Ary dos Santos

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Ary dos Santos

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1937 ~ 1984

“E ei-lo poeta todo mãos abertas para apanhar tudo o que a vida dá.” Natália Correia


Poeta português, natural de Lisboa. Saiu de casa aos 16 anos, exercendo várias actividades como meio de subsistência. Revelando-se como poeta com a obra Asas (1953), publicou, em 1963, o livro Liturgia de Sangue, a que se seguiram Azul Existe, Tempo de Lenda das Amendoeiras e Adereços, Endereços (todos de 1965). Em 1969, colaborou na campanha da Comissão Democrática Eleitoral e, mais tarde, filiou-se no Partido Comunista Português, tendo tido uma intervenção politizada, mas muito pessoal. Ficou sobretudo conhecido como autor de poemas para canções do Concurso da Canção da RTP. Os seus temas «Desfolhada» e «Tourada» saíram ambos vencedores. Em 1971, foi atribuído a «Meu Amor, Meu Amor», também da sua autoria, o grande prémio da Canção Discográfica. Declamador, gravou os discos «Ary Por Si Próprio» (1970), «Poesia Política» (1974), «Bandeira Comunista» (1977) e «Ary por Ary» (1979), entre outros. Publicou ainda os volumes Insofrimento In Sofrimento (1969), Fotos-Grafias (1971), Resumo (1973), As Portas que Abril Abriu (1975), O Sangue das Palavras (1979) e 20 Anos de Poesia (1983). Em 1994, foi editada Obra Poética, uma colectânea das suas obras. Personalidade entusiasta e irreverente, muitos dos seus textos têm um forte tom satírico e até panfletário, anticonvencional, contribuindo decisivamente para a abertura de novas possibilidades para a música popular portuguesa. Deixou cerca de 600 textos destinados a canções.


Auto-Retrato Poeta é certo mas de cetineta fulgurante de mais para alguns olhos bom artesão na arte da proveta narciso de lombardas e repolhos.

Cozido à portuguesa mais as carnes suculentas da auto-importância com toicinho e talento ambas partes do meu caldo entornado na infância.

Nos olhos uma folha de hortelã Que é verde como a esperança que amanhã amanheça de vez a desventura.

Poeta de combate

disparate

palavrão de machão no escaparate porém morrendo aos poucos de ternura.

José Carlos Ary dos Santos, Fotos-Grafias, 1970. Obra Poética

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No dizer de José Jorge Letria, Ary dos Santos 

foi um homem do excesso e da transgressão

foi um poeta que esteve presente nas canções, na publicidade, na política, que escrevia para revista, mas acima de tudo um grande poeta que usou as palavras de modo único e inimitável

foi um homem que teve sempre uma atitude desmedida, de coragem, força, generosidade e solidariedade, cuja obra poética é muitas vezes abafada pelas letras de canções que escreveu.

Nos 25 anos da morte de Ary dos Santos, galeria da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), em Lisboa, na exposição "Ary dos Santos - A força da poesia".


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Hoje, à distância de décadas, poderíamos reservar para ele as palavras de todos aqueles que, durante 50 anos, lutaram contra o obscurantismo em nome da liberdade. Maria Barroso em “Rua da Saudade – Livreto – Testemunhos”


O POEMA ORIGINAL

Original é o poeta que se origina a si mesmo que numa sílaba é seta noutro pasmo ou cataclismo o que se atira ao poema como se fosse um abismo e faz um filho às palavras na cama do romantismo. Original é o poeta capaz de escrever um sismo.

Original é o poeta

Original é o poeta

expulso do paraíso

de origem clara e comum

por saber compreender

que sendo de toda a parte

o que é o choro e o riso;

não é de lugar algum.

aquele que desce à rua

O que gera a própria arte

bebe copos quebra nozes

na força de ser só um

e ferra em quem tem juízo

por todos a quem a sorte faz

versos brancos e ferozes.

devorar um jejum.

Original é o poeta

Original é o poeta

que é gato de sete vozes.

que de todos for só um.

