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REPORTAGEM
PROIBIDA ENTRADA
Saiba como estudantes e profissionais testemunham sobre Cristo em regiões onde o evangelho não é bem-vindo
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O MEDO ALIMENTADO por uma visão equivocada a respeito de Deus foi um mecanismo muito forte de controle da consciência durante a Idade Média na Europa. Esse período escuro da história ocidental foi marcado pela hegemonia do cristianismo católico, dominação papal e íntima relação entre política e religião. Porém, a partir do século 12, inspirados no texto bíblico de João 1:5, os valdenses formaram um movimento religioso que tinha como lema lux lucetin tenebris “a luz brilha sobre as trevas” e que desafiou os ensinos e a autoridade da igreja medieval. Descendentes espirituais do comerciante Pedro Valdo (1140- 1217), eles consideravam a Bíblia a única regra de fé, rejeitavam a ideia de que fosse necessária qualquer intermediação humana para chegar a Deus e acreditavam que possuíam uma grande mensagem para compartilhar com o mundo. De acordo com o site da Sociedade Americana Valdense (waldensian.org), o movimento ficou conhecido na França como os “pobres de Lyon” e, na Itália, como os “pobres lombardos”. Eles foram considerados hereges e posteriormente sofreram repressão e perseguição das autoridades civis e religiosas. Apesar de enfrentarem até a violência da Santa Inquisição, o grupo se refugiou nos Alpes e tem algumas dezenas de congregações hoje, principalmente na Europa e América do Sul.
O que chama a atenção nos valdenses, além da coragem e fidelidade que manifestavam em relação à Bíblia, eram suas estratégias missionárias. Eles tinham o Livro Sagrado no próprio idioma, e seus filhos eram ensinados a memorizar diversos textos bíblicos. Além disso, os valdenses faziam cópias manuscritas de trechos das Escrituras para compartilhar “secretamente” enquanto viajavam pela Europa comercializando tecidos e joias. O propósito deles era iluminar as trevas com a luz da Palavra.
No entanto, segundo Virgil Robinson, no livro Heróis de Todas as Épocas: A Maravilhosa História dos Valdenses (CPB, 1988), os valdenses tinham ainda um método mais sofisticado de divulgar suas crenças: “Alguns de seus jovens mais inteligentes partiam de casa, no vale, e iam às grandes escolas de Paris, Milão, Bolonha, Barcelona ou mesmo Roma. Ali, eles se misturavam nas universidades com outros estudantes”, onde procuravam conversar a respeito da fé e fazer perguntas aos colegas de classe. Dessa maneira, eles conseguiram convencer muitos a se unirem ao movimento. Em pleno século 21, grupos protestantes ainda continuam usando essa abordagem, inclusive os adventistas.
“VALDENSES” DE HOJE
Os atuais estudantes “valdenses”, no programa organizado pela Igreja Adventista do Sétimo Dia, são definidos como “missionários acadêmicos” que ingressam numa universidade secular, seja em nível de graduação ou pósgraduação, a fim de testemunhar de sua fé. Isso implica muitas vezes ter que aprender uma terceira língua, já que o inglês é obrigatório, e decidir a área de estudos em consulta aos líderes do programa.
Espera-se também do candidato uma postura e conduta condizentes com os ensinos adventistas, como hábitos devocionais de oração e estudo da Bíblia, pureza sexual, habilidades relacionais, fidelidade à guarda do sábado e respeito pela cultura alheia.
De acordo com um casal envolvido no projeto há mais de dois anos, a abordagem no campo missionário deve seguir o método de Cristo. E eles entendem isso à luz da explicação que Ellen White oferece em A Ciência do Bom Viver (CPB, 1997), p. 143, de como Jesus evangelizava as pessoas: Ele Se misturava com elas, identificava e atendia suas necessidades, ganhava a confiança e depois as convidava a segui-Lo. “O princípio está na Bíblia, mas a gente acha que tem que ir longe. Fazer missão não é somente batizar pessoas, é representar Jesus”, ensina Pascale (nome fictício). Ele e a esposa Virgínia (pseudônimo) conheceram o programa de Estudantes Valdenses por meio do Serviço Voluntário Adventista (SVA). Porém, o interesse deles pela missão transcultural foi despertado na graduação, quando estudavam numa universidade cristã.
