A artesã não se arrepende de ter trocado de ocupação. No passado, para apurar R$ 30,00, precisava produzir 100 metros de tela de pescar, enquanto com o filé, com duas bandas de 2x3m, recebe R$ 110,00, fora a despesa com o material. O atravessador compra para revender em Fortaleza e São Paulo.

Paisagem A casa da artesã fica em frente ao açude Joaquim Távora, tendo paisagem privilegiada. Ela mora com o marido, o agricultor Cosmo da Silva, 64 anos, com quem é casada há 33, e o filho mais novo, Elonildo, 19. Além dele e de Elonilson, tem duas filhas, que se mudaram para São Paulo em busca de melhores condições de vida. Nenhuma delas faz o artesanato. A entrevista ocorreu numa varanda lateral da casa, coberta

Rotina

Maria do Socorro com os filhos Elonilson e Elonildo se dedicam ao “artesanato de tela”, como é chamado o filé no Vale do Jaguaribe

de palha de coqueiro. Na sala, havia um monte de feijão, retirado da roça para sustento da própria família. Próximo, tinha uma tela, que estava sendo cheia pela artesã. Nesse ambiente, Maria do Socorro passa as tardes dedicada ao artesanato. As manhãs são reservadas para o roçado e as tarefas do lar. Para fazer o filé, ela conta com ajuda do caçula Elonildo. O jovem concilia o estudo, a roça e o artesanato. Eles dividem a atividade e o lucro. Já Elonilson trabalha ao lado da mulher, Jo-

siane, 27 anos, uma simpática morena, nascida em São Paulo, de família mineira. Ela conheceu o marido quando ele foi tentar a vida na capital paulista. Elonilson é pedreiro de profissão, mas nos últimos oito anos tem se dedicado mais ao artesanato. A casa onde mora, ao lado da de sua mãe, faz questão de dizer, foi construída por ele, com dinheiro oriundo do filé. É dessas mãos pesadas e calejadas que vão se formando desenhos delicados e cheios de cores na história de Feiticeiro. o

As tardes, de segunda à sextafeira, geralmente são dedicadas ao artesanato. “Dizem que não preciso fazer filé porque já sou aposentada. Mas preciso sim, senão o tempo não passa aqui nesse lugar, mulherzinha”, diz, lembrando que já experimentou a agitação da cidade grande. Em 2006, visitou a única filha, Kátia Cilene, em Campo Limpo Paulista, no interior de São Paulo, e conhece Fortaleza: “Fui uma vez à Beira Mar, mas nunca tomei banho de mar”. Mora numa casa confortável com a sobrinha Carla Patrícia. Sempre vai à missa aos domingos. É devota de Santa Terezinha e São Francisco. Antes desse compromisso, participa dos encontros da terceira idade. “É muito bom. Adoro dançar. A gente que não tem marido, dança com o marido das outras”, revela, sorrindo. Por enquanto, não pensa em ter mais ninguém como companheiro. “No entanto a gente nunca sabe o dia de amanhã. Tudo pode acontecer”, brinca. o

B I Toinha

fez vários cursos ministrados pela Ceart e pelo Sebrae. Além de aperfeiçoar a técnica, aprendeu a calcular o preço de cada peça, com base nos gastos com material e o tempo de trabalho


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Maria aproveita a parada dos ônibus que trafegam pela BR-116 para vender o filé. Quando não tem o artesanato pronto, aceita encomenda e depois envia as peças pelos Correios

A entrevista com Maria aconteceu na sala de visitas. Na parede, há fotos dos parentes já falecidos: as filhas Sinvalda, Josenir e o genro Francisco Ferreira. Já o quarto é cheio de imagens de santos DIÁRIO DO NORDESTE | FORTALEZA, CEARÁ | DOMINGO - 28 DE MARÇO DE 2010

Quem quer comprar? qualquer hora do dia ou da noite, Maria Fernandes, 77 anos, corre até o restaurante localizado no km 299, da BR-116, em Jaguaribe, onde vários ônibus fazem uma parada de apoio aos passageiros. De casa, em frente ao local, controla todo o movimento. Há mais de 30 anos, ela vive nesse vai e vem para vender peças de renda filé. No rosto, traz as marcas acentuadas do tempo, mas por dentro se revela jovem, tamanha disposição e amor pelo trabalho que produz. O corpo franzino e o déficit de audição não atrapalham nas vendas. Em uma das janelas, ao lado da porta de entrada do restaurante, vai espalhando suas peças. Impossível ficar alheio a sua presença. Mesmo quem não compra, confere os artigos. Apesar do movimento intenso, ela nos convida para ir até a sua casa, onde diz ter outras opções de filé para nos mostrar. Antes, tratou de deixar alguém a substituindo nas vendas. Bastou atravessarmos a pista para chegar à casa. No quarto, um dos netos, Francisco, está trabalhando na tela ao lado da mulher, Roberta Soares. Ambos aprenderam a técnica com a avó, considerada uma mãe pelo casal. No início, o jovem parece tímido. Depois, fala da importância do artesanato na vida da família, destacando que Maria sempre os ajudou.

