entrevista miguel rio branco

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MIGUELDO O RIO Entrevista

Miguel Rio Branco

Em entrevista exclusiva, Miguel Rio Branco expressa sua revolta com o estatuto da burocracia dominante e os mecanismos corruptos que avalizam a arte mentirosa

por Érica Rodrigues fotos Miguel Rio Branco

Ncilmente atendida pelo dono, o criador de imagens fortes cujos olhos, o escritório-ateliê do entrevistado, a bassê Pretinha pede colo e é do-

nestes quase 40 anos de oficio, estiveram voltados para a realidade mondo cane dos desgraçados e deserdados do mundo, seja por meio da potência inventiva da pintura, da fotografia ou do cinema. Genioso, reservado e inacessível – dizem –, Miguel Rio Branco desafina o coro do senso comum nesta conversa, em seu apartamento no bairro de Santa Tereza, no Rio de Janeiro, a algumas horas da abertura de sua exposição “Por Baixo dos Tubarões”. Antes de ligarmos o gravador, ele mostra algumas placas de circuito de computador que serão utilizadas numa futura instalação. Também exibe a maquete da exposição “Out of Nowhere”, em cartaz no Groninger Museum [www.groningermuseum.nl], na Holanda, e um dos múltiplos criados a pedido desse mesmo museu, um charmoso art folder com livro, DVD, uma fotografia impressa em cerâmica e outra em voile. No fio da navalha entre o apuro calculado da imagem e a pura densidade emocional, o artista retratou, em sua vasta obra, do Pelourinho aos cortiços de Havana, da academia de boxe na Lapa carioca aos circos periféricos, longe de um Soleil de altas rodas. Em cinema, entre seus vários filmes, documentou os prostíbulos baratos de Salvador em Nada levarei quando morrer, aqueles que me devem cobrarei no inferno, e, fazendo a direção de fotografia de Uma Avenida Chamada Brasil, rodou, juntamente com o cineasta Octávio Bezerra, os 53 quilômetros da Avenida Brasil, no Rio, a bordo de um carro com rádio de polícia, flagrando assaltos, o tráfico e a atuação de esquadrões – observando a vida local, enfim, como uma metáfora do país. Nesta entrevista, Miguel Rio Branco fala de sua carreira, da relação com Sebastião Salgado e Mario Cravo Neto, de arte, fotojornalismo e cinema. Em palavras cortantes – cujas incisões, a bem da verdade, até contrastam com uma certa candura no gesto e na voz –, expressa sua revolta com o estatuto da burocracia dominante e os mecanismos corruptos que avalizam uma arte mecanicista e mentirosa, e propõe uma luta inteligente, não armada ou demagógica, contra o ranço cultural e os problemas sociais e educacionais do país. Ideal talvez herdado do bisavô, diplomata cuja mão habilidosa riscou grande parte do mapa do Brasil, resolvendo conflitos territoriais com a caneta no lugar de espadas

“Espuma dos Dias” 160 x 80 cm 1993/94

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Gostaria que você falasse um pouco da sua formação e do período inicial da sua carreira, nos anos 70, quando, já pintando e fazendo cinema, escolhe a fotografia como meio de expressão... Comecei minha trajetória como pintor autodidata. Depois, cursei fotografia no New York Institute of Photography. Considero também parte da minha formação o filme Pindorama, do Arnaldo Jabor, cujo diretor de fotografia era o Affonso Beato. Trabalhei nesse filme fazendo still. Nessa mesma época, já fazia minhas fotografias em preto-e-branco e cor, mas ganhava a vida com fotografia para cinema. Você não tinha uma produção fotojornalística nessa época? Não considero fotojornalismo as imagens dos anos 70, porque não foram publicadas em nenhum jornal, em nenhuma revista. Nessa época, eu fazia muita fotografia em preto-e-branco, o que acabou resultando na exposição “Negativo Sujo”, que não é bem fotojornalismo. Ela tratava de temas que são de documentação, mas já existia uma outra construção. A própria paginação do trabalho era como um bloco de anotações, havia ali uma preocupação gráfica. A questão do documento, das imagens feitas sobretudo no sertão da Bahia, tinha uma conexão com o universo jornalístico, apesar de elas nunca terem sido publicadas em revistas jornalísticas. Meus trabalhos ligados ao fotojornalismo eram muito mais ensaios, já em cor, que foram publicados em revistas como a Geo e a National Geographic, que eram revistas onde se podia contar um pouco mais uma história. Mas não quer dizer que essas histórias acabavam bem contadas, porque eu não tinha controle sobre a edição desse material. Quando você entrou para a Magnum? Qual é sua ligação, hoje, com a agência? Minha ligação com a Magnum começou em 1973. Eu fiz um trabalho de documentação para eles. Em 1980, eles viram meu trabalho sobre o Pelourinho e me transformaram em correspondente. Em 1982, eu estava morando em Paris e fiquei “nomeado” durante dois anos. Depois fui efetivado e voltei a ser correspondente. Acabei adotando uma postura em relação à Magnum que é de distribuição de imagens, somente para certos projetos culturais. Eu nunca fui uma pessoa de jornalismo, apenas fiz alguns projetos editoriais diferenciados. Senão, cai-se sempre no clichê. O ser humano

