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O OCIDENTE NÃO TIVESSE SE SECULARIZADO

... SE O OCIDENTE NÃO TIVESSE SE SECULARIZADO

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“QUAIS SÃO SEUS deuses?” Com essa pergunta os gregos antigos sabiam a que povo, costumes e local alguém pertencia. A religião, como conjunto de crenças, valores e práticas comunitárias de determinado grupo num contexto histórico e cultural específico, vem sendo modificada ao longo do tempo, principalmente nos últimos séculos.

A Idade Moderna – com as descobertas marítimas e científicas, o surgimento do protestantismo e posteriormente o advento do Iluminismo e sua ruptura com a religião – é apontada como o período em que ocorreu a secularização do Ocidente. E secularização pode ser definida como processo de perda de espaço da religião, seja nas esferas da vida pública, como o direito, a política, a economia, a saúde e a educação – limitando a religião à vida privada – , seja também pelo declínio das crenças e práticas religiosas.

A compreensão da teoria clássica da secularização, que tem sido questionada e revisada nas últimas décadas, é de que vivemos em sociedades secularizadas e que elas darão menos espaço para a religião à medida em que se modernizarem (racionalização da vida, burocracia, capitalismo, ciência e globalização). Mas como seria o Ocidente e, consequentemente, a influência ocidental sobre o restante do mundo se não tivesse ocorrido a secularização na modernidade?

Durante séculos, as monarquias da Europa foram sustentadas, entre outros elementos, pela crença na escolha divina do monarca (direito divino) e o poder absoluto a ele concedido. Acreditava-se, por exemplo, que os reis franceses e ingleses podiam curar, por meio do toque, uma doença infecciosa de pele (escrófula). Por ser visto como uma figura sagrada, cabia ao rei proteger o reino, garantir o pão e distribuir justiça. Mesmo já no século 19 (1824), a constituição da monarquia brasileira tinha essa ideia do direito divino logo em sua primeira frase: “Dom Pedro Primeiro, por Graça de Deus e Unânime Aclamação dos Povos, Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil.” Na época do Brasil império, a religião oficial era o catolicismo; por isso, os demais cultos religiosos só podiam ser praticados na vida privada. O imperador também era o primeiro entre os crentes e representante máximo da Igreja Católica no país (regime do padroado régio), devendo ser exemplo de devoção religiosa para os súditos. Porém, com o processo de racionalização das instituições políticas e jurídicas, a partir do Renascimento e ao longo da Idade Moderna, a figura do rei/governante foi sendo desvinculada da religião. Por essa razão temos hoje Estados laicos (que não têm religião oficial), confessionais (que possuem uma religião oficial) e teocráticos (que assumem uma religião oficial). Sem o processo de secularização, talvez a paisagem política ocidental seria de Estados confessionais, numa versão mais liberal, e de Estados teocráticos, em sua vertente mais conservadora.

DIREITO CONFESSIONAL

Curiosamente, a origem do termo “secular” vem de um contexto religioso: quando um membro do clero regular, que ficava nos mosteiros, era transferido para o clero secular, aquele que estava em contato com o povo. Depois da Reforma Protestante, o termo passou a significar a ação de desapropriar terras e bens da Igreja Católica e passar sua posse para o Estado. Também foi a partir do século 16 que a palavra secularização passou a ser usada no direito. Na Europa medieval existiam apenas o direito consuetudinário (com base nos costumes) e o direito canônico (que regia a igreja e os fiéis). Na prática, era a moral cristã católica que determinava as leis consuetudinárias, que poderiam ser mantidas ou retiradas pelo rei. Portanto, quem não fazia parte da cristandade não tinha direitos. Por causa das disputas entre católicos e protestantes, a racionalização do campo do direito ganhou força, dando espaço para o surgimento do direito laico/secular e abrindo caminho para o direito internacional. A redescoberta do direito romano, que previa que os povos conquistados praticassem sua religião de origem, também colaborou para a desvinculação do direito em relação à religião. Com isso, o Estado passou a ter legitimidade própria. É razoável concluir que, sem a secularização político-jurídica, a vida pública seria regulamentada por um “direito confessional”.