A

Comerciante

B I Dona Maria aprendeu a fazer filé, em 1973, durante um curso promovido pela Cooperativa dos Artesãos de Jaguaribe

A malha de dona Sinhá Sentada na calçada de casa, com ferramentas de trabalho à mão, Maria Sinhá Rafael da Silva, 79 anos, olha meio desconfiada para nossa equipe. “Como está a senhora”?, perguntamos. “Nada bem. Faz três noites que não durmo por causa da gripe”. É um rosário de lamentações que, aos poucos, dá lugar à animada conversa. Dona Sinhá está fazendo malha, primeira etapa da renda filé. Ela é uma das muitas artesãs que se dedicam a esse ofício na Serra dos Bastiões, em Iracema, reconhecida como comunidade quilombola. Lá, é produzida parte da malha usada pelos artesãos do Vale do Jaguaribe. Chegar a sua casa é quase uma aventura. A partir da sede do município, são 23 quilômetros de subida, sendo 17 de estrada carroçal e outros seis de calçamento. Conhecer a artesã, no entanto, compensou todo nosso esforço. Baixinha e franzina, Sinhá tem pele negra, embora negue que pertença à comunidade quilombola. Ao explicarmos que a entrevista não tinha a ver com o tema, relaxa e começa a contar sua vida, desde a infância, quando os pais a deixaram sob os cuidados de um tio para que não morresse de fome. Na nova família, lavava, engomava, cozinhava, fazia de tudo. A maior diversão, na juventude, era dançar. Aos 31 anos, casou-se com João Rafael da Silva, com quem vive até hoje.

“Ele nunca dançou uma valsa comigo. Ô peste ruim”, brinca. Em compensação, o namoro, iniciado numa quarta-feira, culminou com o pedido de casamento no domingo. Não por acaso, dia de Santo Antônio. “Queria me casar, pois estava enjoada da casa alheia”, revela. Da união, teve oito filhos. São oito netos e seis bisnetos. Na residência própria, mora com o marido e o filho Domingos, 40 anos, deficiente físico. Tudo é muito organizado. Na sala, há fotos da família, imagens de santos, televisão e som. O misto entre moderno e antigo está na sala de jantar, com geladeira e pote de barro, e na cozinha, que abriga modelos de fogões a gás e a lenha.

Sobrevivência Nem sempre foi assim, digamos, tranquilo. Com a vida muito difícil, após o nascimento de cinco filhos, o casal de agricultores foi tentar a vida em Jaguaribe, onde Sinhá aprendeu a fazer a malha. Ao retornar para a Serra dos Bastiões, em 1980, democratizou o conhecimento. SAÍDA

H Ainda hoje faço as malhas do filé, que me ajudaram a criar meus filhos quando estava numa crise financeira danada”

“Quando me achei numa crise financeira danada, com meus filhos chorando de fome, me peguei nisso aqui”. Foi também com o artesanato que a filha Maria de Lourdes pagou as despesas do casamento. Os atravessadores compram sua malha na porta de casa. Devido a problemas de visão, só trabalha com linhas coloridas. Por metro quadrado de malha, recebe o valor de R$5,00. Ao final do mês, consegue apurar cerca de R$ 25,00. Ela e o marido são aposentados, no entanto o artesanato sempre ajuda nas despesas. Além disso, distrai a cabeça, por sinal, muito bem situada. Nunca aprendeu a ler nem escrever, mas se vira como pode. “Certa vez, um homem queria me enrolar no banco quando fui pegar minha aposentadoria. Faltavam R$ 80,00 do salário. Eu não sou boba, nem louca, as contas sei fazer”. Só não se considera totalmente feliz por conta da ausência dos filhos, residentes em Brasília, São Paulo e no Rio Grande do Norte. Somente duas moram na Serra dos Bastiões. “Nunca fui visitá-los. Não tenho vontade. Se São Paulo quiser me ver, que venha até a minha porta”, diz Sinhá, soltando mais uma boa gargalhada. o

C I Residente

na Serra dos Bastiões, Sinhá, 79 anos, costuma trabalhar no período da tarde na calçada de casa. Para fazer a malha, usa como instrumento a linha e a grade de madeira. As manhãs são dedicadas aos afazeres domésticos FOTOS: PATRÍCIA ARAUJO

