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TEXTO E CONTEXTO

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APRENDA

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Mãos à obra

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“O SEnHOr era com ele, e tudo o que ele fazia o SEnHOr prosperava” (Gn 39:23)

ALGUMA VEZ VOCÊ já culpou as circunstâncias ou alguém pelas coisas ruins que lhe aconteceram? Se a resposta for sim, até que ponto esses fatores externos determinaram seu futuro? E como você poderia reescrever sua história, assumindo uma postura mais responsável e menos vitimista, quando se deparar com situações adversas?

Essas são algumas das perguntas que podem surgir ao lermos mais atentamente Gênesis 39 a 41, trecho que narra os altos e baixos que José experimentou em três lugares diferentes: (1) a casa de Potifar, (2) a prisão do comandante da guarda e (3) o palácio de Faraó. Vamos estudar cada um desses cenários e ver como José reagiu a eles.

NA CASA DE POTIFAR

Depois de ter sido vendido pelos irmãos a uma caravana de ismaelitas, José foi comprado por Potifar, oficial do Faraó e comandante da guarda real (Gn 39:1). Mas quem era Potifar? O termo “oficial” (do hebraico saris) pode se referir tanto a membros da corte (1Sm 8:15; 2Rs 18:17) como a eunucos (2Rs 20:18; Et 1:10), oficiais que eram castrados para assumir funções administrativas na corte. Já a expressão “comandante da guarda” indica uma alta patente militar, assim como a de Nebuzaradã, o general babilônio que incendiou Jerusalém sob o comando de Nabucodonosor (2Rs 25:8).

A Bíblia menciona que “o SENHOR era com José” (Gn 39:2). Essa fórmula se repete outras três vezes na narrativa (v. 3, 21, 23), mostrando que, embora José fosse escravo e tivesse sido expatriado, Deus não o havia abandonado. O narrador utilizou várias repetições para transmitir a mensagem. Por exemplo, para expor o contraste entre Potifar e José, o primeiro é chamado de “homem egípcio” (do hebraico ’ish mitsri), e o segundo, de “homem próspero” (’ish matsliach). As repetições também são usadas como molduras narrativas: Potifar comprou José “da mão” (miyyad) dos ismaelitas (v. 1, tradução literal), e Deus fez prosperar tudo o que era feito pela “mão” (beyado) de José (v. 3). Ao perceber que Deus abençoava aquele prisioneiro, Potifar confiou todos os seus bens à “mão” dele (beyado, v. 4, 6, 8). A ênfase na palavra “mão” é retomada na cena da mulher de Potifar, na prisão de José e no discurso de Faraó, como veremos mais adiante.

O narrador também usou cinco vezes a palavra “tudo” em Gênesis 39:3 a 6. Robert Alter, professor de hebraico e literatura comparada na Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos, observa que essa repetição indica uma afirmação temática: “O alcance da bênção ou sucesso que esse homem obtém é praticamente ilimitado; tudo prospera, tudo é confiado aos cuidados dele. Numa escala reduzida, vemos confirmados seus sonhos grandiosos, num esboço do seu futuro de glória como governador do Egito” (A Arte da Narrativa Bíblica, p. 165). Podemos dizer que, mesmo em meio a um ambiente hostil e desafiador, José colocou “a mão na massa” e empregou suas habilidades para administrar as propriedades de seu patrão. O texto nos informa que Potifar nomeou José “mordomo de sua casa” (v. 4). A palavra “mordomo” é, na verdade, uma tradução

do verbo paqad, cuja raiz nessa conjugação significa “ordenar” (Holladay, Léxico, p. 420). Ou seja, Potifar concedeu autoridade a José, que poderia ter enterrado seus dons, mas decidiu empregá-los em tudo o que era confiado às suas mãos.

Quando as coisas pareciam estar indo bem, surgiu a mulher de Potifar. O narrador já havia preparado o leitor com um anúncio de enredo: “José era formoso de porte e de aparência” (v. 6). A ironia do texto é clara, José havia achado “graça aos olhos” de Potifar (v. 4, tradução literal), mas a mulher de seu patrão “pôs os olhos” sobre ele.

A esposa de Potifar não hesitou em revelar sua intenção: “Deita-te comigo” (v. 7). Curiosamente, José parece ter “enrolado” na resposta que deu a uma proposta sexual tão direta (v. 8, 9). Ele disse que não poderia cometer tamanha maldade contra Deus, traindo a confiança de seu patrão, que havia confiado tudo às mãos dele, menos sua esposa. A prolixidade de José demonstra seu equilíbrio e domínio próprio diante da tentação.