INTOLERÂNCIA RELIGIOSA

Em 1077, vestido com roupas de monge, descalço na neve durante três dias, Henrique IV, imperador do Sacro Império Romano-Germânico, finalmente conseguiu a reversão de sua excomunhão dada pelo papa Gregório VII. Até aquele momento, os imperadores e reis nomeavam os membros do clero para altos cargos eclesiásticos. Mas, para o papa Gregório, somente a Igreja Católica deveria ter esse direito. Como represália, o pontífice excomungou Henrique IV, que perdeu seu trono, seus bens, o direito aos sacramentos e a comunhão com os fiéis na igreja. Naquela época, excomunhão da igreja era sinônimo de exclusão social. Além disso, defensores de ideias heterodoxas, que fossem diferentes ou contrárias aos ensinos da igreja, podiam parar no tribunal da Inquisição. Foi o caso do moleiro Menocchio, de Friuli, na Itália. Em 1583, ele foi acusado pelo Santo Ofício de espalhar ideias heréticas, uma delas era a de que o mundo tinha sua origem no caos. Outra, que incomodava mais, era não reconhecer a autoridade eclesiástica, questionar a riqueza da igreja e dizer que a alma era mortal. Condenado como herege, ele foi para a fogueira por volta de 1600. A liberdade religiosa e de pensamento só foi possível por causa da secularização. Portanto, se esse processo não tivesse ocorrido, nossos laços sociais poderiam até ser mais fortes, mas acabariam silenciando e marginalizando quem pensasse e cresse diferente da maioria.

Nas últimas décadas, a maioria dos sociólogos da religião tem entendido que a secularização não implica necessariamente a extinção da religião, mas a transformação dela. Portanto, é possível observar sociedades secularizadas e ainda com a presença da religião. A diferença é que a religião na modernidade cumpre funções e tem características distintas. O que vemos hoje nas regiões mais secularizadas do mundo é o pluralismo religioso, ou seja, a convivência mais ou menos pacífica de várias tradições de fé. Essa pluralidade traz consigo alguns efeitos. Por um lado, o enfraquecimento das instituições religiosas frente à crescente autonomia dos seus adeptos ; e, em contrapartida, o fortalecimento de movimentos reacionários e fundamentalistas.

Fontes: Os Reis Taumaturgos , de Marc Bloch (Companhia das Letras, 2018); O Queijo e os Vermes, de Carlo Ginzburg (Companhia das Letras, 2017); “Sociologia da religião e seu foco na secularização”, de Ricardo Mariano, no Compêndio de Ciência da Religião, de João Décio Passos e Frank Usarski (Paulus, 2013), p. 231-242; verbete “Religião” do Dicionário de Conceitos Históricos, de Kalina Vanderlei Silva e Maciel Henrique Silva (Contexto, 2009), p. 354-358; artigo “Secularização em Max Weber: Da contemporânea serventia de voltarmos a acessar aquele velho sentido”, de Antônio Flávio Pierucci, na Revista Brasileira de Ciências Sociais, v.13, no 37, junho de 1998; artigo “Confl itos entre autoridades religiosas e monárquicas no início do século XI: um debate a partir das relações de poder”, de Rafael Santos Ribeiro, na revista Plêthos, v. 4, no 1, 2014, p. 137-153; “História do Direito na Baixa Idade Média”, artigo de Michel Carlos Rocha Santos, em março de 2011 no site jus.com.br; “Direito Canônico”, artigo de Victor Rigueti para o site jusbrasil.com.br; “Deserdados do cristianismo: a história da excomunhão”, artigo de Álvaro Oppermann para a revista Aventuras na História, de 17 de abril de 2019; série de palestras “O Fracasso da Teoria da Secularização: Seis Teses Sobre o Pluralismo”, do sociólogo e teólogo Peter Berger (link.cpb.com.br/15ea19).