Dona Maria traz caixas e mais caixas abarrotadas de encomendas e de peças avulsas. Feitas pela família e por outros artesãos do Vale do Jaguaribe. Ela mesma ainda produz, não com a mesma intensidade de antes. Diz que se garante no ofício e coordena o trabalho artesanal de toda a família. Mostra, então, as saídas de praia, cortinas, colchas, toalhas, cada qual mais linda. Segundo ela, tem muito freguês bom, mas já encontrou quem a

enganasse. “Uma dona me encomendou uns boleros, no tempo que estavam na moda, no total de R$ 2.300,00. Pagou com cheque, mas não tinha fundo”, lembra. No meio da entrevista, chega o marido, Sandoval Pereira, 78 anos, aposentado. Ela o apresenta e vai logo dizendo: “Na idade, ele é mais velho, mas nas feições é mais novo do que eu”. De fato, parece que o tempo não passou para Sandoval, que nos confessa ser admirador do trabalho incansável da mulher. Mesmo com tanta dedicação, Maria ainda mora em casa alugada. Paga R$ 60,00 por mês. Da aposentadoria, recebe um salário mínimo e, com o artesanato, ganha até mais, dependendo do mês. O problema é que essa renda não é certa MUDANÇA

H Obrigada, Jesus.

Aprender a fazer filé foi uma bênção que ele me deu. Antes, passava o dia na roça ou pescando” para sustentar a família. Ela acolhe o neto Francisco e sua mulher, ambos desempregados, uma neta, Tamiris, e a filha adotada com problemas mentais, Cidinha. Graças ao artesanato, que aprendeu em 1973, num curso, Maria pôde abandonar o trabalho pesado na roça e a pesca. A experiência foi tão importante que ela passou a técnica para as novas gerações. Dos quatro filhos vivos, as duas mulheres, Cristiana e Fátima, vivem do filé, assim como a nora Francisca. Maria é exemplo de artesã, mãe, mulher, enfim, não se entrega diante dos obstáculos. Ela já sofreu muito com a perda de duas filhas e, mais recente, de um neto. Contudo, ela não se deixa abater: “Sou muito forte, não choro nunca, não tomo remédio nenhum, nem injeção”. o


Por não ter a dimensão do processo de criação do labirinto, há quem ainda pechinche na hora de pagar. Por isso, muitas labirinteiras perdem o gosto pelo trabalho, tão rico, mas pouco valorizado DIÁRIO DO NORDESTE | FORTALEZA, CEARÁ | DOMINGO - 28 DE MARÇO DE 2010

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Labirinto de emoções J uta, linho, cambraia de linho ou organdi. Basta ser tecido para Maria de Lourdes Rebouças da Silva, 67 anos, começar a cortar, desfiar, desenhar, perfilar, trançar, preencher, casear, ufa! Ninguém imagina quantas etapas são necessárias para se concluir uma peça de labirinto. Apesar das dificuldades registradas nos últimos anos na comunidade de Morro Pintado, em Ibicuitaba, distrito de Icapuí (Litoral Leste), Maria de Lourdes continua acalentando sua paixão pelo labirinto. Passou a desenvolver a técnica por volta dos sete anos, graças à mãe, Maria, 86. “O artesanato me ajudou muito, desde a construção da casa até à formação dos meus filhos”, destaca. Como professora, Maria de Lourdes ensinou por vários anos na rede municipal de ensino, emprego pelo qual se aposentou. Trabalhou também na roça, mas nunca abandonou a tela de labirinto.

Família Casada com o agricultor Vicente Zacarias da Silva desde 1970, sempre pôde contar com o marido na lida doméstica. Dos nove filhos, quatro são adotados. Professoras formadas, as cinco mulheres sabem fazer la-

D I Maria de

birinto, mas apenas duas se dedicam ao artesanato como atividade paralela. Mesmo com a família grande, a artesã sempre se envolveu com atividades extras, a exemplo da Associação dos Moradores do Morro Pintado, da qual foi presidente na década de 1980. Nessa época, conseguiu criar a horta comunitária e abrir o posto de saúde. Em 1998, a labirinteira teve o primeiro contato com a Ceart. A partir de então, começaram a chegar as encomendas e os convites de viagens para expor o labirinto produzido no Ceará. “Eu aprendi demais com toda essa experiência. Passamos a ser mais valorizados”, recorda. Segundo ela, essa foi uma das melhores fases do artesanato cearense, quando a primeira-dama do Estado era dona Renata Jereissati.