Original é o poeta que chegar ao despudor de escrever todos os dias como se fizesse amor. Esse que despe a poesia como se fosse uma mulher e nela emprenha a alegria de ser um homem qualquer.

José Carlos Ary dos Santos, Resumo. Obra Poética


CANTIGA DE AMIGO imagem: net

Nem um poema nem um verso nem um canto tudo raso de ausência tudo liso de espanto e nem Camões Virgílio Shelley Dante o meu amigo está longe e a distância é bastante. Nem um som nem um grito nem um ai tudo calado todos sem mãe nem pai Ah não Camões Virgílio Shelley Dante! o meu amigo está longe e a tristeza é bastante. Nada a não ser este silêncio tenso que faz do amor sozinho o amor imenso. Calai Camões Virgílio Shelley Dante: o meu amigo está longe e a saudade é bastante! Ary dos Santos, Resumo. Obra Poética


[Ary dos Santos] morava na Rua da Saudade, na encosta do Castelo de São Jorge, rés-do-chão de um prédio onde, em épocas distintas, havia sido residência de José Rodrigues Miguéis, o imenso romancista deploravelmente esquecido; de Alexandre O‟Neill e de Fernando Tordo. Eu habitava mais abaixo, na Rua Norberto de Araújo, húmida e estreita, encostada à antiga muralha fernandina. Baptista Bastos, Jornal de Negócios

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Vista da casa onde morou Ary dos Santos. Imagens – aqui.


ESTRELA DA TARDE

Era a tarde mais longa de todas as tardes Que me acontecia Eu esperava por ti, tu não vinhas Tardavas e eu entardecia Era tarde, tão tarde, que a boca, Tardando-lhe o beijo, mordia Quando à boca da noite surgiste Na tarde tal rosa tardia Quando nós nos olhamos tardamos no beijo Que a boca pedia E na tarde ficámos unidos ardendo na luz Que morria Em nós dois nessa tarde em que tanto Tardaste o sol amanhecia Era tarde de mais para haver outra noite Para haver outro dia. Meu amor, meu amor Minha estrela da tarde Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde Meu amor, meu amor Eu não tenho a certeza Se tu és a alegria ou se és a tristeza. Meu amor, meu amor Eu não tenho a certeza.


Foi a mais bela de todas as noites Que me aconteceram Dos nocturnos silêncios que à noite De aromas e beijos se encheram Foi a noite em que os nossos dois Corpos cansados não adormeceram E da estrada mais linda da noite uma festa De fogo fizeram. Foram noites e noites que numa só noite Nos aconteceram Era o dia da noite de todas as noites Que nos precederam Era a noite mais clara daqueles Que à noite amando se deram E entre os braços da noite de tanto Se amarem, vivendo morreram. Eu não sei, meu amor, se o que digo É ternura, se é riso, se é pranto É por ti que adormeço e acordo E acordado recordo no canto Essa tarde em que tarde surgiste Dum triste e profundo recanto Essa noite em que cedo nasceste despida De mágoa e de espanto. Meu amor, nunca é tarde nem cedo Para quem se quer tanto. José Carlos Ary dos Santos

 Voz de Carlos do Carmo - RTP – Festival da Canção 1976


Foi então que Abril abriu as portas da claridade e a nossa gente invadiu a sua própria cidade. Disse a primeira palavra na madrugada serena um poeta que cantava

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o povo é quem mais ordena. […]

As Portas que Abril abriu

Foi esta força viril de antes de quebrar que torcer que em vinte e cinco de Abril

Era uma vez um país onde entre o mar e a guerra vivia o mais infeliz dos povos à beira-terra. […]

fez Portugal renascer. E em Lisboa capital dos novos mestres de Aviz o povo de Portugal deu o poder a quem quis. […] Lisboa, Julho-Agosto de 1975 José Carlos Ary dos Santos, Obra Poética

 Voz de Ary dos Santos  Texto integral


NONA SINFONIA

É por dentro de um homem que se ouve o tom mais alto que tiver a vida a glória de cantar que tudo move a força de viver enraivecida. Num palácio de sons erguem-se as traves que seguram o tecto da alegria pedras que são ao mesmo tempo as aves mais livres que voaram na poesia. Para o alto se voltam as volutas hieráticas sagradas impolutas dos sons que surgem rangem e se somem. Mas de baixo é que irrompem absolutas as humanas palavras resolutas. Por deus não basta. É mais preciso o Homem. Ary dos Santos, Sonetos de Amor e Luta. Obra Poética.