Para a infelicidade do escravo hebreu, sua patroa não desistiu de seduzi-lo. Ela continuava insistindo com ele “todos os dias”, ainda que José não lhe desse ouvidos (v. 10). Essa atitude nos ensina uma lição muito importante: é melhor nos afastarmos das influências sedutoras do pecado e ignorá-las do que confrontá-las diretamente e nos expormos ao perigo. O narrador nos diz que a mulher de Potifar decidiu adotar uma estratégia mais agressiva. Certo dia, quando não havia ninguém na casa, ela “pegou José pelas vestes e lhe disse: Deita-te comigo” (v. 12), mas ele deixou as vestes na mão dela e saiu correndo. Contrariada, a mulher de Potifar chamou os homens da casa e acusou o servo hebreu de ter tentado violentá-la. Como Robert Alter observa, o fato de José ter deixado as vestes na mão dela é um “eco perfeito” do verso 6, “ironicamente arrancado de um contexto de confiança para outro de traição conjugal” (A Arte da Narrativa Bíblica, p. 167). Ao apresentar algumas diferenças marcantes entre a versão dos fatos apresentada pela mulher (v. 15) e a do narrador (v. 12, 13), o texto esclarece que tudo se tratava de uma armação. Em primeiro lugar, embora usasse as mesmas expressões do narrador, a mulher de Potifar inverteu a ordem dos fatos dizendo que gritou por socorro quando José tentou forçá-la e que, por causa disso, ele fugiu. Já o narrador diz que a mulher de Potifar tentou seduzir José e que ela gritou depois da fuga dele. Logo, na versão da mulher, o grito precedeu a fuga. Em segundo lugar, o narrador menciona que as vestes de José ficaram nas “mãos” dela. Para não se comprometer, a esposa de Potifar disse que as vestes foram deixadas do seu “lado”. Essas diferenças nos ajudam a entender um fenômeno curioso da narrativa bíblica: as repetições. Com frequência, “o narrador relata uma ação e, em seguida, os protagonistas a relatam de novo, usando praticamente as mesmas palavras. […] À medida que os agentes humanos reformulam a recorrência de acordo com suas intenções ou ideias falsas, vemos como a linguagem pode servir para mascarar ou enganar, tanto quanto para revelar” (A Arte da Narrativa Bíblica, p. 172).

NA CASA DE DETENÇÃO

Quando Potifar retornou ao lar, a esposa lhe contou tudo o que havia acontecido, de acordo com a versão dela, é claro! Irado, Potifar ordenou que José fosse lançado no cárcere onde ficavam os prisioneiros do rei (v. 20). A palavra “cárcere” (do hebraico beit hassochar) pode ser traduzida literalmente como “casa de detenção”, conforme propõe Alter (A Arte da Narrativa Bíblica, p. 171). O mérito dessa tradução está na preservação do termo “casa”, uma das palavras-chave da narrativa. Gênesis 41:10 nos informa que essa “casa de detenção” estava localizada na “casa” do comandante da guarda, isto é, na residência do próprio Potifar (ver 39:1). Naquele local de sofrimento, a cena inicial do capítulo 39 se repetiu. O texto diz que o “S era com José” e que ele achou “graça aos olhos” do carcereiro. A Bíblia ainda afirma que o carcereiro “confiou às mãos [beyad] de José todos os presos” e que “tudo” o que José “fazia o S prosperava” (v. 21-23). Mais uma vez, José empregou suas habilidades para administrar uma “casa”. Em pouco tempo, o hebreu se tornou um tipo de mordomo na prisão. Isso nos ensina que não existe desculpa para deixarmos de desenvolver nossos talentos e usálos para servir a outros. Não devemos cruzar os braços diante de situações difíceis, mas encará-las como oportunidades de crescimento. Afinal, nada nos impede de nos esforçarmos para melhorar nossa situação e a realidade ao nosso redor.