Lourdes mostra o jogo americano de juta, uma inovação (foto acima). Mas adora fazer peças tradicionais, em cambraia de linho, assim como trabalhar com tecidos de diversas cores FOTOS: PATRÍCIA ARAUJO

Inovação Sem conseguir ficar parada, Maria de Lourdes sempre arruma o que fazer, inclusive trabalho para mulheres da comunidade. Até empréstimo no banco já solicitou para poder pagálas por uma encomenda de 540 peças. Hoje, os pedidos grandes são raros. Em compensação, suas criações correm o mundo. Já produziu 50 camisas para a África e até mantilha

ESPERANÇA

HNão podemos

deixar o labirinto se acabar. O dinheiro é pouco, porém minha paixão pela arte é muito maior”

Artesanato e melhorias para a comunidade Em meio a tantas privações, Rizeuda Bento da Silva, 49 anos, começa a buscar um caminho novo para as mulheres da comunidade de Lagoa das Porteiras, em Paripueiras, distrito de Beberibe, Litoral Leste. Lá são cerca de 46 casas da mesma família, muitas ainda de taipa. A agricultura era a única forma de sobrevivência da localidade até que, recentemente, as mulheres passaram a se organizar em torno do labirinto. À frente desse desafio, está Rizeuda, que aprendeu o ofício aos 17 anos. Casada, mãe de 8 filhos, apenas uma menina, a artesã sempre teve vocação pa-

ra trabalhos comunitários. No Canoé, comunidade vizinha, atuou como líder da Pastoral da Criança e professora primária. Quando mudou-se para a Lagoa das Porteiras, foi merendeira de escola e professora. Em 2000, por meio da Associação das Mulheres da Lagoa das Porteiras, da qual Rizeuda é a presidente, foi feito um empréstimo de R$ 1.500,00 para comprar matéria-prima necessária à arte do labirinto. O grupo, formado de 12 mulheres, recebeu cursos de aperfeiçoamento da Ceart e agora, com a dívida quitada, tenta caminhar com recursos próprios. o

C I Rizeuda

tem vocação para o trabalho comunitário, além de coordenar o grupo de labirinteiras: “Nosso artesanato já melhorou bastante, pois, agora, estamos vendendo pelo preço justo”

para uma noiva da Itália. “Gosto do diferencial, de criar e de mudar”, explica. O labirinto feito na juta é algo mais recente. Surgiu em 2005, quando recebeu a primeira encomenda de uma ONG. Mesmo sendo matéria-prima de origem rústica, o resultado é perfeito. Embora a juta seja

mais rápida de tecer, a paixão da artesã é mesmo pela delicadeza da cambraia de linho. Maria de Lourdes já ensinou a técnica a muitas mulheres, mas lamenta o desinteresse das jovens locais. Por isso, deposita toda a esperança da continuação do ofício em duas netas: Tainá, 7 anos, e Emily, 9. o

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Maria de Lourdes tem 11 netos. Entre eles, aposta no talento de Tainá, 7 anos (foto), e Emily, 9, que estão aprendendo com a avó todos os segredos do labirinto


361000000


DIÁRIO DO NORDESTE | FORTALEZA, CEARÁ | DOMINGO - 28 DE MARÇO DE 2010

eva

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Após nos receber na sede provisória da Associação dos Artesãos, dona Bia levou-nos a sua casa, próxima à praia. Lá, nos mostrou as próprias criações, principalmente vestidos e batas, que estava produzindo em parceria com a estilista Gilvânia Monique

B I Dona Bia é conhecida em Majorlândia pelo desejo de resgatar a cultura local, seja no artesanato ou na culinária, sem comprometer a essência da praia FOTOS: PATRÍCIA ARAUJO

Dengo de mulher D e empregada doméstica à proprietária de restaurante na Praia de Majorlândia, Litoral Leste do Ceará. A trajetória da labirinteira Maria Beatriz Andrade da Cunha, a dona Bia, 70 anos, é cheia de fios que se interligam o tempo inteiro. Quando criança, aprendeu a trançar palha com os pais, o labirinto veio aos seis anos. Já na hora de brincar, transformava latinhas de sardinha em panelas para ensaiar as primeiras alquimias culinárias. “Minha mãe sempre dizia: que cheiro bom. Você vai ser uma excelente cozinheira”, recorda. E os prognósticos maternos foram confirmados. Antes de se tornar dona de restaurante, trabalhou duro como empregada doméstica, em Brasília, para onde se mudou levando os pais e alguns irmãos. Na Capital Federal, passou oito anos, comprou casa própria, hoje emprestada aos irmãos.