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tem uma tendência a cair sempre no clichê. É a burocracia dominante. Aquela coisa que nunca evolui. O poder não quer a evolução. As experiências que eu tive com fotografias publicadas na minha vida – no começo dos anos 80, quando eu ganhava também a vida assim, tentando fazer histórias que interessavam para revistas – na maior parte das vezes não funcionavam, porque a edição era péssima, a paginação era péssima, tudo era péssimo. Então ficava tudo uma porcaria. Caía sempre nos clichês. Por que você acha que fotografias jornalísticas ou documentais estão indo parar nos museus? Elas vão parar no museu, mas tem de se perguntar o porquê. Muitas dessas documentações não trazem nada esteticamente. Em termos de viagem emocional, também não trazem nada. Deveriam ser colocadas num acervo particular de imagens para se fazer uma análise antropológica ou sociológica. É uma outra história. Mas há imagens dessas que ultrapassam a primeira utilização. Há imagens que têm uma espécie de força própria. O que não se pode nunca é sistematizar. O homem tem que saber escolher. O critério é essencial. O trabalho da Claudia Andujar com os ianomâmis surgiu como pauta para a revista Realidade, extrapolou o documental, e a atuação dela, livre das amarras da objetividade, a levou para a experiência no campo artístico. Ela está nesta Bienal de São Paulo... A Claudia tem um aspecto político e social muito forte na obra dela, ligado especificamente aos ianomâmis. É uma obra grande, fixada ao redor de um tema, e esse tema se identificou com ela mesma. Mas Claudia está retransformando as suas imagens. A história do jornalismo brasileiro dirá “Claudia é nossa” e a história da arte contemporânea no Brasil dirá “Claudia é nossa”... A Claudia é dela mesma... Não é nossa, ou deles... É da arte e do jornalismo, talvez... Paradoxalmente, a fotografia, que surgiu para reproduzir a realidade – seu aparecimento vai inclusive liberar a pintura dessa obrigação –, é infiel por natureza, e isso lhe dá uma potência ficcional... Seu trabalho caminha mais nesse sentido da construção de novas realidades. É isso o que lhe interessa?