Luís Costa, da turma D, do 11.º ano, respondendo a um repto lançado na aula de português, seleccionou “Nona Sinfonia”, de Ary dos Santos, porque o Poeta “Enaltece nestes versos o valor do interior do Homem, o sentimento e a palavra como fluxos de uma revolução, força interior. Algo monumental é salientado, o fulgor da vida associado à alegria e ao prazer de ser-se. É uma revolução, forte e vivida, é a sinfonia do Homem.” E esta foi a génese do presente caderno digital.


CAVALO À SOLTA

Minha laranja amarga e doce meu poema feito de gomos de saudade minha pena pesada e leve secreta e pura minha passagem para o breve breve instante da loucura. Minha ousadia meu galope minha rédea meu potro doido minha chama minha réstia de luz intensa de voz aberta minha denúncia do que pensa do que sente a gente certa.

Minha alegria minha amargura

Em ti respiro

minha coragem de correr contra a ternura.

em ti eu provo por ti consigo

Por isso digo

esta força que de novo

canção castigo

em ti persigo

amêndoa travo corpo alma amante amigo

em ti percorro

por isso canto

cavalo à solta

por isso digo

pela margem do teu corpo.

alpendre casa cama arca do meu trigo. Meu desafio minha aventura minha coragem de correr contra a ternura. José Carlos Ary dos Santos


Franz Marc, Cheval Bleu II, 1911

 Voz de Fernando Tordo – Festival RTP - 1971


Paul Klee, Sauteur, 1930

 Na voz de Carlos do Carmo  Na voz de Adélia Pedrosa


OS PUTOS

Uma bola de pano, num charco Um sorriso traquina, um chuto Na ladeira a correr, um arco O céu no olhar, dum puto. Uma fisga que atira a esperança Um pardal de calções, astuto E a força de ser criança Contra a força dum chui, que é bruto. Parecem bandos de pardais à solta Os putos, os putos São como índios, capitães da malta Os putos, os putos Mas quando a tarde cai Vai-se a revolta Sentam-se ao colo do pai É a ternura que volta E ouvem-no a falar do homem novo São os putos deste povo A aprenderem a ser homens. As caricas brilhando na mão A vontade que salta ao eixo Um puto que diz que não Se a porrada vier não deixo Um berlinde abafado na escola Um pião na algibeira sem cor Um puto que pede esmola Porque a fome lhe abafa a dor. José Carlos Ary dos Santos


Dali, Cristo de S達o Jo達o da Cruz, 1951


KYRIE

Em nome dos que choram, Dos que sofrem, Dos que acendem na noite o facho da revolta E que de noite morrem, Com a esperança nos olhos e arames em volta. Em nome dos que sonham com palavras De amor e paz que nunca foram ditas, Em nome dos que rezam em silêncio E falam em silêncio E estendem em silêncio as duas mãos aflitas. Em nome dos que pedem em segredo A esmola que os humilha e os destrói E devoram as lágrimas e e o medo Quando a fome lhes dói. Em nome dos que dormem ao relento Numa cama de chuva com lençóis de vento O sono da miséria, terrível e profundo. Em nome dos teus filhos que esqueceste. Filho de Deus que nunca mais nasceste, Volta outra vez ao mundo! Ary dos Santos, Kyrie, Obra Poética

E sonham com palavras De amor e paz que nunca foram ditas, Em nome dos que rezam em silêncio E falam em silêncio E estendem em silêncio as duas mãos


Chagall ~ mère et enfant au bouquet

À saudade de minha Mãe, os meus primeiros versos, que nasceram da infinita dor de a ter perdido

Dedicatória de José Carlos Ary dos Santos em Asas, publicado em 1952, tendo o Poeta 15 anos.