O casal diz que o objetivo deles na universidade em que pretendem ingressar no Oriente Médio é fazer amizade com colegas de classe e professores, testemunhando de sua fé em Cristo e do breve retorno Dele por meio do estilo de vida e, quando possível, através de palavras.
E para gerar oportunidades de testemunho, um dos caminhos usados pelos missionários no mundo islâmico é provocar a curiosidade. “O árabe é muito curioso. Coisas que fazemos por princípio, como se abster de carne de porco e álcool, gera curiosidade neles”, revela o casal. Eles explicam que, se os muçulmanos percebem “que você é uma pessoa fiel, espiritual, eles vão confiar em você e passarão a perguntar coisas mais profundas”. Virgínia destaca que, para servir no campo missionário no exterior, é “preciso estar bem física, mental e espiritualmente”. Isso por causa dos riscos, do desgaste, da necessidade de adaptação e do inevitável senso de solidão. Talvez seja por esse motivo também que fazer amizades esteja entre os grandes objetivos desses missionários “disfarçados” de estudantes. CONTATO INTENCIONAL
Para outro estudante valdense, chamado Arnaud (nome fictício), a amizade é o primeiro passo para apresentar o evangelho com segurança nesses contextos de restrição da liberdade religiosa. “Quando eles abrem a porta, então falamos de Jesus”, resume. Ele conta que já passou pelo treinamento a que todo “valdense” é submetido. O processo envolve orientações sobre o cuidado com a saúde física e mental, passar por uma sabatina de perguntas feitas por psicólogos e líderes locais e mundiais da igreja. Arnaud explica também que é preciso ter paciência para fazer amizades e testemunhar de Cristo. “Às vezes evangelizamos de forma equivocada, pois nos concentramos na forma e nos esquecemos de que todo o trabalho de conversão é de Deus.” Diferentemente do Ocidente, em que há liberdade para as pessoas se reunirem em templos, em alguns países do Oriente Médio os encontros religiosos ocorrem somente nas casas, tipo de reunião que muitas denominações evangélicas chamam de “pequeno grupo” ou “células”. OPORTUNIDADES
Pascale e Virgínia já vivenciaram situações em que, mais do que curiosidade, colegas manifestaram dúvida. Certa vez, alguém os questionou sobre qual seria a diferença entre islamismo e adventismo. Para quem os interrogou, as duas tradições religiosas pareciam ter muitas semelhanças: rejeitam a veneração de imagens, restringem o consumo de carne de porco e bebidas alcoólicas e acreditam que Jesus veio à Terra.
O missionário deu a reposta que gerou grande malestar e revolta do questionador: “A diferença é que para nós Jesus é Deus e não apenas um profeta.” Porém, no mesmo dia, o colega de classe pediu desculpas por sua maneira de ter reagido. Naquela oportunidade, Pascale e Virgínia estavam ajudando aquele estudante a encontrar uma casa para morar. Em outra oportunidade, mais recente, o casal de missionários foi interrogado sobre a razão de crerem no que acreditam e fazerem o que fazem. O nativo se surpreendeu com o preparo de Pascale e Virgínia, que lhe explicaram sem titubear, enquanto ele não tinha muita convicção sobre o islamismo. Resultado: o colega muçulmano ficou muito feliz em saber que Deus havia reservado um dia especial na semana para o repouso e a adoração; por isso, decidiu seguir o exemplo do casal missionário e também guardar o sábado. TENTMAKERS Se os “valdenses” se caracterizam por evangelizar no contexto da universidade e dos estudos, os chamados tentmakers (fabricantes de tendas, em inglês) usam a profissão ou o próprio negócio para testemunhar da fé. Essa modalidade de serviço missionário tem como base o texto de Atos 18:3, no qual Paulo, Áquila e Priscila são retratados como evangelistas Um dos caminhos usados por missionários cristãos no mundo islâmico é despertar a curiosidade dos nativos
de autossustento, pois dividiam o tempo entre a pregação e a fabricação de tendas.
