eu, a rollei e os filmes no bolso

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EU, A ROLLEI

EOSFILMESNOBOLSO

No último semestre, Vicente de Mello lançou quatro exposições e um livro que compila 15 anos de sua produção em preto-e-branco. Depois de acompanhar o fotógrafo em temporada por São Paulo, quando inaugurou a mostra “moiré.galáctica.bestiário”, REVISTA FS publica seus dois trabalhos em cor, o work in progress “Vermelhos Telúricos” e o inédito “O Cinematógrafo” POR ÉRICA RODRIGUES

No alto, "A palavra fora da pedra no ar". Acima, "Todo mar choveu em um dia". Da série "O Cinematógrafo" 25 FS


V

"Florianópolis – Santa Catarina – Brasil". Da série "Vermelhos Telúricos"

"Centre Pompidou – Paris – França". Da série "Vermelhos Telúricos"

ila Madalena, São Paulo. Entre os muitos desenhos delineados com mínimas continhas de subtração, o ateliê do artista Paulo Climachauska guarda uma grande fotografia vermelha. Dá uma certa nostalgia – mesmo para as gerações pós-80, que talvez não saibam o que é um carrossel de slide – olhar para aquela foto de Vicente de Mello[www.vicentedemello.com], uma reprodução 1,24m x 1,24m de um monumento turístico que todos temos plasmados em algum ponto da memória. Diante dela, é como se parássemos de girar os ektachromes, em suas moldurinhas de bordas arredondadas, para contemplar a própria lembrança, simbolizada pela catedral grande e imutável de Brasília. O souvenir, igual àquele que o pai do fotógrafo comprava e projetava junto com os slides que ele mesmo fazia durante as viagens, estava agora ali, acelerado na cor, alterado em seu tempo e espaço. Era 25 de janeiro, e o almoço no ateliê de Paulo Climachauska celebrava o lançamento da exposição do amigo Vicente de Mello na Pinacoteca do Estado de São Paulo. Aos 39 anos, o fotógrafo está num momento profissional bastante favorável. No último semestre, expôs no Oi Futuro [www.oifuturo.org.br] e na Galeria Artur Fidalgo [www.arturfidalgo.com.br], no Rio de Janeiro, e suas séries "Moiré", "Galáctica" e "Bestiário" podem ser vistas simultaneamente em São Paulo e em Paris, na Maison Européene de la Photographie [www.mep fr.org]. Tudo acompanhado do lançamento do livro Áspera Imagem, que compila 15 anos de sua produção em preto-e-branco. Paulistano radicado no Rio desde criança, Vicente é sujeito de muitos amigos – parece ter aquela capacidade inata de atrair pessoas ao redor de suas idéias. Especialmente para celebrar a exposição, vieram do Rio o colecionador Gilberto Chateaubriand, o curador Alberto Saraiva e o produtor cultural Mauro Saraiva. Também estavam presentes os curadores Katia Canton, Ivo Mesquita e Rejane Cintrão, o artista Renato Dib e o colecionador Guilherme Leite Ribeiro, que puderam partilhar da comida feita por Iraklis, misto de cientista e cozinheiro, que, ao final do almoço, distribuiu seu cartão de visita: "Iraklis, o Grego. Coma como Rei e paga como plebeu [sic]. Cozinha típica grega. Uma idéia inteligente e de bom gosto". A foto na parede do ateliê integra a série "Vermelhos Telúricos", exposta no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio, em 2001. As imagens, pastiches postais do Grande Canal de Veneza, na Itália, das geleiras de San Raphael, no Chile, do Centre Pompidou, na França, ou da praia em Florianópolis, foram feitas em preto-e-branco com uma Rolleiflex, impressas em magenta e emolduradas de maneira semelhante a um slide. "Telúrico é tudo o que transforma o que está estagnado. Diz respeito às transformações da Terra, como erosões, enchentes, vendavais que mudam

"Geleira de San Raphael – Chile". Da série "Vermelhos Telúricos"

"Grand Canal – Veneza – Itália". Da série "Vermelhos Telúricos" "Catedral – Brasília – Brasil". Da série "Vermelhos Telúricos"