“Tubarão no Deserto” 80 x 240 cm 1996

“Love You” 80 x 240 cm 1996

A fotografia surge para ser uma representação pictórica da realidade, mas eu acho que não existe documentação objetiva, a menos que seja uma documentação policial – talvez essa seja a mais objetiva possível. A fotografia e a documentação acabam hoje em dia se enfiando em questões perigosas nesse aspecto do controle de situações. Agora, eu vejo a fotografia como um pedaço de realidade que eu transformo. A transformação que eu faço é pela conexão de imagens para criar uma nova idéia. Isso é até uma coisa antiga, que vem da colagem, vem do cinema, vem da poesia, de você juntar pedaços de palavras... Uma das exposições que eu fiz agora se chama “Dislecsia” por trazer essa questão. Você junta pedaços da realidade e os transforma em algo rico em termos de informação emocional, de informação pessoal. O fato de você ter morado em tantos lugares pelo mundo influenciou a sua maneira particular de enxergar o Brasil? Acho que não necessariamente. É claro que, no momento em que você fica impregnado de várias outras culturas, você não fica com uma cultura só brasileira. Eu via a cultura brasileira a partir das embaixadas, onde você tem uma espécie de relacionamento com um Brasil ideal, do carnaval, da música, de uma cultura generosa que continua existindo. Em 1969 e 1970, eu comecei a viajar mais pelo Brasil, e aí fui ver o que era o país mesmo. Aí começam os problemas também, de querer reagir a uma série de situações que não mudam. E você fica querendo que mudem. Para mim, uma sociedade tem que ter interligação de culturas e o mundo não está conseguindo ver isso direito. Aqui no Brasil existe essa interligação um pouco maior, mas a gente tem um desnível social que pode destruir tudo. Nos países mais desenvolvidos, apesar da riqueza, os problemas culturais são convites terríveis ao desastre. Você nasceu nas Ilhas Canárias... Nasci nas Ilhas Canárias porque meu pai era diplomata e estava em posto. Aí viemos para cá, daqui fomos para a Argentina, da Argentina para Portugal, de Portugal voltamos para cá, daqui para a Suíça, da Suíça para Nova York... Aí eu já tinha acabado o ensino básico. Mas minha família toda é brasileira. Na enciclopédia Larousse brasileira [no verbete sobre o fotógrafo], saíram “Rio” e “Branco” separados. Ficou assim: “Branco, Miguel da Silva Paranhos do Rio: fotógrafo espanhol especializado em questões sociais”. Quer dizer: não dá, né? O presidente Castelo Branco também estava em “Branco”, não estava em “Castelo Branco”. É uma ignorância terrível. O nome “Rio Branco” vem de José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco [bisavô do fotógrafo], e do pai dele, o Visconde do Rio Branco. Na verdade, o “Rio Branco” não deveria existir como nome, mas o barão adotou e ele permaneceu. Quer dizer, se a Larousse brasileira coloca um erro que não havia na Larousse francesa, a gente está mesmo mal das pernas em relação à educação básica.

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Voltando um pouco ao cinema: fale um pouco do início de sua produção. Em cinema, eu comecei em 1968, como câmera de um filme chamado A Jaula [de Juan Carlos Góes], que participou do Festival JB [Festival do Curta-Metragem Jornal do Brasil]. Foi mais ou menos na mesma época em que cursei a Escola Superior de Desenho Industrial. Fiquei lá uns seis meses e tive contato com pessoas que faziam cinema, como o Affonso Beato, que na época dava aula lá, e o Lauro Escorel. Foram eles que me conectaram com a questão da câmera. A “luz dos trópicos” é um aspecto debatido na fotografia de cinema... Essa procura por uma maneira particular de olharmos para nós mesmos: afinal, a fotografia de um filme deve refletir a geografia, a realidade social... Isso deve sempre ser interpretativo. Você tem sempre que interpretar a realidade. Inclusive, se você ficar elucubrando muito sobre o que é a luz ideal dos trópicos, pode acabar sendo muito esteticista. Para mim, não interessa realmente discutir o que é a luz ideal dos trópicos... Agora, a luz do sertão é uma luz especial, é óbvio. O Luís Carlos Barreto fez a fotografia de Vidas Secas pensando nessa questão. Waldemar Lima conta que, em Deus e o Diabo na Terra do Sol, ele fez a fotografia propositalmente estourada, mas que o laboratório corrigiu. Então, há momentos do filme que ficaram da maneira como ele imaginou e como o Glauber Rocha queria, e há momentos em que não. É, mas o laboratório não tem que decidir nada, ele tem que fazer o que você quer. Se o diretor quer uma coisa, e o diretor de fotografia quer a mesma coisa, o laboratório tem que fazer o que eles querem. O que pode existir, sim, é uma imposição do produtor. Walter Carvalho chama a padronização visual do cinema de “modelo civilizatório da imagem”, ditado pelos americanos. Se bem que, se existe esse padrão, é porque existe a aceitação do outro lado, não? É, nesse caso acredito que há uma imposição, mas não americana, e sim de um modelo publicitário. O modelo americano você vai seguir se estiver fazendo um filme em que o diretor chegue para você e diga “eu quero uma fotografia igual à daquele filme americano”. E aí você faz se quiser. Você tem direito de reagir a uma imposição não pegando o trabalho. Eu ontem vi Babel, do Alejandro González Iñaritu, que é maravilhoso. Ele fez o que bem entendeu. Num filme, ou em qualquer trabalho, não dá para aceitar esse tipo de imposição. É a mesma coisa numa exposição. Se o curador começa a querer fazer da cabeça dele, e você vê que não é a sua cabeça, você esquece o curador e está fora. Eu às vezes falo certas coisas e vai haver pessoas que não vão gostar, porque eu acho que, na questão da arte, não dá para fazer média. Se você consegue um financiamento grande, mas não consegue impor o que você pensa, está se vendendo mal. E o circuito das instituições das artes visuais, não está viciado no Brasil? Não é no Brasil. É uma coisa geral, ligada às artes plásticas mundialmente, e isso vem dos Estados Unidos. Eles são os grandes vilões numa porrada de coisas, inclusive nessa área cultural. Um leilão da Sotheby’s de arte contemporânea, hoje, é um Walt Disney perverso e incompetente. Incompetente porque o Walt Disney era um puta produtor de desenho animado. Hoje em dia, tem umas porcarias com uma especulação quase imobiliária em cima. É a decadência do império. É realmente a decadência do império. A gente tem que ter consciência disso e lutar contra. Agora, não é lutar que nem o [Hugo] Chávez, fazendo demagogia. É uma luta inteligente. Não adianta querer entrar em confronto com um país que tem um poder de destruição gigantesco, e que está usando esse poder de uma forma absolutamente desastrosa, perversa. Como você analisa esse crescimento da fotografia no mercado de arte nos últimos cinco anos? Essa valorização tem seus prós e contras. Porque uma boa parte dessa valorização está relacionada a “artistas” – entre aspas – que usam a foto-