Em 1982, retornou para Majorlândia. No ano seguinte, abriu o restaurante “Dengo da Bia”, que funcionou até 1996, ganhando inclusive reportagens em jornais e revistas nacionais, a exemplo da Veja. Com o passar dos anos, começaram a chegar sugestões dos clientes, mas Bia não tinha estrutura para atendê-los. Para completar, um especulador tomou parte da área do restaurante. Bia se sentiu obrigada a deixar as panelas de lado, retornando para o labirinto, outra grande paixão. “Ele é que me dá ânimo para viver ”, ressalta.

DETERMINAÇÃO

H O labirinto limpa a

minha mente. Por meio dele viajo, sei o que quero. Ele é que me dá ânimo”

No quesito pessoal, desenvolve com a irmã Maria Luiza, 68 anos, doméstica em Brasília, um projeto de turismo para a terceira idade. As paredes da casa já foram erguidas, e as rampas, construídas. Com essa proposta, Bia pretende se realizar por completo, no preparo de alguns quitutes bem regionais.

Projetos De fato, disposição não falta a essa afrodescendente, espirituosa e de um coração enorme. Como uma jovem, está cheia de projetos pessoais e comunitários. Nesse âmbito, deseja resgatar a cultura local, seja no artesanato, na culinária, enfim, sonha que Majorlândia cresça sem comprometer a essência.

Recepção Dona Bia recebeu nossa equipe na sede provisória da Associação dos Artesãos de Majorlândia, fundada há cinco anos. No quadro negro, a mensagem “Sejam bem-vin-

Cultura litorânea no sertão

Resistência em Canoa Aos 94 anos, Clara Ferreira Freire, dona Teté, é um exemplo de apego às tradições da antiga vila de pescadores da Praia de Canoa Quebrada, em Aracati, Litoral Leste. Mora numa das poucas casas remanescentes do pacato vilarejo e continua fazendo labirinto, artesanato típico da região, porém atualmente com número reduzido de mulheres que permanecem no ofício. “Aprendi com minha mãe aos sete anos e sou a mais velha labirinteira daqui”, diz, orgulhosa, Teté, nascida e criada em Canoa. Mesmo sendo aposentada e com a visão comprometida - só enxerga pelo olho direito - ela não desistiu doartesanato. Diariamente, na varandada casa rústica, chama atenção dos turistas, que sempre param para admirá-la na execução do minucioso trabalho na grade. Nesse espaço, ela fica pela manhã e à tarde, e, aguarda, ansiosa, que

eles também comprem suas peças. Passa cerca de oito horas no local, só deixando-o para preparar o almoço. Recorda que, quando mais nova, levou um ano e dois dias para concluir uma colcha de casal. Atualmente, Teté também produz caminhos de mesa e toalhas de bandeja. Viúva há 23 anos, não conseguiu ter filhos. Por isso, adotou dois, falecidos ainda criança. Criou um sobrinho, que mora com ela. Na juventude, estudou somente até os 15 anos, mas gostava de encenar no grupo de dramistas da comunidade. Conversadeira e com boa memória, tem uma vida saudável, a não ser pelo problema no coração que a levou a colocar um marca-passo. Embora sinta saudades da outrora realidade, um local calmo, sem estradas e energia, não se

incomoda com os “invasores”. Na década de 1970, hippies, atraídos pela beleza natural, começara a se mudar para Canoa. “Tinha muita amizade com eles. Vinham muito a minha casa”, relembra. Depois, chegaram moradores brasileiros e estrangeiros.

dos”. Num banco ao lado, água mineral. Uma imagem de Nossa Senhora Aparecida também dava as bênçãos, além de alguns trabalhos de labirintos expostos e muitas histórias para contar. Na sede, tudo é precário. Há poucas cadeiras, falta manutenção no prédio e, na ocasião, a energia estava cortada por falta de pagamento. Desde que a nova diretoria assumiu, em janeiro de 2009, pouco pôde fazer. Só para registrar a Ata em cartório do novo estatuto, precisavam de R$ 100,00. Antes mesmo de sabermos da necessidade, adquirimos duas peças que, juntas, somavam R$ 94,00. Dispensamos o troco. Com o dinheiro em mãos, dona Bia pulava e festejava como criança que acabava de ganhar um bombom. A comemoração não era em causa própria, e sim da comunidade. Mais do que nunca, diz que todos precisam se inserir em projetos de inclusão social. o

Assistindo a essa transformação, Teté avalia que a vida até melhorou pós-progresso. Ela acompanhou algumas dessas mudanças, como ter trocado a Igreja Católica pela Batista: “Era abestalhada. Adorava as imagens e esquecia de Deus. Só ele salva”. o

B I A labirinteira mais antiga de Canoa Quebrada é dona Teté. Aos 94 anos, trabalha na varanda de casa, atraindo a atenção dos turistas