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"Atlântico". Da série "O Cinematógrafo"

o estado natural das coisas", explica o artista, como que querendo explicar a si próprio. Isso porque quem observava Vicente na Pinacoteca, distribuindo autógrafos em exemplares de seu livro – para o pessoal de fora do Rio, ele costuma colocar junto às palavras a imagem do Cristo Redentor, feita com carimbo de almofadinha de tinta azul –, não poderia imaginar que aquela figura falante e agitada é, na verdade, um sujeito absurdamente introspectivo. Mas bastava caminhar com atenção entre suas imagens para sacar que sua fotografia resulta de experiências muito solitárias. A parca presença do elemento humano pode ser a primeira pista, embora os vestígios de situações íntimas estejam ali, levados ao limite da compreensão visual, quase abstratos. É um diário íntimo? "É um diário, mas velado, como disse [o crítico] Alexandre Melo. Porque o que aconteceu, de fato, ninguém vê. O íntimo não está nas fotos." Eu, a Rollei e os filmes no bolso – A câmera é seu bloco de anotações. Mas, diferentemente do fotógrafo que se volta para a realidade de maneira objetiva e sai à caça de imagens que justifiquem uma idéia preliminar, Vicente fotografa situações de maneira aleatória e constante, criando um banco de reminiscências. "Saio eu, minha Rollei e vários filmes no bolso para dar um rolê. Aí, as imagens vão aparecendo." Só depois, sobre a mesa do estúdio, na edição, as imagens vão revelando diferentes vocações. FS 28

"A sombra aberta dos lírios". Da série "O Cinematógrafo"

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Como um antifotógrafo, ele subverte o estabelecido como “fotografável”. O lance não está no fato, mas na sobra, no pequeno, no ínfimo, no resquício. Fotografar passa a ser uma experiência residual e transformadora. "Eu não tenho essa fissura do fotógrafo que quer clicar tudo, a criançada correndo na praça, o passarinho na árvore. Não que eu negue isso, mas não me interessam as imagens cansadas. Eu quero o que está por baixo do aparente." Se fotografias podem ser afáveis e reconfortantes, em Vicente elas são incômodas, ou, como observou Alberto Saraiva no texto que deu título ao livro do fotógrafo, são "áspera imagem" – um exercício de "re-velar-trans-formar". Eu, os coroas e a Kátia Garelli – "Na verdade, sempre fui muito solitário." As palavras confirmam as imagens. Filho temporão de uma família de quatro irmãos, aos sete anos ele foi morar na praia de Itacoatiara, em Niterói, depois que o pai se aposentou e os irmãos maiores saíram de casa. "Éramos eu, os coroas, os cachorros e a motocicleta chamada Kátia Garelli." Como não era de surfe, ia à praia e ficava olhando tudo à sua volta. Depois, voltava para casa com a motinha. "Essa solidão não me traumatizou, mas criou uma situação muito particular. Eu imprimo isso nas imagens que faço." Aos 10, ele pegava o ônibus sozinho para ir à escola, em percursos que duravam uma hora. "Era um filme que eu assistia pela janela na ida, e outro na volta”, já dando as pistas de um hábito que também se tornaria extremamente presente em seu trabalho: a imagem cinematográfica. "Assistia a todos os filmes da Sessão da Tarde." Para o menino, na década de 80, "era a coisa mais sensacional do mundo. Tinha umas coisas inacreditáveis, Fred Astaire, umas fábulas maravilhosas – não era que nem hoje". A televisão pequenininha com bombril na antena era uma janela libertária, e as imagens dos filmes se tornariam o filtro pelo qual passariam todas as cenas que ele

receberia do mundo e que, mais tarde, influenciariam o processo de construção das imagens que ele devolveria para o mundo. Subtraída a ponte é finita a vista – Vila Leopoldina, São Paulo erma, feriado prolongado. No dia seguinte à exposição, Vicente fala do seu trabalho inédito "O Cinematógrafo", experiência radicalizada desse seu cinema de fotografias. "Sabe aquelas imagens estáticas que aparecem no meio do filme como se fossem vírgulas entre uma ação e outra? Todo filme tem isso. É um gap entre o que aconteceu e o que vai acontecer. Isso sempre me intrigou." A série "O Cinematógrafo" – que faz sua primeira exibição nestas páginas – reúne sua produção em cor captada desde 2001 e agora editada em trípticos, numa referência ao cinema Polyvision do diretor francês Abel Gance, aplicado no clássico Napoléon, de 1925. Gance filmava a mesma cena com três câmeras, e as imagens eram projetadas em três telas separadas e simultaneamente. Muito criticado à época, só mais tarde o mundo entendeu seu legado, e sua obra transformou-se em marco do cinema. "Assisti ao filme quando tinha 15 anos. Para mim, Abel Gance continua extremamente contemporâneo." Assim como no cinema, os títulos das obras são de vital importância para Vicente de Mello. Em "O Cinematógrafo", as imagens ganham palavras que se interpõem, numa espécie de haicai, ao criarem múltiplas conexões entre si, como em "subtraída a ponte é finita a vista". Ações captadas em tempos diversos tornam-se simultâneas, e a tensão da imagem única reordena-se em pequenas narrativas oníricas, intensamente cerebrais. Vicente de Mello cristaliza cinema em fotografia.

Foto: Dani Dacorso

"Tecido roxo de estante marcha". Da série "O Cinematógrafo"

Abaixo, o autor Vicente Mello: fotografar passa a ser uma experiência residual e transformadora

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