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grafia de uma maneira conceitual, e muitas vezes esses caras não são realmente artistas. Eles têm uma galeria potente por trás, uma idéia básica interessante, sabem fazer um discurso. O curador também faz um discurso, e aí eles são colocados nas bienais, o que lhes dá uma espécie de aval. Então, virou um grande comércio mesmo. A valorização da fotografia nem é muito real. É bom que haja um comércio disso, mas você tem que ver o que é verdadeiro e o que é falso. Há essa valorização dos artistas que usam a fotografia para registrar performances, mas também existe a valorização da “fotografiafotografia”, não? O problema é que o mercado de arte valoriza mais uma Cindy Sherman e menos um Brassaï, um Weston, esses caras que fizeram “fotografia-fotografia” e tinham uma estética pessoal importantíssima. Cindy Sherman não passa de uma travesti que se fotografa de uma maneira completamente careta, sem o menor requinte visual. O que ela é? É uma performer. Então, pô, pelo amor de Deus, né? Vale uma baba, entendeu? Ou então um Andres Serrano, que faz uma fotografia publicitária sem nenhum aporte estético. O conceito dele, qual é? É um conceito de publicidade que usa a religião, o sexo e a morte para se promover. Não existe ali uma reflexão. Eu acho isso sem ética alguma. Hoje vemos que qualquer tipo de criação humana, com qualquer técnica ou suporte, pode ser lido ou interpretado como arte... Mas a técnica tem que importar. Não é todo mundo que tem um cérebro e um olho conectados e sabe usar esse potencial. Quando uma pessoa sabe pintar, ela sabe pintar, é capaz de fazer uma tela. Tem que saber as técnicas. Eu acho uma picaretagem gigantesca a pessoa achar que só uma idéia basta para fazer um bom trabalho. Sobretudo, porque a maioria das idéias que eu vejo por aí se esfarelam. Você vê uma vez e esquece. Mas também existe um outro lado, que é o da “fotografia-fotografia”, de quem acha que tem que ficar só na questão das câmeras, na questão técnica. Eu, como acho que pertenço aos dois lados e a mais alguns, não tenho esse tipo de problemática. No posfácio do livro Miguel Rio Branco, Lélia e Sebastião Salgado dizem que você “usa a cor como um pintor e a luz como quem faz cinema”. Talvez seja o encontro dessas múltiplas linguagens o que dê à sua fotografia uma natureza única? É, eu acho que é uma boa frase, mas essas boas frases não dizem tudo. Agora, sobre esse livro: eu o considero mais um catálogo. Eu tentei fazer esse e vários outros livros com o Michael Hoffman, da Aperture, e não deu certo, porque ele queria fazer todo o livro junto... E acabou não saindo. Depois publiquei a obra aqui, acho que está legal, mas meus melhores livros são Silent Book e Entre os Olhos, o Deserto. Mas a sua fotografia é resultado desse somatório de linguagens? Acho que é cinema, pintura e música. A música tem uma corrente, ela vai criando um envolvimento emocional. Não fica aquela questão da imagem única. Quando várias linguagens se juntam, para mim é mais interessante. Você liga a fotografia a outras experiências sensoriais, e essas junções vão criando um discurso... É assim que eu consigo alcançar mais idéias, sem ficar naquela de fazer uma coisa só. A imagem única para mim não vale nada... Aquela que precisa de alguém dizendo o que é, por que você fez... Se você precisa de alguém para dizer o que você está fazendo com aquela imagem, para mim não vale nada. Eu sou um artista audiovisual. As pessoas têm mania de “compartimentar” a criação, e deixar tudo fragmentado e rotulado para pôr na prateleira... É, fica cada um no seu cantinho. Isso aí é mente do Estado burocrático, da sistematização. No Noorderlicht [festival holandês de fotografia], fiz essa exposição chamada “Dislecsia”, e fiquei chocado em ver que todos os autores [do festival] entram para um livro, cada um democraticamente colocado