INFÂNCIA

Não minha mãe. Não era ali que estava. Talvez noutra gaveta. Noutro quarto. Talvez dentro de mim que me apertava contra as paredes do teu sexo-parto.

A porta que entretanto atravessava talhada no teu ventre de alabastro abria-se fechava dilatava. Agora sei: dali nunca mais parto.

Não minha mãe. Também não era a sala nem nenhum dos retratos de família nem a brisa que a vida já não tem.

Talvez a tua voz que ainda me fala… … o meu berço enfeitado a buganvília… Tenho tantas saudades, minha mãe!

José Carlos Ary dos Santos, em Obra Poética


Poeta Castrado, Não!

Serei tudo o que disserem por inveja ou negação: cabeçudo dromedário fogueira de exibição teorema corolário foto: net

poema de mão em mão lãzudo publicitário malabarista cabrão.

Os que entendem como eu

Serei tudo o que disserem:

as linhas com que me escrevo

Poeta castrado não!

reconhecem o que é meu em tudo quanto lhes devo: ternura como já disse sempre que faço um poema; saudade que se partisse me alagaria de pena; e também uma alegria uma coragem serena em renegada poesia quando ela nos envenena.


Os que entendem como eu a força que tem um verso reconhecem o que é seu quando lhes mostro o reverso: De fome já não se fala - é tão vulgar que nos cansa mas que dizer de uma bala num esqueleto de criança? Do frio não reza a história - a morte é branda e letal mas que dizer da memória de uma bomba de napalm?

- Ah não me venham dizer

E o resto que pode ser

que é fonética a poesia !

o poema dia a dia?

Serei tudo o que disserem

- um bisturi a crescer

por temor ou negação:

nas coxas de uma judia;

Demagogo mau profeta

um filho que vai nascer parido por asfixia?!

falso médico ladrão prostituta proxeneta espoleta televisão. Poeta castrado, não!

José Carlos Ary dos Santos, Resumo. Obra Poética

 POETA CASTRADO


Pode-se dizer terem sido poucos os poetas a se auto-definirem tão bem como o fez aqui Ary dos Santos. Esse poema é não só uma declaração do que para o poeta representava ser poeta, mas também quase que uma auto-confissão de como ele era e do que dele poder-se-ia esperar enquanto ser humano. Na primeira estrofe, Ary dos Santos começa já de forma direta – uma das suas características pessoais mais marcantes – e por vezes mesmo agressiva – a relatar que para ele pouco importa o que os outros dele

venham a dizer, desde que isso não afete a sua

liberdade de dizer o que pensa. Reconhecendo mesmo alguns dos aspectos que o caracterizavam e que muitos criticavam nele (“cabeçudo”, exibido e outros), e até mesmo reconhecendo-se como publicitário de profissão, Ary dos Santos proclama que tudo isso pode-se dele afirmar, mas não o fato de que por alguma razão tenha visto a sua liberdade de expressão “castrada”.Continua compactuando com os que o “entendem” e “reconhecem”, aqueles que sabem ver nele tanto o lado terno, o lado sentimental com que expressa saudade e alegria, mas também a necessidade de ser e negar tudo isso para se cumprir uma função enquanto poeta revolucionário, a de expôr a verdade, por mais dura que seja. Passa, então, o poeta, a listar o que deveria estar num poema que expusesse a verdade, mas que se encontrava ausente na grande maioria da poesia que se fazia então. E Ary dos Santos faz suas afirmações de uma forma direta, procurando a um só tempo chocar e motivar a procura da verdade em seus leitores, em essência um poeta revolucionário. Assim sendo, afirma que se esquece da fome, mas será que se pode esquecer “de uma bala num esqueleto de criança”? Procura-se não falar da dureza da morte, mesmo quando há tanto horror em volta – lembremos que este poema foi escrito não só ainda em meio das guerras coloniais na África, mas também da Guerra do Vietnã. O poeta passa das guerras ao seu redor para os horrores do holocausto na Segunda Guerra Mundial, convergindo para uma crítica aos que procuram apagar da memória o acontecido e acabam por entrar em novos conflitos do mesmo gênero. Antes de voltar a reiterar-se como um poeta de livre expressão, Ary dos Santos termina sua descrição do que deve relatar um poeta revolucionário, criticando aos poetas puristas com um verso a um só tempo coloquial e acadêmico: “– Ah não me venham dizer que é fonética a poesia!”. Para concluir sua auto-definição como poeta, Ary dos Santos volta a reconhecer as críticas que fazem a ele, seja enquanto homossexual (“prostituta”, “proxeneta”), quer seja pelo fato da sua popularidade adquirida sobretudo graças às inúmeras participações nos Festivais RTP