Ação Mude seu mundo Texto Luciana Santana Diniz Fotos: Ivo Mazzo/Comunicação Unob Lição de vida Aprenda Na cabeceira Guia de profissões

Aprendizado nas férias

Estudantes contam o que aprenderam na Missão Calebe, um projeto que desafia os jovens a sair da zona de conforto e a experimentar o voluntariado

“SER VOLUNTÁRIA NO projeto Missão Calebe durante a pandemia foi uma experiência transformadora. Hoje dou valor às pequenas coisas e aprendi a viver com menos”, relata Ingrid Amaral, de 30 anos, estudante de Administração. A semana para ela é puxada. Durante o dia, trabalha numa papelaria no centro de Boa Vista (RR); e à noite, dedica-se aos estudos.

A jornada da Ingrid como voluntária iniciou nos fins de semana de julho. Mas, hoje, ela define o voluntariado como um novo estilo de vida. Para Ingrid, o melhor momento da sua rotina semanal é quando ela dedica horas para alimentar imigrantes venezuelanos, uma das principais ações sociais da Missão Calebe na capital de Roraima, no extremo Norte do Brasil.

“Em apenas um mês, minha vida tomou um novo sentido! Sinto-me útil ao prover alimentação aos que necessitam. Além disso, depois de participar da Missão Calebe, compreendi que valorizava coisas supérfluas, enquanto muitos precisam do básico, algo que nunca me faltou, mesmo no isolamento social. Muitos imigrantes têm apenas uma refeição ao dia”, compara Ingrid.

Ela conheceu o projeto social e evangelístico da Igreja Adventista por meio de um grupo de voluntários que foi à papelaria na qual trabalha com o intuito de comprar material para a série de pregações noturnas que estavam realizando. Em Roraima, durante o mês de julho, além das diversas ações sociais, como alimentar e vestir as pessoas em situação de maior vulnerabilidade, os calebes atuaram em 80 pontos de pregação, oferecendo orientação sobre saúde, família e religião.

“Fiz parte da equipe da cozinha. Lá, eu lavava e picava legumes, preparava os alimentos, além das marmitas que eram servidas aos imigrantes”, explica Ingrid, que disse sempre ter pensado em maneiras de ajudar o próximo. Depois que acabaram as férias e a Missão Calebe, ela foi integrada a uma equipe do ministério de assistência social de uma igreja adventista próxima da sua casa. Ela continua ajudando a alimentar venezuelanos, mas somente aos fins de semana.

“Essa missão de ajudar os outros mudou minha vida. No início da pandemia, fiquei muito assustada com o vírus e o número de óbitos. Porém, percebi que, por causa do isolamento social, os imigrantes sofreram mais ainda. Por isso, eu precisava fazer algo. Hoje, essa missão faz parte do meu estilo de vida. E o dia mais prazeroso da minha semana é quando eu participo dela”, reforça emocionada.

MÃO NA MASSA

“A Missão Calebe é a oportunidade de os jovens doarem as férias para ajudar o próximo nos aspectos físico, mental e espiritual. Nesse período, mais que em qualquer outro do ano, eles têm a oportunidade de sair de suas igrejas e colocar em prática seus talentos, como acolher, cantar, pregar e orar. É o espaço para eles protagonizarem a própria fé e influenciarem positivamente outras pessoas”, explica o pastor Marcos Pimentel, líder dos jovens adventistas de Roraima.

Raphael Santos, um dos coordenadores da Missão Calebe em Boa Vista, acrescenta que os voluntários perceberam que muitas pessoas estavam precisando ouvir palavras de esperança e encorajamento, inclusive as crianças: “Realizamos um trabalho com o público infantil intitulado Calebes Kids. Muitas crianças sofreram no isolamento social com os mais diversos tipos de abuso, mas nossas palavras e ações de alguma forma levaram alívio e consolo.”