Depois de algum tempo, Faraó enviou dois oficiais, o copeirochefe e o padeiro-chefe, para a mesma prisão em que José estava. Gênesis 40:4 nos informa que o comandante da guarda, Potifar, encarregou José de servi-los. Algum tempo depois, ambos os oficiais de Faraó tiveram um sonho. Eles ficaram preocupados porque não havia quem pudesse interpretá-los (v. 8), uma possível alusão aos magos e sábios do Egito mencionados em Gênesis 41:8. O copeiro-chefe sonhou com uma videira de três ramos que, ao brotar, produziu flores e cachos cheios de uvas maduras. Na sequência do sonho, ele as espremeu num copo e as serviu ao Faraó (Gn 40:9-11). O padeiro-chefe, por sua vez, sonhou que havia três cestos de pão sobre sua cabeça. No cesto mais alto, encontrava-se a comida de Faraó, mas as aves a devoravam (v. 16, 17).

José ouviu os sonhos e os interpretou. Ao copeiro, disse que seria restituído à sua função em três dias. Também lhe pediu que se recordasse dele quando as coisas melhorassem e que fizesse menção de seu caso ao rei, pois desejava sair daquela “casa” (v. 14). José ainda se justificou dizendo que tinha sido sequestrado de sua terra e que não havia feito nada para estar naquela “masmorra” (do hebraico bor), a mesma expressão usada em Gênesis 37:22 para se referir ao poço no qual havia sido lançado pelos irmãos. Ao padeiro, disse que seria decapitado e pendurado numa estaca e que as aves comeriam a carne dele (v. 18-20), uma imagem que evoca as maldições da aliança descritas em Deuteronômio 21:23 e 28:26.

Em três dias, as predições de José se cumpriram, o que de fato não se concretizou foi a palavra do copeiro-chefe. O texto põe em destaque essa atitude de ingratidão ao afirmar

NA CASA DE FARAÓ

Dois anos depois daquele episódio, Faraó teve dois sonhos. No primeiro, estava às margens do Nilo quando sete vacas gordas saíram do rio e começaram a pastar. Depois delas, saíram sete vacas magras que devoraram as outras (Gn 41:1-4). No segundo, sete espigas bonitas nasceram de uma só haste, mas, após elas, surgiram sete espigas feias que devoraram as anteriores (v. 5-7). Na manhã seguinte, Faraó buscou todos os magos do Egito, mas não havia ninguém que fosse capaz de interpretar os sonhos. Então o copeiro-chefe “se lembrou” de José e reconheceu seu erro (v. 9). O copeiro contou ao Faraó sobre sua experiência na prisão e como um hebreu havia interpretado corretamente seu sonho e o do padeiro-chefe (v. 10-13). Faraó, então, mandou que o escravo fosse levado ao palácio. Como no caso anterior, José interpretou dois sonhos. Disse para Faraó que ambos transmitiam a mesma mensagem: Deus enviaria ao Egito sete anos de fartura que seriam seguidos por sete anos de fome (v. 14-32).

José lhe instruiu a colocar um homem “ajuizado e sábio” para coordenar um grupo de administradores que deveria recolher a quinta parte das colheitas durante os anos bons (v. 33-36). Também disse que tudo isso deveria ser feito “debaixo da mão de Faraó” (v. 35, tradução literal). O conselho agradou o rei e seus oficiais: “Acharíamos, porventura, homem como este, em quem há o Espírito de Deus? […] Visto que Deus te fez saber tudo isto, ninguém há tão ajuizado e sábio como tu. Administrarás a minha casa, e à tua palavra obedecerá todo o meu povo; somente no trono eu serei maior do que tu” (v. 38, 39, itálico acrescentado). Faraó deu a José roupas finas, um colar de ouro e, o mais importante, seu anel de sinete. O ato de retirar o anel de sinete e colocá-lo na “mão” de José transmite a ideia de que Faraó, assim como Potifar e o carcereiro, estava confiando “tudo” ao escravo hebreu.

Da casa de Potifar à casa do Faraó, José teve que enfrentar muitos desafios: assédio, injustiça, prisão, esquecimento e ingratidão. Embora essas experiências tenham lhe causado dor, elas não o forçaram a assumir uma postura fatalista. Ao contrário, ele fez o melhor que podia com o que tinha. Além de interpretar sonhos e administrar fielmente o que estava sob sua responsabilidade, José permaneceu leal a Deus; por isso, tudo o que era confiado às suas mãos prosperava.

Sempre que você enfrentar um desafio ou estiver passando por um momento difícil, lembre-se de que, não importa em que “casa” você esteja, mas o que fará com o que lhe foi confiado. Então, mãos à obra!

Para saber mais A Arte da Narrativa Bíblica, de Robert Alter (Companhia das Letras, 2007). Genesis, de Jacques B. Doukhan (Pacific Press, 2016). Os Escolhidos, de Ellen G. White (CPB, 2015).

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