(“demagogo”, “televisão”). E por fim, novamente reforça sua posição de ser um pouco de tudo o que dizem, mas nunca um poeta longe da verdade que lhe cabe dizer como poeta revolucionário. Mauro Neves Jr., Bulletin of the Faculty of Foreign Studies, Sophia University, No.40�2005, Ary dos Santos: Poeta da Revolução, Poeta do Fado


Meu amor, meu amor

Meu amor meu amor meu corpo em movimento minha voz à procura do seu próprio lamento. Meu limão de amargura meu punhal a escrever nós parámos o tempo não sabemos morrer e nascemos nascemos do nosso entristecer. Meu amor meu amor meu nó e sofrimento minha mó de ternura minha nau de tormento este mar não tem cura este céu não tem ar nós parámos o vento não sabemos nadar e morremos morremos devagar devagar.

Ary dos Santos, As Palavras das Cantigas (organização, coordenação e notas de Ruben de Carvalho)

 Voz de Amália


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 A cidade é um chão de palavras pisadas


1.

A cidade é um chão de palavras pisadas a palavra criança a palavra segredo. A cidade é um céu de palavras paradas a palavra distância e a palavra medo. A cidade é um saco um pulmão que respira pela palavra água pela palavra brisa A cidade é um poro um corpo que transpira pela palavra sangue pela palavra ira. A cidade tem praças de palavras abertas como estátuas mandadas apear. A cidade tem ruas de palavras desertas como jardins mandados arrancar. A palavra sarcasmo é uma rosa rubra. A palavra silêncio é uma rosa chá. Não há céu de palavras que a cidade não cubra não há rua de sons que a palavra não corra à procura da sombra duma luz que não há.

José Carlos Ary dos Santos, In Sofrimento. Obra Poética


Adriano ~ caricatura de Roberto Machado


MEMÓRIA DE ADRIANO

Nas tuas mãos tomaste uma guitarra copo de vinho de alegria sã sangria do suor e de cigarra que à noite canta a festa da manhã.

Foste sempre o cantor que não se agarra o que à terra chamou amante e irmã mas também português que investe e marra voz de alaúde e rosto de maçã.

O teu coração de ouro veio do Douro num barco de vindimas de cantigas tão generosas como a liberdade.

Resta de ti a ilha dum tesouro a jóia com as pedras mais antigas não é saudade, não! É amizade.

José Carlos Ary dos Santos, em Obra Poética


Camille Claudel, Les Bavardes ou Les Causeuses ou La Confidence, 1893-1905


RETRATO DE AMIGO

Por ti falo. E ninguém sabe. Mas eu digo meu irmão

minha amêndoa

meu amigo

meu tropel de ternura

minha casa

meu jardim de carência

minha asa.

Por ti morro

e ninguém pensa.

Mas eu sigo

um caminho de nardos empestados uma intensa e terrífica ternura rodeada de cardos por muitíssimos lados.

Meu perfume de tudo

minha essência

meu lume minha lava meu labéu como é possível não chegar ao cume de tão lavado céu?

Jpsé Carlos Ary dos Santos, Foto-Grafias. Obra Poética.