Do litoral para o Cariri. Em Araripe, Antonia Dias Severo, 59 anos, a Toinha, encontrou um clima favorável para a sua saúde. Com problemas alérgicos, diz viver melhor no sertão. Junto, levou uma técnica típica da região litorânea: o labirinto. Hoje, ensina a um grupo de idosos a fazer artesanato com sisal, crochê e fuxicos. Sonha agora em repassar o labirinto, ofício herdado pela avó Ana Maria. Natural de Touros, no Rio Grande do Norte, cursou até a 6ª série. Com 11 anos já tecia algodão e fazia o labirinto. Ainda jovem, foi morar em Juazeiro do Norte. Lá, casou-se e teve um casal de filhos. Em 2004, trocou Juazeiro por Araripe, principalmente por causa do seu roçado. No peito, ainda guarda uma mágoa, talvez a única. Há dois anos, o filho, de 28 anos, foi assassinado. Até hoje ninguém pagou pelo crime. “Sei que cadeia é luxo, mas acredito na justiça de Deus”, desabafa. o

A I Toinha

deixou o litoral do Rio Grande do Norte para morar em Araripe, no Cariri, onde faz labirinto


O corte é uma das etapas mais difíceis e arriscadas no labirinto. Se desfiar errado, perde-se o tecido. Por isso, as artesãs recorrem à habilidade de Maria de Lourdes. Na verdade, é raro encontrar quem domine todo o processo nesse artesanato

16 DIÁRIO DO NORDESTE | FORTALEZA, CEARÁ | DOMINGO - 28 DE MARÇO DE 2010

Corte certeiro á décadas dedicadas à produção da renda de labirinto em Aracati, as sete irmãs Costa foram, aos poucos, largando o ofício. Tudo começou com a mãe, Francisca, natural de Canoa Quebrada, que dominava todas as etapas do trabalho. Riscava, cortava e enchia. Ensinou as filhas quando tinham sete anos. Mas apenas duas continuam envolvidas com a renda: Maria de Geraldo, 86 anos (veja matéria abaixo), e Maria de Lourdes, 76, uma das raras cortadeiras. Sua função é considerada a etapa mais difícil. Por isso, nossa curiosidade em conhecê-la. Residente no Córrego da Nica, entre Aracati e Majorlândia, Maria de Lourdes casou-se com

H

o agricultor João Cassiano, 79 anos. Tiveram quatro filhos. Entre eles, apenas uma mulher, Maria José, 28 anos, que nunca se interessou pelo artesanato. Preferiu ser gerente de loja em Canoa Quebrada. “Antes, todas as mulheres daqui trabalhavam no labirinto. Muita gente já deixou, e as mais jovens nem se interessam em aprender. Assim como minha filha, elas acham melhor estudar para tentar outra ocupação. A gente ganha muito pouco e não compensa. A situação está tão ruim que o labirinto vai se acabar”, sentencia. Na casa simples, porém confortável, vai levando a vida. Tudo gira em torno da família, da roça e do seu artesanato. Sem pressa, ela se despede da neta adolescente, Nádia, 13 anos,

que cria desde bebê, e começa a conversar conosco. De vez em quando, recorre ao marido para ajudá-la na entrevista. Entre uma conversa e outra, faz questão de nos servir o doce de caju, uma de suas especialidades na cozinha regional. Depois, mostra como se corta o tecido. Custa-se a acreditar em tamanha habilidade. Pega o tecido, risca e, depois, passa a faquinha, instrumento que ela mesma fez com madeira e lâmina de barbear. Outro detalhe: ela risca o desenho de olho, seguindo apenas uma amostra. Embora dedique-se a essa etapa, Maria de Lourdes sabe fazer todo o processo na grade. E assim vai levando a vida: “Só não me considero mais feliz porque sou doente da coluna e tenho diabetes”. o

C I Famosa cortadeira no Córrego da Nica, Maria de Lourdes lamenta a falta de valorização do seu ofício FOTOS: PATRÍCIA ARAUJO

Acervo de muito valor Sua residência poderia ser o Museu do Labirinto de Aracati. Tamanha é a quantidade de peças expostas, acervo e histórias para revelar. Numa manhã de chuva, aos 86 anos, Maria Pereira da Costa, Maria de Geraldo, como é conhecida, nos recebe com carinho. Em cada ambiente da casa antiga, no Centro Histórico da Cidade, há pelo menos uma peça da renda, a começar pela colcha sobre a cama de casal. Mas isso é só o início das surpresas reveladas por dona Maria. Ela guarda um acervo riquíssimo de trabalhos, que, muitas vezes, revela, comprou só para ajudar. Entre as raridades, peças de organdi, tecido fora de fabricação. Há, ainda, artigos expostos à venda. Ao contrário de quem depende só do labirinto para viver, dona Maria não tem do que reclamar. Além de ter se casado com um homem empreendedor, Geraldo, falecido em 2008, ela sempre trabalhou muito. A parceria de 62 anos deu certo tanto na vida sentimental como nos negócios. Quando lembra dele, emociona-se e chora. Recomposta, explica que optou por vestir branco ao invés do preto como sinal de luto.