“Tubarão” 120 x 120 cm 1996

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“Veludo Azul” 120 x 360 cm 1997

“Frisson L'Hérisson” 160 x 80 cm 1993

em quatro páginas. Eu já participei duas vezes de um negócio desses, e aí percebi que eles fazem isso sistematicamente. Vira uma coisa entediante, burocrática, sem coragem de assumir escolhas próprias. O curador tem que ter coragem de assumir a coisa própria, não pode ficar fazendo só política – ou fazendo média, que é o que está acontecendo demais. Qual é sua ligação com Sebastião Salgado? Eu conheci o Sebastião quando ele ainda estava na Magnum. Eu não era membro ainda e a gente se encontrou, acho que em 1980, ou em 1981, por aí. Ficamos amigos. Ele foi evoluindo em outra direção e, hoje em dia, além de seus projetos fotográficos, voltou-se para a questão da ecologia, do reflorestamento. Ele sempre foi um ativista, engajado. É um trabalhador nato, trabalha pra caralho. E com Mario Cravo Neto? Conheci o Mario Cravo quando cheguei em Nova York, mais ou menos em 1970. Ele tinha um trabalho em preto-e-branco e fazia esculturas. A fotografia dele tinha uma coisa escura que me fascinava muito. Diria até que ele teve uma certa influência no meu trabalho, naquela época. O Mario tem uma coisa inquieta... Tem uma obra bem vasta, com vários tipos de ação... O Sebastião tem uma obra importante de uma forma. O Mario, de outra. Talvez Mario e eu estejamos mais próximos, no âmbito da experiência criativa. Mario esteve aqui na semana passada [21/09], lançando exposição. Vocês se viram? Eu estive com ele. Não vi a exposição dele ainda, porque estava armando a minha. Eu fui casado com a irmã dele. Enfim, é uma pessoa da família. É óbvio que a gente se distanciou, porque ele está lá na Bahia e eu aqui. O Mario também faz junções de imagens antigas com atuais e propõe novas leituras... Vocês já conversaram sobre isso? É, acho que isso é porque a gente está ficando velho... Mas nunca falamos sobre isso. É o Zeitgeist, o “espírito do tempo” [pensamentos em comum de pessoas que vivem na mesma época em lugares diferentes]? Vamos ficando mais sensatos, essas coisas acabam se estabelecendo