José Carlos Ary dos Santos ~ 1937-1984

Poeta. Oriundo de uma família tradicional da alta-burguesia, com a qual rompeu, frequentou as Faculdades de Direito e de Letras de Lisboa, mas depressa trocou os hipotéticos cursos pelo universo da publicidade (ramo em que foi um criativo notável), como aconteceu com tantos dos seus pares. As duas primeiras colectâneas, Asas (1952) e Nós, os Loucos (1953), passaram despercebidas. Teriam de passar dez anos até o seu nome chamar a atenção do público e da crítica especializada, o que veio a acontecer com a publicação de A Liturgia do Sangue (1963). António Ramos Rosa destacou então a "agilidade da sua linguagem, a irreverência e irrequietude vital que nela pulsam". Popularizado como letrista (devem-se-lhe alguns dos maiores êxitos da música ligeira portuguesa, para cuja renovação deu o empurrão decisivo),tornou-se rapidamente um poeta best-seller. É um dos autores seleccionados por Natália Correia para a Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica (1966), tristemente celebrizada pelo veredicto do Tribunal Plenário. Declamador passional de mérito indiscutível, frequentes vezes comparado a Villaret, gravou vários discos de poesia e participou de inúmeros recitais.


Escritor engagé, autor de uma poesia violentamente sarcástica, personalidade "fulgurante de mais para alguns olhos" (palavras do seu "Auto-Retrato"), acabou por ser uma vítima da normalização democrática. Com efeito, a militância no PCP (a despeito do indisfarçável "embaraço" que a sua assumida homossexualidade provocava no aparelho partidário) contribuiu para obnubilar o fulgor de uma obra injustamente subestimada pelas gerações mais novas. David Mourão-Ferreira nunca confundiu as coisas: "mesmo quando francamente ao serviço de um ideário e de uma praxis

cívica

que

não

recusam

assumir-se

como

tais,

rarissimamente renuncia, no entanto, àqueles pendores da invenção metafórica e da recriação vocabular que constituem outra vertente da modernidade". Terá sido certa propensão iconoclasta (mesmo ao nível dos formalismos literários) o óbice maior de uma poesia desde sempre vocacionada para o "tumulto" e a desobediência normativa, apostada como poucas na denúncia das múltiplas hipocrisias de regra. Pouco antes da sua morte prematura (aos 46 anos), reuniu a obra canónica em 20 Anos de Poesia (1983). Em 1989,Ruben de Carvalho organizou o volume que colige o essencial da sua produção de letrista, As Palavras das Cantigas. Está representado em diversas antologias de poesia.

in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. VI, Lisboa, 1999


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A MÁQUINA DE COSTURA Para o Mendes de Carvalho

Talhem-se as palavras justas ao corpo do sofrimento as imagens serão curtas amplos os ombros do tempo soltos os panos dos olhos bordados os do talento cosidos os dos ouvidos ao forro do pensamento. Tome-se o têxtil do tema e corte-se o que é preciso com a tesoura do riso. Mas na orla do poema depois da obra acabada deixe-se ao menos um dedo da tristeza embainhada. José Carlos Ary dos Santos, Adereços. Obra Poética


José Carlos Ary dos Santos morreu […] de desespero e de solidão. Tudo isso foi por ele procurado em êxtase, em euforia, em excesso. Tinha 46 anos e uma existência que, de certo modo, correspondeu às exigências e às lutas da época que lhe coube viver. E Ary nunca desistiu, nunca contornou obstáculos, cara a cara, frente a frente, pegou o toiro pelos cornos, como escreveu numa canção célebre. De facto, a "Tourada", mais do que uma metáfora, era a grande analogia da sua vida. Baptista Bastos, “Ary dos Santos ou a voz indomada e indomável”, in Jornal de Negócios

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 TOURADA – 1973 – Fernando Tordo  DESFOLHADA - 1969 - Simone de Oliveira