“Esse modelo de missão de sustento próprio envolve profissionais movidos pelo interesse de salvar pessoas, que buscam um emprego ou abrir um empreendimento em determinado local, com objetivo de testemunhar de Cristo para aquele povo ou comunidade”, explica o brasileiro Mauro Nogueira, um dos recrutadores do programa de tentmakers. Os tentmakers têm sido uma alternativa cada vez mais utilizada para a pregação do evangelho em contextos com sérias restrições à liberdade religiosa, colocando missionários em contato com pessoas que nunca ouviram nem ouviriam falar a respeito de Cristo. Oriente Médio, Norte da África e Ásia são os destinos em que os tentmakers se mostram mais úteis, além do trabalho com refugiados na Europa.
Na opinião de Mauro, os jovens da geração millennial são bons candidatos para esse tipo de projeto, porque apresentam maior facilidade de se adaptarem a outras culturas e aprenderem novos idiomas, além da familiaridade com o uso da tecnologia. PROPÓSITO, CARREIRA E CASAMENTO É o caso da artista plástica Liz Motta, que nos últimos anos tem servido como professora de inglês no campo missionário e atualmente é diretora do Instituto de Missões da sede adventista para a Região Centro-Oeste do Brasil. Ela foi a representante da América do Sul num projeto-piloto de missão urbana realizado pela Igreja Adventista em Nova York, no ano de 2013. Foi lá que Liz conheceu o alemão Lukas Hermann, um profissional da área de TI. Eles se casaram e vivem na Alemanha, atendendo às necessidades da igreja e da comunidade local, como no cuidado de imigrantes. Porém, essa “missionária de carreira”, como gosta de ser chamada, também viaja discipulando novos missionários. Ela me concedeu essa entrevista por telefone, enquanto estava no Brasil ministrando um treinamento no Instituto Adventista Brasil Central (IABC), um internato adventista no interior de Goiás.
Além das palestras e treinamentos presenciais que ministra, Liz mantém o site ideatodomundo.org e perfis nas mídias sociais (a indicação do podcast dela está na seção Globosfera). Ela usa esses canais para compartilhar experiências, discutir conceitos sobre missão e dar dicas bem práticas da realidade do campo missionário. POSSIBILIDADES
Os que chegaram até aqui podem estar questionando: Como me engajar em alguma modalidade missionária? Liz responde: por meio da sua igreja local, do apoio de uma instituição, de um patrocinador, de um grupo de doadores ou do autossustento. Depois de servir a Igreja Adventista por 38 anos como pastor e professor de Teologia, Natanael Moraes decidiu ser um tentmaker. Enquanto lecionava no seminário, ele teve a oportunidade de liderar missões de curta duração na África; contudo, após a aposentadoria em 2017, decidiu com a esposa, Keila, embarcar para Dakar, no Senegal.
Agora, eles estão trabalhando numa campanha que tem por objetivo levantar 1 milhão de reais para a construção de um centro comunitário que ofereça atendimento médico, odontológico e o ensino de idiomas. “A ideia de dedicar o restante de minha vida como missionário foi dada por Deus. Tenho convicção disso”, garante Natanael.
O experiente pastor faz uma recomendação aos jovens: que comecem participando de projetos missionários mais curtos, como a Missão Calebe, que ocorre nas férias de janeiro e julho no Brasil. “Depois, eu aconselharia você a se voluntariar num projeto mais longo, como Um Ano em Missão e, por fim, dedicarse a Deus como missionário de longo prazo”, explica. Essa foi a vida escolhida por Natanael e Keila, Liz e Lukas, Pascale e Virgínia e Arnaud. Eles acreditam que o princípio que ilumina o mundo é o amor, pois quando se ama alguém, “você quer dar o melhor a essa pessoa, e o melhor que nós temos é nosso testemunho a respeito de Jesus”. Para saber mais Estudante Valdense Para se candidatar a uma vaga no Oriente Médio e Norte da África, acesse on.menau.org/apply-ws ou mande um e-mail para ws@menau.org. Tentmaker te.adventistmission.org/pt/ Instituto Mundial de Missões iwm.adventist.org Adventist Mission am.adventistmission.org Serviço Voluntário Adventista (SVA) sva.adventistas.org/pt e voluntarios@adventistas.org Os millenials são bons candidatos a tentmakers, porque se adaptam mais facilmente a outra cultura, apredem rapidamente outros idiomas e lidam bem com a tecnologia