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naturalmente. O Sebastião é uma exceção, ele continua aí, pegando tudo que é avião, fotografando tudo que é canto do mundo. O Mario não tem mais essa vontade porque tem um trabalho mais interiorizado. Eu também tenho um trabalho mais interiorizado. Nisso a gente tem uma conexão. Numa entrevista recente à revista Trip, Mario diz que vocês se gostam muito, apesar de você ser “complicado, de difícil acesso e um pouco agressivo”. Como você o descreveria? Eu o descreveria da mesma maneira [risos]. Ele também é fechado, também é de difícil acesso – apesar de às vezes não parecer –, e pode ser muito agressivo também. Só que, por princípio, eu sou mais agressivo do que ele [risos]. Eu acho que tenho uma postura mais revoltada com relação à sociedade. Talvez pelo fato de ter vivido em sociedades diferentes, eu sempre acho que as coisas poderiam ser melhores. Outro dia eu estava em Paris, e um cara árabe, que devia ter uns 22, 23 anos, estava insultando as pessoas dentro do metrô de uma forma impressionante... Quer dizer, ele talvez nem tenha consciência, mas isso é um ranço cultural de séculos atrás. Os árabes já invadiram a Europa há muito tempo. Aqui, a gente tem outros ranços. Se o governo tivesse olhado para a questão social e para a educação no governo Lula... Ou muito antes, claro, mas o Lula prometeu mudanças nessas questões e nada mudou. Ter consciência dessas coisas e se sentir impotente... Então, às vezes, eu falo certas coisas que não deveria falar. Mas eu falo. Agora, o Mario é uma pessoa que tem um lado lírico, menos duro... Na realidade, a diferença é essa. Talvez ele seja mais meigo, mas ele pode ser agressivo também. O que tem achado das políticas para as artes visuais e do uso das leis de incentivo? Acho que as leis de incentivo estão apenas sendo usadas pelas instituições para não pagar imposto de renda. Acho muito esquisito: quando o artista faz uma exposição, todo mundo ganha dinheiro ao redor, menos ele. Continua-se achando que o artista deve aceitar [expor mesmo sem ganhar] porque é importante para a sua carreira. Quem ga-

nha mais dinheiro é sempre o cara que faz a produção. Essas leis acabam sendo um perigo, porque começa-se a criar um monte de sistemas que passam a usufruir disso, e não é o artista quem usufrui. Mas também não é todo artista que sabe gerir. Eu mesmo não sei gerir um projeto sozinho. Só que quem tem que ganhar mais é o artista, porque, sem o artista, não tem porra nenhuma. Aliás, tem sim: o que se faz hoje em dia, que é criar falsos artistas. Está trabalhando agora em algum novo projeto? Agora do que estou precisando é pensar na vida, plantar árvore... Uma coisa menos ligada à tecnologia. A tecnologia vai criando uma dependência – você está sempre tentando entender o manual. Antes, a maior parte dos artistas da máquina, tanto em cinema quanto em fotografia, tinha um equipamento simples e o negócio rodava. A linguagem evolui a partir do equipamento, tem que ser uma continuidade dele mesmo. Hoje tudo muda tão rápido... Acho essa falta de durabilidade extremamente corrupta, perversa. Parece que você tem um cuidado extremado com suas ampliações, todas feitas na França... É, são ampliações em Cibachrome, porque é um processo que dá maior durabilidade. Agora, isso vem mudando: a qualidade do jato de tinta está melhor. Reza a lenda que, durante uma exposição sua, você, não gostando do resultado de uma ampliação, deu um soco no vidro... Isso não é verdade... É lenda mesmo? É história mal contada. E como ela seria bem contada? Não vou dizer! Deixa a lenda rolar... [risos] Miguel, obrigada pela entrevista! [risos]

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“Circo de Fogo” 120 x 120 cm 1992/93

“O Rabo do Leão” 100 x 100 cm 1992/93

“O Grito” 100 x 100 cm 1992/93

Imagens de cavalos, uma leoa, um ouriço e tubarões fotografados pelo artista em um aquário de San Diego, Califórnia, compõem a mostra “Por Baixo dos Tubarões”, de Miguel Rio Branco, em cartaz na Silvia Cintra Galeria de Arte (Rua Teixeira de Melo, 53 – lj. D, Ipanema, Rio de Janeiro, tel. 21 2521-0426) até 28 de outubro

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