[Carlos Castro conta] como foi: Ary dos Santos

A sua genialidade ultrapassou toda a forma de dizer, de cantar as palavras. Foi o poeta grandioso que partiu há 25 anos... José Carlos Ary dos Santos. Assumiu-se sempre como 'nascido na alta burguesia'. De vasta cultura, era um perfeccionista em tudo que sabia fazer. Ele driblava as palavras. Como que as reinventava. Do corpo de linho trazia Agosto. Da menina do alto da serra com cheiro a feno pela manhã. Do cavalo à solta com poema e gomos de saudade. E na tourada daquele tempo como no tempo que hoje passa. Que toureamos ombro a ombro as feras. E não se pegou no mundo, depois de tanto tempo, pelos cornos da desgraça. Foi cantado maravilhosamente por Simone, Tonicha, Fernando Tordo, Paulo de Carvalho, Carlos do Carmo e Amália. Com 16 anos de idade publica poemas e é aclamado como a revelação. E sai de casa como todos os inconformados. Faz de tudo. Vendedor de pastilhas elásticas. Até publicitário, onde cria os melhores anúncios da época. O seu livro A Liturgia do Sangue é uma pedrada no charco. É em 1969 que se torna membro do PCP, e os seus poemas galvanizantes fazem a ditadura temer a sua voz. Quando participa no Festival da Canção RTP vence em absoluto com „Desfolhada‟ (um dos seus mais belos poemas) que Simone cantou/arrebatou. E foi Tonicha com „Menina‟, uma outra jóia da canção portuguesa. Ainda Fernando Tordo tem a vitória com „Tourada‟, numa crítica social tremenda. É Nuno Nazareth Fernandes o compositor que ao lado de Ary cria as canções de sucesso. Escreveu centenas de poemas. Publicou livros. Gravou discos onde declamava com paixão as suas palavras. Aos 47 anos de idade (18 Janeiro 1984), o poeta de „As portas que Abril abriu‟ continua vivo. ARY E A SUA REVOLTA COM O PAÍS Ary (conheci-o bem) não era uma pessoa fácil. Difícil até no trato. Mas um coração do tamanho do mundo quando era preciso. E como era vaidoso. Fazia gala disso. As palavras dos seus poemas podem dizer tudo. Da sua forte personalidade. Dos seus erros e das suas


ARY E A SUA REVOLTA COM O PAÍS Ary (conheci-o bem) não era uma pessoa fácil. Difícil até no trato. Mas um coração do tamanho do mundo quando era preciso. E como era vaidoso. Fazia gala disso. As palavras dos seus poemas podem dizer tudo. Da sua forte personalidade. Dos seus erros e das suas grandes virtudes. Da revolta que sentia porque não compreendia o seu país tantas e tantas vezes. Ary dos Santos era um lutador. INESQUECÍVEL EM TUDO Estive várias vezes em sua casa na rua da Saudade. Ouvi-o muitas vezes ralhar. Tentar ajudar. E perceber naquele grande homem uma solidão tremenda. As recordações de sua querida mãe, de seu irmão, que se suicidou aos 21 anos de idade. Uma outra dor. Teve amigos. Grandes nomes da cultura. Como era de Amália. Idolatrava-a. Fez teatro no seu tempo de juventude. No teatro de revista, assinou peças inesquecíveis. E o que foi que ele não fez?

Carlos Castro, “Vidas”, Correio da Manhã, em 24-1-2010

 Ary dos Santos – Poemas - Música  Retrato de Amália - José Carlos Ary dos Santos foto: net


Poema de Ary sobre foto (pormenor) de eli


Poema de Ary sobre pintura (pormenor) de carlos peres feio


foto: eli

ESQUECIMENTO Quando eu morrer, Sem o cansaço inútil da jornada - Porque nunca senti – Sem o manto sublime da amargura - Porque nunca chorei – Sem a réstia de fogo da alegria - Porque nunca me ri – Aqueles que me odiaram, Os poucos que me acolheram E os muitos que nunca vi, Hão-de chorar por convenção Ou sorrir por teimosia. Mas nunca mais ninguém se lembrará Do pobre que nunca riu Nem chorou Nem sentiu.

José Carlos Ary dos Santos, Infância. Obra Poética


foto: eli

 RETALHOS - Luanda Cozetti  ESTRELA DA TARDE – Mafalda Arnnauth  CANÇÃO DE MADRUGAR – Susana Félix  CAVALO À SOLTA – Viviane


foto do retrato de Ary dos Santos - em “Rua da Saudade “ - eli

 Ary dos Santos – Retrato do Poeta

Cristina Freitas ~ Eli Miguel ~ Abril 2010 ~


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