Religiosa

C I Dona Maria de Geraldo, labirinteira e comerciante de Aracati, decora sua casa com a renda tradicional do Litoral Leste

Revela-se uma mulher forte e de fé inabalável. Todos os dias vai à igreja e ainda acompanha a missa pela televisão. Teve nove filhos, oito vivos, todos formados e bem encaminhados. Apenas uma mora com ela, a agrônoma Ana Maria, 56 anos, responsável pela loja deixada pelo pai. Filha de agricultor e pescador, dona Maria também soube aproveitar as oportunidades. Enquanto o marido trabalhava como barbeiro, fazia labirinto e costurava. Mais tarde, ele pas-

Tradição da família por um fio

sou a vender sua renda em Fortaleza. Na volta, sempre trazia alguma novidade em tecido, viés ou botão. Assim, a esposa pôde ampliar a clientela, e o casal, comprar uma casa, pois morava numa de taipa. Num dos espaços da nova morada, ela produzia e vendia roupas. Até que o marido comprou um ponto no Centro de Aracati, em funcionamento até hoje. Lá se comercializava de tudo, e Maria precisou ajudar Geraldo, mas nunca deixou o labirinto. Ainda hoje faz o trabalho completo, desde o corte, especialidade rara, até esticar a peça. E lá se vão quase 80 anos dedicados à arte. Para quem não teve estudo, aprendeu a ler sozinha e mal assina o nome, é uma vencedora. “Comecei soletrando a Bíblia, no final eu nem soletrava mais. Mas se for para escrever, eu não escrevo”, justifica. Com a educação dos filhos, a luta foi grande, mas todos foram muito estudiosos e ganhavam bolsas. Apenas lamenta a desvalorização do labirinto: “É como quem vive de esmola. Quem depende dele, precisa de ajuda”. Essa não é a sua realidade, por ter outra fonte de renda, mas a da maioria das labirinteiras de Aracati, inclusive de suas irmãs do Córrego da Nica.o

A I Dona Maria Luiza se dedicou ao labirinto por mais de 70 anos. Parou devido à pouca saúde

Quando chegamos à casa de Maria Luiza Pereira da Costa, 80 anos, irmã de Maria de Lourdes e Maria de Geraldo, uma surpresa desagradável: Há três anos, por motivo de doença, ela parou de trabalhar com o labirinto. E informa isso com lamentação. Enquanto conversávamos, na varanda da casa, no Córrego da Nica, ela nos mostrou algumas peças pequenas que guardava como lembrança. Sem pensar duas vezes, ofereceu-nos, alegando que não tinha mais sentido guardá-las. Diante da nossa recusa, falou: “Por favor, aceitem, tenho gosto de dar, assim como tinha de fazer”. Não conseguimos que mudasse de opinião. Mas negociamos, ficando apenas com alguns modelos feitos no organdi. Falamos em comprá-los. Proposta não aceita por Luiza, dando uma lição de desapego que nos emocionou. No Córrego da Nica, fomos às casas de outras irmãs, Maria Perpétua, a Mariquinha, e Maria do Rosário, que também abandonaram o labirinto. Na família Costa, além de Maria de Geraldo e Maria de Lourdes, apenas Luiza, filha de Mariquinha, continua no ofício. o


Vale o registro B I Em Orós, com Raimunda e sua grade do filé, junto à equipe guiada pelo motorista Audênio. Na praia da Baleia, Itapipoca, Francisca Alves tece sua renda nas horas de folga do restaurante da família

D I Subida para a Serra dos Bastiões, em Iracema, onde muitas mulheres produzem a malha, uma espécie de tela utilizada para dar início à produção da renda de filé

B I No alpendre de Raimunda Lúcia, em Timbaúba (Trairi), Germana desvenda a trajetória da artesã

Para encontrar as rendeiras cearenses, percorremos grande parte do litoral, de Icapuí a Acaraú. Nessas regiões são produzidas as famosas rendas de bilro e o labirinto. Seguimos também a trilha do filé, no Vale do Jaguaribe. Difícil foi resistir a tantas peças bonitas e de qualidade. A fotógrafa Patrícia Araujo se rendeu ao vestido com pala de labirinto feito por Bia, de Majorlândia (à direita).