ESCOLA DA VIDA

Isabelly Alencar, de 13 anos, é aluna do Colégio Adventista de Cidade Nova, na zona norte de Manaus (AM). A estudante conta que seu envolvimento na Missão Calebe fez que ela se desenvolvesse em vários aspectos: vencesse a timidez ao entrar em contato com desconhecidos, fizesse novas amizades com outros voluntários e aprofundasse sua comunhão com Deus por meio da leitura diária da Bíblia. “Durante as noites da série evangelística, presenciei muita gente da minha idade, com conflitos parecidos com os meus, entregando a vida a Cristo. Experimentar tudo isso me fez confirmar minha fé. Agora, ler a Palavra se tornou um hábito”, complementa a adolescente.

A gestora do Colégio Adventista da Cidade Nova, Silvana Paiva, enfatiza que a promoção da Missão Calebe na rede educacional permite que alunos e funcionários experimentem o serviço voluntário. “Aqui em nosso colégio, o projeto mobilizou funcionários e estudantes que fizeram a diferença durante a pandemia na zona norte da capital, participando em feiras de saúde e pontos de pregação. Dessa forma, os alunos aprenderam na prática sobre responsabilidade social e a importância do testemunho”, ressalta Silvana.

Luiza Paiva, de 16 anos, é outro exemplo dos benefícios da integração entre o projeto Missão Calebe e a rede educacional adventista. Aluna do segundo ano do ensino médio do Colégio Adventista de Manaus, ela fez das suas últimas férias uma verdadeira aventura missionária. Na área social, a equipe de voluntários da qual fez parte distribuiu cestas básicas, roupas e medicamentos na comunidade ribeirinha da Ilha das Onças. Já a ação evangelística foi realizada numa igreja flutuante.

“Eu nunca havia entrado numa igreja que flutua, apesar de serem comuns por aqui as casas flutuantes. Foi uma experiência marcante sair da nossa zona de conforto e observar o esforço de tantas pessoas que desejam pregar e também aprender mais sobre o amor de Deus. Essa ilha fica distante de Manaus, e muitas pessoas remam horas de barquinho para chegar ali e ouvir a mensagem bíblica. Eu realmente voltei valorizando mais minha igreja e meu lar. Tive a oportunidade de compartilhar o amor de Jesus com todas aquelas pessoas que têm as mesmas necessidades dos que moram na cidade grande”, Luiza resume seu aprendizado.

TEMPO DE ADAPTAÇÕES

A Missão Calebe nasceu na Bahia, há mais de 15 anos, como uma iniciativa de igreja local. Depois, o projeto foi ganhando corpo e visibilidade, sendo institucionalizado pela Igreja Adventista para todos os seus níveis administrativos. Uma das marcas do projeto sempre foi desafiar os jovens a sair de sua zona de conforto e ir para lugares mais remotos, onde as necessidades sociais e espirituais fossem mais latentes. Por isso, os calebes até o momento tinham se acostumado a dormir em acampamentos, escolas públicas ou centros comunitários.

Contudo, a pandemia forçou os organizadores a adaptar a proposta, para reduzir o risco de contágio. “Seguimos medidas de distanciamento, uso de máscara de proteção constantemente e de álcool em gel. Além disso, adotamos as visitas de portão, evitando acesso aos lares. As ações foram realizadas em bairros das cidades, evitando a circulação e as viagens dos voluntários. As reuniões, à noite, seguiram o percentual de capacidade de pessoas recomendadas pelas autoridades locais. E as ações sociais, como distribuição de marmitas, foram organizadas a fim de conter as aglomerações”, detalha o pastor Marcos Pimentel.

O ponto é que, tomando os devidos cuidados, voluntários e comunidade foram beneficiados mais uma vez por meio de um projeto que tem um consistente histórico de transformação de vidas e que se mostrou mais relevante ainda no contexto desafiador que estamos vivendo.

Para saber mais

adventistas.org/jovens/projeto/missao-calebe

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