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PERGUNTAS

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... as missões cristãs sem a colonização

TERRA DE SANTA CRUZ, 1549. Dois homens e uma missão entrelaçada: Tomé de Souza, primeiro governadorgeral da colônia, e Manuel da Nóbrega, padre jesuíta que chefiou a primeira missão para converter os indígenas ao catolicismo. Juntos, eles representam a força política e religiosa dos invasores para manter a posse da terra, desenvolver um comércio rentável para a metrópole portuguesa e construir uma sociedade colonial nos moldes do cristianismo europeu.

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Estado e Igreja formavam a unidade civilizadora para um Novo Mundo selvagem e pagão. Essa união entre a fé católica e os reis portugueses ficou ainda mais forte no período da Contrarreforma, a tentativa do papado de conter o avanço protestante e garantir as terras que estavam sob o domínio de nações católicas. Isso incluía colônias como o Brasil, para onde os portugueses trouxeram também sua religião.

Nos séculos 16 e 17, o protestantismo tentou atracar em terras brasileiras, com os franceses calvinistas no Rio de Janeiro (1555-1565) e os holandeses em Salvador (1624-1625) e Pernambuco (1630-1654). Porém, os protestantes só criariam raízes no Brasil na segunda metade do século 19, quando migraram para cá, também com uma visão civilizadora. Entenda como foi esse processo.

CRUZ E ESPADA Hoje o Brasil é um país laico, diferentemente do período colonial, quando havia uma religião oficial. Naquela época, Portugal e a Igreja Católica tinham um acordo conhecido como padroado régio, no qual o papado delegava ao rei português a tarefa de gerenciar e financiar as atividades da igreja no território brasileiro, incluindo as missões dos jesuí tas. Mesmo com algumas modificações, esse pacto durou até a proclamação da república. Contudo, na prática, o controle estatal sobre a religião foi limitado pela Companhia de Jesus, que tinha grande influência no governo português. No Brasil Colonial, as grandes ordens religiosas con quistaram poder e autonomia ao se tornarem pro prietárias de extensas áreas de empreendimento agrícola e de mineração, além da participação no tráfico de escravos. Nesse contexto, a evangelização de indígenas e negros acabou tendo dupla função: ensinar a obe diência aos preceitos religiosos e ao governo colo nial. Essa simbiose entre a cruz e a espada acabou moldando a economia e a sociedade brasileira por séculos.

“PREGUIÇA” E TRABALHO BRAÇAL Seis jesuítas vieram com o governador-geral Tomé de Souza, entre eles o padre Manuel da Nóbrega. Os indígenas foram reunidos em aldeias, onde aprendiam a fé católica e trabalhavam nas plantações. O objetivo era transformar os nativos em “bons cristãos”, o que também significava tra balhar como os europeus. No entanto, os indígenas tinham uma forma de organização social e de subsistência diferente da conhecida pelos missionários e colonos europeus. Os nativos se alimentavam de frutas, peixes e ani mais de caça, e usavam o tempo restante em seus rituais, celebrações e guerras. Por isso, foram caracterizados pelos estrangeiros como selvagens e preguiçosos. A mão de obra era uma grande necessidade para um processo de colonização que tinha como base a ocupação de extensas áreas . A solução encon trada foi escravizar o negro africano que, além de estar acostumado a trabalhar com a agricultura, criação de gado e o ferro, representava um negócio lucrativo para a metrópole. A associação entre escravidão e trabalho braçal fez com que esse tipo de atividade fosse visto como algo indigno. Pelo fato de o batismo de escravos ser um dever do senhor, muitos negros que para cá vieram acabaram aderindo a um sincretismo religioso entre cristianismo e as tradições espi rituais africanas. Vale lembrar que a escravidão de nativos e africanos também foi praticada nos Estados Unidos e justificada por boa parte do pro testantismo. Lá, os colonizadores ingleses não se preocuparam muito com a evangelização dos indígenas, pois eram considerados selvagens; nem com a conversão dos africanos, pois eram vistos como não humanos pela legislação local.

O evangelho da Bíblia pode ser abraçado por qualquer pessoa, em qualquer tempo e lugar (Gl 3:28; Jo 3:16; Mt 28:18-20). A conversão não é sincretismo (mistura de crenças e práticas) nem destruição da identidade cultural (imposição de crenças e práticas), mas transformação voluntária. Por isso, todo missionário deve se inspirar em Cristo, como modelo de serviço, cura, ensino e pregação. O apóstolo Paulo, o grande missionário intercultural, seguiu os passos de Jesus. Ele codificou os valores e princípios do cristianismo de acordo com a cultura das pessoas a quem pretendia evangelizar, fazendo com que a mensagem fosse inteligível para Seus ouvintes, construindo pontes em vez de muros (1Co 9:19-23). O verdadeiro testemunho se dá por meio de palavras, ações e da própria vida.

CONVERSÃO E IDENTIDADE CULTURAL Um projeto civilizador sempre traz emba - tes e conflitos. Catequizar e evangelizar eram sinônimos de incorporar os valores e estilo de vida dos europeus católicos ou protestan tes sobre os nativos e escravos africanos. O padre Manuel da Nóbrega, por exemplo, não compreendia a diversidade linguística das etnias indígenas. Por isso, ele adotou o nheengatu como língua geral para ensinar os nativos. Desse modo, todos os indígenas que chegavam aos aldeamentos tinham que aprender o nheengatu , a fim de realizar o sacramento da confissão auricular. No caso dos africanos, o senhor tinha o dever de batizar seus escravos até seis meses após a chegada deles ao Brasil, com o risco de perdê-los caso não cumprisse a lei. Infelizmente, esses missionários não enten - deram que seus métodos não eram de con - versão, mas de desconstrução de identidade. Nesse processo, a conversão também ficou associada a castigos e trabalho árduo e não à bondade e proximidade. Em 1591, por exem - plo, Anthony Knivet, um pirata inglês aban - donado por seus companheiros numa praia paulista, preferiu se colocar “nas mãos da pie dade bárbara dos selvagens devoradores de homens do que na da crueldade sanguinária dos portugueses cristãos”. Ele era protestante e, como tal, era considerado pagão pelos por tugueses católicos, podendo ser escravizado ou morto. Durante séculos, a espada convertia nominalmente muitos ao cristianismo antes que a cruz pudesse fazer sentido na mente e no coração.

Fontes: História do Brasil, de Boris Fausto (Edusp, 2008), p. 46-54, 59-62, 84-90; História dos Estados Unidos: Das Origens ao Século XXI, de Leandro Karnal e outros (Contexto, 2010), p. 58-66; Evangelização Protestante na América Latina, de Arturo Piedra (Sinodal, 2006), v. 1, p. 48-57; As Incríveis Aventuras e Estranhos Infortúnios de Anthony Knivet, de Anthony Knivet (Zahar, 2008); Evangelismo e Testemunho: A Sua Autêntica Missão de Apresentar Jesus às Pessoas, de Marcelo Dias (Ed. do autor, 2013), p. 51-57, 79-85; “Conversão e Colonização na América Latina e Brasil: Desconstruir e Destruir para Salvar”, artigo de Guilherme Burjack em Revista Caminhando, v. 18, n. 2, p. 115-121, jul./dez. 2013; “O papel da Igreja frente à escravidão indígena e africana nos séculos XVII e XVIII: Um olhar sob a perspectiva dos padres Antônio Vieira e João Antônio Andreoni (Antonil)”, de Mendell Barreto Ferreira (TCC em História na Universidade Federal de Juiz de Fora).

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