B I Cristina experimenta bata com renda de bilro de dona Albertina, em Mundaú. Encantada com a peça, não hesita em comprá-la

B I A produção da foto com dona Neci, rendeira do Iguape, contou com a ajuda dos pescadores que estavam saindo para o mar

Direto à fonte CONTATOS

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Raimunda Vicente da Costa, Neci (85) 3361.6447 Praia do Iguape - Aquiraz (32,3km*)

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Francisca Ferreira Pires (85) 9656.2463 - Praia do Balbino - Cascavel ( 64,3km*)

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Francisca Maria Lima Silva, Neide (85) 8838.7476 Sítio Ema - Pindoretama (49,3km*) Francisca Moreira Borges dos Santos, Olinda (85) 8616.2564 / 8831.0233 Morro Branco - Beberibe (83,3km *)

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B I Momentos especiais: com dona Sinhá, na quilombola da Serra dos Bastiões , e dona Zeta com a família, em Juritianha

Eveline da Costa, Veca (85) 8740.4863 / 8622.8272 Maria da Cunha Henrique, Santa (85) 8815.5284 Maria Cleide dos Santos Costa (85) 8722.6052 Prainha - Aquiraz (32,3km*)

Acaraú A Itarema Trairi

C PÁGINAS 6 E 7 Albertina Roque de Holanda (85) 3351.9087/ 9978.2753 - Mundaú Raimunda Lúcia Lopes (85) 9104.6121 - Timbaúba - Canaan Raimunda Freitas dos Santos (85) 3351.2216 - Alagadiço - Canaan Maria Rosa da Silva, Ester (85) 3351.2199 - Alagadiço - Canaan Trairi (124,5km*)

Itapipoca

Fortaleza Aquiraz P Pindo Pindoretama Cascavel Beberibe

C PÁGINAS 8 E 9

Maria José do Nascimento, Zeta (88) 3674.8017 / 3661. 1349 Distrito de Juritianha - Acaraú ( 255,1 km*) Ana Maria André Alves (88) 9617.4312 / 3673.6113 Ivanilda Maria Silva de Holanda (88) 9980.1741 Família Paiva (88) 9639.8881 / 9603.6355 Praia da Baleia - Itapipoca (147,3 km*) Maria Irene da Silva Sales - (88) 3667.2020 - Almofala - Itarema (237,1km*) Elisabete de Castro, Betinha (85) 8735.5330 - Prainha - Aquiraz (32,3km*)

C

Aracati Icapuí

Madalena

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Maria Perpétua Martins (85) 3262.3962 / 3234.6080- Fortaleza Ana Miranda (88) 3522.6083 - Nova Floresta - Jaguaribe (291,1km*) Edinir Saldanha (88) 9225.5212 / 9241.9576 - Madalena (186,5km*)

C

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Iracema Jaguaribe Orós

Raimunda Nonata Barbosa (88) 3584.1364 Orós ( 352,1 km*) Maria do Socorro Araújo Silva (88) 3522.4141 Antonia Nascimento Silva de Souza, Toinha de Tomé (88) 3522.4130 Feiticeiro - Jaguaribe (291,1km*)

C PÁGINA 12

Maria Fernandes (88) 9941.5564 - Jaguaribe - (291,1km*) Maria Sinhá Rafael da Silva (88) 3428.2099 Serra dos Bastiões - Iracema (278,2km*)

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Maria de Lourdes Rebouças da Silva (88) 3432.4148 Morro Pintado - Icapuí (202,3km*) Rizeuda Bento da Silva (85) 9618.8444 - Beberibe (83,3km*)

Araripe

C PÁGINAS 15 E 16

Maria de Lourdes Costa - (88) 9915.2798 / 9968.4597 - Córrego da Nica Clara Ferreira Freire, Teté - (85) 3421.7076 - Canoa Quebrada Maria Beatriz Andrade da Cunha, Bia (88) 9975.9141 - Majorlândia Maria Pereira da Costa, Maria de Geraldo (88) 3421.1337 Aracati (148,3*) Antonia Dias Severo, Toinha (88) 3530.1450 - Araripe (526,8km*) (*) Distância de Fortaleza

Acompanhe a série

Bilro

Filé

Labirinto Confira depoimentos, em vídeos, de artesãs no site www.diariodonordeste.com.br | Comente esta matéria: eva@diariodonordeste.com.br

eva

DIÁRIO DO NORDESTE | FORTALEZA, CEARÁ | DOMINGO - 28 DE MARÇO DE 2010

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